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Reverberação e Gesto

Ariane Oliveira1

Há algum tempo, as palavras me tomam para além do espaço-tempo. Quantas


palavras cabem em um quarto, numa sala, num minuto, em duas horas ou em cinco
dias? Paredes e segundos não me cabem. A palavra transborda o tempo e a
materialidade, mas ainda não é suficiente. É apenas mais um caminho, mais uma
resposta e uma maneira de dizer. E eu que passei os últimos anos morando em um corpo
afundado na linguagem, ao reparar a insuficiência da palavra, redescobri meu corpo pré-
linguagem.

Assim, pesquiso, me afeto e me manifesto sobre o ser/ter nascido num corpo-


casca mulher. Escrevo, fotografo, desenho, desdobro e rasgo, amasso, costuro, me
desnudo e grito. Como com meu corpo e minha sujidade, minhas mãos e meus pelos
tranço essa trama da língua que não falo, através de um corpo silêncio e potência.
Pretensa criação, experiência, materialização sensorial de um lugar em que se possa
falar de corpo e de sangue, de poeira e de política com linha e agulha, tecido, vidro e o
que mais aparecer no caminho para me ajudar a (des)dizer (Bourgeois, 2000), até criar
um corpo outro, coletivo e público (vestível, pendurado, afetivo e afetado) que possa se
mostrar na praça, na rua e no museu.

Dos pelos, peles, ex(crescências) e entranhas a que não se permite chegar à luz
do sol, desde aí vem a vontade de criar e de ser e de dizer, derramar, dar amor, ser mar,
com um corpo potência inserido na linguagem, que é  também um corpo silêncio,
potente porque fala do que não se pode dizer, delicadeza caótica de um trabalho
armadilha (Deleuze, Guattari, 2014). Passo em falso num turbilhão violento de ideias.
Corpo afundado no discurso, que busca a superfície no fazer e que volta a necessidade
de com palavra dizer. Palavra como terra. De tantas vezes ter perdido as referências,
tendo apenas as mãos e o sentir, desfaço o chão com a imagem, e o retomo com a
palavra.

Busco encontrar meu próprio tempo através das coisas. Bordo com o
conhecimento que carrego nos bolsos. Entendo o ato como expressão de uma trajetória.
Como os caminhos desenhados nas mãos nas intervenções em fotografia de Annette
1
Graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Elabora sua pesquisa a
partir da poética do corpo e suas afetações. Participou de exposições coletivas em Porto Alegre.
Messager, ou como os pelos que não pedem permissão nas fotografias de Francesca
Woodman. Uma solidão revelada e compartida aos olhos dos outros, em uma carta de
Lygia Clark a Mondrian (Clark, 2014). Um enterrar-se para continuar vivendo, como
Ana Mendieta. Um deixar de seguir passos alheios e passar a viver no próprio corpo-
barco para assim poder então acessar o universo do outro, que é sempre um pouco de
nós mesmos. Somos feitos matéria-trama, o corpo é um caminho, mapa de cicatrizes.
Assim, entrego-me ao fazer num movimento de ser tanto de mim mesma para então
poder ser também outras e outros. Uma mulher com força e consciente da dificuldade de
buscar e consolidar um lugar nas artes visuais, a exemplo de Louise Borgeois, mas
também um bordado sem pretensão, baseado em Leonilson e Arthur Bispo do Rosário.

Um trabalho transitório e transitante, que pode habitar lugares diversos por sua
transmutabilidade informal e errante. Uma vontade de falar de complexidades e
profundezas através do simples e encontrar rastros de verdade no ruído, no resto, no que
excede sem pedir licença. Palavras, traços e trançados em processo. Memórias repetidas
à similitude labiríntica que atualiza (Foucault, 1988). Infiltração cujo significado só
pode ser encontro em sua oculta obscuridade. Nem controle, nem descontrole, um estar
fora da estrutura e poder ser num tempo-espaço suspenso. Uma borboleta mariposa, que
não se preocupa se feia ou bonita. Mãe, pai, homem, mulher, algo no entre de tudo isso,
um riso risco, rio alto, grito, um sem nome, nome de ninguém no entre de qualquer
lugar incerto e não sabido onde escrevo e me desdobro, enquanto revelo o que há dentro
de mim através do fazer que transforma a materialidade.

Do discurso à vontade de dizer, a insuficiência da palavra me faz buscar num


corpo pré-linguagem o impulso da fala, como asa da língua que não cala seu
silenciamento. Palavra que vira gesto e movimento de corpo, que dispara o obturador,
conduz o lápis e o pincel. Corpo renascido da ausência, que pode então encontrar seu
desejo na construção de um labirinto de memórias refeitas em terra nova e desconhecida
(Deleuze, Guattari, 2010), mapa da minha desgraça coletiva e desejosa, entre medos e
prazeres.

Desse modo, sigo em processos indiciais de corpo- corpo fotografado, em fotografia


contornado pelo lápis, contorno esse que serve como ponto de partida para a mancha de
aquarela e o bordado. Carrego o bordado comigo para, em qualquer tempo, poder trazê-
los às mãos e estabelecer um centro. Bordo com um gesto resultante de meu próprio
tempo-espaço. Mais um deixar ir a linha, do que ponto e vírgula e forma. Cada ponto
como mais um passo no trajeto que percorro. Quero descobrir quanto tempo cabe em
um metro de tecido. Para isso também carrego comigo um diário de anotações do que
transborda, numa escrita incorporada. Faço o registro do processo em palavra e imagem
(fotografia e vídeo), como estações de deslocamento. Passos rumo ao corpo entregue ao
espaço, que possa comunicar à coletividade. Corpo aberto, distendido em cores, formas,
linhas e texturas.

Há algum tempo, as palavras me tomam para além do espaço. Há algum tempo, as


palavras me tomam para além do espaço-tempo. Quantas palavras cabem em um corpo
imaterial de memórias? E eu que passei os últimos anos morando em um corpo-casa de
palavras, ao reparar a insuficiência da palavra, redescobri meu corpo pré-linguagem.
Assim, pesquiso.

Referências

BOURGEOIS, Louise. Desconstrução do pai, reconstrução do pai. São Paulo: Cosac &
Naif Edições, 2000.

CLARK, Lygia. Carta a Mondrian. In: Escritos de artistas, anos 60/70. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Kafka por uma literatura menor. Tradução de
Cintia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São


Paulo: Editora 34, 2010.

FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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