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O feiticeiro

ARI PEDRO ORO


recorre

ao Judiciário:

os limites do

multiculturalismo ARI PEDRO ORO é


professor de Antropologia
da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.

O presente texto foi originalmen-


te apresentado na mesa-redonda
“Multiculturalismo e Diversidade
SÍNTESE DO PROCESSO
Religiosa”, por ocasião do con-
gresso IX Jornadas sobre Alterna-
tivas Religiosas na América Lati- O processo número 01598148052 deu
na, realizado no Rio de Janeiro entrada no Quarto Juizado Especial Cível
entre os dias 21 e 24 de setem-
bro de 1999. de Porto Alegre no dia 23 de setembro de
Agradeço a Luiz Eduardo Souto, 1998, sendo autor Sérgio Ruggini, “que
promotor público de Santa
Catarina, e a Cíntia Beatriz trabalha como feiticeiro especializado em
Muller, advogada e mestranda trabalhos de feitiçaria para jogos de fute-
em Antropologia Social da Uni-
versidade Federal do Rio Grande bol” (processo p. 0001) e réu o Esporte
do Sul, pelas sugestões dadas a
Clube Internacional. Tratava-se de uma
uma versão anterior deste texto.
ação de cobrança, pois “no penúltimo cam-
peonato gaúcho (1997) o autor foi contra-
tado pelos réus para segurar o Grêmio na
última partida do campeonato, saindo o
Inter campeão com o gol do Fabiano. Quan-
do foi buscar o dinheiro acordado entre as
partes recebeu informação dos réus que
não pagariam” (idem). Uma audiência de
conciliação presidida por um juiz de Direi-
to foi realizada em 17 de novembro de
1998 e resultou inexitosa. Três dias mais
tarde, em 20 de novembro, o mesmo juiz
emitiu a sentença na qual extinguiu o pro-
cesso e condenou o postulante “a indenizar

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a parte contrária nos prejuízos sofridos e tro espírita e se identifica como católico.
eventuais despesas suportadas” (processo, Na metade do ano de 1997 estava com
sentença, p. 5). Fixou a indenização em uma dívida no banco que não conseguia
20% sobre o valor da demanda, que era de saldar e uma feia ferida se manifestou em
2.600 reais. sua perna esquerda, em razão do contato
com “água envenenada” de córregos pelo
uso de agrotóxicos nas lavouras. Encontra-
OS PERSONAGENS E O FATO va-se em Porto Alegre, no final de junho
daquele ano, onde foi em busca de um hos-
A história de Sérgio Ruggini não é dife- pital especializado para curar sua perna.
rente da de muitos videntes e curandeiros Era a “semana do Gre-Nal” (2) que iria
do interior do Brasil que foram socializa- indicar o campeão gaúcho de 1997. Teve,
dos num contexto de religiosidade popu- então, a idéia de oferecer seus serviços aos
lar. Originário de família italiana e católi- clubes em disputa, em troca de algum di-
ca, agricultor, casado e com filhos, com 53 nheiro que lhe auxiliasse a custear as des-
anos de idade e poucos anos de escola, re- pesas de viagem bem como ajudar no paga-
side a 440 quilômetros de Porto Alegre, no mento da dívida no banco. Dirigiu-se inici-
interior do município de Tenente Portela, almente ao estádio Olímpico do Grêmio,
no norte do estado. Há 15 anos sofreu um que não logrou êxito, diferentemente do
acidente ao cair do alto de uma parede que Internacional, onde acordou com Norma
estava pintando, tendo sido gravemente Prates receber a quantia de 2.600 reais pe-
afetada a coluna vertebral. Estendido numa los seus serviços, caso o Internacional ven-
cama, não sentindo mais as pernas, fez uma cesse o Gre-Nal e se tornasse campeão.
promessa à Virgem de Aparecida do Norte Norma Prates é afro-descendente e fun-
de ir até seu santuário caso melhorasse. Não cionária do Esporte Clube Internacional há
era a primeira promessa que fazia em sua 27 anos. Formada em Administração de
vida. A cura aos poucos foi acontecendo e Empresas, atualmente trabalha como se-
então viajou para Aparecida, onde uma frei- cretária da diretoria. Sua versão difere da
ra lhe ensinou oralmente uma reza para dizê- de Ruggini. Disse que pouco antes do final
la quando necessitasse. A esta reza acres- do “Gauchão 1997” ele compareceu reite-
centou outras, tipo jaculatórias, que pedi- radas vezes no pátio do clube “enchendo o
am intercessão de padre Cícero, santo Agos- saco” dos guardas que, finalmente, enca-
tinho e padre Reus (1). Com tais rezas que, minharam-no até ela. Após ouvi-lo deixou
de forma coerente com a mentalidade po- claro que não acreditava na sua atividade.
pular, não podem ser reveladas a ninguém Também, não confirma ter entrado num
sob pena de perder sua eficácia, diz-se ca- acordo nem ter acertado qualquer valor com
1 Padre João Batista Reus nasceu
na Alemanha em 1868 e fale- paz de realizar curas, interferir no clima Ruggini.
ceu em São Leopoldo (RS) em
1947. Foi ordenado sacerdo- provocando chuvas ou amainá-las, e, espe- Seja como for, Ruggini comprou ban-
te em 1893 e um ano mais tarde cialmente, intervir nos resultados dos jo- deira do Internacional, dirigiu-se ao está-
ingressou na Companhia de
Jesus. Veio para o Brasil em gos e loterias. Interpreta que tais dons lhe dio Beira Rio e assistiu, na quarta-feira, 2
1900, tendo trabalhado dez
anos na cidade de Rio Grande
foram despertados com o acidente. de julho, o jogo em que o Internacional
e em São Leopoldo de 1914 a O seu universo mágico-religioso, po- venceu o Grêmio por 1 a 0, gol do atacante
1944. Faleceu com fama de
santidade. Em 1953 foi inicia- rém, não comporta somente santos católi- Fabiano. O “trabalho” foi realizado na vés-
do o processo de sua cos pois a ele integrou Buda e pirâmides e, pera. Em se tratando de jogos e loterias é na
santificação, ainda em
tramitação, em Roma. Seu no nível lingüístico, passou a utilizar con- véspera que deve “trabalhar”; caso contrá-
túmulo, em São Leopoldo, re-
cebe peregrinações de todo o ceitos do campo mediúnico brasileiro como rio, diz ele, não obtém a eficácia esperada.
país, numa média de 30 mil “trabalhar”, para se referir aos rituais que Como tantas outras vezes em que havia feito
pessoas por mês.
realiza, e “segurar”, “largar” e “controlar”, semelhante “trabalho”, o mesmo consistiu
2 “Gre-Nal” é uma expressão que
se refere aos dois maiores clu- para indicar a finalidade ritualística. Po- em reproduzir um sistema binário de “se-
bes de futebol gaúchos: o Grê- gurar” um time, no caso o Grêmio, e “lar-
rém, não é iniciado em religiões mediúnicas,
mio Futebol Porto-alegrense e o
Esporte Clube Internacional. diz que nunca entrou num terreiro ou cen- gar” outro, no caso o Internacional. “O

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time que eu seguro perde; aquele que eu tendido. “Tive que pagar pra me ver livre
largo é campeão”. E isso, segundo ele, se daquilo tudo; nunca mais vou me meter
comprovou mais uma vez. nessa”, disse. Norma Prates, por seu turno,
No dia seguinte ao jogo foi procurar afirma que o Internacional não cobrou nada
Norma Prates, que não o recebeu, como do “pobre coitado”. Somando as despesas
fizera várias outras vezes em que esteve no com viagens e hotel na capital, Ruggini afir-
estádio por ocasião de outras idas a Porto ma que sua dívida se elevou a quase 5.000
Alegre, ou tentou contatá-la por telefone. reais, incluindo, certamente, os 2.600 que
Numa oportunidade ela lhe teria sugerido pensava receber. Em razão da repercussão
que pagaria somente na justiça. “Se tu quer que o fato teve na mídia estadual começou
ganhar alguma coisa tem que entrar na jus- a ser procurado em sua residência no interi-
tiça. Lá eu pago”, ela teria dito, segundo as or do estado para realizar “trabalhos” de
palavras de Ruggini. A funcionária do In- cura ou outros, o que, segundo afirmou,
ternacional, por seu turno, alega que foi poderia ter-lhe permitido recuperar parte do
Ruggini quem ameaçou acioná-la juridica- dinheiro perdido, mas sua esposa e filhos
mente. Passado mais de um ano, Ruggini, impediram-no de atuar neste ramo.
de fato, compareceu no Juizado de Peque- Encontrei Sérgio Ruggini no dia 1o de
nas Causas, no Fórum de Porto Alegre, para maio de 1999, às 10 horas, trabalhando num
propor uma ação de cobrança financeira. chiqueiro, defronte o qual concedeu-me
Após ouvir seu relato o funcionário que o uma entrevista de duas horas. Além de
atendeu indagou sobre sua identidade pro- porcos, cria galinhas e gado e cultiva soja,
fissional, pairando dúvidas entre eles. arroz e milho, frutas e hortaliças em sua
Ruggini não aceitou a denominação sugerida propriedade de uma colônia de terra. Ao
de pai-de-santo, concordando então com o término da entrevista, e após relatar-me tudo
termo feiticeiro, o que hoje considera ter sido o que lhe ocorreu, queixou-se da cidade,
um erro, pois, segundo ele, aquele termo é dos grandes clubes, da justiça. E com algu-
socialmente mais aceito. ma amargura disse: “Eu fui na palavra e
Norma Prates compareceu na audiên- deram uma baita paulada em mim”.
cia de conciliação juntamente com um ad-
vogado do clube e negou perante o juiz ter
realizado qualquer acordo, mesmo verbal, A SENTENÇA
com o “feiticeiro”. Em entrevista a mim
concedida, este afirma ter recebido então o A ação judicial perpetrada por Sérgio
segundo duro golpe, visto que fora ela pró- Ruggini tramitou no Juizado Especial
pria quem lhe havia sugerido ingressar no Cível, ou seja, juizado de pequenas causas,
Judiciário. “Lá eu pago”, ela teria dito. criado pela lei 9.099 de 26/9/1995. Neste
Ao término da ação, em que Ruggini caso, as ações não podem exceder a 40
saiu perdedor por falta de provas, um escri- salários mínimos. Trata-se de um processo
vão do Juizado orientou-lhe para que num sumariíssimo, não ordinário, que se carac-
próximo “trabalho” fizesse um contrato por teriza pela simplicidade, oralidade,
escrito, com firmas reconhecidas em cartó- informalidade e celeridade. É de praxe que
rio. No entanto, este procedimento não foi antes da sentença seja proposta uma audi-
integrado ao modus operandi de Ruggini, ência de conciliação entre as partes, po-
como se observa no acordo que firmou, dendo ser presidida por um juiz leigo ou de
alguns meses depois, com um representan- direito, competente para a matéria.
te do Juventude de Caxias do Sul no valor A audiência de conciliação da ação
de 7.000 reais, soma que lhe foi negada movida pelo “feiticeiro” foi presidida por
quando foi cobrá-la. um juiz de direito que ouviu do demandante
Quanto ao Internacional, além de não não ter produzido nenhuma prova (suben-
receber a quantia esperada, Ruggini foi con- tende-se material) a seu favor. A contesta-
denado a pagar ao clube 20% do valor pre- ção da representante do Internacional e seu

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advogado deu-se no ato, oralmente, alegan- mérito – ausentes as condições da ação –
do inépcia da inicial e requerendo a extinção possibilidade jurídica do pedido, o que faço
do processo “posto que se cuida de pedido com base no art. 267, inciso VI, do Código
juridicamente impossível, isso na medida de Processo Civil”. Na segunda, condena
em que o objeto pleiteado não se mostra “o postulante a indenizar a parte contrária
lícito”. Quanto ao mérito alegaram impro- nos prejuízos sofridos e eventuais despe-
cedente a pretensão, uma vez que não há sas suportadas”. Fixa o valor da indeniza-
prova do nexo de causalidade alegada pelo ção em 20% sobre o valor atribuído à de-
autor. Enfim, cogitaram, inclusive, a pos- manda. Sua decisão, conclui, baseia-se na
sibilidade de dar vista dos autos ao Minis- “reconhecida litigância de má-fé por parte
tério Público, “eis que, no entendimento do do autor”.
demandado há, pelo menos em tese, práti- Portanto, por um lado, o juiz entende –
ca de ilícito penal por parte do demandante”. da mesma forma que a contestação dos
O juiz exarou a sentença acompanhan- representantes do clube – que se trata de
do a argumentação dos representantes do ato ilícito a demanda do feiticeiro, posto
clube e dizendo que a causa “sequer deve- que requer pagamento por uma ação juridi-
ria ter sido objeto de acatamento pelo ser- camente impossível, embora não deixe cla-
viço de distribuição deste Juizado Especi- ro onde radica a ilicitude do ato (3). E, por
al”. Alegou que não havia nos autos nada outro lado, infere má-fé por parte do autor,
“que possa servir de substrato compro- “na exata medida em que vale-se o reque-
batório sério […] apto a amparar o pedido rente do processo judicial para perseguir
formulado na angular”. Prosseguiu afir- objeto escancaradamente desprovido de
mando que as ponderações do postulante amparo legal […]”, e que o referido pro-
“revestem-se de rematada má-fé, isso na cesso contra o Internacional assumiu “ares
exata medida em que se vale o requerente de verdadeira chacota aos olhos da opinião
do processo judicial para perseguir objeto pública […]”.
escancaradamente desprovido de amparo
legal […]”. Escreveu ainda o juiz que o
presente pedido assumiu “ares de verda-
deira chacota aos olhos da opinião pública, O TRATAMENTO JORNALÍSTICO DO
vez que notória sua divulgação pelos gran-
des jornais e revistas nacionais[…]”, o que PROCESSO
em parte é verdadeiro, como veremos mais
à frente. Insistiu também que lhe cabia re- Como não poderia deixar de ser, a ação
primir “qualquer ato contrário à dignidade judicial do feiticeiro contra um dos maio-
da justiça (art. 125, III do CPC) e não dar res times de futebol do Brasil foi noticiada
guarida a ‘tão atentatórios propósitos’”. na televisão e nos jornais, especialmente
Em suma, para o juiz, “o pedido não se do Rio Grande do Sul. Em seus noticiários,
sustenta, quer no plano jurídico, factual ou as redes locais de televisão abordaram o
mesmo moral”. Lamentou ter que se depa- tema já por ocasião do ingresso da referida
rar “com situações tais, desprovidas de ação na justiça; mais tarde entrevistaram
qualquer substrato sério, provocantemente Norma Prates e mais uma reportagem foi
contrárias à dignidade da própria justiça”. ao ar no dia em que o feiticeiro compareceu
E após citar passagens da “melhor doutri- para a audiência de conciliação.
na”, escreveu textualmente: “Equivocou- Os dois maiores jornais do Rio Grande
se o ‘feiticeiro especializado’ ao imaginar do Sul também deram cobertura ao fato. O
que o Poder Judiciário fosse dar guarida a jornal Zero Hora, de Porto Alegre, divul-
tão sórdida e infundada pretensão”. gou três reportagens sobre o tema. A pri-
3 Indiretamente refere o art. Na seqüência emitiu a sentença, dividi- meira, em 21/10/98, um mês após o início
1.477 do Código Civil, que da em duas partes. Na primeira, julgou do processo. Nela refere-se a Sérgio
não admite como causa petenti
dívida de jogo. “extinto o processo – sem julgamento de Ruggini como pai-de-santo que ingressou

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na justiça contra o Internacional e que teria lo com alguma ironia, presente em frases
realizado a feitiçaria com pedaço de papel, como “forças do além”, “feitiço se voltou
penas, um barbante e uma imagem de Buda. contra o feiticeiro”, o jornal Correio do
Um mês mais tarde, em 20 de novembro, Povo expõe o fato com análises jocosas:
em matéria intitulada “Forças do Além”, o “Não sei se o Inter ganharia o título [do
mesmo jornal anunciava que sairia naque- brasileiro, sugerido pelo jornalista] nem se
le dia a sentença do juiz e que na audiência o pai-de-santo engordaria sua conta bancá-
realizada três dias atrás “público não fal- ria[…]”. Nas outras reportagens o teor jo-
tou”. Enfim, no dia seguinte, em matéria coso aparece em frases como estas: “ação
intitulada “Deu Errado”, noticia que o pai- judicial inédita”; “primeiro caso de feitiça-
de-santo perdeu a ação, podendo inclusive ria profissional”; “gostaria muitíssimo de
ser acionado pelo Internacional. “Tipo do ver as suas provas”; “o pai-de-santo voltou
caso em que o feitiço se voltou contra o seu trabalho contra o treinador” (por isso
feiticeiro”, arrematou o jornal. foi dispensado pelo Internacional); “O
Por sua vez, o jornal Correio do Povo, Grêmio, pelo visto, anda precisando muito
também de Porto Alegre, ocupou-se do mais de um tipo desses do que o Internacio-
assunto em cinco oportunidades: três antes nal” (isso porque se encontrava em situa-
do pai-de-santo (termo também emprega- ção pior no campeonato brasileiro).
do por esse jornal) ingressar na justiça. Em Além disso, salta aos olhos o enqua-
matérias assinadas em 16/11/97 o jornalis- dramento que a imprensa deu ao agente da
ta H. Mombach informa que “há um pai- ação judicial como sendo um “pai-de-san-
de-santo cobrando uma conta” do Interna- to”, embora ele nunca tenha se identificado
cional e sugere ao presidente do clube con- como tal e esse termo não apareça no pro-
tratar “o pai-de-santo para nova missão: o cesso. Este fato revela uma naturalização
brasileiro” (subentende-se o campeonato por parte da imprensa de que atos mágicos,
brasileiro de futebol). Em 14 de dezembro “trabalhos”, não podem ser feitos a não ser
do mesmo ano outro jornalista, Mendes Ri- por pais-de-santo. Partindo dessa premis-
beiro, faz um comentário sobre o fato afir- sa, os jornalistas do Correio do Povo não se
mando que o importante é ter time e não furtam em falar em galo, galinha, cabritos,
recorrer a pai-de-santo e seus sacrifícios velas, balas de mel, búzios, pomba-giras,
com “galo preto, tocos de vela”. Expres- exus. Ou seja, trazem para o caso um con-
sões como “batuque aqui, galinha na esqui- junto de elementos simbólicos próprio do
na ali, vela acesa acolá” também integram mundo afro-brasileiro mas que, neste caso,
o novo comentário de Mombach em maté- surge apenas como projeção visto que a
ria de 22 de setembro de 1998, quando re- realidade dos fatos difere em grande medi-
laciona a demissão do técnico do Internacio- da daquele campo religioso.
nal a trabalho do pai-de-santo que “largou
de mão o treinador”. O mesmo jornalista,
em 20/10/98, volta ao assunto afirmando DISCUSSÃO
que algo inédito ocorreu: “um pai-de-santo
ingressou na justiça contra o Internacio- Ao se definir como feiticeiro Sérgio
nal”. Finaliza dizendo que “gostaria mui- Ruggini expressava ser detentor do poder
tíssimo de ver as suas provas”. No dia se- de alcançar determinado objetivo através
guinte volta ao assunto afirmando que a de práticas mágicas. Tal crença numa força
ação judicial em questão configura “o pri- sobrenatural manipulável por quem é dota-
meiro caso de feitiçaria profissional”. do de poderes extraordinários é própria do
Como se vê, o tratamento jornalístico pensamento mágico de todos os tempos.
do assunto não deixa de ter um conteúdo Tal pensamento caracteriza-se pela visão
sensacionalista, especialmente de parte do encantada do mundo, a qual, conforme Luis
segundo diário. Enquanto o primeiro tende F. D. Duarte, supõe a “íntima conexão en-
a noticiar o caso, não sem deixar de veiculá- tre os planos da Pessoa, da Natureza e da

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Sobrenatureza” (Duarte, 1986, p. 248). Como vimos, não obteve o desejado e ain-
Trata-se de um pensamento totalizante “pré- da foi condenado a pagar 20% do total da
moderno” (4) bastante comum junto a par- soma que esperava receber.
celas significativas da sociedade brasilei- Mas, evidentemente, para ele o que
ra, para quem o transcendente e o imanente havia realizado não configurava ilicitude,
não estão separados, e os problemas e os como entendeu o juiz. Ao contrário, fizera
acontecimentos terrenos não ocorrem sem uma boa ação, favorecendo o clube ao uti-
relação com as forças sobrenaturais. lizar, para tanto, seus dons legitimados pelo
Ao atuar como “feiticeiro especializa- sobrenatural. Igualmente, o fato de não tra-
do em trabalhos para jogos de futebol”, zer nenhuma prova, material ou testemu-
Ruggini – da mesma forma que outros agen- nhal, o que, segundo o juiz, denunciava sua
tes religiosos e denominações religiosas – má-fé, pode ser interpretado no sentido de
atualizou e reinterpretou a magia, que ou- que o feiticeiro transferiu para o Judiciário
trora servia para proteger contra “olho gran- a mesma lógica usada nos contratos firma-
de”, bruxaria e situações incertas e perigo- dos com o transcendente, os quais ocorrem
sas e que hoje é usada para as mais diferen- sem intermediação alguma.
tes situações da vida moderna, até mesmo Portanto, se de um certo ponto de vista
para vencer uma partida de futebol. Mas, Ruggini agiu ingenuamente, ao se declarar
outrora, como hoje, a magia continua sen- “feiticeiro especializado” e ao acreditar que
do “uma maneira de afrontar situações de na instância jurídica, mesmo desprovido
infelicidade ou de perigo para as quais não de provas e testemunhas, pudesse alcançar
existe uma solução conhecida e eficaz” o que lhe havia sido prometido, de outro
(Rivière, 1997, p. 121). Ou, por outra, como foi bastante coerente com sua mentalidade
diz o mesmo autor, “a magia é a ritualização e visão de mundo, transferindo para a área
de uma situação na qual um desejo se ex- jurídica sua forma de agir no quotidiano e
pressa em termos simbólicos”. mesmo na relação com o sobrenatural, no
Para tanto, e diferentemente do feiticei- qual a relação é direta e valores como hon-
ro tradicional, que agia a partir de forças e ra, respeito, responsabilidade e cumprimen-
energias desconhecidas – por vezes obscu- to da palavra empenhada são sagrados. De
ras, ocultas, tenebrosas, satânicas –, Ruggi- qualquer forma, o feiticeiro submeteu-se à
ni, como todo feiticeiro moderno, atuou a decisão judicial acatando a sentença, sem,
partir de um panteão religioso diverso e porém, entendê-la. “Paguei pra me ver li-
eclético, próprio da religiosidade contem- vre disso tudo”, disse ele.
porânea, que se apropria do maior número Por seu turno, parece que a funcionária
possível de elementos simbólicos e mági- do Internacional transita nos dois sistemas
cos para construir seu universo de repre- de pensamento: no mágico-tradicional e no
sentação simbólica. jurídico-burocrático. Por um lado, teria se
Ao ver descumprido o contrato verbal valido do primeiro para “contratar” o ser-
com a representante do Internacional, o viço do feiticeiro, visando buscar a vitória
feiticeiro não reagiu segundo seu pensa- na disputa contra o Grêmio, embora, como
mento mágico. Negou-se a se “vingar” do vimos, ela negue que isso tenha ocorrido.
Internacional, ou de sua representante no No entanto, a insistência do feiticeiro e seu
“contrato”, através da feitiçaria. Seguindo ingresso na justiça mais de um ano após o
sua sugestão, ou não, tentou buscar na jus- ocorrido sugere que, de fato, algum acordo
4 Segundo P. Sanchis, a lógica tiça o que pensava ser de seu direito. Mas, pode ter ocorrido entre eles. Por outro lado,
“pré-moderna” que percorre o
campo religioso brasileiro. Tra- como não domina o código legal-burocrá- a funcionária valeu-se do outro código de
ta-se, de acordo com a sua
definição de “um universo
tico, compareceu à audiência de concilia- pensamento, o burocrático-legal, na hora
religioso fundamentalmente ri- ção sem advogado. Considerou que sua pa- de acertar as contas com o feiticeiro, suge-
tual (‘mágico-religioso’), domi-
nado pela ‘obrigação’ e imper- lavra era o bastante. Iria tão-somente rela- rindo-lhe ou apoiando-lhe para que ingres-
feitamente ético para o nosso tar a (sua) verdade ao juiz e buscar o que sasse na esfera jurídica. Nesse caso, po-
olhar contemporâneo”
(Sanchis, 1997, p. 104). considerava lhe ser devido. E se deu mal. rém, sabia que na justiça o feiticeiro jamais

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poderia alcançar o seu intento e, ademais, juiz. Ela reproduz, em certa medida, uma
poderia ser condenado. situação mais geral pesquisada por Sérgio
Enfim, o juiz posicionou-se unicamen- Adorno a partir de julgamentos de crimes
te na perspectiva legal-racional e foi ampa- dolosos contra a vida nos tribunais de júri
rado exclusivamente nela que apreciou a da capital de São Paulo entre os anos de
ação do feiticeiro. Agiu coerentemente com 1984 e 1988. Esse autor mostrou ser uma
o princípio legalista. Dura lex sed lex. Não tendência os julgamentos recaírem menos
procurou compreender o universo simbóli- sobre os fatos em si e mais sobre o estatuto
co do autor da ação; não realizou uma pas- social dos implicados, onde pobres, pretos,
sagem cultural ou uma ponte no sentido de prostitutas, seriam objeto de discriminação,
perceber a ação na perspectiva do feiticei- a tal ponto que, “se o crime não é privilégio
ro. Seu arrazoado e sentença obedeceram de classe, a punição parece sê-lo” (Ador-
exclusivamente à lógica racionalista, no, 1994, p. 149). Assim sendo, o Judiciá-
legalista e experimental. rio revela-se, muitas vezes, opressor e in-
Assim sendo, em primeiro lugar, consi- justo, posto que na mente dos seus opera-
derou a ação sem materialidade tendo sido dores age silenciosamente um imaginário
um erro tê-la recebido na esfera jurídica; excludente e preconceituoso (5). Semelhan-
em segundo lugar, julgou a ação ilícita, te observação é feita por Jeanine Philippi,
portanto, ou seja, uma causa juridicamente para quem “as práticas jurídicas, a despeito
impossível, já que parece tê-la enquadrado do imaginário de neutralidade que as en-
na busca de valor resultante de jogo, ou volve, acabam sempre por denunciar, de
estelionato; em terceiro lugar, enquadrou a uma maneira ou de outra, os valores e cren-
ação do feiticeiro nos artigos 16 e 17 do ças que as sustentam. O privilégio da pro-
Código de Processo Civil, que trata da priedade, dos bens em detrimento das pes-
litigância de má-fé. De fato, a “má-fé” do soas, do homem em relação à mulher emer-
feiticeiro está no centro da decisão do juiz. ge nas entrelinhas dos processos que trami-
Sem ter ouvido dele nada que pudesse in- tam nos tribunais, muito embora sua inci-
ferir nesta direção afirma, antes de dência seja enfaticamente negada” (1997,
condená-lo a pagar a indenização: “reco- p. 26).
nhecida a litigância de má-fé por parte do
autor […]”. E está tão seguro da má-fé que 5 Dessa forma, observa S. Ador-

considerou desnecessário encaminhar o OS LIMITES DO no, o sonho do final do século


XVIII e ao longo do século XIX,
da universalidade do tratamen-
processo ao Ministério Público, para mai-
ores investigações. MULTICULTURALISMO (6) to legal, dispensada a quem
quer que seja, permaneceu
apologia do discurso jurídico-
Ao afirmar que o feiticeiro agiu de má- político liberal, mesmo nas de-
fé o juiz está lhe atribuindo a intenção de Como se sabe, os países latino-ameri- mocracias européias e norte-
americanas (Adorno, 1994, p.
prejudicar o Esporte Clube Internacional, canos, o Brasil inclusive, constituíram-se 149).
o qual foi motivo de “chacota aos olhos da como nações alimentando o ideal de um 6 Christine Inglis e Michel
Wieviorka propõem a distin-
opinião pública”, ao acioná-lo com ampa- Estado monocultural sobre sociedades que, ção analítica do conceito de
ro em um objeto (feitiçaria) que não possui porém, sempre foram multiculturais. Essa multiculturalismo em três níveis,
embora na prática eles se
respaldo legal. Mas, além disso, na avalia- situação multicultural tem gerado tensões, recubram: um uso demográfico-
ção do juiz, houve também má-fé do autor conflitos e dificuldades para incrementar descritivo, em perspectiva so-
ciológica, um uso ideológico-
contra a “dignidade da justiça”, ao propor uma política multicultural, resultante, ne- normativo, de acordo com uma
démarche proveniente da filo-
uma ação ofensiva, provocativa e cessariamente, de negociação das diferen- sofia política, e um uso
atentatória à instituição, que “deve ser res- ças (Burity, 1997). programático e político, vincu-
lado às ciências políticas
peitada e vista como legítimo Poder de Mas, segundo A. Gutmann, “não somen- (Inglis, 1996; Wieviorka,
1998). Com isso, estes auto-
Estado, e não prestar-se a acolher incon- te as sociedades mas também as pessoas res querem sublinhar que mul-
fessáveis idiossincrasias pessoais”. são multiculturais” (1993, p. 205), embo- ticulturalismo é um termo
polissêmico que cobre um lar-
Dessa forma, Sérgio Ruggini, agricul- ra, acrescentemos, umas o sejam mais do go espectro incluindo a idéia
tor, semi-analfabeto e “feiticeiro”, foi con- que outras. Isso ficou patente no caso do de uma ideologia, de um dis-
curso e de um conjunto de
denado. Não é de se estranhar a decisão do feiticeiro, que navega numa teia de signifi- políticas e de práticas.

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cados globalizante, na qual as fronteiras pação de grandes propriedades por parte
não são rígidas e as passagens são passíveis do Movimento dos Sem-Terra, o que colo-
de serem realizadas. Por isso, na busca da ca o julgador diante do impasse da restitui-
eficácia, atuou de acordo com o seu siste- ção da posse da terra, podendo usar, para
ma mágico-religioso, o que não impediu, tanto, a força policial, e a situação social
na seqüência, de ingressar no sistema jurí- dos sem-terra que, se expulsos, ficarão à
dico. Reproduziu assim um procedimento mercê das intempéries, à beira das estra-
comum, sobretudo nos meios populares, de das, colocando em risco suas vidas. Esta
valer-se de distintos meios e serviços (sem situação faz alguns juízes protelarem a
se indagar se são mais ou menos racionais aplicação da lei até que uma solução deri-
7 Sabe-se, porém, que a diversi-
dade dos particularismos cultu- ou científicos) para remediar os males e vada de negociações entre as várias partes
rais é hoje de tal modo consi- buscar a realização de desejos. implicadas no impasse seja alcançada, e
derável (de ordem religiosa,
étnica, gênero, social) que co- Já o juiz demonstrou uma postura mesmo a darem ganho de causa para ocu-
loca limites ao multiculturalismo
jurídico. etnocêntrica e legalista. Não superou a li- pações de propriedades improdutivas em
8 De fato, para Claudia L. Mar- nha divisória que construiu entre o “racio- ações reivindicatórias de posse (10).
ques, os tempos atuais são de nal” e o “irracional”, o “científico” e o Mas tais juízes formam uma minoria. A
desafio para o direito. São “tem-
pos de ceticismo quanto à ca- “mágico”, o “lógico” e o “ilógico”. Pode- maioria tem dificuldade em captar as situ-
pacidade da ciência do Direi-
to de dar respostas adequadas
ria não ter sido unicultural e essencialista ações particulares e a perceber o multi-
e gerais aos problemas que mas situacionista e multiculturalista, e ter culturalismo que prevalece na sociedade e
perturbam a sociedade atual e
modificam-se com uma veloci- adotado uma postura de reconhecimento nos sujeitos individuais. Agem segundo um
dade assustadora. Tempos de da lógica que preside o universo simbólico só parâmetro e tentam impor uma só ma-
valorização dos serviços, do
lazer, do abstrato e do transitó- do proponente processual, ter dado um tra- neira de pensar. Seriam “neo-radicais”,
rio, que acabam por decretar a
insuficiência do modelo tamento diferenciado ao diferente, sem segundo a expressão de Claudia Marques,
contratual tradicional do Direi- deixar de fazer cumprir a lei (7). Poderia, pois têm medo do outro, do novo e do dife-
to, e acabam por forçar a evo-
lução dos conceitos do Direi- de alguma forma, ter apreciado a ação no rente (1998, p. 5).
to, a propor uma nova jurispru-
dência dos valores, uma nova
contexto mais amplo do momento atual Seja como for, as situações acima mos-
visão dos princípios do Direito (pós-moderno?) de crise e de mudança que tram que “a lei tanto molda a opressão social
civil, agora muito mais influen-
ciada pelo direito público e estamos vivendo em razão do ceticismo das quanto proporciona resistência e reforma.
pelo respeito aos Direitos fun- ciências, do direito à diferença, do indivi- As leis podem, algumas vezes, proporcio-
damentais aos cidadãos” (Mar-
ques, 1998, p. 3). dualismo, do pluralismo e do relativismo nar aberturas em algumas áreas e simulta-
9 Essa perspectiva recebeu forte culturais, do retorno dos sentimentos e da neamente manter o status quo em outras”
influência da antropologia jurí-
dica. No dizer de Boaventura
valorização dos direitos humanos, tudo isso, (1997, p. 17).
Sousa Santos, o conhecimento de alguma forma, possuindo hoje impor- Portanto, o multiculturalismo, além do
antropológico, quando saiu do
“gueto primitivo”, enriqueceu e tantes reflexos na ciência do direito, como campo político democrático, precisa alcan-
acabou “por dominar a proble- afirma uma teórica desta área de conheci- çar o sistema jurídico, os tribunais e a po-
mática do conteúdo científico-
social do direito” (Santos, mento (Marques, 1998) (8). lícia, pois aqui se cristaliza o nó duro de
1988, p. 65).
Se assim tivesse procedido não teria sido uma noção de Estado que tende a reprodu-
10 Por exemplo, em 1997 trami-
tou na 3a Vara da Comarca de
inovador pois há uma parcela de juízes e zir uma visão de mundo, uma norma regu-
Alvorada (RS) um processo de teóricos do direito que assume e preconiza ladora que satisfaz os interesses de uma
ação reivindicatória no qual o
juiz argumentou pela não de- uma postura pluralista e flexível, sem agir determinada cultura e ideologia e, até cer-
volução do imóvel a seu pro-
ao arrepio da lei. Ou seja, tentam fazer a to ponto, de uma classe social ou de um
prietário embasado em vários
juristas e mesmo em Marx e aprendizagem da alteridade e captar o uni- grupo de interesse, de sorte que o sistema
Manheim, opondo dois concei-
tos fundamentais: abuso de di- verso simbólico dos indivíduos implicados judiciário realiza, assim, uma integração
reito de propriedade e função nas ações jurídicas; não se atêm somente social “pelo alto” (Douglas, 1978, in Ben-
social da propriedade.
no instituído, mas também no instituinte; Rafael, 1998), embora defina as obrigações
11 Essa autora mostrou, por exem-
plo, que os juízes de Oakland não somente no essencial mas também na da adesão referindo-se a ideologias
“controlam os litigantes e evi-
tam ter sua autoridade desafia-
invenção. Em suma, tentam promover uma universalistas e a tradições históricas. Tra-
da ao não decidir na hora quan- política do sujeito e de valorização do ta-se, portanto, de um sistema dominante
do ambas as partes estão pre-
sentes. Mais importante ainda, multiculturalismo (9). Assim têm procedi- “unificador” que desqualifica e mesmo ten-
[…] eles jamais justificam as de- do alguns juízes no Rio Grande do Sul em de a apagar os particularismos culturais.
cisões que tomam, impedindo,
longe da utopia de justiça (seja assuntos, por exemplo, relacionados à ocu- Em outras palavras, o sistema jurídico di-

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ficilmente adere e corrobora uma cultura estudo realizado nos tribunais de pequenas
formal ou informal), qualquer
pluralista que levaria em consideração a causas de Oakland-Piedmont, Estados possibilidade de um processo
diversidade cultural. No entanto, situações Unidos (11). interpretativo em que argumen-
tos e justificativas são publica-
jurídicas como a que expus nesta comuni- Ocorre que o Judiciário é uma institui- mente apresentados e as par-
cação, ou as “invasões” perpetradas pelo ção hegemônica que se quer baluarte do tes têm a possibilidade de sa-
ber por que são consideradas
MST, ou, ainda, as reivindicações proveni- Iluminismo, e que, para René Girard, des- certas ou erradas” (Santos,
1994, p. 98). No entanto, a
entes das diversas minorias sociais, tendem fruta, em nossa sociedade moderna hierár- autora também mostra que os
a constituir-se em situações de quica, de semelhante grau de legitimação litigantes não são sujeitos pas-
sivos e reagem às decisões de
questionamento e de afrontamento ao mo- detido pela religião em sociedades encan- acordo com as experiências
pessoais de vida de cada um.
delo hegemônico unicultural. Nesse senti- tadas. O Judiciário, em certa medida, subs-
do, como diz Ben-Rafael, “o multicultu- titui o religioso, preenchendo as suas ca- 12 Com efeito, esse autor opõe
sociedades primitivas – em que
ralismo é portador de crise” (1998, p. 295); racterísticas. É o que o autor dá a entender a escalada da violência e vin-
gança ameaçaria a própria
ele concorre para a implosão dos sistemas quando afirma que o sistema judiciário está sobrevivência social não fosse
genéricos normativos, segundo E. Jayme, “impregnado de religioso” (Girard, 1972, a criação do sacrifício, cujo
significado seria o de frear a
citado por Claudia Marques (Marques, p. 40). Em outras palavras, o Judiciário e o violência intestina, a vingan-
ça generalizada e aliviar as
1998, p. 5). jurídico, na sociedade moderna, é uma das tensões sociais, posto que
A questão é saber quando e de que for- instituições que mais se secularizou de tal desvia a violência comum na
vítima imolada e sacralizada
ma as reivindicações de igualdade prove- modo que o sacralizou (12). – e sociedades que possuem
nientes de minorias sociais e políticas, e as É justamente em razão da sua “aura”, um sistema judiciário, o qual,
de certo modo, substitui o sa-
mudanças em todos os sentidos e direções “eficácia”, poder e tradição que o Judiciá- crifício na interrupção da vio-
lência em cadeia, posto que o
a que estamos assistindo, encontrarão eco rio se quer duradouro e “perpétuo”, e Judiciário “afasta a ameaça da
no sistema judiciário. Além disso, faz-se desqualifica, desconsidera e condena tudo vingança. Ele não suprime a
vingança: ele a limita efetiva-
mister recordar que “ter garantias quanto não se enquadrar no seu modelo. mente a uma represália única
cujo exercício é confiado a
institucionais e estatutárias da igualdade Foi dessa forma que a “força” da institui- uma autoridade soberana e es-
não garante efetivamente a igualdade […]” ção judicial recaiu sobre o feiticeiro con- pecializada em seu domínio.
As decisões da autoridade ju-
(Crenshaw, 1997, p. 19). denando-o e intimidando-o para sempre diciária se afirmam sempre
Enfim, é de se perguntar se a criação de (13). Mas, parece, esta concepção da justi- como a última palavra da vin-
gança” (Girard, 1972, p. 29).
Tribunais de Pequenas Causas tem, entre ça está atualmente em “profunda crise de
Assim, nas sociedades moder-
nós, cumprido a função política de ofere- fundamentos” (Marques, 1998) – que tam- nas o sistema judiciário exerce
sua autoridade com tal sobe-
cer acesso dos cidadãos à justiça, ou se eles bém atinge as ciências, as artes, a cultura – rania e força que nenhuma
não têm antes se prestado à legitimação da e nela, aos poucos, se insinua a noção de resposta vingativa será mais
possível. Ele racionaliza a vin-
autoridade judicial, como mostrou Maria direito social, relativizador, pluralista e gança, domestica a violência,
regula-a, ordena-a e canaliza-
Cecília MacDowell dos Santos a partir de multiculturalista. a a fim de “utilizá-la contra toda
forma de violência propriamen-
te intolerável e isto numa at-
mosfera geral de não-violência
e de apaziguamento” (idem,
ibidem, p. 36). Ou seja, a
“transcendência” do sistema
jurídico é tal que ele possui o
BIBLIOGRAFIA monopólio absoluto, legítimo,
sobre a violência. Isso signifi-
ca, para Girard, que historica-
ADORNO, Sérgio.“Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as Mortes que se Contam no Tribunal do Júri”, in mente teria ocorrido uma evo-
lução, embora não contínua,
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reção ao sistema jurídico; um
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CRENSHAW, Kimberle. “A Construção Jurídica da Igualdade e da Diferença”, in Denise Dourado Dora (org.). da violência, e seu apazigua-
mento, presente na primeira
Feminino Masculino. Igualdade e Diferença na Justiça. Porto Alegre, Sulina, 1997, pp. 17-26. fase, acompanharia também a
atual.
DOUGLAS, Mary. Inplicit Meanings: Essays in Anthropology. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1978.
13 Lembremo-nos que Ruggini dis-
DUARTE, Luiz Fernando D. Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/CNPq, 1986. se: “Nunca mais vou me meter
GIRARD, René. La Violence et le Sacré. Paris, Grasset, 1972. nessa” (ou seja, recorrer à jus-
tiça quando desejar alcançar
GUTMANN, Amy. “The Challenge of Multiculturalism in Political Ethics”, in Philosophy and Public Affairs, v. 22, n. 3, algum direito seu).

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