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Trágico

A significação de “in-ex-tensas” não pertence nem à psicologia, nem à moral, também não pertence a qualquer
outra matéria cuja atividade principal se pretenda interpretativa das ações humanas. O que “in-ex-tensas”
expressa, por meio do corpo nas suas implicações humanas, é o pensamento. Pensamento que, ao tomar o
homem como objeto, pensa-se a si próprio e seu modo de existência: o homem não é um ser que se possa
descrever ou definir, é antes um problema cujos sentidos múltiplos jamais interessa decifrar; pelo contrário,
inventar outros, indefinidamente, é que constitui a alegria própria de pensar e de existir.

A significação de “in-ex-tensas” é de ordem específicamente trágica se se entende por trágico o embate, de


caráter positivo, em que as contradições se manifestam irresolúveis e os seus termos se afirmam, não como
oposições, mas como diferenças no modo de existir – uma força que luta contra outra força. Essa luta, como
sofrimento, dilaceração, dor, ou alegria é a própria potência do corpo. Afetos de que ele é capaz.

Em “in-ex-tensas” é o próprio sentido da existência que se problematiza. Encontrar o sentido de alguma coisa é
saber qual é a força que dela se apodera. Mas o sentido é já uma pluralidade de sentidos. Porque são várias as
forças que aí atuam, cada uma com outra potência. Ora se opõem, entram em conflito, ora se transmutam, se
harmonizam, voltam a divergir e tornam a se metamorfosear. Portanto qualquer coisa é, na sua origem,
múltipla, e o seu sentido é inseparável desse seu modo de existir.

Como uma apreensão particular e uma assimilação intensiva, tomei essa concepção do trágico da filosofia de
Nietzsche, tal como a apresenta Deleuze em ”Nietzsche e a Filosofia”: O múltiplo é a afirmação do ser, mas
este ser não é outro senão o ser do devir. Portanto, o múltiplo é a manifestação essencial do um que devém. A
afirmação do múltiplo é, ela própria, o um. Isso tudo quer dizer que uma coisa só pode ser sendo, num
continuum, num devir, e que o ser se afirma no devir retornando sempre como diferença. “Tornar a vir é o ser
do que devém” (Deleuze 1976:20). O retorno da diferença como lei do devir, como justiça e como ser, é o que
dá à existência um caráter trágico. O entendimento do que vem a ser trágico não pode acontecer isoladamente
de um entendimento da vida.

É longa a história do sentido da existência. Primeiro, ela surge “hybrica”, como é, exemplarmente, percebido
no pensamento de Anaximandro, para quem a existência é uma soma de injustiças que lutam entre si e se
expiam mutuamente, e todas derivam de um ser original que entra num devir, numa geração de culpados, cuja
injustiça esse devir redime eternamente destruindo-os (Deleuze 1976:16). Nesse momento, ainda não há, para
os gregos, uma idéia de responsabilidade. Mas a existência tida como injusta é também o prenúncio da sua
invenção enquanto responsável. Basta que se interiorize o erro e o sofrimento para que se inaugure o livre-
arbítrio. Submetida ao trabalho absoluto da negação, a existência tornou-se sem sentido. Mas outra maneira
realmente diferente de compreendê-la é a maneira trágica, na qual é a existência mesma quem justifica tudo o
que afirma, inclusive o sofrimento. É o sentido trágico da vida: vida que é radicalmente justa e inocente.

No pensamento trágico a negação, como elemento especulativo da contradição, é substituída pela diferença,
como elemento prático. Existir é ser diferente, e o que o ser quer é afirmar sua diferença. Portanto, trágico é o
caráter afirmador de uma força, é o sentido de afirmação da vida em lugar de sua solução superior ou de sua
justificação. A essência do trágico é a afirmação múltipla: mas será possível tornar tudo objeto de afirmação? A
lógica da afirmação múltipla presume uma ética, já que para afirmar o mais áspero sofrimento é preciso liberar
o pensamento das suas formas de depreciar e julgar a vida, é fundamental entender o sofrimento em toda a sua
diversidade para não cair no puro ressentimento ou na pura má consciência. É necessário avaliar ao invés de
interpretar, é preciso vontade de vida e poder metamorfoseante dionisíaco. Acreditar na inocência do futuro e
do passado, acreditar no devir como potência de existir.

O sentido trágico das imagens de “in-ex-tensas” não está nas recriminações, nem no caráter denunciador,
menos ainda nos problemas da consciência, ou nas contradições da vontade. Não está nem mesmo na luta contra
esses modos de pensar que são o ressentimento, a má consciência, o pessimismo. Justamente o que a ironia
trágica expressa nos corpos de “in-ex-tensas” é a armadilha dos pensamentos unilaterais, que se voltam contra a
existência obrigando-a à experiência amarga da fatalidade. Essa ironia lança o pensamento sucessivamente para
um sentido e para outro, e também para zonas de opacidades de sentido. No caráter trágico, pensar é afirmar,
contemporaneamente, a pluralidade do pensamento. Os trabalhos de “in-ex-tensas” condensam ambiguidades,
permeabilidades, indistinções, tanto quanto bloqueios, barreiras, pontos de conflito. É o próprio pensamento que
se perde ou se dilacera quando, cegamente, adere a um só sentido. O sentido trágico só pode ser entendido na
medida em que se aceita a existência no modo em que ela se dá, conflitual ou harmoniosa. Abandonando as
certezas antigas, abrindo-se a uma visão problemática do mundo, o ser torna-se trágico. Ter a potência de um
sujeito trágico é, portanto, ter a capacidade de sentir as contradições, e poder fazer aparecer em si o agente e o
paciente, o inocente e o culpado, a vidência e a cegueira, a lucidez e o delírio. É poder acionar a multiplicidade
de que se é composto para continuar criando outras.

Em “in-ex-tensas”, a prótese é o personagem trágico coletivo e heróico. É também a máscara e o palco.


Enquanto coletivo, condensa os temores, as esperanças, os julgamentos, os sentimentos. Heróico, apresenta a
virtude, o ideal, o excepcional, a potência máxima do corpo. Máscara, expressa a impessoalidade e a supra-
individualidade de todo ser. E como palco constitui o sítio móvel de toda confrontação deslizante.

A prótese, em sentido amplo, como o signo preferencial, por meio do qual realizei as operações poéticas de “in-
ex-tensas”, suprime as fronteiras que separam o homem do não humano. É a marca dele e também a falta dele.
Confunde, na sua figura, o sub-humano e o sobre-humano. Oscila entre a super-potência e a im-potência.
Investe uma força de ação ao mesmo tempo que afirma uma força de reação. Exprime rupturas e
descontinuidades e, simultaneamente, o restauro dessas fraturas. Sendo assim, as próteses e órteses não
encontram domínios de significância que lhes sejam próprios. Sem uma essência definida, os seus sentidos
vacilam entre ser plenamente e ser substituto. Essas mudanças de significação, imprecisão, flutuações,
incoerências, discordâncias, essa falta de acabamento das próteses e órteses, em todos os sentidos, me foram
valiosas para a composição de “in-ex-tensas”, porque já contêm o problema do corpo, o corpo como
interrogação, o enigma da existência.

Não é a mutilação, a laceração, a fatalidade, a catástrofe que são trágicas em si; no entanto, esses
acontecimentos comportam, de forma incomparável, experiências para o pensamento pelo encontro violento de
intensidades que se interpõem aí. Neles, a ação humana se converte num objeto de avaliação. São oportunidades
que a vida oferece aos indivíduos, submetidos a uma situação de desespero, de se desfazerem na intensidade e
se refazerem outros.

Trágico é o acontecimento poético do corpo que, visualmente mediatizado na pele da prótese, articula um
debate em torno de si e da existência. O que a composição poética trágica traz, com seu encadeamento das
imagens, combinação das sequências, coerência de episódios articulados num todo aberto, é uma
inteligibilidade que o vivido não comporta, porque não há nele distanciamento suficiente para uma
problematização. Nesse processo, o que se descobre problemático é o humano.

O sonho, o presságio, condensados na figura da prótese multiplicada, expressam a contemporaneidade de um


já aconteceu, vai acontecer e está acontecendo. Os tempos se superpõe. Coexistem. O reflexo de ausências
fundidas como atualidade, na prótese, é a luz que os acontecimentos vividos refratam até as imagens.

O sujeito da dor, do dilaceramento, se encontra com o intolerável que o rompe e o torna puro fluxo, puro
embate de forças irredutíveis. A dor dessignifica um modo de existência e ressignifica outro. O sentido trágico é
o de um pensamento ativo afirmador da vida. Pensar tragicamente significa poder, alegremente, descobrir,
inventar novas possibilidades de vida. O trágico é a positividade do múltiplo, é ter a alegria de querer criar.
O sofrimento, desde sempre e de maneiras muito diversas, foi tomado como sintoma da vida
enquanto injusta, assim também o próprio devir foi utilizado como meio de provar essa injustiça. Já
nos gregos a existência era avaliada como criminosa, como hybris — ela é injusta visto que sofre;
mas porque sofre, ela expia e é redimida. Essa é a imagem titânica. Ao indivíduo titânico era imposto
a necessidade do crime e este historicamente é, segundo Deleuze, o primeiro sentido que se atribui
à existência: a vida é essencialmente injusta porque sofre e a existência é algo de criminoso,
portanto culpável. No entanto, ainda não há, para os gregos, uma idéia de falta ou de
responsabilidade. Quando os gregos falam da existência como “hybrica”, pensam que os deuses
enlouqueciam os homens, que os cegavam por vezes, que metiam um pouco de confusão em seus
cérebros, e isso servia para explicar a origem de muitas coisas incômodas e fatais. Loucura em lugar
de falta. Não é o criminoso que é responsável pelo seu erro, os deuses o são. Mas mesmo assim o
sofrimento indica uma vida injusta e ela, culpada, se justifica na dor. Então, o sofrimento que acusa a
existência é o mesmo através do qual ela pagará sua culpa original, sendo ele próprio a expiação
justificadora da mesma e o instrumento de sua divinização.
A existência tida como injusta é já um prenúncio da sua invenção enquanto responsável; basta que o
indivíduo torne seu o erro, interiorizando a culpa, para que o livre-arbítrio seja implantado. A noção
de erro, então, é substituída pela de pecado. A existência a partir daqui, além de criminosa, é
também responsável. O sujeito delibera por si próprio com relação aos seus atos. Não são mais os
deuses que o farão agir, nem a comunidade que expiará com ele seu erro. É ele mesmo que decidirá
sobre a sua vontade e responderá sozinho pelos seus atos. É a época de encontrar culpados, pior
que isso, é chegada a hora em que se torna necessário que os acusados repitam é minha culpa, e
que o mundo se sinta vingado. “Em toda parte onde se procurou responsabilidades, foi o instinto da
vingança que as procurou” (Deleuze 1976:17). A responsabilidade surge enquanto espírito de
vingança, e como filhos legítimos traz o ressentimento (é tua culpa) e a má consciência (é minha
culpa).
O sujeito responsável é aquele que introjeta a dor, a dor própria que o dilacera internamente, e que o
salva justo por esse sofrimento. Eis aqui um modo de formular a equação falta original — dor-castigo
— remissão que é antes um modo de negar a vida, de transformá-la numa máquina de fabricar a
culpa. Uma máquina de multiplicar a dor e a justificação por ela. A alegria desse sujeito é perversa,
ele resolve a contradição da existência oferecendo-se em sofrimento à sua própria salvação.
Mas além da contradição primordial, originária da unidade primitiva que se divide, que testemunha
contra a vida e a coloca em acusação, existe uma outra forma de julgar a vida que é submetê-la ao
trabalho do negativo. Desenvolver a contradição, para resolvê-la e com isso reconciliar os
contraditórios. Este é o regime da negação, da dialética moderna.
O que significa submeter a existência ao regime da negação? Trata-se de rebater o que é múltiplo
sobre um plano único, de submetê-lo a uma operação de síntese e torná-lo uma unidade. É uma
experiência de simplificação. Reduzem-se as intensidades diferenciais a um só gênero. “Aquelas
intensidades nômades, sem lugar preciso, sem dependências ou relações, adquirem um território,
são distribuídas segundo uma regra e unificadas por uma lei (lei do Uno e do Mesmo...)” (Gil
2000:73). A oposição categorial, que constitui toda contradição, recobre uma infinidade de diferenças
livres que foram obrigadas a se meterem numa identidade prévia: assim se fecham as intensidades
nômades dentro de uma unidade que forma, por sua vez, uma imagem ou representação. Um
sentido originário é atribuído a essa unidade, e tudo que dela se distinguir é remetido ao regime
da negação. O problema é que a negação própria de qualquer oposição também reduz tudo à
unidade, uniformizando aí as diferenças intensivas, e sendo assim, imobiliza o ser, retira-lhe o devir,
condena-o a ser o que é ou o que não é: um só e único sentido para ele. Portanto, na oposição
categorial “a diferença é vivida como negação e sofrimento, um conflito que se fecha num vaivém
entre duplos, sem possibilidade de sair e aceder a um fora” (Gil 2000: 81). Ao contrário do regime de
negação que só pode produzir unidades homogêneas, a diferença, enquanto fundamento da
existência, produz multiplicidades.
“A diferença é o objeto de uma afirmação prática inseparável da essência e constitutiva da
existência” (Deleuze 1976:7)
Na tragédia, os poetas gregos criavam seus personagens numa atualidade que contrastava com as
dimensões do seu passado, perfilando assim o homem e sua ação como realidades instáveis, cuja
significação ultrapassava a consciência. O personagem trágico vive esse embate inelutável e orienta
a sua ação num universo de valores ambíguos. Por minha vez, invento a prótese protagonizando a
imemorial luta travada entre as forças que se apropriam do corpo, do homem, da vida.
O caráter trágico, dionisíaco, não encarna o domínio, a moderação, a consciência de limites, mas a
busca de uma loucura divina, um êxtase; não a estabilidade, mas a evasão para um horizonte
diferente. Dionísio arrasta seus fiéis pelos caminhos da alteridade e lhes dá acesso à experiência do
devir. Ser trágico é experimentar um desterro radical de si mesmo. A paixão de Dionísio, a sua
vagueação, os seus mistérios, o seu triunfo, são o artifício dos poetas trágicos gregos para o debate
que inauguram no plano da experiência humana. O meu artifício é a dor: quando a dor acontece,
introduz-se uma alteração na tendência do ser, uma perturbação na estabilidade das coisas que
suspende todos os sentidos.

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