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R. Museu Arq. Etn., 30: 118-130, 2018.

A inserção indígena nos museus

Mariane Aparecida do Nascimento Vieira*

VIEIRA, M. A inserção indígena nos museus. R. Museu Arq. Etn., 30: 118-130, 2018.

Resumo: Este trabalho se reporta a algumas ações de curadoria compartilhada


dentro de museus, examinando mudanças institucionais, discursivas e pragmáticas
que vêm se dando, a partir principalmente dos debates pós-modernos e pós-coloniais
em torno da imagem indígena tal como fora produzida/representada por meio das
coleções museológicas de um período de “construção nacional”. Se a partir do
século XVI as coleções foram formadas na chave do exótico, que por sua vez confirma
o paradigma evolucionista e civilizatório, a atuação dos índios nas instituições de
guarda problematiza a apropriação ocidental da imagem acionada pelos artefatos,
inclusive naqueles reunidos pelos próprios indígenas para formar as coleções de seus
museus. Em outro viés, complementar, a internet aparece como um meio para a
reapropriação ou repatriação imagética, como mostra o site Roots2Share.

Palavras-chave: Curadoria Compartilhada; Museus; Indígenas; Imagem;


Repatriação.

Territórios (re)conquistados eram reunidos como representativos dos povos


encontrados, e interpretados pelo signo da

O presente artigo parte das trocas


interculturais dentro do que
chamaremos de curadoria compartilhada nos
curiosidade, assim como serviam enquanto
prova material da ida a estes territórios. As
novas terras foram associadas ao paraíso
museus.1 As coleções compostas de artefatos perdido, o Éden (Hollanda 2004) descrito
indígenas começaram a ser formadas no período na Bíblia, e seus habitantes, como um povo
da expansão europeia, no final do século XV. puro a ser educado e catequizado. No entanto,
Viajantes europeus tiveram contato com tal visão idílica não se manteve e a pretensa
coletividades até então desconhecidas para eles selvageria dos nativos apareceu recorrentemente
e iniciaram trocas de alimentos, ferramentas, ressaltada, principalmente na alusão ao
além de coletarem espécimes nativos da fauna canibalismo (Lestringant 1997).2
e da flora. Nesse contexto, os objetos também

1 O artigo versa sobre questões trabalhadas na


dissertação de mestrado intitulada Narrativas dos ameríndios: 2 Na construção de imagens, no mínimo, ambíguas
disseminação de uma visão do contemporâneo, defendida dos indígenas do dito Novo Mundo pelos europeus
em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Memória identificamos sinais da agência desses povos. Viveiros
Social, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro de Castro (2002: 206) aponta que se os europeus viam
(PPGMS/UNIRIO), sob orientação do Prof. Dr. Amir Geiger. nos índios a possibilidade de estender sua cultura,
impondo os costumes europeus e introduzindo a religião
cristã, e os indígenas ao serem confrontados com os
europeus enxergaram a possibilidade de “alargar sua
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em condição humana”. Ao contrário da concepção europeia,
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade principalmente das queixas missionárias, os índios, longe de
Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ). possuírem memória e vontade fracas, se apropriavam do que
<mariane.anv@gmail.com> lhes interessava na cultura do outro.

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Quanto aos seus artefatos, ao serem expropriação de seus domínios, da violência e


reunidos em coleções e inseridos em instituições da exploração perpetrada pelos espanhóis. Pode-
de memória, foram ressignificados à luz de se dizer que, se Poma de Ayala narrou o bom
narrativas que serviram ao regime colonial. A governo indígena, essa mesma narrativa, de
imagem dos indígenas passou a ser associada a forma simétrica, evidencia também a barbárie
teorias evolucionistas que os colocavam em um espanhola.
momento inicial do desenvolvimento humano, A proposta que se seguirá é a de articular
imagem que teve continuidade até o início do a imagem do indígena colonizado com a
século XX (Cunha 1992). O evolucionismo foi formação de coleções que se encontram
uma forma de explicar a diversidade, às custas salvaguardadas dentro dos museus. Dessa
da inferiorização do outro, e, para entender as forma, a própria coleta de objetos passou por
narrativas que foram associadas às coleções de um movimento de “curiosidade” a “símbolo
acordo com essa teoria, podemos nos ater ao de inferioridade”, assim como os indígenas
descobrimento ou invasão do que foi chamado de passaram – na percepção europeia – de
Novo Mundo. Juan Ginés de Sepúlveda (2012), inocentes a selvagens. A presença de indígenas
e Bartolomé de las Casas (2012) travaram dentro de instituições museológicas pode atuar
um intenso debate em torno do lugar do como um direcionamento para a curadoria
indígena no mundo, entre 1550 e 1551 de tais coleções (tanto as reunidas sob o signo
(Serna 2012: 385). Enquanto o primeiro colonial quanto as contemporâneas) sob o “bom
utilizou seus conhecimentos filosóficos e governo” indígena. Portanto, o argumento de
teológicos para destacar a inferioridade dos forma frouxa é de que o ocidente produziu dois
índios, defendendo inclusive sua escravização movimentos: (a) privilegiou a escrita alfabética,
e imposição da fé cristã, o segundo, sob uma desconsiderando outras formas de linguagem;
perspectiva humanista, defendeu a soberania e (b) apropriou-se dos objetos indígenas e
dos povos indígenas. os colocou em suas instituições. A inserção
Na ausência de escrita alfabética dos indígena é apenas um primeiro movimento
grupos colonizados, sua imagem foi narrada para disseminar outras formas de narração
pelo olhar equivocado (ou, para ser mais e desconstrução de sua imagem construída
preciso, interessado em sua subjugação) de por seu colonizador de forma criativa. Nesse
seus invasores, cuja autodesignação como sentido, a curadoria compartilhada aparecerá
colonizadores mostra perfeitamente que a teoria como uma pista do caminho a ser trilhado para
evolucionista foi resultado de um processo que essa ideia seja disseminada.
pensado e praticado como assimétrico. Na parte
do Novo Mundo colonizada pelos espanhóis, os
indígenas possuíam escrita ideográfica, além da A imagem dos indígenas nas coleções
presença de cronistas indígenas que utilizaram
a escrita alfabética, tendo na figura de Felipe As coleções particulares foram sendo
Guamán Poma de Ayala um ótimo exemplo. formadas a partir do período das “grandes
Em sua Primer Nueva Coronica y Buen Gobierno descobertas”, coleções estas que viriam a
(1612-1615), dirigida ao rei espanhol, descreve incorporar o acervo de museus públicos a partir
o governo indígena, ressaltando a ordem do final do século XVIII. Os acervos etnográficos
cósmica que foi abalada pela “interferência” eram expostos sem um tratamento expográfico
espanhola. Rivera Cusicanqui (2010), ao propor que os contextualizassem, evidenciando uma
uma sociologia da imagem, identifica na obra pretensa inferioridade dos povos colonizados.
de Poma de Ayala uma narrativa indígena que Da mesma forma, esse uso demonstra a (falta de)
fugiu ao controle colonial utilizando um signo ética que regeu as relações entre europeus e
e uma ferramenta de sua imposição, a escrita indígenas, sendo tais objetos testemunhos dessa
alfabética e recorrendo a imagens que mostram usurpação. Nicholas Thomas mostrou que o
o empequeñecimiento dos indígenas diante da interesse dos europeus em artefatos dos povos

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do Pacífico ao longo do século XVIII estava pelo Estado Nacional Brasileiro serviu para
associado à curiosidade, o colecionamento não criar um mito de origem da nação.
submetia os objetos a um julgamento estético,3 O movimento que objetivou mudar o
mas eles serviam como comprovação da própria regime da inserção indígena dentro dos museus
ida às ilhas (Thomas 1991). Entretanto, no está ligado a uma série de problematizações: por
século XIX os objetos passaram a servir ao um lado, a antropologia passou a questionar
projeto colonial, sendo apropriados enquanto seu papel enquanto disciplina que serviu
prova material da “selvageria” dos povos que diretamente aos colonizadores, lamentando
os produziram, dentro de uma narrativa dita o desaparecimento de seu objeto de estudo
científica (Gualtieri & Dantes 2001). Outro enquanto questionava seu próprio direito de
ponto significativo é o prestígio adquirido pelo “etnografar” outros povos (Stocking 1985);
colecionamento destes artefatos, o que também por outro, a museologia refletiu a respeito
aparece em outros contextos, como o estudado do distanciamento entre a instituição e os
por Françozo (2014) por meio da figura de grupos que visava representar (Cândido 2003),
Maurício de Nassau, que construiu uma coleção estabelecendo possíveis diálogos com a crítica
durante o período em que esteve no Brasil, cultural e o questionamento da natureza
mostrando que a circulação dos objetos – que cultural do que seja representar (Latour 1994).
foram dispersos mediante doações – perpassa Nesse interim, dando margem a um processo de
as próprias relações interpessoais que ele descolonização das narrativas – coincidente, em
estabeleceu na sociedade da corte, ao retornar parte, com o fim das metanarrativas (Lyotard
para a Holanda. 2000) e com o movimento pós-colonial – e de
Apesar do paradigma que embasou as intensificação e ampliação do protagonismo
teorias evolucionistas ter caído em desuso, indígena, consideramos que o conceito
a curadoria das coleções e a propriedade pós-colonial pressupõe as relações e agudas
dos artefatos – muitos adquiridos de modo diferenças entre as sociedades colonizadas e
escuso, o que fornece pistas para a maneira colonizadoras (Hall 2013), ao deslocar o eixo
como foram interpretados – continuou das discussões e considerar, por exemplo, as
a cargo das instituições ocidentais. As influências da colônia na metrópole.
narrativas museológicas atreladas a teorias
antropológicas ajudaram a forjar a imagem Na realidade toda a questão indígena
das sociedades indígenas como parte da (e não só ela) está eivada de semelhantes
diversidade humana, como postulou Franz reificações. No século XVI, os índios eram
Boas (1955) enquanto curador das coleções ou bons selvagens para uso na filosofia moral
etnológicas do Museu Americano de História européia, ou abomináveis antropófagos
Natural. No Brasil, essa diversidade apareceu para uso na colônia. No século XIX, eram,
na teoria das três raças, ao criar um mito de quando extintos, os símbolos nobres do Brasil
origem da formação do povo brasileiro pela independente e, quando de carne e osso, os
união de brancos, negros e indígenas (Ribeiro ferozes obstáculos à penetração que convinha
1995), submetendo as coleções indígenas precisamente extinguir. Hoje, eles são seja os
expostas à imagem do Estado Nacional. Do puros paladinos da natureza seja os inimigos
mesmo modo que a teoria evolucionista internos, instrumentos da cobiça internacional
atuou como uma forma de pacificar a sobre a Amazônia.
alteridade, a teoria da diversidade apropriada (Cunha 2009: 261)

Acompanhar esses deslocamentos nas


3 A estética à qual o autor se refere seria submeter imagens dos indígenas nos ajuda a vislumbrar a
os objetos coletados à concepção ocidental de belo, o construção das narrativas em outras instâncias;
que não ocorre nesse primeiro momento. Há exposições
contemporâneas como a do Musée Quai Branly (Paris, entre elas, o museu.
França), que segue essa abordagem.

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Museus – reafirmou a aproximação entre os museus e


a sociedade, especificamente, o engajamento
Criado durante a Antiguidade Clássica, das instituições com as comunidades. Em vista
o Mouseion – templo das Musas, ou disso, agentes que costumavam ser referenciados
Museu de Alexandria, mito de origem dos nos museus, mas sem atuação na elaboração das
museus – não se assemelhava ao que conhecemos narrativas sobre si, passam a atuar conjuntamente
contemporaneamente como instituição com os profissionais que compõem o quadro de
museológica. Encontrava-se mais próximo de funcionários. Acompanhar os termos da atuação
um arquivo e biblioteca que funcionava como dos índios dentro dessas instituições pode
um centro acadêmico, dedicando-se às artes funcionar como uma ferramenta de análise da
da memória “que propunham a articulação de descolonização do imaginário.4
imagens a lugares e espaços, para assegurar a Desse modo, esse território – o museu
rememoração” (Meneses 2010: 15) e, era marcado moderno – que serviu ao imperialismo, passa por
pelo seu caráter monumental. Assim, o museu um processo daquilo que Stengers (2015) chama
tem continuidade com outros campos do mito de reclaimed, pelas sociedades minoritárias. A
de origem ocidental, que retira seu poder de uma autora, ao tratar de uma série de eventos que vêm
apropriação da herança grega (Trouillot 2003), causando a “intrusão de Gaia”5 e destacar o papel
associada ao berço das artes e ciências – outro do discurso dos especialistas nas catástrofes,
campo seria a língua, por exemplo, a respeito da sugere que os assuntos recorrentemente
ideia de superioridade da escrita alfabética sobre associados à ciência podem ser reclamados e se
outras (Goody 1996; 2006). A configuração tornar uma “questão comum”, permitindo uma
museológica mais recente teve início a partir dos ação coletiva na busca de meios para pensar os
séculos XVI e XVII, com a criação de coleções problemas a partir de outras perspectivas. De
particulares formadas por objetos de interesse forma semelhante, sugerimos que a inserção
artístico, histórico e científico em galerias que de agentes que vêm sendo representados nos
só viriam a ser efetivamente abertas ao público museus por meio de seus objetos, pela narrativa
ao longo do século XVIII (Poulot 2013). Nos dos especialistas, pode atuar diretamente na
gabinetes de curiosidades que reuniam objetos reformulação de sua imagem.
com caráter pretensamente científico (Possas 2010) Resumindo o argumento: se o
encontramos o prelúdio da lógica do patrimônio colecionamento foi pautado por séculos em
elaborada dentro do nexo do estado-nação um conhecimento sobre os outros, a partir da
(pós-Revolução Francesa), na qual os artefatos linguagem ocidental repleta de preconceitos e
compuseram coleções etnográficas que atuaram equívocos epistemológicos – como ilustramos
e atuam enquanto meta-artefato de produção de
narrativas sobre o “outro”.
A partir da organização dos museus 4 O que chamamos de inserção indígena nas instituições
museológicas de maneira alguma é fruto de uma benevolência
enquanto espaço de guarda, pesquisa e dos museus, mas uma pista de que os índios tiveram
exposição, suas coleções foram acionadas através “notícias” de objetos sob a guarda de tais instituições e
de narrativas diversas coincidentes com teorias querem retomá-los. No filme Iauretê, Cachoeira das Onças
(Carelli 2006), os índios Tariano ao visitarem o Museu do
antropológicas vigentes; ora foram exibidas Índio, das freiras salesianas, vasculham e selecionam na
como forma de representarem as sociedades reserva técnica objetos que querem “de volta”, enquanto a
que as produziram, ora pelo seu caráter estético postura institucional é de repatriá-los quando os indígenas
conseguirem a infraestrutura para salvaguardá-los.
(Fabian 2004; Stocking 1985). No que tange ao
tratamento museológico, a Nova Museologia –
5 Isabelle Stengers (2015) configura a época em que
fruto do debate iniciado em 1972 no encontro vivemos como “tempo das catástrofes”, marcado por
organizado pelo International Council of mudanças climáticas intensificadas em decorrência de um
Museums (Icom), no Chile, e difundida por meio modelo econômico de crescimento insustentável que, por sua
vez, trouxe o que a autora qualifica como “intrusão de gaia”.
das resoluções da mesa-redonda que sintetizou as Gaia seria a natureza que se introduz, não como inquisidora
diretrizes elencadas pelos profissionais presentes mas como alguém que, ofendida, se torna imprevisível.

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no debate entre Las Casas e Sepúlveda – a sua raiz colonial, promoveram a ida de grupos
inserção indígena em instituições como minoritários para conhecerem os acervos a que
o museu pode funcionar como um outro estão relacionados, incorporando novas relações
mecanismo para conhecer os ameríndios através com os objetos, além de desenvolverem ações em
da sua própria elaboração curatorial. conjunto, como exposições, atividades educativas,
cursos. Tais experiências nos mostram a potência
do processo de “indigenização” dos museus
Curadoria compartilhada (Roca 2015), como propomos argumentar.
A presença dos indígenas dentro destas
Antes de tratar propriamente da curadoria instituições é anterior ao movimento que
compartilhada, que envolve diversos atores identificamos na metade do século XX; porém,
(indígenas, antropólogos, museólogos, designers, ainda que se trate de outro tipo de inserção,
arquitetos, conservadores, etc.), propomos a o período colonial é recheado de exemplos de
elucidação do conceito. Curadoria consiste indígenas que foram expostos nos chamados
na seleção do acervo, realização de pesquisas, zoológicos humanos (Morel 2000). A princípio,
ações de salvaguarda e comunicação, através de as instituições traziam os grupos indígenas para
exposições de longa duração e temporárias, por parcerias principalmente com o propósito de sanar
exemplo. A princípio, a curadoria surgiu com as dúvidas a respeito do acervo, ou seja, sua atuação
coleções das ciências naturais que se associavam estava submetida aos interesses do museu e não
à etimologia da palavra por requerem “a cura”, consistia em um processo colaborativo – o que
ou seja, para que sua conservação ocorresse. nos atenta para o fato dessas relações não serem
A figura do curador passa a se especializar e se necessariamente simétricas. Esse cenário começou
desprender do conservador, aparecendo em a se alterar por uma abertura institucional e,
diferentes instituições – tendo em mente os principalmente, pela demanda dos povos, grupos
modelos de museus de história natural e de artes e associações ameríndias. A antropóloga Ann
(Bruno 2008: 3). Finenup-Riordan (2010) relatou o interesse de seus
Apesar da figura do curador remeter a uma amigos Yup’ik ao verem as fotografias de máscaras
atividade solitária, do especialista que conhece feitas por seus antepassados pertencentes ao
todos os meandros de determinado acervo, acervo do Museum of the American Indian.6
as discussões geradas pela Nova Museologia O retorno das máscaras aos Yup’ik não
(ou, ainda, Sociomuseologia) apontam para implicava diretamente a repatriação dos objetos;
uma produção comunitária, valorizando a por meio destes os mais velhos objetivavam
interdisciplinaridade (Bruno 2008: 3). A mostrar as práticas culturais de seu povo para
curadoria se dá, portanto, por uma cadeia os jovens. O desejo se concretizou através da
operatória que parte do objeto museológico e exposição Agayuliyararput / Our Way of Making
cria uma narrativa destinada ao público (Cury Prayer, montada em Bering Sea, comunidade da
2009). Contudo, exposições museológicas baía Toksook, em 1996 – embora a propriedade
contemporâneas desafiam a ideia de que das máscaras tenha continuado com o museu
necessariamente a curadoria deverá partir do (Finenup-Riordan 2010). A parceria não se limitou
objeto, podendo privilegiar um conceito e a à exposição, e entre os desdobramentos está uma
partir daí elaborar uma narrativa expográfica. visita de alguns Yup’ik aos museus que possuem
A curadoria compartilhada, colaborativa, ou, objetos de sua etnia em seus acervos, como o
ainda, participativa é um processo de troca que Ethnologisches Museum, em Berlin (Alemanha),
constitui a curadoria das coleções, que tem na que possui mais de dois mil objetos desse povo.
exposição seu principal meio de comunicação com Na Europa, vários museus etnográficos criaram
o público. Agentes que recorrentemente eram iniciativas semelhantes, levando diversas etnias
retratados nas exposições, mas não participavam
na construção narrativa passam a atuar dentro dos 6 Um dos museus do Instituto Smithsonian, com sedes
museus. Instituições, ao buscarem problematizar em Washington e Nova York (Estados Unidos).

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para colaborarem na curadoria das coleções – procedimentos e materiais a serem usados.


manuseando os objetos, acrescentando dados à O primeiro projeto, somado a outros que o
catalogação, desenvolvendo exposições e atividades antecederam, contribuiu para a criação do
no próprio museu e nos territórios desses grupos. Museu Maguta (AM). No segundo projeto, os
Tais projetos encenam o “pagamento” de uma artefatos, para serem restaurados, suscitaram
dívida. Não se pode mais ignorar os efeitos a necessidade de pesquisa e, principalmente,
devastadores que as nações europeias – ao longo de um amplo diálogo com os indígenas. “Esse
do processo mesmo em que se constituíram poderia ser um interessante meio de condução
historicamente enquanto tais – causaram nos de uma curadoria compartilhada, já que para a
grupos dos territórios de que vieram a se apropriar. maioria dos grupos indígenas a substituição de
As instituições brasileiras também têm materiais ou parte de adornos é perfeitamente
desenvolvido maneiras para criar uma parceria coerente com a ideia de conservação.”
com os povos dos quais possuem acervo, (Nascimento 2012: 101). Deste modo, fica claro
problematizando suas coleções. Além do museu que os paradigmas da restauração brasileira,
em si, as universidades têm funcionado como herdeira dos cânones italianos (em que se
um ponto canalizador da participação indígena considera o mínimo de intervenção possível
na curadoria de seus acervos. Um exemplo disso durante a restauração), não se aplicam a
é a atuação da Universidade de Pernambuco no todos os casos e que a percepção indígena de
auxílio aos povos indígenas que desenvolveram “autenticidade” no manuseio destes artefatos é
seus pontos de memória, resultando na criação complexa.
de museus indígenas. No Sudeste, o Museu do O Museu Histórico e Pedagógico Índia
Índio (RJ), instituição vinculada à Fundação Vanuíre, em Tupã (SP), ao ser inaugurado em
Nacional do Índio (Funai), desde 2012 vem 1966, salientava um discurso de pacificação dos
elaborando projetos com as sociedades indígenas. Kaingang, ressaltando a figura de Vanuíre como
Ionne Couto (2012) conta como na elaboração uma personagem conciliadora.
do Plano Plurianual (PPA) do museu captaram
recursos que possibilitaram a realização de projetos De fato, Vanuíre foi uma Kaingang
como a exposição Tempo e Espaço no Amazonas: trazida de Campos Novos do Paranapanema
os Wajãpi, resultado de um trabalho de sete meses (atual Campos Novos Paulista) pelo SPI, como
que envolveu os Wajãpi, o corpo de funcionários estratégia de atração dos Kaingang da região
do museu e a antropóloga Dominique Gallois. para que fossem aldeados. Assim, ela atuou
A exposição, além de um produto representado como intérprete, como outros. Ela simboliza
no percurso expográfico, possibilitou aquisições o fim dos conflitos, em 1912, que resultou
para o acervo de fotografias, objetos e filmes do no aldeamento dos Kaingang em duas áreas
universo simbólico e do cotidiano dessa etnia. restritas, hoje as Terras Indígenas Vanuíre e
Outro ponto é a presença recorrente dos indígenas Icatu, localizadas respectivamente em Arco-Íris e
como educadores do Museu do Índio, realizando Braúna (SP). A índia Vanuíre faleceu em 1918
atividades com o público em torno das exposições. em Icatu, onde viveu seus últimos dias.
O Museu Nacional (RJ), primeira instituição (Museu Índia Vanuíre 2013)
museológica do país, também realiza parcerias
nesse viés. Fátima Nascimento (2012) narrou Vanuíre é considerada por muitos como
projetos desenvolvidos pelo Setor de Etnologia a grande “pacificadora”, imagem que o museu
desde o final da década de 1970, entre os quais quer desconstruir, pois reforça a visão negativa
destacamos “Os índios Tikuna como agentes de dos Kaingang implantada há um século. O
um processo de educação integrada”, que previu museu respeita o simbolismo que envolve
a criação de um centro de memória elaborado essa personagem, mas atua de modo crítico e
pelos Tikuna, e o projeto de restauração histórico (Museu Índia Vanuíre 2013).
coordenado por Geraldo Pitaguary, que relatou A narrativa repleta de equívocos só
o diálogo com os indígenas a respeito dos veio a ser reelaborada com a reinauguração

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da instituição, em 2010. Deste modo, a um papel ativo na criação das narrativas.


Índia Vanuíre passou de uma personagem A curadoria compartilhada seria um tipo
que se uniu aos brancos, na integração dos de escrita produzida por uma autoridade
indígenas do ideal nacional, para aquela que polifônica, criando uma narrativa curatorial
buscou meios para negociar com a violência em que diferentes agentes participam. O
dos colonizadores. A imagem da submissão desafio está em estabelecer uma relação entre
indígena vem sendo questionada com a os agentes institucionais e esses povos marcada
participação dos próprios Kaingang – além de pela horizontalização, em que todos atuem no
outras etnias – na reformulação da narrativa processo com o mesmo peso de decisão.
propagada pelo museu. A presença dos indígenas em museus que
A presença dos indígenas no museu guardam, pesquisam e expõem coleções criadas
pode ocorrer de formas tão abrangentes e a partir de uma lógica colonial provoca uma
variadas quanto suas possíveis articulações retomada dessa materialidade negada a estes
interculturais – então, potencialmente, cada povos. Mais do que parceiros de entidades
articulação, mesmo molecular, seria um museu.7 ocidentais, ocorreu o que podemos denominar
Nos casos brevemente apontados, visamos de indigenização dos museus – dentro do
mostrá-los enquanto articuladores essenciais não que Sahlins (1997) chamou de indigenização
apenas no que incide nas coleções já existentes, da modernidade –, culminando na criação
mas principalmente para a possibilidade de instituições pelos povos indígenas.
de criação de novas coleções, de pesquisas, Como sinalizou James Clifford a respeito
projetos educacionais e curatoriais extensivos dos museus indígenas da costa noroeste dos
para além do espaço museológico e, no limite, Estados Unidos (Centro Cultura de U’mista e
novas direções, o que sinalizará uma mudança Museu Kwagiulth):
epistemológica.
Assim, a curadoria compartilhada ou Eles são, sob aspectos importantes de
coletiva se apresenta como uma das formas sua existência, projetos da “minoria” ou da
da inclusão desses agentes nas instituições “oposição” no interior de um contexto museológico
museológicas enquanto coautores. Os casos comparativo [em relação as instituições
citados mostram uma dinâmica rica no contato ocidentais]. Mas, sob outros aspectos cruciais, não
desses povos com os acervos com que possuem são absolutamente museus, e sim prolongamentos
relações, não apenas enquanto fonte primária das tradições indígenas de contar histórias, de
de informações sobre os artefatos, mas também colecionar objetos e de representá-los visualmente.
enquanto pesquisadores e curadores. A figura (Clifford 2009: 258-259).
do curador é especialmente intrigante por
fornecer um paralelo para a própria escrita Assim como nos Estados Unidos, museus
etnográfica, em que Clifford (1998) destaca indígenas foram criados em países como
quatro modos de autoridade: experiencial, Canadá, México e Brasil, cada qual com suas
interpretativo, dialógico e polifônico. Entre particularidades. O Museu Maguta, a primeira
eles destacamos o polifônico, por dotar a instituição museológica indígena no contexto
produção do conhecimento etnográfico como brasileiro, inaugurada em 1991 na cidade de
parte de um processo em que o nativo tem Benjamin Constant (AM), surgiu em meio a
uma mobilização pela demarcação das terras dos
7 Consideramos como museu uma instituição sem Ticuna (Oliveira 2012). Desta forma, o museu
fins lucrativos que possui coleções sobre as quais realiza funcionou e funciona como uma ferramenta
pesquisas, ações de conservação, atividades educacionais
e comunicacionais, como uma exposição, destinadas contracolonial ao atuar como um suporte de
ao público. Por isso, as articulações entre indígenas criação e difusão de memória e na angariação
e museus podem gerar a criação de coleções que de aliados – a população da cidade começou a
atendam a essas características (de guarda, educacionais,
comunicacionais etc.) e suscitarem dinâmicas similares (e desconstruir preconceitos a respeito dos Ticuna
além das) as produzidas no espaço institucional. (Freire 2009).

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O Museu Kanindé, na fala de Suzenalson coleção, que literalmente está vinculada à


Kanindé (informação verbal)8 surgiu a partir da imagem dos gronelandeses.
coleção reunida pelo cacique Sotero, classificada A repatriação de imagens (e
por categorias nativas como “coisas dos índios”, coleções) indígenas será aqui abordada
“coisas da natureza”, “coisas dos velhos”, “coisas metodologicamente com referência à internet,
da mata”, entre outras. A coleção, enquanto entendida como meio comunicacional no qual
parte constitutiva do museu, atua como uma um conjunto de saberes (inclusive programação)
materialidade dos Kanindé, e não somente pode produzir e acionar ferramentas ou
da pessoa do cacique. A atuação do museu artefatos pragmáticos e discursivos. Como
se destaca pela ligação estreita com a escola, condutor da discussão, uma breve descrição
elaborando um trabalho de perpetuação da do site Roots2Share – entendido aqui como
memória kanindé e valorização de sua cultura. uma instância desses “artefatos virtuais” de
No que tange à curadoria compartilhada, comunicação e produção de realidade – ajudará
Suzenalson evidencia a presença do grupo a pensar a possibilidade de apropriação
dentro da instituição – contrastando com dessa proposta para outros contextos. A
as instituições ocidentais em que a figura escolha por abordar o tema através de uma
prestigiosa do curador costuma ser associada ferramenta elaborada por museus holandeses
a um único indivíduo para cada coleção. vem como um vislumbre de percurso possível
Os objetos do cacique circulam, são uma para não só horizontalizar o acesso às
“materialidade” (inclusive dos comportamentos, coleções – em especial, a garantia de acesso
ações e saberes de que dependeu sua por parte dos grupos aos quais os objetos estão
produção /obtenção/conservação), que “originalmente” associados –, mas igualmente
percorre ciclos sociais complexos, de modo propiciar usos e narrativas autônomos de
tal que conserva, isto é, colabora com a objetos e de símbolos culturais pelos povos
continuidade ou memória de certas relações vinculados ao acervo.
intra – e intergrupais. Esses artefatos e sua O Museum Volkenkunde, em Leiden
circulação não devem ser pensados apenas como (Holanda), implementou em novembro de 2007
instrumentais, mas envolvendo valor, narrativas, um projeto piloto chamado Sharing Knowledge
percepções, habilidades etc., que constituem a & Cultural Heritage, First Nations of the
autoria coletiva do modo de vida do grupo. Americas (SK&CH), que consistiu em convidar
Retomando a ideia inicial desta sessão, lideranças indígenas e especialistas (não
sinalizamos os diversos meios em que tal indígenas) no campo das Américas e Europa
inserção indígena pode ocorrer, aparecendo para discutirem vários aspectos em torno do
sob o conceito de curadoria compartilhada trabalho com a cultura material (Buijs & Van
ou não: enquanto pesquisadores, educadores, Broekhoven 2010: 7).9 Essa reunião de três dias
conservadores etc. acionou uma posição política da instituição em
desenvolver projetos com comunidades, como
a proposta de digitalizar e disponibilizar seu
Repatriação imagética acervo on-line e desenvolver exposições junto
com os povos dos quais possui artefatos. Esse
O último ponto a ser elucidado aponta tipo de experiência atua na desnaturalização
para uma possibilidade de repatriação de bens da formação de coleções museológicas,
sob guarda de museus ocidentais aos indígenas, evidenciando os interesses e processos por trás
tornando viável sua própria curadoria dessa das seleções que precedem essa formação e
enriquecendo os desdobramentos ao trabalhar

8 Comunicação oral proferida na exposição “Dja Guata


Porã: Rio de Janeiro Indígena”, Museu de Arte do Rio, Rio 9 O registro dessa reunião está na publicação disponível
de Janeiro, 26 de julho 2017. em: <https://bit.ly/2SMNHbk>. Acesso em: 29/07/2017.

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A inserção indígena nos museus
R. Museu Arq. Etn., 30: 118-130, 2018.

com comunidades não subordinadas à dinâmica (descendente dos retratados) detenha. No entanto,
institucional. por que não há histórias vinculadas a essas
O site Roots2Share é fruto de uma parceria fotografias? Será que esse meio alcança todas as
entre dois museus holandeses: o Museon e o gerações? Os grupos interessados possuem acesso
Museu Nacional de Etnologia. Ambos possuem à internet? Essa plataforma deve ter continuidade
fotografias tiradas no leste da Groelândia, por a longo prazo? Por outro lado, a internet se
Gerti e Noortje Nooter, entre 1965 e 1986. representa pela fugacidade, talvez a potência desse
Através dessa plataforma os groenlandeses têm uso esteja justamente em uma não pretensão de
acesso a fotos de seus antepassados que estavam eternidade. A internet funciona como aquilo que
guardadas em museus europeus. O interessante Homi K. Bhabha (1998) denomina hibridismo
do projeto é a possibilidade de escrever no site, ou terceiro espaço – ao menos potencialmente,
anotar histórias e perguntas pessoais.10 e nesse plano ou nesse regime de documentação
O site é dividido em seis itens: about, narrativa, nessas novas autorias e curadorias.
photos, stories, photo map, collection, login. Em Bhabha voltou seu olhar para a cultura
about há a proposta do projeto e as normas produzida na fronteira, entendendo-a como uma
de utilização da plataforma, bem como a existência insurgente e intersticial (1998: 41).
permissão de reprodução das fotografias, O interesse do autor pela fronteira está em
desde que sejam respeitadas as condições analisar experiências transnacionais para pensar
institucionais. A página photos permite o acesso a realidade geopolítica produzida por essas
integral à coleção de fotografias, enquanto em conexões. O terceiro espaço se dá quando
stories há fotos com a intervenção de usuários deixamos de lado os binarismos – ocidente
contando histórias associadas a elas. Em photo versus oriente – e pensamos em termos de
map encontra-se a localização geográfica das negociação, enquanto “articulação de elementos
cenas originalmente retratadas. No acesso antagônicos ou contraditórios […] que abrem
collection, pode-se fazer uma pesquisa localizada lugares e objetivos híbridos de luta e destroem
nas coleções de cada região da Groelândia. A polaridades negativas entre o saber e seus
última página é de acesso interno pelo login. objetos e entre a teoria e a razão prática-política.”
Apesar das stories contabilizarem apenas 12 (Bhabha 1998: 52). A articulação ocorre entre
e serem vítimas de comentários anônimos de elementos que se encontram em tensão, dando
trolls11, essa proposta é profícua para criar uma margem para o campo da diferença cultural.
ferramenta de diálogo intercultural e propiciar, Desse modo, Bhabha nos diz que “o que se quer
em escala molecular, novas configurações é demonstrar um outro território de tradução,
narrativas e documentais, em novos regimes um outro testemunho de argumentação analítica,
ou perspectivas críticas, desconstrutivas, um engajamento diferente na política de e em
ressignificantes, para as quais o “efeito” ou a torno da dominação cultural.” (1998: 60).
“mediação” simbólica não deve ser desprezado. Produzir uma narrativa de/com indígenas
Se essas coleções ficaram por décadas dentro do museu, ou a partir dele, é ir além
inacessíveis aos povos das quais as imagens de um enfrentamento da colonialidade, é dar
foram tiradas, o uso da internet possibilitou um possibilidades para que a linguagem indígena
reencontro e, de forma virtual, uma repatriação adentre esses espaços de forma criativa. O
imagética. O site permite acessar a fotografia, uso da internet para repatriar fotografias
ter acessos às informações disponíveis sobre ela dos groenlandeses sob a guarda de museus
e fornecer novas informações que o usuário holandeses proporcionou, na perspectiva
de nossa análise, a produção de um terceiro
espaço. A interpretação dessas imagens poderá
10 Informações disponíveis em: <http://roots2share.nl>.
Acesso em: 29/07/2017.
decorrer em ambiguidades e equívocos, o que
não necessariamente será negativo. Antes
11 Indivíduos que postam textos visando atrapalhar o de passar às considerações finais, vale talvez
objetivo do espaço disponibilizado para postagem. deixar indicado que o trajeto de observação

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Mariane Aparecida do Nascimento Vieira



nos traz então, no plano da internet, para uma Casas, a respeito dos direitos indígenas. Mesmo
espécie de sintoma epistemológico análogo que atualmente a perspectiva de Las Casas
àquele que se observou inicialmente no plano tenha permanecido, algumas consequências
da escrita – considerada igualmente como problemáticas não devem ser anuladas.
um meio comunicacional, uma “coleção de Immanuel Wallerstein (2007: 47) mostra os
habilidades socioambientais” diversa daquela efeitos da ressonância do discurso de Las Casas
que caracteriza o grafocentrismo moderno. nas discussões pós-coloniais: “a campanha pelos
direitos humanos restaurou a ênfase de Sepúlveda
no dever dos civilizados de suprimir a barbárie”.
Algumas considerações No que diz respeito às coleções, mostramos
como sua coleta foi alvo de diversas narrativas
Em tom de conclusão, apontamos ao serem incorporadas em museus. Por agora,
que apenas constatar a existência de uma gostaríamos de apontar que os movimentos
construção da imagem do outro por parte museológico e antropológico que ocorreram no
da sociedade ocidental, e que tal imagem século XX não justificam por si só a inserção
corroborou um discurso e uma ação de indígena nos museus, pois a demanda de
subjugação das linguagens e epistemologias desconstrução de narrativas impostas sobre os
desse outro, não se mostra suficiente. É preciso índios é proveniente das sociedades indígenas.
traçar formas de alargar o que é produzido nas Entendemos como “inserção indígena” aquela
fronteiras e disseminá-las: de modo mais claro, ação que acrescenta novos ares às instituições e
constatar que os museus ajudaram a construir horizontaliza o acesso e manejo dos acervos.
a imagem do indígena como selvagem e A curadoria compartilhada de coleções
para isso usaram seus objetos também não etnológicas não ocorre em um ambiente idílico
basta. Trazê-los para dentro da instituição só em que todos os atores possuem a mesma voz,
provocará efeitos interessantes quando tal pois é confrontada por questões políticas e
inserção ocorrer no plano da horizontalidade, administrativas e pela disponibilidade física e
em que se considere, com a mesma de recursos da instituição e dos grupos a serem
intensidade, os argumentos, cosmologias, acionados. No entanto, esse aparece como
narrativas das sociedades indígenas, o caminho mais profícuo como resposta às
juntamente à lógica institucional. demandas pós-coloniais.
Cabe ainda dizer que se trata de relações Embora nem todos os artefatos possam
de poder e que mesmo quando a elaboração ser repatriados – por diversas razões nas quais
europeia prevaleceu (e ainda prevalece), não iremos adentrar – e nem sempre seja este
houve agência indígena. De maneira alguma o interesse dos indígenas, é necessário buscar
a violência colonial ocorreu sem resistência e caminhos para ampliar as possibilidades
sem insurgência: o uso da escrita por Poma de de acesso e curadoria das coleções. O site
Ayala atuou como forma de mostrar o “bom Roots2Share, como já mencionamos, é uma
governo” indígena. Martin Lienhardt, em seu proposta gerada por duas instituições europeias
livro La voz y la huella (1990), aponta no uso da (o Museon e o Museu Nacional de Etnologia)
escrita alfabética pelos indígenas uma submissão a partir de uma demanda dos gronelandeses
cultural. Entretanto, identificamos, como em rever as fotografias tiradas por Gerti e
Rivera Cusicanqui (2010), uma crítica indígena Noortje Nooter, entre as décadas de 60 e 80
no seio de uma ferramenta colonial, concluindo do século XX. A ferramenta propõe uma
que enxergar a carta de Poma de Ayala apenas articulação possível de curadoria indígena e
como submissão é um equívoco redutor. A retorno de bens patrimonializados, mesmo
própria incorporação da escrita pode ser vista quando o objeto em si encontra-se distante e
como mais um símbolo da troca intercultural. salvaguardado em instituições ocidentais.
Na América Espanhola trouxemos Visivelmente as ferramentas do site não
brevemente o debate entre Sepúlveda e Las são usadas na sua integralidade, o que traz

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A inserção indígena nos museus
R. Museu Arq. Etn., 30: 118-130, 2018.

questionamentos a respeito da efetividade de uma nova percepção da obra de arte. Cada


da proposta. Todavia, mesmo que gere caso deve ser analisado segundo a demanda
equívocos, propomos pensar a possibilidade de dos grupos implicados, pois há coleções que
que o acesso às coleções etnográficas seja por diferentes motivos são problemáticas para
difundido por outros meios, sendo um deles a serem divulgadas. De maneira semelhante, é
internet, para que, na ampliação das iniciativas, necessário atentar para os riscos da apropriação
possamos analisar os desdobramentos a indevida de símbolos culturais potencializada
longo prazo da elaboração semelhante ao museu pela difusão das coleções por meios digitais
imaginário de Malraux (2011), mas indo além (Brown 2003).

VIEIRA, M. Indigenous insertion integration in museums. R. Museu Arq. Etn.,


30: 118-130, 2018.

Abstract: This work examines some shared curatorial actions within


museums, examining the changes that former indigenous images have undergone,
as represented through museological collections in a period of “national
construction”, until its reformulation in the post-modern and post-colonial
debates, especially in the anthropological and museological fields. From 16th
century on, such collections were built upon the key of the exotic, which in
turn confirms the evolutionary and civilizing paradigm. In recent decades, the
indigenous’ performance in relation with, and sometimes within, old and new
museums, institutions and projects, have been questioning in a creative manner
Western appropriation of the image triggered by the artifacts, including those
gathered by the indigenous to make the collection of their museums. In another
complementary bias, internet comes up as a medium for image reclaiming, as
shown by the Roots2Share website.

Keywords: Shared Curatory; Museums; Indigenous people; Image;


Repatriation.

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