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Artigo Moringa - Dramaturgias Do Cavalo Marinho
Artigo Moringa - Dramaturgias Do Cavalo Marinho
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também determina quais e como das escolhas, durante momentos nos quais
acontecem os episódios. parece que nada acontece – quando
discutem o que fazer ou como fazer, por
As escolhas dramatúrgicas, quando feitas
conta de algum figureiro atrasado, ou do
no momento da brincadeira, são realizadas
banco que, por não saber qual figura
sem uma aparente preocupação em manter
entraria, não soube tocar a toada certa, ou
a discrição sobre o que está sendo
mesmo por uma dispersão qualquer –, tudo
decidido. Sobretudo nas brincadeiras de
isso se torna parte da dramaturgia e da
Mestre Biu Alexandre e de Biu Roque, as
composição ao mesmo tempo. Uma
decisões e dúvidas são evidentes e sempre
dramaturgia que se resolve não por meio
me chamaram muito a atenção. As
de uma centralização de decisões em torno
interrupções para acordar sobre qual figura
da figura do mestre, como seria o habitual,
entrará, qual toada será tocada, qual loa
mas na dispersão e na simultaneidade de
será dita são constantes nesses
eventos, na exposição daquilo que
brinquedos e isso não parece perturbar
comumente seria esperado fazer parte de
nenhum brincador. O fato do acordo
uma dimensão invisível da cena enquanto
acontecer em cena demonstra uma outra
prática dramatúrgica. Ao expor essa
convenção cênica diferente do teatro
dimensão, ela mesma se torna material da
ocidental que aproxima o Cavalo Marinho
cena e com ela um possível campo de
da arte da performance, como também foi
invisibilidade e potência de criação de
apontado por Mariana Oliveira (2006). É
sentidos se abre.
perceptível que na brincadeira, apesar dela
se estruturar a partir de elementos que são A brincadeira do Cavalo Marinho, como o
identificados ao campo da representação espetáculo, se realizaria nesse ponto de
(associado aos recursos da ficção e da cruzamento entre um espaço visível e um
ilusão), o que se sobressai é da ordem do tempo invisível, compreendendo a sua
acontecimento, o jogo cênico se estabelece duração. Esta última, sendo extremante
evidenciando a realidade. variável, torna sua dramaturgia múltipla
desde o princípio. Mas, além disso, as
Observo isso ao verificar que a vida
temporalidades sobrepostas constituintes
cotidiana está sempre presente na
de um plano de contiguidade entre real e
brincadeira, sem que haja grande distância
ficcional – também presente no teatro
entre figura e figureiro, brincador e
contemporâneo (LEHMANN, 2007) – teria,
espectador, brincadeira e vida cotidiana.
a meu ver, uma relação direta com a
Pavis (2001, p. 07), em seu Dicionário de
invisibilidade de sua dramaturgia.
Teatro, explica o verbete acontecimento, se
Primeiramente, é preciso considerar as
referindo à experiência que se dá entre ator
temporalidades evocadas pelas figuras e
e público no momento da apresentação. No
experienciadas na brincadeira, no
caso da brincadeira estudada, talvez seja
cruzamento entre a dramaturgia do
possível afirmar que o acontecimento é
brincador e a dramaturgia da brincadeira.
criado pela relação brincador/brincador,
Esta pode ser pensada por cruzamentos
mais do que brincador/público. Mas o que é
espaço-temporais nos quais se sobrepõem
interessante destacar é que a exposição
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Cavalo Marim. Seu Antonio Teles Lucindo afirma ter tido contato com esse
mandou os meninos botá, passou a livro através de uma “cientista”,
dica pros meninos, a gente viu, e a
gente encaixou na história. E quem supostamente uma praticante das Ciências
pegou a fama nessa figura foi a gente Ocultas e que daí viriam o poder e a
aqui, não foi nem Antonio Teles. E sensibilidade, adquiridos por ele para botar
quem era pra pegar a fama era eles, a figura do caboclo de Arubá, que é
mas eu não vou negar que a gente fez
o que a gente sabia porque a gente também uma entidade da Jurema7.
viu. (apud LARANJEIRA, 2013, p. 195)
Esse relato é particularmente interessante
para pensar a junção entre o sagrado e o
Os fragmentos viriam de diferentes lugares.
profano na brincadeira. A comicidade e a
Sebastião Pereira de Lima, conhecido
sexualidade se encontram no mesmo
como Seu Martelo e experiente Mateus da
espaço da festa, por vezes,
região, afirma que, além de criar loas
simultaneamente à religião, como na parte
(versos) próprias e aprender por
onde cantam para a Estrela do Oriente,
observação em brincadeiras de Cavalo
símbolo relacionado ao nascimento de
Marinho, também trouxe outras de um
Jesus. Entre um verso e outro cantado em
reisado da Paraíba e de um cordel recitado
homenagem aos Santos Reis (reis magos),
numa praça (OLIVEIRA, M., 2006). Borba
Mateus e Bastião fazem gestos que
Filho (2007) afirma que na formação do
remetem ao ato sexual. No momento de
Bumba meu boi fizeram parte o romanceiro
predominância católica, quando se espera
e a literatura de cordel. Murphy (2008)
uma seriedade própria dos ritos religiosos
relata que mestre Batista tinha folhetos de
dessa tradição, o escárnio e a zombaria
cordel de onde tirava versos para a figura
convivem com a religiosidade.
do Vaqueiro. E ainda sobre Batista, mestre
Inácio Lucindo diz que este havia A confluência de práticas religiosas e suas
aprendido as figuras dos Bodes em um visões de mundo fazem parte dos materiais
livro. O mesmo brincador faz menção a um que se articulam para formar dramaturgias
outro livro que pode ser entendido como singulares na brincadeira. O aspecto
uma referência também encontrada no religioso seria um desses elementos
Cavalo Marinho, o Livro de São Cipriano. invisíveis que permeiam e dão forma à
Muito popular no Brasil, seja no meio rural dramaturgia corporal do brincador e da
ou urbano, é um misto de narrativas e brincadeira. Elas articulam sentidos desde
lendas da vida deste santo-feiticeiro, com a preparação da brincadeira, ou muito
receitas, feitiços, histórias de tentação e de antes, desde a formação religiosa do
conversão, incluindo o pacto com o diabo e brincador que evidencia fortemente modos
ensinamentos para enfrentar situações
adversas (FERREIRA, 1992). É um livro
7 Prática religiosa bastante difundida em Pernambuco e
maldito, temido por lhe atribuírem grande na Paraíba. José Jorge de Carvalho (1998) explica que a
poder e, muitas vezes, interdito. Desse livro palavra jurema designa tanto o culto, quanto uma árvore
sagrada (Pithecolobium tortum) e, ainda, a infusão, de
não saiu nenhuma figura do Cavalo poder alucinógeno moderado, feita com a entrecasca e a
Marinho, mas um conhecimento para botá- raiz da árvore. Além disso, a Cidade do Juremá é uma
das moradas celestes onde moram as entidades
la de maneira específica. Mestre Inácio sobrenaturais, os Caboclos e Mestres.
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de ser que têm por herança as culturas (2004, p. 85) –, da cultura que está do “lado
indígenas e africanas. Para tais culturas, o visível da linha abissal” – para usar o termo
corpo e a dança são meios de ligação entre de Santos (2010, p.33) –, e a
o mundo vivido e o mundo das divindades, figura/entidade, representante da religião
entre a doença e a cura, entre o profano e que foi objeto de perseguição policial e
o sagrado, ou ainda, entre o praticante e o cerceamento durante muito tempo.
espírito. Escutei em uma das viagens a
campo o termo, espritar, um verbo de ação Uma dramaturgia corporal que dialoga
para designar tais ligações num terreiro de com a dramaturgia da brincadeira
candomblé de Condado-PE. Quando ouvi a
palavra perguntei, utilizando uma maneira A tomada de fragmentos e a reorganização
adaptada de uma expressão já escutada destes num todo coerente não são restritas à
em terreiros de candomblé na Bahia, para brincadeira. A religiosidade presente nesse
me referir à incorporação do orixá. Eu ambiente também inclui, absorve e recria a
disse: “ah, pegar espírito?” E a esposa de realidade histórica e diversas outras práticas
Aguinaldo da Silva, Ivanice, explicou: “os religiosas que se misturam no que é chamado
esprito já estão neles, eles se espritam”. de Umbanda, Jurema e Catimbó. Por isso
Esta explicação sugere um tipo de mesmo não é apenas uma estética, mas uma
pensamento “materialista espiritual”, que sociabilidade singular que é experimentada
reafirma a centralidade do corpo nessas com o Cavalo Marinho ou em seu entorno.
práticas religiosas evidenciada por meio de Dessa maneira, é possível dizer que sua
uma corporalidade específica. temporalidade permite essa abertura, inclusão
e proliferação de materiais, e só assim
Assim, no Cavalo Marinho, a religiosidade
proporciona os encontros e cruzamentos entre
se exprime pela devoção católica, com
uma diversidade de fragmentos. O tempo da
seus louvores, pela prática ritual da Jurema
performance da brincadeira é um tempo no
manifestada no transe do brincador ao
qual pode ser estendido por muitos
botar o Caboclo, mas também se relaciona
acontecimentos, por uma proliferação de
ao imaginário pagão, já que a entidade foi
encontros, convergências, confluências entre
associada ao Livro de São Cipriano. Tais
figuras, loas, toadas, samba, bonecos, bichos,
práticas se combinam no mesmo espaço
práticas religiosas, humor e crítica social. Mas
da brincadeira, porém não tão próximas no
também esses encontros, que por inclusão
tempo de sua duração. É possível dizer
geram misturas, se dão ao longo da formação
que estejam mesmo propositalmente
da brincadeira e ao longo de um tempo
distantes, já que a homenagem aos Santos
histórico no qual tais temporalidades também
Reis acontece no início da noite e o
se consumam. Nos cruzamentos de tempo
Caboclo da Arubá aparece mais tarde. O
real e ficcional que se articulariam esses
momento dos cantos e loas que remetem
elementos e se estruturariam sentidos em uma
ao catolicismo considero como
lógica própria.
representantes da “lei e da vigilância” –
para citar Phelan (1997) a partir de Pais
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