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A dialética
em Piaget
que explica o todo da vida por elementos isoláveis. Por último, foram traçados
os esboços de uma teoria das totalidades relacionais, vinculada a mecanis-
mos de auto-regulação. Isto vale para as concepções referentes tanto ao
sistema genético como à evolução das espécies e ao organismo individual.
Em qualquer caso, Piaget considerou em termos dialéticos o movimento
totalizador das idéias: no início, estas se referiam a traços psicomórficos, depois,
voltaram-se com exclusividade aos traços físicos atomísticos e, posteriormente,
constituíram sínteses superadoras das duas primeiras concepções. Por exemplo, a
explicação do desenvolvimento do organismo por forças vitais e a explicação físi-
co-química por elementos constitutivos são superadas no plano genealógico
pelas explicações que recorrem à auto-organização ou à equilibração. Nesta
última, renova-se a colocação dos problemas, já que, nos processos de auto-regu-
lação, chega a integrar os processos físico-químicos às totalidades.
Piaget postulou um forte paralelismo entre a história das pesquisas biológi-
cas e a história das perspectivas metodológicas na psicologia do conhecimento.
Assim, o finalismo1 anterior à teoria da evolução propriamente dita pode ser com-
parado com o estruturalismo da psicologia da Gestalt.2 Nos dois casos, postulam-
se estruturas ou organizações já dadas, independentemente de uma gênese. Do
mesmo modo, o mutacionismo3 que reduziu a evolução à modificação ao acaso
dos átomos da herança e à intervenção da seleção natural foi vinculado ao
associacionismo psicológico originado no século XVII e ao empirismo filosófico.4
Nestes enfoques, procura-se dar conta das mudanças produzidas no desenvolvi-
mento, seja interna ou externamente ao organismo, mas sem recorrer a uma
estrutura. Seria algo como uma gênese sem estrutura. Ao contrário, a biologia da
auto-regulação e a psicologia genética podem ser consideradas como uma supe-
ração das versões anteriores. O tertium* consiste em postular o caráter inseparável
da gênese e da estrutura, identificando, tanto na biologia quanto na psicologia da
inteligência, estruturas orgânicas ou do conhecimento que são o produto e a con-
dição da gênese. Esta se explica por um mecanismo de equilibração entre organis-
mo e meio, entre sujeito e objeto. Deste modo, põe-se em relevo um caminho não-
linear em direção à objetividade historicamente construída dos conhecimentos
científicos. Trata-se da conquista progressiva de uma síntese nas teorias psicoló-
gicas e biológicas, um produto da articulação progressiva entre tese e antítese.
Nas ciências sociais, constata-se um processo semelhante em relação ao
conceito de totalidade social. Por um lado, a tese rousseauniana de um indi-
víduo cuja natureza humana é anterior às relações sociais converte as insti-
tuições em um fenômeno derivado das propriedades naturais. Por outro
lado, o todo social de Durkheim impõe aos indivíduos uma série de proprie-
dades que não estão neles, de modo que a explicação sociológica se baseia na
história das totalidades individuais. Aqui, a consciência coletiva assume al-
guns traços da consciência individual e se sobrepõe aos indivíduos. Ao contrário,
a sociologia concreta afirma que a sociedade é constituída por interações desde
a técnica até o direito que apresentam alguma organização. Tais interações
devem ser estudadas na conduta dos indivíduos por elas modificadas: A relação
social constitui uma totalidade em si mesma e produz novas características que
transformam o indivíduo em sua estrutura mental (Piaget, 1975, vol. III,
p.173). Em outras palavras, essa totalidade não é uma somatória de indivíduos,
nem uma realidade que se impõe a eles, e sim um sistema de interações que
modificam estes últimos (Piaget, 1975, vol. III, p.174).
Em todas as disciplinas examinadas, pode-se ver a história de sua cons-
tituição como a adoção de um método relacional que envolve a superação das
intuições de totalidade e das composições atomísticas. Esse método, de
acordo com Piaget (1967c, p.1234) consiste na construção de relações,
sendo que cada uma delas já é totalizante, que culminarão em estruturas de
conjunto. Para Piaget, o método dialético tese, antítese e síntese é uma
forma do método racional e, na sua forma generalizada, confunde-se com ele
(Piaget, 1967c, p.1235). Assim, procura-se estabelecer uma interação entre os
elementos opostos, sustentar a totalização como um processo e, finalmente,
assumir a recusa de qualquer conceituação estática. Neste sentido, toda
conceituação estrutural ou toda conceituação genética isto é, a totalização e
a história é negada em termos de sua síntese o construtivismo relacional
ou dialético nas ciências biológicas, nas ciências sociais e na psicologia.
Piaget utiliza aqui os termos tese, antítese e síntese (ou tertium) que foram
atribuídos a Hegel pelos historiadores da filosofia. Nestas análises metodoló-
gicas, nosso autor mantém um espírito hegeliano em um sentido amplo, ao
caracterizar uma certa oposição entre duas teorias iniciais e sua posterior
superação por uma teoria integradora que conserva traços daquelas.
Piaget foi considerado, muitas vezes, um pensador não-dialético que
defendia teses estruturalistas vinculadas ao racionalismo kantiano ou ainda
às idéias de Durkheim, que o teria levado a pensar os sistemas intelectuais de
modo continuísta e universalista (ver, por exemplo, Marková, 2003).
Contudo, no contexto do debate no pensamento francês dos anos de
1970, Piaget (1968) adotou claramente uma posição de recusa à postura
estruturalista, pela qual as ciências humanas estudavam os sistemas de
signos sem considerar seu modo de produção histórica. Para ele, a condição
de possibilidade destas ciências residia em estabelecer leis de transformação
das estruturas e em sustentar um laço constitutivo entre estruturas e função,
38 José A. Castorina e Ricardo J. Baquero
ALGUMAS LIMITAÇÕES
Piaget não foi conseqüente com a posição metodológica que presidiu sua
reconstrução da história da ciência e que orientou sua elaboração dos proble-
mas de pesquisa. Por um lado, em seus textos há certas expressões caracte-
rizadas por uma ambigüidade que as aproxima de uma ontologia platônica.
Por exemplo, a afirmação de que existem estruturas elementares comuns a
todos os seres humanos, que parece supor a existência de sistemas cognitivos
fora de sua gênese na interação com o mundo. Semelhante reificação da
organização da atividade deveria se dissolver em uma perspectiva construti-
vista sustentada (García, 2000).
Por outro lado, a metáfora do desenvolvimento da lógica natural como
hierarquia escalonada de sistemas estruturais utilizada principalmente em
obras anteriores à teoria da equilibração não foi feliz. Basicamente, mostrou
os comportamentos cognoscitivos como derivados linearmente daqueles
sistemas. Desse modo, o contexto das condições socioculturais e os diferentes
domínios de conhecimento não afetavam de forma significativa as performan-
ces, mas eram externas à atividade lógica, diferentemente do que começou a
se insinuar no final da obra piagetiana, com Psicogênese e história da ciência.
Aqui, as representações sociais que pré-significam os objetos são constitu-
tivas da equilibração enquanto condições de contorno para a atividade
sistemática dos sujeitos.
Mais ainda, nas obras do período estrutural, a passagem de um sistema
cognitivo a outro era produzida por uma tendência interna ao equilíbrio, em
vez de estar vinculada a um processo construtivo que incluísse aquelas condi-
ções de desestabilização e de reorientação. A gênese dos sistemas de conhe-
cimento é apresentada em certos textos como uma ordem lógica que atenua a
dialética entre gênese e estrutura, entre as formas de conhecimento e suas
condições de produção, o que, no mínimo, debilita significativamente sua
aplicabilidade e seu alcance (Fischer e Bidell, 1998).
Nesse enfoque do desenvolvimento, a sucessão observada das fases cor-
responde a uma ordem mais ou menos inalterável das elaborações do sujeito de
42 José A. Castorina e Ricardo J. Baquero
conhecimento. Postular essa fixidez dos períodos nas mudanças que ocorrem na
atividade mental equivale a pôr um limite para pensar o conceito genuíno de
desenvolvimento, que pretende ser justamente um instrumento para liberar
aquela atividade um télos a que se dirige (Vonèche e De Paolis, 1990). Uma
perspectiva mais consistentemente dialética conduz a aceitar a possibilidade de
múltiplos caminhos de elaboração, segundo as interações do sistema de conhe-
cimento com outros sistemas (Chapman, 1988a). Ao se postular uma ação
aberta às interações com novos objetos e com condições contextuais, a dialética
se torna mais plausível e relevante para pensar o desenvolvimento. A dialética
imanente da reconstrução dos sistemas de pensamento daria lugar a uma
interação do próprio sistema cognitivo com os contextos sociais que seriam suas
condições de contorno, e poderiam reorientar o desenvolvimento.
É muito provável que o imanentismo da razão, essa tendência da marcha
dos conhecimentos em direção a estados ideais de equilíbrio, amplamente
presente na obra piagetiana, tenha criado um obstáculo para uma tese da
equilibração mais aberta aos intercâmbios com o mundo. Por isso, a própria
teoria da equilibração ainda precisa ser reformulada para destacar de forma
mais nítida o caráter não necessário (em sentido lógico) da formação das
estruturas cognitivas a partir de outras anteriores, já esboçado na última for-
mulação piagetiana.
É por isso que, ao rever criticamente as limitações na metodologia dialé-
tica ou a permanência das idéias anteriores ao enfoque propriamente interativo,
é possível recuperar e ampliar a integração dialética entre gênese e estrutura.
Mas, compete, sobretudo, aos herdeiros da tradição piagetiana assumir uma
posição crítica para rever algumas teses do núcleo da tradição à luz dos desafios
lançados pela pesquisa psicológica contemporânea. Isto é, devem elaborar a
dialética entre a construção cognitiva e as intervenções do contexto social: dos
sistemas semióticos que orientam a formação de certas aquisições matemá-
ticas das crianças (Martí, 1996), das práticas institucionais constitutivas das
condições de contorno que restringem a aquisição de saberes sociais (Casto-
rina e Faigenbaum, 2002) e das condições da intervenção didática na recons-
trução dos saberes disciplinares, que dão lugar ao que se denomina gênese
artificial das idéias dos alunos (Lemoyne, 1996).
Nesse sentido, como imaginar uma interação construtiva dos sujeitos de
conhecimento com o objeto a ensinar propostos pelo docente, de caráter so-
ciocultural, e não meramente com os objetos da realidade física; um objeto que
é proposto em uma situação didática que estrutura parcialmente a atividade
cognitiva dos sujeitos? Em outras palavras, qual será o significado de uma
dialética do conhecimento quando este se produz em condições inéditas para as
pesquisas clássicas centradas na gênese natural dos conhecimentos?
Dialética e psicologia do desenvolvimento 43
NOTAS