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RESUMO
A categoria representação possui uma gama de variáveis que precisa ser debatida e discutida a partir do campo
de debate envolvido e da variação de escala. Sob o ponto de vista teórico podemos analisar a representação,
apropriação, recepção e prática a partir de, pelo menos, duas grandes vertentes: a de Chartier, especificamente
tratando da representação enquanto elemento de disputa e também como ferramenta de análise das formas pelas
quais a relação entre escrita e leitura se dá, e a de Ginzburg, quando analisa as formas de representação relativas
à circularidade da cultura e de seus valores nas diferentes classes sociais e na forma como a cultura popular se
apropria de signos, símbolos, imagens e as transforma de acordo com suas especificidades e necessidades.
Procura-se aqui analisar estas possibilidades de uso da categoria enquanto ferramenta de auxílio à pesquisa
historiográfica.
Palavras-chave: Representação. Micro-história. Quadrinhos. Super-Homem.
ABSTRACT
The representation category has a range of variables that needs to be debated and discussed from the field of
discussion involved and the scale variation. From a theoretical point of view, we can analyze representation,
appropriation, reception and practice from at least two major strands: Chartier, specifically dealing with
representation as an element of dispute and also as a tool for analyzing the ways in which the relationship
between writing and reading is given, and that of Ginzburg, when he analyzes the forms of representation
concerning the circularity of culture and its values in different social classes and in the way popular culture
appropriates signs, symbols, images and transforms them according to their specificities and needs. It is sought
here to analyze these possibilities of using the category as a tool to aid historiographic research.
Keywords: Representation. Micro-history. Comics. Superman.
Introdução
Trabalhar com a categoria representação demanda um certo número de cuidados. Se
Chartier é quem melhor define o conceito em suas obras, está longe de ser o único que
efetivamente a aborda.
Ginzburg e De Certeau também trabalham com a categoria de forma efetiva
objetivando outros enfoques, mas também estabelecendo outros tipos de formas de percepção
a partir de outros ramos de construção analítica de objetos de pesquisa.
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representado por uma estátua não é trocado por uma imagem de si, mas torna-se duplo, ele e a
estátua (GINZBURG, 2001, p.93).
O caso da adaptação de uma cabeça de estátua de um imperador romano para uso em
uma imagem de Santa Fé nos dá outro campo da relação entre representações e suas
transformações no tempo. A relação para os fiéis entre a própria santa e sua imagem, produz
uma apropriação da representação de Júpiter para uma prática diversa da cultura original. Esta
utilização da representação para uso por outro tipo de abordagem cultural produzem
apropriações e práticas de representação que transformam a recepção em transmutação do
corpo em outro, mesmo utilizando a mesma gama de signos (GINZBURG, 2001, p.100).
Isto posto é preciso organizar a produção analítica em torno da categoria
representação em sua diversidade de aplicações e relativa ao campo de conhecimento, porém
antes é fundamental estabelecer o que estamos analisando quando usamos a categoria em
questão.
Representação é, antes de qualquer coisa, a forma como grupos sociais, indivíduos,
veículos de comunicação, obras de arte, a religiosidade em sua diversa gama de práticas e
percepções (Seja a popular ou a institucionalmente estabelecida). É como sociedades ou parte
delas constroem uma produção de signos e símbolos para representarem a forma como
observam e apreendem o real, organizando suas concepções, categorias, discursos, imagens e
referências que deem conta das tradições e formas de viver próprias, estabelecendo uma rede
de significados que definam o todo ou um aspecto de sua cultura ou religião, no campo
concreto ou abstrato e que se transforma através do tempo.
A representação nunca é apenas o objeto representante ou o representado, ela possui
a função de remeter a algo, mas não significa apenas ao que se remete.
Representação é ao mesmo tempo substituição de um corpo por outro, de forma
simbólica ou mais que isso, transubstanciação de um corpo em outro ou simbolização
substitutiva de algo em outra coisa. Também é mensagem, comunicação de determinados
elementos simbólicos.
Um filme é muito mais do que as imagens produzidas por ele ou o roteiro sobre o
qual se baseia sua trama e se organiza a produção cinematográfica, ou à edição que estabelece
uma ordem ao filmado de acordo com a produção de uma narrativa. Uma pintura ou uma
escultura tem significado diverso de acordo com a localidade onde é exposta, a função
envolvida na sua exposição e mesmo o objetivo de quem a expõe.
Um filme, uma história em quadrinhos, uma escultura ou uma pintura substituem o
real por um fac-símile dele, o ficcional adquirindo o caráter de representação do real,
substituindo o real por um mundo específico com leis próprias, apropriações, adaptações
simbólicas, reconstrução de signos e mensagens que se aglutinam num significante complexo.
E neste campo analítico se sobrepõem as características da representação formulada
por Chartier e por Ginzburg, produzindo um tipo de uso da categoria de forma ampla,
especialmente se optarmos por uma escala de análise que permita um minucioso processo de
análise dos objetos de pesquisa.
A Pietá de Michelangelo é, ao mesmo tempo, uma obra de arte renascentista que
utiliza de padrões que remontam aos do período clássico de produção de esculturas e uma
representação figurativa de uma cena bíblica que tem em torno de si toda uma religiosidade,
cuja base cultural sustenta uma rede de significados que vai muito além de sua beleza estética
enquanto obra de arte.
Michelangelo dialoga com a antiguidade e com a religiosidade presente no período
do Renascimento.
A Pietá, produzida com técnicas que remetem às esculturas gregas, substitui a
imagem de Nossa Senhora, estabelece para ela uma representação artisticamente acurada da
mesma Madona cultuada por vastas camadas da população.
Ali está representado o paganismo da técnica e a religiosidade cristã da imagem da
santa. Tanto quanto a mudança de paradigma de representação do homem quanto a fé da
igreja católica estão presentes, o humanismo liga-se ao cristianismo produzindo uma nova
forma de apropriação, substituindo e ao mesmo tempo reforçando a Madonna tradicional.
O personagem Super-Homem, criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em 1938, das
histórias em quadrinho publicadas pela editora DC Comics, pode ser analisado como um
símbolo representativo do poder estadunidense no globo, uma apropriação divina do que é o
homem comum estadunidense, uma representação das divindades greco-romanas atualizadas
para os padrões contemporâneos, uma referência prática ao Übermensch Nietzschiano
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Nos quadrinhos Mark Waid e Alex Ross produzem uma leitura do Super-Homem
onde fundamentalmente ele é um homem comum do campo, original do Kansas.
Mesmo com seus superpoderes ele permanece este homem comum(WAID, ROSS,
1996).
No cinema em “Superman: O Filme” o personagem é um humano superpoderoso,
apaixonado por Lois Lane e com poderes que beiram ao divino, porém com motivações
bastante mundanas, a ponto de modificar o decorrer do tempo para salvar sua amada,
contrariando valores a ele transmitidos por seu pai biológico, o kriptoniano Jor-El, e por seu
pai adotivo Jonathan Kent, que versavam sobe o uso responsável de seus poderes.
Na sequência, Superman 2, Clark Kent chega a abdicar de seus poderes em nome de
seu amor.
Porém aqui a divindade supera o homem. Inclusive nos sacrifícios que faz em nome
do dever e do papel de possuidor responsável de poderes divinos.
A própria imagem do Super-Homem soberano, com o sol ao fundo, descendo dos
céus, com as pessoas esticando a mão buscando tocá-lo remetem não só à divindade, mas
também ao poder curativo e a própria ideia da divindade dos reis e o atributo de soberano ao
kriptoniano. (BLOCH, 1999, 68 – 87).
Clark Kent é aqui um pseudônimo de Kal-El e não um nome cujo peso é sentido e
cujo papel narrativo transforma em homem o ente superpoderoso.
Da fase mais inocente onde seus poderes eram uma forma de luta contra as injustiças
e a densidade do personagem era menos obrigatória e exigida, dos anos de criação até os anos
1960, a chamada “Era de Ouro dos quadrinhos”, até um período onde seus poderes eram cada
vez mais retratados como próximos ao divino, com a manutenção, no entanto, de seu caráter
humano através de suas raízes no Kansas, que permeou o período que vai dos anos 1960 até o
fim dos anos 1970 (cujo reflexo é nítido na representação do personagem no filme de 1978),
foram feitas transformações na produção dos roteiros das histórias em quadrinhos e na própria
caracterização gráfica do personagem(PEIXOTO, 2013).
Estas transformações se seguiram e foram mais radicais quando nos anos 1980 o
evento “Crise nas Infinitas Terras” foi lançado pela editora com o objetivo de reformular todo
o universo de histórias produzidas pela mesma, incluindo as do Super-Homem.
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Figura 4: Super-homem tocado pela população remetendo ao poder curativo dos reis
A partir de 1985, o personagem passa por uma das mais radicais reformulações onde
seus poderes são reduzidos e suas características humanas foram ressaltadas.
Em todo este período seu papel como representante de uma ideia de nação
estadunidense forte e cujo papel era o de proteger o mundo e os valores estadunidenses se
transformaram, porém nunca foi tão forte quanto no fim dos anos 1980(PEIXOTO, 2013).
E o que isso tudo tem a ver com a abordagem da categoria representação pelo viés da
micro-história?
Toda a análise deste processo deve, sob o ponto de vista da micro-história, obedecer
a uma análise profunda e detalhada de como a representação se dá. Antes de analisar a
recepção, a apropriação e a prática, é fundamental analisá-la em toda sua riqueza de detalhes.
Estes processos se dão por razões de mercado, mas não apenas. Há a necessidade de
se adaptar às reações, às representações pela existência de versões que remetem a cronologias
anteriores e que produzem uma recepção de crítica e público superiores às novas formas de
leitura dos personagens (MOORE, 2013).
Como dissecar este processo com o máximo de detalhes que nos permitam a
construção de uma ideia que permita uma visualização verossímil do quadro geral da
realidade refletida pelos espelhos deformantes das fontes (GINZBURG, 2002, p.44)?
Mesmo com pesquisas de opinião, a análise da recepção de uma obra produzida pela
indústria cultural é, por mais acurada que seja, pouco garantidora de que a recepção analisada
se dê nos marcos específicos da subjetividade das próprias respostas que montaram o quadro
determinado como recepção objetiva de uma obra.
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O processo técnico é um eixo central da análise das representações, assim como sua
historicidade e contexto.
Todos estes elementos nos permitem tanto analisar o processo histórico envolvido na
produção do personagem como analisar as variações conjunturais nas quais o personagem
esteve envolvido.
A representação ainda possui uma questão prática: Ela em si, como produto e como
causa de recepções, apropriações e práticas.
2 “Os Novos 52” é o relançamento em setembro de 2011 de toda a linha da DC Comics com a
publicação de 52 novas séries de quadrinhos, todos com o início novamente como número 1. O número 52
remete à existência de 52 multiversos no universo DC.
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3 Assisista era o epíteto dado por A Federação aos seguidores de Assis Brasil.
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como meios de percepção dos lugares, físicos e simbólicos, onde se produzem disputas de
narrativas e lutas de representações que fazem parte de um quadro muito mais complexo que
o resultado impresso.
Tanto o Super-Homem quanto Luiz Carlos Prestes são personagens que influenciam
sua própria representação.
Seja a partir de suas lutas cotidianas, de suas relações, de suas formas de mostra-se
fisicamente e influenciar o imaginário em torno de si. Seja a partir de como a recepção de um
ícone dialoga com um complexo sistema de signos que se transubstancia e perpassa as
diversas culturas através dos tempos, encontrando morada nos Deuses antigos ou nos ícones e
heróis cinematográficos ou dos quadrinhos.
Em vez da busca por indícios que produzam uma análise que persiga uma
causalidade linear, é fundamental aqui a descrição minuciosa da produção das representações
e da autoria delas, desde o ponto de vista da linha editorial ou dos ditames do mercado até o
ponto de vista dos tensionamentos que produzem lutas de representação.
Além disso são elementos cruciais os aspectos contextuais de uso dos personagens às
recepções dos jornais, revistas e filmes, os diferentes públicos-alvo, capacidade de produção
técnica e suporte financeiro para a execução de suas ações.
O jornal sendo lido como autor permite que seja feita uma “autópsia” da
representação e com isso que se encontrem indícios para que se amplie a percepção do real no
contexto estudado.
A análise dos diversos contextos político-culturais, as necessidades de disputas de
mercado em torno das editoras de quadrinhos nos EUA, o impacto da transposição das HQ às
telas de cinema, a diversidade técnica na produção de roteiros e das histórias em quadrinhos
em si que foram aparecendo no decorrer dos anos de produção das histórias do Super-Homem
são elementos fundamentais para o estudo do processo de representações neste campo.
A análise técnica aqui pode ser feita com os jornais da mesma forma como se
analisam as diferenças da produção técnica de quadrinhos em 1938 e 2017.
Para a análise das representações em e por jornais também é fundamental estabelecer
as diferenças técnicas da produção jornalística nos mínimos detalhes, desde as diferenças
existentes entre dos variados tipos de periódicos até as inúmeras formas de escrita passíveis
nos jornais dentro do contexto.
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é a produção roteirizada por Dennis O’Neil e desenhada por Neal Adams onde o jovem
parceiro do Arqueiro Verde, o Ricardito, se prepara para aplicar em si uma dose de heroína 4.
A partir deste período a DC Comics passou a introduzir em suas histórias elementos
humanizadores de seus super-heróis e socialmente relevantes.
Figura 6: Combate final entre Batman e Super homem in BATMAN: O CAVALEIRO DAS
TREVAS: A queda do morcego. São Paulo: Abril, v. 4, n. 4, 1987.
O Super-Homem nos anos Reagan não era mais o herói que o público de quadrinhos
gostava de ver e precisava ler para se sentir plenamente representado por alguém que lutava
contra o mal que se apresentava de formas diferente do período da Era de Ouro. A realidade
de 1987 exigia alguém, que não se curvasse a bandeiras e distintivos, mas que lutasse contra o
mal de forma dura e cínica como os novos tempos exigia. Não se queria mais um Deus, mas
um homem disposto a lutar. No caso d’A Federação e sua representação de Prestes, a
referência a Assis Brasil torna claro que a representação obedece a um tipo de narrativa
considerada passível de ser utilizada com uma determinada recepção em mente, que trabalha
com uma ideia de conjuntura que ajuda a esta recepção.
Considerações finais
Variar a escala de análise para produzir um processo de estudo das representações
nos mais variados meios, é se propor a utilizar a categoria com relação aos diversos objetos de
estudo. Isso exige, antes de mais nada, o cuidado analítico que delimite a perspectiva do
processo de representação.
A delimitação cronológica, o recorte temporal, não é apenas o que se pressupõe
como única definição de recorte possível.
A variação de escala amplifica a quantidade de elementos que perpassam o processo
de análise e a ideia da variação em si é em perspectiva produzir maior grau de complexidade
na observação de elementos outrora tidos como dados, cujo enfoque de investigação tinha
supostamente esgotado as formas de percepção do real a partir daquele ponto de observação.
Tendo isso em mente é fundamental produzir um tipo de construção analítica que
permita uma descrição aprofundada do objeto representado, do meio pelo qual sua
representação é transmitida, as técnicas envolvidas, o contexto de representação e as possíveis
variações de categorização desta representação de acordo com as possibilidades e conjeturas
passíveis de serem estabelecidas a partir dos elementos constitutivos do processo de
representação.
A escala de análise aqui permite que se proponha um debate entre formas de
utilização da categoria representação a partir de sua diversidade de diálogo teórico.
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REFERÊNCIAS
FONTES
A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, 07 jan. 1924.Página 6.
A FEDERAÇÃO: O Federalismo Assisista. Porto Alegre, 10 jan. 1924. Página 1.
A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, 12 jan. 1924. Página 1.
A FEDERAÇÃO: A qualificação eleitoral e a Licção que ella encerra. Porto Alegre, 06
mar. 1924. Página 1.
A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, 06 mar. 1924. Página 4.
A FEDERAÇÃO: As simulações do regenerador. Porto Alegre, 08 mar. 1924. Página 1.
A FEDERAÇÃO: As vicissitudes de um comediante. Porto Alegre, 10 mar. 1924.
A FEDERAÇÃO: Cheque ao rei. Porto Alegre, 10 mar. 1924.
A FEDERAÇÃO: Medo ou ameaça? Porto Alegre, 10 mar. 1924.
A FEDERAÇÃO: Levante militar na fronteira missioneira. Porto Alegre, 04 nov. 1924.
Página 1.
A FEDERAÇÃO: O Levante militar na fronteira missioneira. Porto Alegre, 29 nov. 1924.
A FEDERAÇÃO: O levante na fronteira missioneira. Porto Alegre, 01 dez. 1924.
A FEDERAÇÃO: Roubalheira e Cynismo. Porto Alegre, 02 dez. 1924. Página 1.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. 2. ed. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2010.
BITTENCOURT, Renato Nunes. NIETZSCHE E O SUPER-HOMEM COMO
PARADIGMA DA SUPERAÇÃO PESSOAL. Revista Húmus, São Luís – Ma, v. 2, n. 17,
p.52-65, ago. 2016. Quadrimestral. Disponível em:
<http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahumus/article/view/5394>.
Acesso em: 22 set. 2017.
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