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3º MÓDULO – QUILOMBOS CONTEMPORÂNEOS

Quilombo é a denominação para comunidades constituídas por escravos negros


que resistiram ao regime escravocrata que vigorou no Brasil por mais de 300 anos e só
foi abolido em 1888. Os quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade
de processos que incluíram as fugas de escravos para terras livres e geralmente
isoladas. Mas a liberdade foi conquistada também por meio de heranças, doações,
recebimentos de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado e pela
permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior de grandes
propriedades.

Registram-se também casos de compra de terras tanto durante a vigência do


sistema escravocrata quanto após sua abolição. O que caracterizava o quilombo era a
resistência e a conquista da autonomia. A formação dos quilombos representou o
movimento de transição da condição de escravo para a de camponês livre.

Os quilombos continuaram existindo mesmo após o fim da escravidão. A


existência de quilombos contemporâneos é uma realidade latino-americana. Tais
comunidades são encontradas na Colômbia, Equador, Suriname, Honduras, Belize e
Nicarágua. E em diversos desses países – como ocorre no Brasil – o direito às terras
tradicionais é reconhecido na legislação nacional. Os direitos das comunidades
quilombolas também são assegurados na Convenção 169 Sobre Povos Indígenas e
Tribais da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil e por diversos
países da América Latina.

Dados do governo brasileiro indicam que, hoje, existem 3.447 comunidades


quilombolas distribuídas por todas as regiões do país, desde o Sul do Brasil até a
Amazônia. As comunidades remanescentes de quilombo ou os quilombos
contemporâneos são grupos sociais cuja identidade étnica até hoje os distingue do
restante da sociedade. A identidade étnica de um grupo é a base para sua forma de
organização, de sua relação com os demais grupos e de sua ação política. A maneira
pela qual os grupos sociais definem a própria identidade é resultado de uma
confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos: de uma ancestralidade comum,
formas de organização política e social a elementos linguísticos e religiosos.

Somente em 1988 – 100 anos após a abolição da escravidão – a Constituição


brasileira reconheceu, pela primeira vez, a existência e os direitos dos quilombos
contemporâneos. A Constituição de 1988 assegurou às comunidades descendentes de
quilombos o direito à propriedade de seus territórios coletivos. No entanto, a
efetivação do direito dos quilombolas às suas terras representa até os dias atuais um

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enorme desafio. A primeira titulação ocorreu sete anos após o reconhecimento pela
Constituição Federal. Foi em novembro de 1995, quando o Quilombo Boa Vista tornou-
se proprietário de seu território.

Fonte: COMISSSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Quilombolas no Brasil. [S.I.] Disponível em


<https://cpisp.org.br/direitosquilombolas/observatorio-terras-quilombolas/quilombolas-brasil/>.
Acesso em 11 Abr. 2021.

A LUTA PELO RECONHECIMENTO

Hoje não temos mais imperador nem escravos, mas os quilombolas – aqueles
que pertencem às comunidades negras rurais remanescentes de quilombos – estão aí,
e têm novas histórias para contar.

Comunidade quilombola Kalunga, em Goiás. (foto: Fabio Colombini)

Para começar a entender os quilombolas de hoje, é preciso voltar no tempo até


a época dos quilombos e mocambos – essas duas palavras, que tem origem nos povos
da África Central que falavam a língua bantu, significam acampamentos e aldeias.
Como você já sabe, as expressões eram usadas para chamar as comunidades de

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escravos que escapavam do trabalho forçado e iam buscar sua independência.
Quilombolas, você pode imaginar, eram os participantes dessas comunidades.

Os quilombos

Eram comunidades de fugitivos – existiram não somente no Brasil, mas,


também, em outros países da América Latina que receberam escravos africanos nos
séculos 16 a 19 – só que, nesses lugares, ganharam um nome diferente. Na Colômbia,
por exemplo, foram conhecidos como palenques – seus descendentes ainda hoje
estão presentes em várias comunidades nesse país, como a de São Basílio. Já na
Venezuela, ganharam o nome de cumbes. E tinham outros apelidos em países como
Cuba, Jamaica, Equador, Suriname, México…

Centenas de quilombolas habitam o Baixo Sul da Bahia. (foto: Acervo Koinonia)

No Brasil, quilombos e mocambos existiram aos milhares, de norte a sul. Eles


acompanharam, no século 16, a montagem de engenhos e casas-grandes no Nordeste
açucareiro, passando pelas fazendas de gado e lavouras de arroz e algodão,
alcançando as áreas de mineração em Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, até
surgirem as fazendas cafeeiras de São Paulo e Rio de Janeiro, no século 19.

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Palmas para palmares

O mais conhecido quilombo no Brasil foi o de Palmares, em Alagoas, formado


na Serra da Barriga, no final do século 16, e que durou mais de cem anos antes de ser
destruído.

Os historiadores acreditam que sua população era de mais de 20 mil pessoas.


Seus grandes líderes, Ganga-Zumba e – o mais famoso – Zumbi, lutaram para manter o
território que demarcaram para viver em liberdade e também a autonomia de seus
companheiros quilombolas, chamados palmaristas por causa do nome da comunidade.

Nos séculos 18 e 19, centenas de outros quilombos surgiram, alguns tão


grandes como Palmares. Existiu o quilombo do Quariterê, em Mato Grosso, e também
o quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais.

Ruínas de uma senzala na Ilha da Marambaia/RJ. (foto: Daniela Yabeta)

Após a abolição da escravatura, em 1888, os escravos fugidos não tinham mais


do que se esconder. Mas suas comunidades, já tão organizadas, persistiram, e seus
descendentes continuaram vivendo ali. Juntaram-se a eles os escravos libertados pela
lei, que ajudaram a formar pequenas sociedades negras nas áreas rurais de todo o
Brasil.

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Pela forte ligação com seu passado, essas comunidades continuaram sendo
chamadas de quilombolas. Hoje, o maior complexo de quilombolas fica no sertão de
Goiás. É formado pelos Kalungas, que moram nas localidades de Vão das Almas, Vão
dos Moleques, Ribeirão dos Bois, Contenda e Kalunga.

Os quilombolas estão presentes, também, nas chamadas terras de preto,


terrenos doados por seus donos em testamento para escravos e suas famílias antes da
abolição. Muitos deles ainda precisam lutar pelo direito de ocupar as terras que foram
doadas a seus avós e bisavós.

As comunidades quilombolas, ao longo dos anos, mantiveram as tradições de


seus antepassados por meio da história contada de pai para filho e criaram novos
costumes. Hoje, continuam presentes em todo o Brasil.

As comunidades quilombolas mantêm as tradições de seus antepassados, como a de dançar o Jongo.


(foto: Acervo Koinonia)

Para você ter uma ideia, no Maranhão, há, pelo menos, 527 comunidades
quilombolas distribuídas por 134 municípios. Os estados da Bahia, do Pará e de Minas
Gerais contam, cada um, com bem mais de uma centena de comunidades quilombolas.
E há dezenas no Rio de Janeiro, Alagoas, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Norte,
Espírito Santo, Ceará, Sergipe, Amapá, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Sul,
Amazonas, Santa Catarina, Paraná e Tocantins.

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Todas elas continuam lutando, até hoje, para que seja reconhecido o
patrimônio da sua história no passado e os direitos da sua cidadania no presente.

A luta dos quilombolas

A Constituição Brasileira de 1988 garante aos quilombolas o direito de herdar


as terras ocupadas por seus antepassados e de que a sua cultura seja reconhecida
como patrimônio cultural da nação.

Em 2012 o Conselho Federal de Educação aprovou um programa nacional para


educação quilombola em escolas das comunidades. Apesar do que está escrito na
Constituição e da luta dos quilombolas por seus direitos, ainda falta muito para que
eles sejam reconhecidos.

Fonte: CHC CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS. Do Quilombo ao Quilombola. [S.I.] 2016. Disponível em
http://chc.org.br/acervo/do-quilombo-ao-quilombola/>. Acesso em 11 Abr.2021.

CONSCIÊNCIA NEGRA E A LUTA DE QUILOMBOS PELO RECONHECIMENTO

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Desde o reconhecimento do governo de comunidades quilombolas até a luta
interna dos afrodescendentes de se assumirem como negros são reflexos presentes
até hoje dos três séculos de escravidão do Brasil. A violência material e simbólica, seja
ela individual ou coletiva, traz marcas ainda não superadas e pouco debatidas.

Até onde você iria pela sua liberdade? Na história da comunidade quilombola
do Alto Alegre, em Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), os mais
antigos contam que, por volta de 1890, seu fundador, Negro Cazuza, teria chegado
como escravo à Barra do Ceará, na orla da Capital e, de lá, fugido para a região entre
aquele município e Pacajus – um trajeto de quase 55Km a pé, sem conhecer um palmo
à frente. Na cabeça, apenas um desejo: sobreviver.

Ao chegar ao local, porém, foi capturado por capitães-do-mato e “amansado”


num tronco de carnaúba por três dias e três noites, debaixo de chibatadas. Também se
conta que, depois de solto, da sua resistência e do casamento com uma índia paiacu,
surgiram as famílias Agostinho, Bento e Silva – hoje na sétima geração -, herdeiras da
memória, cultura e tradições do Negro Cazuza.

Casas do território kalunga, no nordeste de Goiás, são de barro e telhado de palha (Foto: Fábio Tito/G1)

Apesar de centenária, a comunidade só teve seu reconhecimento formal em


maio de 2005, quando foi considerada remanescente dos Quilombos (CRQs) pela
Fundação Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura com responsabilidade de
emitir o certificado de autorreconhecimento do povo quilombola. Grupos étnicos com
predominância na população negra rural ou urbana, se autodefinem a partir das
relações com a terra, parentesco e práticas culturais de antepassados africanos.

(...) Para a autarquia, o território deve garantir a reprodução física, social,


econômica e cultural da comunidade residente. Hoje, 33 processos administrativos

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estão abertos para regularização no Ceará. Ao todo, as comunidades quilombolas
abrigam 1.567 famílias no Estado, segundo o Incra. Para a garantia do reconhecimento,
é necessária a elaboração de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTID), onde são apresentados documentos como o Memorial Descritivo.

Memória

Em Horizonte, a Associação dos Remanescentes de Quilombos de Alto Alegre e


Adjacências (Arqua) mantém o Centro Cultural Quilombola Negro Cazuza, que reúne a
história da comunidade, considerada uma das mais importantes para a identidade
cultural do Município.

Para Tatyana Ramalho, ser mulher, negra e quilombola implica em lutas diárias

Secretário da Arqua e bacharel em Humanidades, Jeovany Férrer, 23, explica


que a invisibilidade das comunidades negras ainda durou 100 anos após a Abolição,
pois a Fundação Palmares só foi criada em 1988. “A gente volta a chamar atenção
dizendo: ‘olha, nós estamos aqui há bastante tempo e fomos excluídos de políticas
públicas básicas'”, diz. Segundo ele, só com reconhecimento os quilombolas
conseguiram notoriedade e políticas públicas direcionadas.

Contudo, nesse hiato, eles não esperaram. Quem detinha maior conhecimento
sobre uma área ajudava os demais; dessa forma, surgiram professoras, parteiras e
curandeiras. “Até hoje, nós temos remédios etnomedicinais, herdados provavelmente
dos nossos antepassados com base africana. Se não temos políticas públicas, nos
articulamos com nossos conhecimentos tradicionais”, conta Jeovany.

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A identidade quilombola, porém, ela só reconheceu efetivamente no ano
passado. “Eu passei um período negando essa questão porque não tinha um
empoderamento verdadeiro. Eu alisava o cabelo porque era mais prático e bonito.
Agora, estou passando por uma transição capilar para voltar ao cacheado. É uma
resistência, uma luta diária procurando se fortalecer e empoderar outras pessoas”,
discute.

Obstinação

Os efeitos de três séculos de escravidão ainda são profundos. O período,


caracterizado pela imposição da supremacia branca e do cristianismo, negou a
identidade do negro ao suprimir suas referências míticas e ao fazê-lo acreditar que era
propenso a servir, pontua o gerente do Núcleo dos Estudos Africanos e Afro-Brasileiros
da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(Neaab/Unilab), Luís Tomás Domingos. “Foi uma violência simbólica que ainda
perpassa o inconsciente coletivo brasileiro. As consequências estão aí, mas ninguém
fala, ninguém debate”.

Uma delas é o próprio estigma que a cor da pele carrega. “Alguns


afrodescendentes têm dificuldade de se assumir como negros porque, através da
própria história, foram instigados a pensar que são feios, que são escravos. Quem tem
a coragem de assumir essa identidade?”, reflete o professor.

Nêgo do Neco: “A força vem da veia, vem do sangue. Negro é duro na queda”

Para reverter esse quadro, uma saída: a memória. Luís Tomás Domingos
descreve que a própria história dos quilombos é de obstinação, pois foram formados
por indivíduos que receberam tratamento desumano em fazendas e engenhos,

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fugiram e ocuparam lugares inacessíveis “onde pudessem ser livres”. “É um processo
de identidade e resistência de um povo que não aceitou ser escravizado, não aceitou o
trabalho forçado, não quis ser submetido”, analisa.

Força que está no sangue de Nêgo do Neco, descendente de Negro Cazuza, que
também vive nas veias de Tatyana Ramalho: “Ele foi a pessoa que trouxe vida a esse
lugar. Às vezes, eu fico imaginando todo o sofrimento que ele passou e, mesmo assim,
não desistiu. Como ele, a gente luta hoje pra que nossos filhos e netos vivam melhor
no futuro. A história continua”, completa.

No Ceará, dez comunidades quilombolas são tituladas e delimitadas por meio


de Portaria de Reconhecimento emitida pelo Incra. São elas: Sítio Arruda, em Araripe;
Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, em Tamboril; Alto Alegre e Base, em
Horizonte e Pacajus; Três Irmãos, em Croatá; Brutos, em Tamboril; Serra dos Chagas,
em Salitre; Sítio Veiga, em Quixadá; Boqueirão das Araras, em Caucaia; Minador, em
Novo Oriente, e Lagoa do Ramo e Goiabeiras, em Aquiraz.

Fonte: Portal Geledés. Consciência Negra e a luta de Quilombos pelo reconhecimento. [S.I.] 2017.
Disponível em <https://www.geledes.org.br/consciencia-negra-e-luta-de-quilombos-pelo-
econhecimento/?gclid=Cj0KCQjwmcWDBhCOARIsALgJ2QfkF3CWDq1ju93CoHvlVl_6_7Y-
McLyZxCwbMwrjdU7OOBw9O-XNrIaAtAQEALw_wcB>. Acesso em 12 Abr. 2021.

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