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COLEÇÃO JUVENTUDE

A EDUCAÇÃO
"'

DO CARATER
PELO

Pe. GILLET, O.P.

1 9 6 6

L)vraria AG l R &d/lôra
RIO DE JANEIRO
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Educação do Caráter, do Padre
GILLET O. P ., é uma contribui­
ção profundamente meditada, e
beneficiando de informações mo­
dernas, sôbre um problema que
ocupou a humanidade desde há
séculos .
O elemento novo, como muitG
bem afirma o Padre GILLET no
seu prólogo ao livro, é a reunião
no seu trabalho de dois métodos
até aí usados em separado e com
certos exageros de escola.
Os psicólogos limitaram-se ape­
nas ao método psícofisiológico,
deixando de lado o aspecto moral
do problema a resolver; por ou­
tra parte os moralistas despreza­
ram demais as fontes psicológicas.
A integ ração dêsses dois crité­
rios numa síntese viva é a es­
sência desta obra.
O autor inicia o seu ensaio
com uma definição do caráter e
da vontade e da suposta influên­
cia absoluta da vontade sôbre o
caráter. Define limites e estabe­
lece interações . De g rande im­
portância é o estudo do meio so­
cial, desde as influências de na­
tureza moral e intelectual às de
ordem material, não se esquivan­
do a ressaltar a importância dos
fatôres econômicos tão despreza­
dos por uma orientação anterior
demasiado abstrata.
Neste sentido e sem sair de
uma concepção .cristã, e por isso
globalística, o Padre GILLET re­
vela aspectos e faz ponderações
de extraordinária densidade e
atualidade .
A par de uma aferição cons­
tante da exigência, o autor dá­
nos em páginas de g rande poe-
(continua na f!.a orelha)

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(cont:nuação da 1.� "btrelha)
sia algumas noções clássicas sô­
hre a importância do conheci­
mento próprio, as incidências da
solidão exterior e a importância
da solidão interior.
Capítulo de pródigiosa agude­
za e segurança doutrinai é o que
se refere às paixões e o ideal
cristão.
O estudo das paixões é feito
no estilo, clareza e enunciação
dos grandes teólogos, mas numa
linguagem acessível 'e sempre re­
lacionado com problemas que di­
zem respeito à conduta e vida
prática. A concepção das pai­
xões da filosofia grega e ;no ideal
cristão surgem em paralelo para
melhor· provar a excelência e a
necessidade de educação e de uma
vida coordenada em linhas de re­
ligiosidade católica. Indica o Pa­
dre GrLLET O . P. a tática a se­
guir ante as- paixões e a sua uti­
lização como fôrça, não ao ser­
viço do mal, mas do bem e da
realização perfeita da persona·
Ldadc.
Depois àe analisar os três ele­
mentos concorrentes para a edu­
cação do caráter, a inteligência,
a vontade e as paixões submeti­
das à meditação e ao esfôr�o de
auto-aperfeiçoamento, o Padre
GILLET O. P. fala-nos por fim da
graça, e da sua importância· l)a
·
educação do caráter.
São páginas decisivas. de pro­
fundidade e servem de cúpula a
êste traba1ho de um sacerdote que
é um fino psicólogo, um pedago,
go e um pesquisador informado
ao mesmo tempo pela ciência e
pela fé.

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Copyright de
ARTES GRAFICAS INDúSTRIAS REUNIDAS

(AGIR)

Traduzido do original francês


L'Education dn Caractere do
Pe. GILLET, O.P., publicado por
Desclée de Brouwer et Cie
Éditeurs, Paris, (VIIe) - 76 bis,
rue des Saints-Peres. Bruges
(Belgique) - 10, quai aux Bois.

Nihil obstat
Rio de Janeiro, 16-7-1966
P. A. NEGROMONTE
Censor

Pode imprimir-se
Rio, 17-7-1966
MONS. CARUSO
Vigário Geral

Llvrarla AGIR E"dllôra


Rua Brê.ullo Gomes. 125 Rua México, 98-B Av. Afonso Pena., 919
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São Paulo. 6. P. Rio de JaneirO wnaa
ICNDEdÇO TELEGRÁFICO: "AGIRBA"

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fNDICE

Prefácio da primeira edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7


Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

PRIMEIRA PARTE

O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARATER

Cap. I - Vontade e Caráter ..... . .. .... ..... ... 15


Cap. li - O Meio Social e a Educação do Caráter . . 29
Cap. III - O Conhecimento do Próprio Eu e a Edu-
cação do Caráter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Cap. IV - O Ideal e a Educação do Caráter . . . . . . . . . . 43

SEGUNDA PARTE

AS PAIXOES E O CARATER

Cap. I - As Paixões e o Ideal Cristão . . . . . . . . . . 63


Cap. li - Tática da Vontade em Face das Paixões na
Educação do Caráter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Cap. III - Tática da Inteligência em Face das Paixões
e dos Sentimentos na Educação do Caráter 88
Cap. IV - O Papel da Graça em Face das Paixões na
Educação do Caráter .................. 95
Cap. V Egoísmo e Altruísmo . . . . . . . . . . . . . . . . . .
- 102
Cap. VI - A Sensualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
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6 A EDUCAÇ.\0 DO CARÁTER

TERCEIRA PARTE

A AÇÃO E O CARATER

Cap. I -O Hábito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133


Cap. li - As Leis do Hábito . o o o • • o o o o o • • • o • • o • 142
Cap. III -Os Hábitos Morais e o Caráter . o • • o • o • 152
Cap. IV -Os Hábitos Intelectuais e o Caráter . o o • o o 160
Cap. V -Os Hábitos Sobrenaturais e o Caráter . . o o 170

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PREF !CIO DA PRIME mA EDIÇÃO

Reverendo Padre,
Graciosamente me convidais para apresentar à mo­
cidade o volume de vossas conferências sôbre "A Educa­
ção do caráter". Não haveria para mim nada mais
agradável, nem tarefa mais fácil.
Não preciso elogiar as vossas alocuções aos estudan­
tes da nossa Alma Mater. A assiduidade dos ouvintes,
a número crescente, e as instâncias para que volteis à
cátedra no próx'imo ano, testemunham com bastante elo­
qüência o sucesso do vosso apostolado.
Ao autor do livro das conferências dirigimos, pois,
aqui as nossas felicitações e os nossos agradecimentos.
Quase sempre, os efeitos salutares da pregação cristã,
as iluminações súbitas, os impulsos generosos, mesmo as
resoluções viris, dissipam-se à saída do lugar sagrado, o u
apenas exercem uma influência efêmera sôbre a conduta
da nossa vida.
Publicando as vossas palestras, quisestes deixar uma
impressão mais durável na alma dos nossos rapazes. Com
os olhos fixos nas páginas do vosso precioso compêndio,
poderão reviver tôdas as manhãs os momentos de austera
meditação passados aos pés da cátedra cristã e armar-se
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8 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

para a luta contra a "fascinação da ninharia", Fascinatio


nugacitatis, no dizer da Escritura . Não é êste, na ver­
dade, o poder dissolvente por excelência, essencialmente
destruidor do equilíbrio racional e voluntário das ene1"gias
da alma e, portanto, o grande inimigo da educação do
caráter· ? Por meio dêle, os sentidos sobrepujam a razão
e os caprichos 'IJencem a vontade. "A fascinação das frivo­
lidades, diz a Sabedoria, escurece o bem, e a inconstância
da paixão transtorna o espírito inocente". 1
À ação perturbadora das paixões, é preciso opor a
calma da reflexão, a consideração serena das grandes ver­
dades religiosas e morais. No recolhimento e na oração,
o homem aprende a abafar as sugestões pérfidas dos
sentidos, para escutar a voz austera da razão; a sobrepor
o encanto da vi-rtude aos engodos da volúpia; a desprezar
as vãs satisfações da hora presente para apegar-se aos
hens duráveis e às esperanças da eternidade: "ut inter
mundanas varietates ibi nostra fixa sint corda ubi vera
sunt gaudia." 2
Êsse nobre domínio sôbre si mesmo, fator do "cará­
ter", não poderia ser o resultado de uma impressão fugaz
nem de um esfôrço momentâneo; é fruto de um trabalho
metódico, e seguido. Eis porque o vosso livro constitui
um complemento indispensável da vossa pregação. Aos
estudantes que não puderam ouvir as vossas conferências,
fornece a ocasião feliz de as ler; aos outros, os meios de
fixá-las no espírito e no coração; para todos, enfim, é um
convite à meditação diária.

1 Sap., IV, 12.


1 Orc�o do 4,0 domingo depoiB do Ptúcoa.

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PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO 9

Vossa iniciativa piedosa, assegurando ao mesmo tem­


po uma ação mais larga e mais durável ao vosso aposto­
lado, cont1·ibuirá também, assim confio, para congregar,
em tôrno de vossa cáted1·a, ouvintes mais interessados e
numerosos . Pela leitura destas belas páginas, os estu­
dantes aprecia1·ão cada vez melhor vosso conhecimento
profundo da alma do rapaz e as qualidades de fundo e
de forma que garantiram o sucesso legítimo d-e vossas
conferências: a solidez da doutrina, tra.dicional na vossa
Ordem, a limpidez do estilo e a clareza da exposição, o
colorido e o calor da expressão.
As minhas sinceras felicitações e à homenagem da
minha gratidão profunda, peço licença para acrescentar,
Reverendo Padre, um voto pa1·a mim muito caro: possa
êste volume, que hoje dedicais à mocidade estudiosa, ser
seguido de muitos outros, sob o título coletivo: "Medita­
çoes para cada dia do ano, para uso do Estudante Cató­
lico".
AD. HEBBELYNCK,
Reitor da Universidade de Lovaina

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PRóLOGO

Não é novo o assunto abordado nesta obra. Já antes


de nós, finos psicólogos e moralistas austeros falaram da
formação do caráter e da educação da vontade. De
algum modo foi assim preparado o material e indicado
o caminho a seguir. Ao aprofundar os estudos psicoló­
gicos e morais em relação à educação do caráter chamou­
nos a atenção o exclusivismo dos métodos empregados .
Os psicólogos limitaram-se apenas ao método psicofisio­
lógico, deixando de lado o aspecto moral do problema a
resolver; por outra parte, os moralistas desprezaram
demais as fontes psicológicas. Pareceu-nos, por isso, útil
reunir êsses dois métodos numa síntese viva, deduzir a
contribuição do ideal cristão e da graça na obra do do­
mínio próprio, sem esquece?· que a graça não destrói a
natureza e que nossa colaboração exige que tenhamos uma
conta estrita das condições fisiológicas e psicológicas da
atividade moml. Verificamos que êste método sintético
pode ser útil às almas preocupadas em não se aventura?·
às cegas pela vida, e eis aí, sem dúvida, a melhor recom­
pensa que um coração de apóstolo possa ambicionar.

M. S. Gn.LET.

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PRIMEIRA PARTE

O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER


CAPÍTULO I

VONTADE E CARÁTER

Que é o caráter? Na linguagem corrente, muitas


vêzes mais perto da realidade, diz-se ter caráter um
homem que fiel às suas convicções, se esforça, com
firmeza e perseverança, em pautar por elas a sua con­
duta.
Contràriamente, um homem sem caráter é movido
por todos os ventos de doutrina, e, pràticamente, deixa-se
levar pelos acontecimentos, em vez de dominá-los ou sub­
metê-los a seus desígnios.
Assim encarado, o caráter é indício da vontade ;
ou, melhor ainda, é a vontade que dá ao caráter sua
fisionomia moral.

A vontade

Não há caráter sem vontade, nem vontade sem


caráter. Mas, então, que é a vontade ? Em primeiro
lugar, apresentar-se-ia n questão de saber se, como pre­
tendem alguns hoje em dia, a vontade será a própria
essência da alma, entendendo como vontade tôdas as
manifestações da nossa atividade psíquica; ou se, ao con-
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16 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

trário, será uma faculdade à parte, como que a serviço


da alma na conduta de tôdas as outras faculdades inte­
lectuais e sensíveis.
Eis uma questão tôda especulativa cuja solução deixo
aos professôres de Psicologia e de Metafísica. Do ponto
<le vista moral, no que me coloco exclusivamente, entendo
por vontade a forma superior, a mais perfeita da atividade
humana, isto é, uma atividade refletida, em oposição ao
instinto, atividade inconsciente e fatal ; em suma, o poder
de agir com conhecimento de causa e de ser senhor de
seus atos.
É uma bela expressão : ser senhor de seus atos. De­
vemo-la aos antigos e nem por isso ela deixa de ser nova.
Ser senhor de alguma coisa é possuí-la. Ser, pois,
senhor de seus atos é possuí-los, utilizá-los à vontade,
orientá-los em um ou outro sentido como essas malhas de
pedra ou de metal lançadas por mão hábil em direção
a um alvo predeterminado.
Se a vontade é, pois, o poder maravilhoso de dominar
os próprios atos, a ponto de dispor do seu destino, segue-se
que na base da nossa vontade acha-se a liberdade. Esta é,
com efeito, o apanágio do senhor ; só o escravo não é livre.
Sem liberdade seríamos os escravos e não os senhores de
nossos atos.
Em última análise, de onde nos virá êsse domínio
dos nossos atos na conduta da vida ?
Da realeza de nossa inteligência? O animal não é
livre, porque não é inteligente ; somos livres graças à
inteligência. Observamos tratar-se aqui da vontade em
geral, da qual se deve encontrar um minimum nas almas
que participam da dignidade humana.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 17

Outra questão é saber a que ponto, pràticamente, e


para cada um de nós em particular, nossa atividade volun­
tária é condicionada pela inteligência pessoal, pelo tem­
peramento, pelas disposições hereditárias e pelos hábitos
adquiridos ; portanto, até que ponto somos livres e senhores
dos nossos atos, na orientação da vida. Só poderemos, no
entanto, resolver essa questão prática depois de ter pre­
liminarmente determinado o sentido exato da palavra
vontade, assim como as condições gerais da atividade
humana.
Se, pois, na base da vontade, para a produção de atos
verdadeiramente humanos, está a liberdade, esta, por sua
vez, qual um rio majestoso destinado a fecundar tóda
a nossa vida, tem sua origem nos cimos da inteligência.
Só agiremos de fato livremente, quando o fizermos
com conhecimento de causa. É isso agir de maneira inte­
ligente e projetar luz na vida ; é ir em direção a um fim
determinado, reservando-se a escolha dos meios mais apro­
priados para atingi-los.
Eis a vontade ; é a varinha mágica que, tocando as
menores ações da vida, transforma-as completamente ;
fá-las passar do domínio banal da matéria para outro
inefàvelmente superior, o da moralidade.
Assim sendo, não será difícil verificar a que título
a vontade deve intervir na educação do caráter.

II

O caráter

O caráter, com efeito, não é alguma coisa simples ;


ao contrário, é um conjunto bastante complexo de idéias,
gostos, atos, tendências, hábitos, a serem disciplinados,

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18 A �DUCAÇÃO DO CARÁTER

organizados, unificados, em vista de um fim a rea1izar,


de um ideal a atingir.
tsse conjunto varia em cada indivíduo. "As partes
do rosto são as mesmas em todos, mas as proporções diver­
sas da. sua combinação dão a cada homem urna fisionomia
diferente ; assim possuímos no moral os traços essenciais
da natureza humana, mas em graus e relações diversas .. " 1 .

Temos todos um temperamento, inclinações naturais,


sentimentos, um modo especial de atividade, paixões, hu­
mor, um modo de imaginação, hábitos morais e intelec­
tuais, um grau de energia, que mais enfim ? E num mesmo
indivíduo, êsses elementos, deixados à revelia, entram em
conflito, influenciados que são por leis opostas, e portanto
se compreende que o trabalho de dominar tudo isso, de
resolver tôdas essas divergências, essas oposições em uma
harmonia superior, seja um trabalho gigantesco.
Tal é precisamente o trabalho da vontade na educação
do caráter, que se pode chamar de harmonia da alma.
Reconhece-se, éom efeito, um caráter por dois sinais
distintivos e harmoniosos : a unidade e a estabilidade.
"Ter caráter, diz Kant, é possuir essa propriedade
da vontade pela qual o indivíduo se prende a determinados
princípios práticos que êle se propõe invariàvelmente pela
própria razão". E acrescenta o filósofo : "Mesmo sendo
êsses princípios, algumas vêzes, falsos ou viciosos, essa
disposição da vontade de agir em geral, segundo princípios
fixos ( e não borboleteando) é digna de estima e merece
tanto mais a admiração quanto é mais rara". 2

1 DE LA HAUTIERE, Cours de philosophie appliquée à l'éduca­


tion, págs. 356-357.
2 Antropologia, 2.6 parte, § III.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 19

Pelo menos, baseando-nos nos ensinamentos da Fé,


podemos contar com o recurso de possuir princípios prá­
ticos seguros de educação moral. Vinte séculos atestam
possuírem êles o brilho e a dureza do diamante. A nós
compete orientar-nos pelo seu brilho e fiar-nos, para agir,
na sua dureza. As reflexões a seguir têm por fim provar
essa verdade que reputamos incontestável .

III

Impotência relativa da vontade n a educação do caráter

Para dar agora uma definição do caráter, não empí­


Tica, porém de feição algo científica, direi ser êle consti­
tuído por um conjunto de hábitos morais inteligentemente
grupados em tôrno do eixo voluntário.
Esta definição tem, a meu ver, a dupla vantagem de
fazer sobressair a importância da intervenção da vontade
na educação do caráter, reconhecendo, no entanto, os limi­
tes dessa intervenção.
Sem a vontade, é em parte certo, a educação do caráter
não passa de uma quimera ; mas, por outra, é também
certo que o fato de ter de grupar em tôrno de si, de modo
inteligente, um conjunto de hábitos morais, é emprêsa
árdua, para cuja realização são necessários esforços múl­
tiplos e perseverantes.
Duas teorias modernas, muito em voga - apesar
de diametralmente opostas - complicaram singularmente
esta questão delicada da educação do caráter, pretendendo
simplificá-la. Uma delas sustenta ser a vontade totalmente
impotente para modificar em nós o quer que seja.
As TEORIAS. - Quantas vêzes, com efeito, em se tra­
tando de educação moral, de reforma de vida, já ouvimos-

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20 A EDUCAÇ!O DO CARÁTER

dizer, por pessoas aliás cheias de boas intenções, estas


palavras desanimadoras : "Nada posso contra o meu cará­
ter - é impossível alguém se refazer - não é minha
culpa se sou assim ; é preciso que me aceitem tal
corno sou."
Estas palavras e outras semelhantes, com que nos
enchem os ouvidos diàriamente, até em nome da ciência,
provam apenas uma coisa : a facilidade com que fazemos
nossas as teorias que facilitam a preguiça natural, e nos
deixam ceder à corrente das paixões, sem a obrigação de
contrariá-la ou tomar uma direção nova e benfazeja.
Com efeito, não faltam hoje sábios e filósofos para
proclamar que "a educação é impotente quando se trata
de modificar profundamente o temperamento e o caráter
da raça : segundo êstes, o indivíduo nasce criminoso como
nasce poeta ; todo o destino moral da criança está contido
no seio materno, e depois se desenrola implacàvelmente
na vida . . . as raças descem a escada da vida e da mora­
lidade, mas não podem tornar a subi-la". 3
Em suma, aos olhos dêsses teóricos da moral, o caráter
reduz-se a um teorema, cujas conseqüências são postas
em realce pelo meio exterior, com uma necessidade mate­
mática.
Qual, finalmente, o papel da vontade em semelhante
sistema ? Não preciso insistir : é nulo . Como as va.gas
se quebram de encontro aos rochedos sem penetrá-los,
assim os esforços voluntários chocam-se inutilmente às
disposições hereditárias, ao temperamento físico, às ten­
dências de tôda espécie, às paixões, cujo conjunto constitui
um dique natural impossível de ser transposto. Será então·
a GUYAU, Education et héréditariété, pág. XIII-XIV.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 21

melhor, uma vez encetada a viagem da vida, abando:1ar


os remos, dobrar as velas, cruzar os braços, e deixar correr
o barco : aconteça o que acontecer ! . . .
Como é deprimente essa nor,:ão acanhada do caráter
e como é doloroso pensar na influência nefasta que ela
exerce sôbre as novas gerações ! Acaba por proclamar a
incapacidade e, portanto, a inutilidade da moral.
Contra ela felizmente se insurgem, com a prática da
humanidade inteira, em primeiro lugar o senso moral,
em seguida a experiência dos educadores e sobretudo a
nossa experiência pessoal.
Os F A TO S. - Semelhante fataljsmo aplicado à edu­
cação do caráter revolta a tal ponto o senso moral, que
mesmo os seus mais ardentes partidários se abalaram .
Depois de expostas e desenvolvidas as suas teorias, com
a serenidade própria a homens infalíveis, houve hesitação
sôbre a atitude a tomar no terreno da prática.
Finalmente, fizeram concessões e admitiram, apesar
de suas prevenções de sábios, que de fato seria bom sim­
patizar com as pessoas que nutrem uma grande confiança
no poder educador da vontade : "O entusiasmo, escreveu
um dêles, mesmo levado até ao fanatismo, é um bom motor ;
talvez mesmo um motor indispensável . . . daí, podemos
dizer daqueles que consideram a educação intelectual e
moral como uma panacéia, haver uma certa vantagem no
exagêro de sua expectativa : é talvez uma parte da ordem
benfazeja das coisas, ser inabalável a sua confiança". 4
Era, enfim, reconhecer não serem inúteis os esforços
tios educadores.

4 SPENCER, De l'Education intellectuelle, morale et physiqlle.


Paris, Alcan, pág. 172.

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22 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Aliás, para ousar afirmar com tanta segurança ser


urna utopia a educação do caráter e só se poder trans­
formar a humanidade no correr dos séculos, sob a pressão
das fôrças exteriores, das condições da vida, seria preten­
der gratuitamente que de fato todos os educadores fra­
cassaram nos seus empreendimentos.
'
ora, semelhante asserção não merece exame. Quem
ignora, na verdade, pelo caso do duque de Borgonha, neto
de Luiz XIV - para citar apenas êste exemplo - até
que ponto a educação pode melhorar a natureza ? ":8:sse
príncipe, diz Saint-Simon nas suas Memórias, nasceu ter­
rível e sua primeira mocidade fazia temer : duro e colérico
até os maiores furores, e mesmo contra as coisas inani­
madas ; furiosamente impetuoso, incapaz de suportar a
menor resistência, mesmo das horas e dos elementos, en­
trando em acessos de cólera que pareciam fazer estalai"
todo o seu corpo ; teimoso ao extremo, apaixonado por tôda.
ordem de volúpia . . . "
Convenhamos que a educação de tal príncipe não devia
ser fácil. Em todo o caso, o duque de Beauvilliers, auxi­
liado por Fénelon, pelo padre Fleury, "trabalharam sem
tréguas - está ainda com a palavra Saint-Simon - para
corrigir essa natureza terrível ; em seguida, com o auxílio
de Deus, atingindo o príncipe os dezoito anos, foi com­
pletada a obra e dêsse abismo surgiu um príncipe afável,
manso, humano, moderado, paciente, modesto, penitente,
e, às vêzes, além do que pedia comportar o seu estado,
humilde e austero consigo mesmo." 6
As mais belas teorias não poderão prevalecer contra
fatos desta ordem que a história nos fornece aos milha:res.

G SAINT SIMON, Mémoires.- BAUSSET, Vie de Fénélcm.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 23

Bastaria êste para anular todos os argumentos que alguns


filósofos j ulgaram dever desenvolver contra a incapacidade
e inutilidade da educação moral.
"Um caráter que se transforma radicalmente, mesmo
por meia hora, não é um caráter imutável, e há esperanças
de repetirem-se essas mudanças cada vez com mais fre­
qüência". 6
Para que, porém, ir buscar fora êsses exemplos ?
Penetremos em nosso íntimo, e vejamos se nunca nos
aconteceu, em momentos de entusiasmo, ou diante de uma
bela ação, corrigir os nossos piores defeitos, suspender,
pelo menos por algum tempo, nossas más tendências, pôr
um freio às nossas paixões desencadeadas ?
Ora, se o fizemos uma vez, podemos repeti-lo uma
segunda e uma terceira. E na mesma medida em que
se multiplicarem os esforços nesse sentido, as dificuldades
irão se atenuando e dia virá em que, apesar de todos
os falsos sistemas, estaremos transformados.

IV

Da suposta onipotência da vontade na educação do caráter

Eis-nos chegados a esta conclusão, baseada na ex­


periência, que diz que a "natureza", longe de ser imu­
tável, deixa, ao contrário, um vasto campo de ação à
vontade.
Protestamos energicamente contra todos aquêles que
pretendiam fazer crer na incapacidade radical da vontade
no que diz respeito à éducação do caráter. Não é, porém,
a PAYOT, Education de la volonté, Paris, Alcan, 1903, 17.a ed.,
pág. 26.

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24 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

uma razão para cair no extremo oposto e afirmar, então,


ser a vontade onipotente nessa obra da educação. �ste
segundo êrro seria pior do que o primeiro, como é fácil
demonstrar.
A TEORIA. - Os que sustentam ser fácil a educação
do caráter - e há muitos ! - fazem-no em nome de
uma teoria tôda livresca e de aparência metafísica, a
teoria do livre arbítrio. A pretexto de que o homem é livre,
por definição, concluem que todos o são sempre realmente
no mesmo grau, absolutamente. Ora, se de fato formos
todos livres nesse ponto, sendo a liberdade o poder de
orientar a vida à vontade, segue-se depender de nós um
simples fiat criador, para, de um dia para outro, sermos
homens de caráter, heróis ou santos.
Não há exemplo mais notável da distância que separa
irremediàvelmente urna teoria - aliás indiscutível - da
prática ; o ideal, da realidade.
Certamente o homem é livre, por definição, no que
difere dos animais. Para dar a cada um de nossos atos
diários um valor humano, é igualmente verdade que deve­
mos ficar em estado de usar nêles dessa liberdade. Se
minha vida, nessa perpétua mudança, é apenas uma engre­
nagem onde me sinto prêso desde o primeiro momento,
sem nunca poder libertar-me ; onde todos os atos que eu
creio praticar deliberadamente se encadeiam, ao contrário,
rnecânicamente - quais os elos de uma corrente sem
fim - então minha vida não tem sentido e o livre arbítrio
é uma quimera.
Assim caímos na teoria enganadora de que falamos
há pouco e que proclama a incapacidade radical da vontade
para modificar a natureza.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER. 25

Outra coisa, porém, é exigir para cada indivíduo um


mínimo de liberdade que permite não se assemelhar êle
a um animal ou a uma máquina, e diverso é considerar
em cada um de nós o livre arbítrio como absoluto, não
conhecendo obstáculos na sua expansão e resolvendo difi­
culdades com uma displicência desconcertante.
A EXPERIÊNCIA. - Estamos longe de ser livres
a êsse ponto! A liberdade (entendamos a vontade livre)
não é absolutamente uma arma que recebemos pronta
ao nascer e que podemos manej ar com destreza quando
chega o momento de agir.
É uma arma, seja, mas forjada por nós na oficina
da consciência, com a propriedade de se temperar e enri­
jecer na luta. Se a deixarmos inativa por algum tempo,
ela se transformará em ferro doce capaz de ser dobrado
ou inutilizado por qualquer obstáculo. Não conheço bainha
para preservá-Ia: da ferrugem nem conservar-lhe o gume.
Quando, pois, em nome de uma teoria metafísica,
nos vierem afirmar que somos livres, vejamos em pri­
meiro lugar, em nome da experiência, até que ponto o so­
mos na realidade.
Claro está entendermos aqui por liberdade o domínio
de si próprio, o contrôle seguro dos nobres sentiment(!s
e das idéias morais sôbre os instintos da animalidade.
Mas, precisamente, êsse domínio e êsse contrôle que cons­
tituem a verdadeira liberdade, são conquistados à ponta
da espada, numa luta de todos os instantes.
Cada um de nós, ao nascer, traz consigo um conjunto
de disposições, de tendências, de paixões, e mesmo de taras,
que opõem uma fôrça de inércia à atividade livre. Não
levar em conta um fato de tamanha evidência e se propor

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26 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER
a vencer êsse obstáculo natural à custa de decisões volun­
tárias, corre-se o risco de inutilizar a própria vontade ou
desanimar, pelo menos, os mais bem intencionados.
Depois de ter feito apêlo à razão, apelo para a fé.
Na ordem sobrenatural, como na ordem natural, a
lei de hereditariedade pesa-nos fortemente sôbre os om­
·
bros. Herdamos a moléstia do pecado, como as misérias
de nossos pais. Todos conhecem essa doença por experiên­
cia própria, e já se tornou clássico o seu nome pela repeti­
ção : a concupiscência. E' uma febre que queima e prostra a
alma mais forte se a graça de Deus, auxiliando os esforços
pessoais, não vier atalhá-la a tempo e impedir os efeitos
funestos.
Concupiscência dos olhos, concupiscência da carne,
orgulho da vida : eis em que têrmos enérgicos São João
caracteriza essa febre moral. Todos experimentamos mais
ou menos o seu calafrio. Acende no olhar sobretudo o fogo
da cobiça. Pecadores, não temos o olhar puro. A beleza
não nos atrai exclusivamente porque é a beleza, mas pelos
gozos sensuais que proporciona.
Sôbre tôdas as coisas proj etamos essa impressão de
sensualidade, cuja marca deixou em nós o pecado original,
tal como as pessoas que incapazes de diferençar as côres,
vêem todos os obj etos da natureza com a mesma tonali­
dade, por um defeito congênito de visão.
Os olhos i>ão, por assim dizer, as j anelas da alma.
Pelos olhos, pois, a nossa carne está mais sujeita a ocasiões
de pecar e de satisfazer o desejo doentio de gozar. Nossos
sentidos estão sempre em suspenso diante da volúpia. Essa
carne que deveria ser submissa e docilmente sujeita ao
domínio da razão e da fé, vibra, no entanto, em perene
rebeldia.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 27

Debalde a razão e a fé estendem amplamente as asas


e nos convidam para as regiões do ideal : nossa carne
resiste ; paralisa-lhes os esforços ; pesa-lhes como um fardo
e muitas vêzes arrasta-as em queda desastrosa.
A própria razão acaba por perder a clareza, obscure­
cida pela cobiça ; o fogo interior que nos queima a carne
e nos corre nas veias parece desprender espessos vapôres.
Com a vista assim obscurecida, ficamos desorientados ;
tateamos nas trevas, em busca da mão que nos guie.
Tais são, em resumo, os principais efeitos dessa febre
moral cujo germe de morte em nós implantou o pecado.
Seria compreensível que em nome do ideal para o
qual devemos tender, chegássemos, sem esfôrço, por um
mágico fiat, a dominar e governar semelhante realidade !
Quem não terá sentido dolorosamente a desproporção
entre os desejos de praticar o bem e a fraqueza da Yontade !
:f':ste seria realmente digno de lástima, pois demonstraria
ignorar completamente a vida e as dificuldades encon­
tradas na luta pela vida.
Não digo isto para desanimar os rapazes, porém para
preveni-los contra o desalento. Após demonstrar a possi­
bilidade de educar o caráter, não pretendo, no entanto,
fazer crer na facilidade da emprêsa.
Ao primeiro insucesso poderiam acusar-me de ha­
vê-los enganado e teriam razão. Mas, pelo fato de serem
jovens, são generosos e de boa vontade. Que importam
então as dificuldades, se podem ser vencidas ? Já foi dito
que ninguém é livre sem o merecer. Provem os jovens
merecê-lo, sobretudo quando tiverem aprendido o modo
de conquistar a liberdade.

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CAPÍTULO II

O MEIO SOCIAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Se apenas existissem teorias do gênero aludido para


se opor à intervenção normal da vontade na educação do
caráter, o mal seria grande, porém não irremediável.
O melhor meio de destruir essas teorias consistiria quase
sempre, para espíritos retos, desejosos de conhecer antes
de tudo a verdade, em despojá-las de todos os sofismas
e de tôdas as sutilezas de que se envolvem, para seduzir
ao mesmo tempo os ingênuos e os gozadores da vida.
Infelizmente, mais de que tôdas as teorias, certas
condições da vida moderna, cuja responsabilidade não nos
cabe, constituem um obstáculo permanente à educação do
caráter. Assinalemos as principais ; assim será desimpe­
dido o nosso caminho e poderemos enfrentar o problema
.da Educação do Caráter.

Os elementos do caráter

Reconhece-se um "caráter" por dois sinais caracte­


rísticos : a unidade e a estabilidade. Quando um indivíduo,
à custa de vontade, conseguiu reunir como em um feixe
vivo tôdas as energias esparsas, orientá-las tôdas para
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30 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

um ideal que se impõe à sua atividade de homem e de


cristão, colocar, em uma palavra, um pouco de ordem
e equilíbrio na vida, pode-se dizer que êle é um homem
de caráter.
Mas· êsse trabalho de domínio e de govêrno próprio
não é obra de um dia. Ao contrário, exige muito tempo.
l:l:ste é, pois, um fator essencial da educação do caráter.
É preciso, além disso, durante todo o trabalho de
abrandamento moral, ter sempre em vista o alvo a atingir,
sem se deixar distrair por tôdas as espécies de realidades
que se nos deparem.
Essas duas condições são essenciais para dar à nossa
vida a unidade e a estabilidade desejáveis.
Ora, convenhamos, os costumes modernos - e por
isso entendo a maneira atual de encarar a vida sob todos
os aspectos - são tais que paralisam as melhores von­
tades e as impedem de satisfazer, como seria preciso,
a essas duas condições. De um lado não tomamos o tempo
de viver bem, porque desejamos viver depressa demais e,
de outro lado, nessa corrida para conquistar a felicidade,
em vez de seguir o caminho traçado pela Providência, que
nos levaria direito, pretendemos tomar tôdas as direções
de uma só vez ; dispersamo-nos em todos os sentidos, de
maneira febril e sem plano preconcebido. Dêste modo é
impossível a educação do caráter.

li

O meio social

VIDA INTELECTUAL. - Consideremos, por exemplo, a.


vida intelectual de hoje. Na maioria sofremos da febre
do saber, em graus diferentes. A ciência é excelente; é:

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CARÁTER ·3
O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO 1

mesmo um dos melhores meios para a educação moral;


a êste respeito voltarei a falar. Tudo depende, porém, da
maneira de aplicar-se.
Renan afirmou um dia que a "verdade não deseja
ser procurada com demasiada paixão", que "a indiferença
é muitas vêzes melhor sucedida." 7 Renan falava então
como diletante. A meu ver, no entanto, é possível ter a
paixão da verdade, mesmo em alto grau, sem procurá-la
de um modo nervoso, desenfreado, febril, enfim, a ponto
de impedir a inteligência de se aprofundar e ao coração
de vibrar com mais fôrça ao contato da verdade que
se descobre.
Ora, hoje, para ser um pouco considerado e, o que
é mais grave ainda, para garantir o pão de cada dia,
um estudante precisa, aos vinte anos, já ter feito a volta
do mundo intelectual. Para isso é preciso correr e até
perder o fôlego.
"A criança não tem mais o período tranqüilo de
formação ; ao despertar da inteligência, sobrecarregam-lhe
a memória de noções, de fatos, desenvolvem-lhe o cérebro
como as flôres nas estufas. Logo lhe são impostos pro­
gramas artificiais, programas sem proporções, sem sobrie­
dade, nos quais se acumulam ciências, literatura, história,
línguas ; começa a era dos exames com sua inquietação,
suas espectativas, suas surprêsas, todo o cortej o de emo­
ções e esforços violentos." 8

7 RENAN, Discours pour la réceptio n de Pasteur à l'Académie


F1·ançaise.
8 JANVIER, Les Passions, Paris, Lethielleux, 1905; GUSTAVE
LE BoN, Psycho logie de l'Education, Paris, Flammarion, 1906, ch.
11, págs. 30 e 49.

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32 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER.

Que lugar terá a educação do caráter numa vida


tão absorvente, j ustamente numa idade em que seria ur­
gente assentar-lhe as bases ? �sse modo de viver, é inegá­
vel, absorve quase tôda a atividade do estudante e todo
o mando hoje se queixa e sofre da desproporção existente
entre a cultura exagerada do espírito e a fraqueza da
vontade, a dispersão contínua da energia moral. A at­
mosfera intelectual que respiramos é atravessada por
correntes elétricas e relâmpagos que deslumbram e
perturbam.

VIDA MORAL. - Talvez mais ainda do que essa fe­


bre intelectual, nosso modo de encarar a vida moral consti­
tua um obstáculo à educação do caráter.
Seria estar pouco penetrado do espírito cristão admi­
tir um só instante que o nosso dever se limita a ornar
o espírito. Quem não terá notado ao lado da paixão pelo
estudo, a existência de outras menos nobres, prontas a
explodir e impossíveis de serem acalmadas pelo próprio
estudo ? Como atenuá-las sem destruí-las ? A experiência
tem provado fartamente que a obra de aplacar as paixões
é um trabalho interior, lento e progressivo, constando a
um tempo de reflexão meditativa e de esforços da vontade,
contínuos e perseverantes. Em nossos dias, parece, já não
se compreende isso muito bem, e deslocamos o próprio
eixo da nossa vida moral, transportando-o do interior para
o exterior. Em vez de combatermos as paixões no íntimo,
no segrêdo da alma, expandimo-nos, como para esquecê-las
e com elas não mais preocupar-nos. Assim, terminados os
estudos, empregamos os poucos momentos livres em orga­
nizar reuniões ou em colaborar em obras diversas, exce­
lentes com certeza, se as �onsiderarmos isoladamente, mas

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 33

cuja multiplicidade justamente, absorvendo-nos o resto das


energias, dá a ilusão de vivermos em tôda a plenitude.
Uma observação exterior faz crer estar bem preenchida a
vida dos estudantes. Quando, porém, encerrado o ciclo dos
estudos e longe do meio universitário onde, aparentemente,
'
não tem um minuto de liberdade, o estudante tiver de
enfrentar a si próprio, não haverá perigo de uma volta
ofensiva das paixões, por um instante esquecidas, não
exterminada s ?
Por mim, tenho receio, e eis por que, mesmo reco­
nhecendo e louvando a boa vontade da maioria, ouso
suplicar-lhes que ajam de maneira que sua vida cristã
individuai, a interior e não a exterior, a que submete
a vontade e o ser às exigências da Fé e não se baseia
nas obras exteriores, a que se alimenta nas fontes lu­
minosas da reflexão e não se acomoda com a indolência
e o esquecimento . . . que essa vida, digo, atinja em inten­
sidade e profundidade o que a outra, coletiva e dispersa,
apresenta em quantidade e superfície.

VIDA MATERIAL. - Mais uma palavra apenas a res­


peito dos perigos a que a vida material contemporânea
expõe a educação do caráter.
Se procurarmos observar de mais perto, será pos­
sível verificar como também aí todos são atingidos da
mesma mania, da mesma necessidade de dispersão.
Por meios extraordinários de comunicação, suprimi­
mos as distâncias. Em seguida, pela aplicação engenhosa
de descobertas científicas, conseguimos o segrêdo de mul­
tiplicar as sensações e requintá-las. De todos os lados, é
um regalo para os olhos, para os ouvido:,, para todos os
sentidos, enfim. Em um dia c com um pouco de dinheiro,

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34 A EDUCAÇ.:\0 DO CARÁTER

percorre-se a escala de todos os prazeres. O suplício de


Tântalo é apenas uma linda recordação. A taça cheia de
encantos está sempre presente, ao alcance dos lábios. Se­
gundo nossos desejos ou caprichos podemos satisfazer
nossa sêde.
Má s essa fcbTe de distrações e de prazeres, cuja in­
fluência debilitante sofremos involuntàriamente, não terá
sua desforra ? É impossível levar impunemente ao mesmo
tempo duas vidas : a do corpo e a da alma. Cedo ou tarde
rompe-se o equilíbrio e é sempre à custa da alma. Os im­
pulsos de uma vontade bem decidida chocam-se contra a
fôrça de inércia da matéria, como as vagas tumultuosas
do mar se desfazem sôbre a areia.
Achei bom chamar especialmente a atenção dos ra­
pazes sôbre êsse ponto. Vivendo em um meio social que
não foi por êles criado, correrão o risco de ser absorvidos
e levados pela corrente de vida fictícia se, de quando em
quando, urna palavra amiga não os vier despertar do
torpor. De todo o coração dirijo-lhes esta palavra. Quei­
ram meditá-la bem ; desejo que seja para êles uma fonte
de luz e de energia e urna sugestão para mudar de vida.

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CAPíTULO IH

O CONHECIMENTO DO PRóPRIO EU E A EDUCAÇÃO


DO CARÁTER

A educação do caráter é um trabalho muito seme­


lhante ao do escultor. Como o artista, também, temos de
l"nzer surgir do bloco rústico do nosso moral uma estátua
viva, ativa, de tamanho sobrenatural, não a golpes de
einzel, porém com decisões da vontade.
Seria preciso, portanto, estudar inicialmente, pelo
menos em linhas gerais, a natureza dêsse ser moral, anali­
sar-lhe a fôrça de resistência ou o grau de plasticidade ;
ver, enfim, se, como alguns pretendem, é impossível tra­
balhá-lo, poli-lo, ou se, ao contrário, não há dificuldade.
Há dificuldades ; já mesmo assinalei algumas, pró­
prias da nossa época. A educação d o caráter não é, no
entanto, um empreendimento quimérico. Se a história e a
experiência provam outros terem sido bem sucedidos, por
que não o seríamos também nós ?
Se quisermos, poderemos modificar mais ou menos
profundamente a nossa natureza. Essa auto-educação é até
a mais fecunda e a mais durável graças ao esfôrço que
exige, imprimindo-a assim bem fundo na alma.
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36 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Mas, para um autodidata, o principal na reforma


da vida é, em primeiro lugar, segundo o preceito de Sócra­
tes, conhecer bem a si mesmo e não se adiantar sem ter
preliminarmente medido as fôrças, avaliado os recursos,
apreciado as fraquezas, em suma, passado revista a seu
muhdo íntimo. Terminado êsse trabalho, ou antes - pois
êste nunca se pode dar por acabado - paralelamente a êle,
é preciso ter sempre em vista o ideal almejado, a êle
voltar constantemente à medida que dêle se aproxima,
para acentuar a semelhança ; não recear, quando neces­
sário, dar alguns retoques, talhar a carne viva ou recoser
pedaços.

Solidão exterior

Em primeiro lugar, devemos conhecer-nos a nós


mesmos, e isso não se dá com a maioria.
O conhecimento de si mesmo supõe um desej o de
recolhimento e de solidão, e muitos rapazes são inca­
pazes dêsse esfôrço. Quando falo de solidão, não me refiro
apenas à solidão exterior, que consistiria em não se expan­
dir, em viver longe do convívio dos camaradas e perma­
necer isolado no seu modesto quarto de estudante.
Não quero criticar essa solidão que é como o pátio
de honra do castelo da alma, onde deve reinar a solidão
interior.
Mas o valor moral e a influência dessa solidão sôbre
a educação do caráter dependem muito das causas que
fazem procurá-la.
Se um rapaz se isola por misantropia ou simplesmente
para fugir aos constrangimentos da vida e·m comum, não

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 87

estará assim trabalhando para adquirir a fôrça de caráter,


mas obedecendo, antes, a um sentimento de covardia. Foge
1\� dificuldades para não ttr de vencê-las.
Neste caso é preferível o estudante receoso, tímido,
que afronta corajosamente a turba, sofre os atritos dos
camaradas, atenua as arestas e acaba por se adaptar às
exigências sociais. Assim estará êle formando o caráter,
embora atormentado, ao mesmo tempo, pelas paixões. Se­
nhor de si em um ponto delicado, está apto a dominar-se
em todos os outros.
A solidão exterior não é pois, por si só, um meio
de educação, de disciplina moral, se não tiver por fim,
afastando-nos das d istrações do exterior, fazer-nos chegar
a um melhor conhecimento de nós mesmos. Importa, prin­
cipalmente, ter em vista a solidão interior. Ainda aqui
é possível enganar-se.

II

Solidão interior

A solidão interior é perfeitamente compatível até cer­


to ponto, com as distrações exteriores, ao passo que é
absolutamente impossível acomodar-se com as distrações
interiores, as da alma.
Há estudantes que passam o tempo quase todo no
quarto. Não por misantropia, nem para fugirem covar­
demente aos escolhos inseparáveis da vida social. Será
talvez para estudar ? Quero crer que muitos estejam nessas
condições. No entanto, mesmo no quarto, não é possível
estar sempre estudando. Exceto os temperamentos real­
mente intelectuais, apaixonados pelo estudo, (e que nêle

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38 A EDUCAÇÃO 1>0 CARÁTER

encontram a razão de ser da sua dedicação) , os estudantes


na sua maioria refugiam-se no quarto, para estudar, só na
época dos exames, aflitos pela recuperação do tempo perdi­
do, cansando a memória, enchendo-a de noções e fatos
apenas entrevistos durante o ano e logo esquecidos, assim
qué colam grau e recebem o pergaminho.
Evidentemente, nesses momentos de solidão forçada,
não será possível a um estudante aplicar-se ao estudo
de si mesmo.
Quando o fará então ? Levando em conta tôdas as
horas de liberdade deixadas pelo estudo, seria admis­
sível sobrar-lhe tempo para isso. Infelizmente, a tirania
das distrações interiores o faz sair de si mesmo e o
impede de concentrar-se, muito mais que as distrações
exteriores. Não esqueçamos que tem vinte anos, e está
cheio de ardor e de vida ; que essa vida, por tôda sorte
de razões, mesmo fisiológicas, que não é necessário des­
crever aqui, precisa ser aplicada. Ei-lo, de um dia para
outro, atirado bruscamente em uma cidade, sozinht, longe
dos pais, sem fiscalização oficial, sem trabalho obrigatório
imediato e mesmo sem trabalho nitidamente definido. Ad­
mitamos ser forte a tentação. Não se vão acumular horas
de inteiro abandono, de moleza, de absoluta preguiça ?
�sse rapaz refugia-se, então, na solidão. Será para
dedicar-se a um conhecimento prático, lento, minucioso
de si mesmo ? Para discernir as tendências boas ou más
que nêle predominam ? Para verificar quais são os pontos
fracos do seu ser moral que exigem especial atenção, e
esforços perseverantes da vontade ?
A DIVAGAÇÃO. - Quisera ter certeza disso, mas po­
deria quase jurar o contrário. Apesar de não ver outra

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 39

pessoa no quarto, sei, no entanto, que êle não está só. Para
falar a verdade, nem mesmo êle ai está. A imaginação
arrebatou-o para bem longe, para o domínio do sonho e do
sentimentalismo.
Com que sonha êle? E' fácil supor e excuso-me de
precisar. Qual pode ser o sonho de um rapaz de vinte
anos, quando, desocupado, não impõe freio à imaginação
nem regula a tempo as pulsações do coração ?
Sonha, isto é, passa o tempo em busca de quimeras,
desprezando a realidade ; vive fora de si de preferência
a viver em si.
Em vez de aproveitar as poucas horas de solidão
relativa, para recolher-se e analisar-se a fundo, para
verificar o seu estado moral, se há progresso ou relaxa­
mento, se as paixões estão em via de se acalmarem ou
mais o perturbarem, se as afeições o elevam ou rebaixam,
se a vontade se fortalece na luta ou se amolece na inação
- em vez disso, que faz êle ? Preocupa-se em compor
'
seu romance de aventuras, a êle volta sem cessar, observa-o
em todos os sentidos, vive dêle, ou antes, definha por
causa dêle.
Com êsse regime de desperdício intelectual e moral,
um rapaz, por mais bem dotado que seja, só pode estio­
lar-se e ficar anêmico.
Supondo-se que êle, ao sair da Universidade, tenha
um verniz de filosofia, de matemática ou de história, que
esteja em condições de falar mais ou menos algumas lín­
guas, de manejar com alguma habilidade o escalpêlo eis,
no entanto, uma coisa certa e triste: durante muitos anos
terá ladeado a vida sem penetrá-la, e estará absolutamente
ignorando o conhecimento de si mesmo, não tendo atingido
o a. b c da educação do caráter.

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40 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

O RECOLHIMENTO. - Seria, no entanto, tão simples,


para um rapaz, procurar, desde o início, conhecer-se um
pouco. E' a condição de sua formação moral.
E', sem dúvida, indispensável conhecer o alvo a que
tendem os nossos esforços. Como, porém, o atingir, se
desde o princípio não soubermos a distância até lá
existente ?
Tenhamos sempre em vista o ponto de chegada, seja ;
mas voltemos sempre para o ponto de partida. Pois, se o
ponto de chegada, na estrada da vida, é o mesmo para
todos, se o mesmo ideal se impõe à nossa atividade de
homem e de cristão - insistirei nisso mais adiante -
ao contrário, o ponto de partida varia para cada um
de nós.
Estamos mais ou menos próximos dêsse ideal confor­
me o nosso temperamento, as nossas disposições heredi­
tárias, a primeira educação, o meio social onde crescemos,
as inclinações naturais, as paixões, os hábitos inatos ou
adquiridos, a fôrça ou a fraqueza da vontade.
Importa, pois, estarmos a par de tudo isso, conhe­
cer-nos a fundo ; e só conseguiremos isto se nos reco­
lhermos muitas vêzes - não somente ao quarto, repito,
- mas em nós mesmos, no recesso da alma.
Acrescento que êsse recolhimento, aliás perfeitamente
compatível com o movimento da vida comum e que pode
ser contínuo, deve tornar-se em nós um hábito, uma ten­
dência, uma necessidade. Para isso, em tôda parte e ao
praticarmos qualquer ato, seria preciso que a nossa cons­
ciência .velasse quase inconscientemente sôbre os motivos
inspiradores da nossa conduta.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 41

Depois de alguns anos de semelhante exerclcio, pode­


mos estar certos, haverá em nós alguma transformação.
Nossa vida perderá talvez em superfície ; porém haverá
menos desperdício exterior, e ganharemos em profundi­
dade e intensidade. Será realizado em nós, mesmo sem
o sentirmos, o lento trabalho de cristalização das energias,
a que, acima aludimos. Em tôrno da nossa vontade aguer­
rida virão congregar-se, espontâneamente, hábitos sãos e
sólidos. Atingiremos uma espécie de equilíbrio moral que,
tornando-nos senhores de nós mesmos, nos tornará homens
de caráter.

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CAPÍTULO IV

O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

O caráter não é pois uma coisa simples, como se


poderia crer a prinCípio ; é, bem ao contrário, um con­
junto complexo de idéias, tendências, paixões, sentimentos,
hábitos a serem disciplinados, organizados, unificados
com uma finalidade a atingir, um ideal a realizar. E '
incontestável a importância para cada u m de nós em
conhecer minuciosamente todos os elementos do caráter,
antes de pensar em harmonizá-los e dêles fazer um bloco
sólido, contra o qual virão chocar-se mais tarde tôdas
as tentativas dissolventes, internas e externas. Nunca se
viu um general, preocupado com a vitória, dar às suas
tropas ordem de comando sem as ter passado em revista.
Não seria no entanto suficiente conhecer-nos a fundo,
analisar tanto quanto possível nossas energias morais, se,
ao mesmo tempo, não soubéssemos qual o ideal a escolher,
para trabalhar, à sua luz, para a síntese viva dessas mes­
mas energias. Em outras palavras, já que o conhecimento
de nós mesmos deve terminar no domínio de nós mesmos,
procurarei de ora em diante, falando do i deal cristão,
expor exatamente as condições para chegarmos, com êsse
domínio, a ser homens de caráter.
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44 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Necessidade do ideal

A história ensina-nos ser impossível a um povo pro­


gredir sem ideal. O mesmo se dá com os indivíduos. A
qualidade moral de um indivíduo depende em grande parte
do ideal que nêle exerce influência diretriz.
"A idéia do melhor, nota um filósofo contemporâneo, 9
é para nós o meio de realizá-lo" . . . A inteligência acaba
por orientar tudo em vista de certos fins. E como a maior
parte dêsses fins, em vez de serem indiferentes, têm um
valor moral, o caráter aparece, nesse ponto de vista supe­
rior, como uma ordem de finalidade, ou segundo Emerson,
"uma ordem moral" ; introduzida na natureza do indivíduo
pela reação da vontade inteligente ; de modo que uma
inteligência muito desenvolvida a respeito das coisas mo­
rais e sociais, permitindo a evolução contínua do caráter,
concorre para um progresso crescente da própria mora­
lidade . . . Para não falar nos fundadores de religião, Só­
crates não conformou tanto a vida como a morte a seus
princípios, e, segundo o próprio testemunho, apesar de cer­
tas tendências do seu temperamento ? Não confessa êle mes­
mo ter sido excessivamente atormentado pelas paixões do
amor, tendo vivido casto ? Não reconhece que o fisiono­
mista Zópiro tinha razão de atribuir-lhe muitas inclina­
ções grosseiras, por êle reprimidas por fôrça da vontade ?
Kant realizou durante a vida tôda o imperativo categórico.
"Eu dormia, disse êle, e sonhava que a vida era beleza ;
acordei e vi que é dever". Como despertou êle pela ação
da idéia? . . . Agostinho, também, cujo temperamento o le-

e FotJILLt, Le caractare et l'intelligence, págs. 749-761.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 46

vou a todos os prazeres, conseguiu sob a influência d o


ideal entrevisto e amado, tornar-se um dos modelos d e
santidade.
A influência do ideal sôbre a educação do caráter
é tamanha que se pode sustentar, sem paradoxo, que
pouco importa a qualidade . filosófica do idear.
Podem tratá-lo cientificamente de quimera ; o fato
é que à sua luz, verdadeira ou falsa, algumas almas
se transformam.
Dá-se com o ideal, sob o ponto de vista moral, um
pouco do que se observa com certas hipóteses cientifi­
cas. Não devem ser medidas pelo valor teórico, mas pelo
valor prático e utilitário. Isto seja dito de passagem, para
responder às objeções dos supostos sábios, que não se
dignam levar em consideração o ideal cristão, sob pretexto
de êle, em si mesmo, teoricamente, escapar ao alcance da
ciência e não entrar no estreito campo de suas concepções
a ptiori.
Seria possível provar-lhes que a êsse ideal se deve,
todavia, a transformação moral da sociedade humana, a
partir do dia em que Cristo veio revelá-lo ao mundo. E ,
diante dêste fato, apesar d e sábios, e precisamente por
o serem ou o j ulgarem ser, deveriam curvar-se, como se
deve fazer diante de um fato.
Além disso, não seria muito difícil demonstrar-lhes,
excluindo tôda a má vontade da parte dêles, que o valor
prático está na razão direta do valor teórico ; que, cien­
tificamente falando, esti fora da discussão a sua existência
e, ainda mais, que é impossível explicar-lhe o maravilhoso
ascendente sôbre as almas sem apelar para seu caráter
sobrenatural.

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46 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Para que, no entanto, lançar-nos numa polêmica ? Não


me dirijo a sábios, mas a crentes. Basta lembrar-lhes
brevemente em que consiste o ideal cristão para que, logo,
procurem com tôdas as fôrças realizá-lo, assimilá-lo,
vivê-lo.

O ideal cristão

Para ser cristão, é preciso ser homem de bem ; e o


melhor meio para conseguir ser êsse homem de bem em
tôda a extensão da palavra, ainda é viver como cristão :.
o ideal sobrenatural inteiro está contido nestas duas pro­
posições.
Para ser cristão é preciso começar por ser homem
de bem. Que chamaremos homem de bem ?
O SUPER-HOMEM. - Falou-se muito, nos últimos anos,
na moral do super-homem. Sobretudo o têrmo fêz sucesso.
Pode-se, entretanto, afirmar qual tenha sido, a sua signi­
ficação no pensamento de Nietzsche, seu inventor ?
Ei-la. Um dos caracteres mais profundamente distin­
tivos entre a moral do super-homem e a moral do homem,
tal como tem sido em geral admitida até hoje, é competir
a última a todos os homens, sem distinção, enquanto a
outra, pela própria essência, é apanágio da elite.
A moral natural - a do homem - é francamente
democrática, pelo fato de apresentar o mesmo ideal de
vida moral a todos os homens moços ou velhos, ricos ou
pobres, sábios ou ignorantes. A realização dêsse ideal é,
sem dúvida, suscetível de gradações, mas é o mesmo para
todos na sua essência.
Nietzsche, ao contrário, crê na desigualdade forçosa
dos homens, até, ia dizer principalmente, sob o ponto de

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 47

vista moral. A moral do super-homem é essencialmente


aristocrática. Na sociedade, dividida em casta s bem defi­
nidas, cada uma com seus privilégios, direitos, deveres,
ela exclui a casta inferior, a da plebe, dos medíocres, cuja
vocação natural é servir apenas como uma peça da grande
máquina social.
A moral do super-homem não é para os humildes,
os escravos, os explorados, a cuja custa vive a casta supe­
rior. É a moral dos senhores, dos "criadores de valores",
que impulsionam o organismo social e estão destinados
a ter entre os homens, na terra, o papel que Deus tem
no universo, tal como nós cristãos ou filósofos o conce­
bemos. A moral do super-homem portanto é feita exclusi­
vamente para os senhores.
Não é apenas essa moral, aristocrática, mas é tam­
bem a nti-idealista, no sentido de o super-homem não aceitar
como nós, um ideal já feito, para nêle pautar sua vida.
�le próprio cria o seu ideal, com liberdade e independência.
Despreocupado do bem e do mal, da verdade e do êrro ; cria
sua moral. 10
Já fiz notar que a moral do homem, tal como é
habitualmente admitida, é o oposto dessa moral demo­
crática. Além do mais, é uma moral idealista, isto é, pauta­
da sôbre um ideal não criado por nós, mas oriundo da
natureza, e finalmente de Deus, por i ntermédio da na­
tureza.

O HOMEM DE BEM. Em que consiste êsse ideal ?


-

Não em se elevar acima dos outros, dêles servindo-se


orgulhosamente como de um pedestal, porém em elevar-se

10 LICHTENBERGER, H., La Phiwsophie de Nietzsche, Paris,


Alean, 1905, págs. 160-169.

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48 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

acima de si mesmo. Cada um de nós traz dentro de si


o seu universo moral com leis próprias, esplendores e
sombras, calmarias e tempestades, dias de sol e dias de
chuva. tsse universo não está vazio. Aí difunde sua luz
a v�rdade, mas também rugem as paixões. A nuvem das
paixões irá impedir a verdade de brilhar, ou a verdade
dissipará a nuvem ?
O ideal é que em nosso mundo moral reinem a verdade
e a razão, dominando as agitações inferiores. O ideal é que
de luz e de calor se impregnem em todos os cantos e
recantos onde imperam as trevas e o frio. O ideal é que
êsse mundo se mantenha em equilíbrio estável, de modo
que sejamos nós os senhores ; não dos outros, que nos
rodeiam, mas de nós mesmos, como homens de caráter.

O CRISTÃO. - Eis o ideal do homem de b em. Mas,


já observei que o melhor meio de realizar em nós o homem
de bem, o próprio senhor, é ainda viver corno cristão.
Como assim ? Porque o ideal do cristão, sobrepondo-se
em nós ao ideal do homem, traz consigo os meios de
realizá-lo em tôda a plenitude. 1 1
Supondo agora conhecermos bem a nós mesmos e
o ideal maravilhoso para o qual devemos tender, es­
taremos suficientemente armados a fim de tornar-n'Os
cristãos de caráter ? Será grave êrro assim pensar.
Urna coisa é estar informado a propósito de uma
viagem, do fim a atingir, e outra bem diferente chegar
a êsse fi.rn, principalmente quando apresenta dificuldades
quase insuperáveis.

11 Cf. La, Virilité chrétienne, Desclée De Brouwer et Cie. Tôda


a primeira parte da obra é consagrada em precisar o conteúdo obje­
tivo do ideal cristão, do qual apenas indicamos aqui o aspecto huma­
no ou natural.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 49

Já os antigos filósofos afirmavam consistir em asse­


melhar-se à divindade o ideal do homem, do sábio, atin­
g-indo o domínio de si e assegurando a superioridade da
inteligência e dos sentimentos nobres sôbre os impulsos
nnimais.
Deus, na verdade, é antes de tudo inteligência. Graças
a ela, é Senhor de si como Universo. Mas o ideal, assim
apresentado, parece muito abstrato. Ora, para agir, pre­
cisamos de um ideal concreto. A maravilha do cristianismo
é precisamente apresentar êsse ideal em carne e osso, na
pessoa de Cristo, do Homem-Deus. Deus fêz-se homem para
permitir ao homem que se assemelhasse a Deus.

III

O conhecimento do ideal e a educação do caráter

Depois de ter exaltado o ideal cristão, não desejo


depreciá-lo. No entanto, considerando a elevação moral
que nos atrai para êle, é preciso reconhecer que, de início,
semelhante ideal é antes desanimador. Ora, o engano de
muitos educadores atuais é julgar suficiente fazer brilhar
diante dos rapazes um ideal que lhes seduza o espírito,
para assegurar no mesmo tempo a reforma de seus cos­
tumes. E' absolutamente falsa essa tese, tanto na teoria
como na prática, e vou. já demonstrá-lo.

EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO. - Na sua época, Sócrates


sustentou pela primeira vez diante da mocidade de Atenas,
ávida de ouvi-lo, a unidade da prática da moral com a
ciência moral ; afirmou impor-se à nossa vontade, o bem
apenas conhecido ; ser suficiente conhecer o que nos con­
vém melhor, para procurá-lo efetivamente.

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50 A EDUCAÇ.�O DO CARÁTEH

Segundo Sócrates e Platão, seu discípulo, '.'tôda vir­


tude é uma ciência" 1 2 ; "o mau não faz na verdade o que
quer, apesar de fazer o que lhe parece bom" 13 ; "a sabe­
doria não se separa da conduta sábia." 14
T<?dos os dois sustentam que a verdadeira ciência
do bem leva à prática ; que "o melhor" nos move forço­
samente e que a virtude se confunde com essa determina­
ção necessária da nossa vontade para "o melhor" a rea­
lizar. E' também o pensamento de Leibnitz, cujo otimismo
a êsse respeito é bastante conhecido.
No século XVIII, os filósofos da Enciclopédia reto­
maram, sob uma forma menos metafísica, êsse brilhante
paradoxo doutrinai.
Ideologistas, como não é permitido ser, pretenderam
que devem as leis reformar os costumes, e não os costumes
reformar as leis ; que é suficiente cortar ou acrescentar
algumas linhas a um código, para transformar imedia­
tamente a fisionomia morat de um povo.
Um dêles, 15 o mais ingênuo, reconheço - imaginou
provir a diferença entre os indivíduos da raça humana
apenas da diferença da instrução recebida, e ser possível
ensinar a virtude, como a filosofia e a matemática.
Poderíamos supor ter a sociedade moderna despre­
zado semelhantes utopias ? Antes pelo contrário. Na maio­
ria dos meios universitários, ainda se acredita na pos­
sibilidade da educação do caráter pelos manuais e pelos
preceitos aprendidos de cor. Mal se começa a voltar de

12 ARISTÓTELES, Ética, a Nicôma,co, Z, 13 1144 C, 29 (ed. de


,

Berlim) .
18 PLATÃO, Protágoras, 368.
14 XENOFONTE, Memórias, 111, 9.
15 HELVETIUS.

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O. IDEAL E A EDU<:;AÇÃO DO CARÁTER 51

1\emclhante êrro e á procurar os meios de substituir os


n utnuais. Enquanto isso proclama-se apenas, com grande
l'loqi.iência e em estilo mais ou menos castigado, os bene­
l' k i m; inapreciáveis de uma boa educação.

A EXPERI�NCIA. - Seria tempo de pôr ordem em se­


melhante estado de coisas e eu me consideraria feliz se
eonseguisse convencer a êsse respeito alguns dos meus
leitores.
Em primeiro lugar, como imaginar ser suficiente
conhecer o bem para praticá-lo ?
Não ignoro ter sido por muito tempo apregoada a
teoria da idéia-fôrça ser muito, e mesmo tudo, para a
educação do caráter, bastando a idéia por si mesma, a
idéia simples, com a condição única de ser elevada - o
que chamamos um ideal..
Nada mais desastroso, sob o ponto de vista moral,
do que semelhante teoria . Admito ser a idéia por si
mesma uma luz, mas não vejo corno será urna fôrça.
A idéia é o farol aceso no litoral ; mas quando se está
em alto mar, sacudido pela tempestade, bastará avistar
o farol para poder chegar à terra ?
Ora, quando se trata de viver moralmente, e sobre­
tudo cristãmente, estamos sempre à mercê de urna tem­
pestade. Em cada um de nós há correntes de paixões que
ameaçam arrastar-nos. Para escapar, será suficiente lem­
brar-se do ideal sublime para o qual devemos tender ?
Antes, se não tivermos em nosso íntimo os meios de reagir,
lutando contra as vagas ameaçadoras, a vista dêsse ideal
poderá paralisar-nos e fazer-nos largar os remos, de can­
saço, sem utilizá-los.

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A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Para que a simples idéia, mesmo a do bem, fôsse


uma idéia-fôrça, seria preciso que, pela simples irradiação
de sua luz, ela comunicasse energia à nossa vontade e nos
dominasse o impulso desordenado das paixões. Ora, isso
não . se dá. A idéia, sem dúvida, atrai e fascina ; inclina
a querer, porém não é por si a causa do querer. Senão,
como explicar ter o ideal cristão suscitado ao mesmo
tempo os mártires e os diletantes ? terem alguns morrido
por êle, enquanto os outros, mesmo o admirando e exal­
tando, se tenham recusado a viver para êle ?
Um ideal, por mais elevado que se imagine, não
é apenas impotente sôbre a vontade, mas também não
tem fôrça para reagir contra a brutalidade das tendências.
"Compare-se, por exemplo, a crença "psitacista" pura­
mente intelectual da burguesia das pequenas cidades, com
a crença sentida de um cartucho. tste, pelo fato de sentir
a verdade religiosa, pode fazer-lhe o sacrifício absoluto de
si próprio, privar-se de tudo quanto o mundo preza, aceitar
a pobreza, as macerações, o mais duro regime de vida.
O burguês, cuja crença é de ordem intelectual, vai à missa,
mas não lhe repugna o mais feio egoísmo. Explora sem
piedade uma pobre empregada, alimentando-a mal e dela
exigindo um trabalho extenuante." 1o
Achei ser meu dever chamar a atenção dos rapazes
sôbre êste ponto. E' preciso ter um ideal : a questão não
é esta ; mas sob que condições êsse ideal terá uma influ­
ência eficaz sôbre a educação do caráter : eis a verdadeira
questão. Ora - repito - um ideal nada pode sôbre nossa
conduta se nos contentarmos em contemplá-lo.

lU PAYOT, L'Education de la volonté, pág. ·41.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 53

t de São Paulo, creio, esta palavra terrível : "Se


l >1mR não tivesse revelado sua Lei ao mundo, os homens
ni\o teriam pecado !" O puro e simples conhecimento da
l .e l divina, longe de fazê-los viver, matou-os.
Mas nós mesmos - apelo aqui para a experiência
d iária- fazemos sempre o bem que conhecemos 7 Cum­
primos sempre as resoluções tomadas, unicamente por
tê-las tomado ?
Qual de nós, ao mesmo tempo em que a razão e
Huu Fé, estendendo amplamente as asas, procuravam le­
vá-lo para as alturas, para o Ideal, não terá sentido inter­
•·omper-se êsse impulso sublime, sendo às vêzes arrastado
para o abismo do mal, do pecado, pelo pêso da anima­
lidade ? Nós não somos apenas inteligência ; ainda somos
feitos de matéria. E enquanto essa matéria não estiver
domada em nós por uma luta perseverante e diária ; en­
quanto não tivermos conseguido, à custa de energia, im­
p regná-la dêsse ideal proposto e imposto pela Fé ; enquanto
não lograrmos vencer-lhe as exigências e a isso habituá-la,
nada teremos feito, ou quase nada, para a educação do
caráter.
Deus não pede apenas que queimemos incenso no altar
do Ideal. Pede-nos que sejamos as vítimas, encarnando em
nós êsse ideal, assimilando-o, sacrificando-lhe alegremente
tudo quanto lhe possa empanar o brilho. Mas, para isso,
não basta somente conhecer o ideal, é preciso amá-lo.
O amor do ideal, porém um amor verdadeiro e eficaz.
prático e não platônico, eis, na ordem da ação, a primeira
palavra da educação do caráter.

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54 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

IV

Idéia-Luz e Idéia-Fôrça

O ideal mais elevado, se nos contentarmos em con­


templá-lo, não pode contribuir para a reforma da conduta
nem para a educação do caráter. E, no entanto, quem
pretender pôr um pouco de ordem na vida moral, hierar­
quizar as paixões e os sentimentos, assegurar o domínio
da vontade sôbre os sentidos, precisa de um ideal. Aí
está a experiência para prová-lo. Corno resolver êsse di­
lema ? Teoricamente não há dificuldade ; pràticamente, é
outro caso, como verificaremos a seguir.
Por enquanto, limitar-rne-ei à questão teórica ; vere­
mos qual a condição geral para assegurar o domínio do
ideal na educação do caráter.

IDEALISTAS E MATERIALISTAS. - Tanto em educação


como em instrução, quando se fala em reformas, há sempre
pessoas extremadas. Sob o pretexto, por exemplo, de não
bastar conceber um ideal para sofrer imediatamente sua
intluência diretriz, muitos educadores pretendem supri­
mi-lo. Eis mais ou menos como raciocinam. Temos à nossa
disposição apenas dois meios de educação moral : o espírito
e o corpo, os exercícios intelectuais e os físicos. Admitindo
a ineficácia dos primeiros, devemos procurar os segundos.
Daí a importância atribuída nos programas universitários
aos exercícios físicos, aos desportos de tôda espécie.
Há um fundo de verdade nesse raciocínio. Admito que
o corpo deve ter uma parte, e grande, na reforma dos
costumes . Veremos mais tarde a que título. E' preciso,
porém, observar que a ginástica corporal, por mais re­
gulada que fôsse, não poderia resolver sozinha o problema

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 65

tão complexo da educação moral. E' possível fazer hér­


cules com bons exercícios de ginástica, mas não se pode
ver bem em que êsses exercícios, desenvolvem as quali­
dades a serem cultivadas pela educação : iniciativa, per­
severança, j ulgamento, autodomínio, vontade, etc. 17
Entre os idealistas de um lado e os matet·ialistas
de outro, entre os adeptos do ensino puramente livresco
.
da moral e os que depositam absoluta confiança nos des­
portos, não poderá haver uma solução média ?
Creio que sim e eis como o provo. Para tornar-se
um caráter, é preciso ser ao mesmo tempo esclarecido
e forte, saber de antemão para onde devem convergir
as energias e poder efetuar essa convergência. E' incontes­
tável que o ideal, por si mesmo, nos esclarece. Tôda a
idéia é luz. Mas não será possível transformar a idéia-luz
em idéia-fôrça. 1s

IDÉIA-FÔRÇA. - Teoricamente nada é mais fácil ; basta


querê-la, ou por outra, basta amá-la. A nossa fôrça reside
finalmente na vontade. Suponho que, uma vez esclarecidos
pelo ideal cristão, não nos contentemos em contemplá-lo,
mas para êle nos dirijamos com todo o impulso da vontade,
a ponto de assimilá-lo, vivê-lo, impregnar com êle todo
o organismo moral ; depois de tudo isso, êsse ideal, sem

17 GUSTAVE LE BoN, Psychologie de l'Education, 1. li, ch. VI,


}Jág. 165 .
18 Expliquei longamente alhures que tôda i déia e tôda sensa­
ção inclinam ao ato correspondente, enquanto n ão intervém um obstá­
culo. Isso não contradiz o que se afirma a qui, mas o completa. Pois,
se a i déia inclina ao ato, isto é devido ao apetite natural (voluntá­
rio ou sensitivo ) que se move diante de tôda representação, e não
à própria representação. (Cf. Education de la C07lscience, 2."' e 3.a
:partes ) .

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56 A EDUCAÇlO DO CARÁTER

deixar de ser uma luz, não se terá tornado ao mesmo


tempo uma fôrça ? . . .
A idéia-fôrça não é, pois, apenas a idéia vista, corno
pretendem erradamente alguns psicólogos, porém é a idéia
desejada. São as idéias desejadas, amadas, ao mesmo tem.:
po as inspiradoras e os sustentáculos da atividade pro­
longada em urna direção determinada.
Consideremos o sol. O seu papel na natureza asse­
melha-se ao da idéia-fôrça assim compreendida na
educação do caráter. A sua luz ilumina enquanto o seu
calor faz viver. Sem a luz do sol, a natureza ficaria
envolta em trevas, horrlvelmente triste.
Suponhamo-la, porém, iluminada por êle, gozando da
sua irradiação, e não recebendo calor. Seria a morte em
eurto prazo : o inverno perene. Tôdas as energias e:scon­
didas no seu seio, prestes a explodir, logo se extinguiriam
e acabariam por se apagar.
O mesmo se poderia dizer, guardadas as proporções,
a respeito do ideal cristão relativamente à nossa natureza
moral.
Se êle se limitar a projetar, até aos últimos recantos,
o brilho de uma luz fria, conheceremos, sem dúvida, o
estado da nossa alma, mas continuaremos incapazes de
lhe dar algum remédio. Ora, não estamos neste mundo
apenas para conhecer a luz do ideal cristão, e sim para
viver dêssc ideal e fazê-lo passar ardente em cada um
de nossos atos. E, sendo que o único meio para mudar a
luz em calor é querê-lo e amá-lo, devemos, pois, querer
e amar êsse ideal com tôda a fôrça de nossos sentimentos,
para ní'io deixá-lo fugir.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 57

A EXPERn!:NCIA CRISTÃ. Tudo isso, confesso, é muito


-

claro em teoria. Na prática, porém, corno fazer descer


o ideal cristão das alturas serenas da inteligência para
a região aquecida do coração ? Não é tão simples.
Não se trata aqui de nos iludir e de pensar que é
um empreendimento fácil. Absolutamente.
Lembremo-nos do que se passou no dia seguinte à
criação. A queda dos nossos primeiros pais é um fato
dominante na história da humanidade, cuja repercussão
em nossas consciências é por demais dolorosa para dis­
pensar-nos de analisá-lo e nêle buscar um ensinamento
prático. 1"
A fé nos ensina terem sido Adão e Eva criados em
um tal estado de equilíbrio moral a ponto que, sob as
irradiações provindas da inteligência, sua vontade não
tinha dificuldade em dominar a carne.
A lei da hereditariedade não pesava então sôbre êles ;
tendo saído puros das mãos de Deus, estavam isentos das
excitações malsãs que nos assediam de todos os lados.
O olhar fixo no ideal divino, e a alma ainda cheia do
sôpro criador, parece-nos que lhes bastava abrir as asas
para pairar acima das misérias em que nos debatemos
hoje, e respirar um ar vivificante na atmosfera divina.
Pelo menos pensamos que assim teríamos agido se tivés­
semos estado no lugar dêles !

19 "A experiência c?·istã, baseada sôbre o fato da queda, apenas


acentua a experiência natural. Eis por que insisto aqui. Natural­
mente, um organismo moral, onde o espírito deve dominar a carne,
exige uma intervenção contínua da vontade no domínio da sensibili­
dade. Esta não poderia espiritualizar-se por si mesma, somente à
luz do ideal ; daí a necessidade da intervenção voluntária, tanto no
homem, como no cristão".

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58 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Como conhecemos mal a complexidade da nossa natu­


reza ! A história da queda original é prova evidente de que
os homens mais apegados a um ideal, os que dêle mais
viveram, não estão definitivamente garantidos contra as
fraquezas . . . Que dizer então dos outros, dos fracos, dos
pusilânimes, dos covardes ?
Lembremo-nos sempre que, ao lado da ciência do
bem, está a ciência do mal ; ao lado do céu há a terra.
Se, pela alma, aspiramos a viver nas alturas pelo pêso do
corpo somos arrastados para o abismo. Vista de longe,
a terra não nos deixa ver suas asperezas ; envia-nos ainda
o perfume sutil das flôres, escondendo-nos, porém, os
espinhos . Os sentidos se embriagam e nos perturbam ;
oscilamos algum tempo e finalmente perdemos o equilíbrio.
Fechando então as asas, cortamos os ares e vamos cair
em algum recanto escuro de onde subiram, irresistíveis,
as falsas seduções. Eis aqui, em resumo, a história da
queda original.
Lembremo-nos igualmente de havermos todos herdado
as conseqüências nefastas dessa queda. Por êsse motivo,
nossa vontade, peça de resistência do nosso organi�mo es­
piritual, não tem mais o mesmo vigor natural. A mola
não está quebrada, porém frouxa. Ora, para comprimi-la
e dar-lhe a dureza primitiva - dureza de aço - de manei­
ra a restabelecer em nós o equilíbrio, assegurar o domínio
do ideal sôbre os maus instintos, é necessário um esfôrço
de gigante.
É verdade que há a graça ; porém esta não prescinde
de nós. Precisamos agir, sob sua influência, como se ela
não nos tivesse sido dada. E' ainda o melhor meio de
aproveitá-la.

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O IDEAL E A EDUCAÇÃO DO CARÁTER 59

E como agir ? Por si só, o ideal nada pode. A vontade


recebe dêle a luz, não porém, o calor. Cabe-lhe ao contrário
comunicar o seu calor, apegando-se a êle, e nêle se agar­
rando com tôdas as fôrças. Ora, a vontade, de um lado
está enfraquecida, anemiada : de outro, as fôrças sensí­
veis, tirando partido dessa anemia, dessa fraqueza, tendem
a exteriorizar-se desordenadamente, cada uma para seu
lado, prejudicando o ideal total que se impõe à nossa
atividade sobrenatural.
Quem porá côbro a essa anarquia interior ? Quem
restabelecerá o equilíbrio ? Eis-nos chegados ao ponto mais
delicado da nossa análise. Sem querer dar desde já uma
solução definitiva, permitam-me entretanto fazer
entrevê-la.
O remédio está mais perto de nós do que pensamos.
Encontro-o no seio do próprio mal.
Observemos como a nossa vontade é, na verdade,
um poder sentimental. Só quer obedecer, mas não gosta
de ser comandada sêca ou friamente. Ao contrário, precisa
receber ordens tocantes, coloridas de paixão. Onde bus­
cá-las ? Nas próprias paixões. Colocada entre o ideal que
a ilumina com suas luzes, e as paixões onde achara parte
de seus impulsos, a sua tática consistirá em fundir ele­
mentos heterogêneos, soldá-los entre si, transformar a
idéia-luz em idéia-fôrça, em ordem comovente, sentimen­
tal, cheia de paixão.
"Uma sensibilidade intensa, escreveu Stuart Mill, é
o instrumento e a condição para permitir o perfeito domí­
nio sôbre si ; para isso, porém, precisa ser cultivada. Com
êsse preparo, formará não somente os heróis do primeiro
movimento, mas os heróis da vontade que se possui. A.

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60 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

história e a experiência provam que os caracteres mais


apaixonados mostram maior constância e rigidez no sen­
timento do dever, quando sua paixão tiver sido dirigida
nesse sentido." 20

20 STUART-MILL, Assujettissement des femmes, págs. 150 e 55 ;


RIBOT, Maladies de la volonté, Paris, Alcan, 1897, págs. 117 e 56.

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SEGUNDA PARTE

AS PAIXõES E O CARÁTER

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CAPÍTULO I

AS PAIXõES E O IDEAL CRISTÃO

Não será talvez inútil, ao abordar a segunda parte


dêste trabalho, a mais importante, seguramente, lembrar
os têrmos precisos em que se apresenta atualmente o difícil
problema da educação do caráter.
De um lado, p_o ssuímos o ideal para o qual devemos
tender. Êste, porém, como um refletor possante, limita-se
a projetar sôbre nós sua luz e a indicar-nos o caminho.
No extremo oposto, na região agitada e tenebrosa da
sensibilidade, topamos com as fôrças violentas e cegas que
nos desorientariam se fôssem abandonadas a si mesmas.
Seria simples a solução do problema da educação do
caráter, se, por si só, o ideal fôsse capaz de dominar essas
fôrças. Infelizmente, a experiência mostra-nos como a
idéia, mesmo sendo cristã, é, por si, impotente diante da
brutalidade das nossas tendências.
Intervém então a vontade. E ' ela, sem dúvida, desti­
nada a nos fazer realizar a idéia cristã.
Como agirá ? Desapegada, com efeito, dêsse ideal,
pelo fato da herança do pecado original, não sente por
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64 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

êle a mesma atração, os mesmos sentimentos de amor.


Para se prender a êsse ideal, amá-lo, querê-lo enfim,
necessita do auxílio divino da graça. Ainda assim é indis­
pensável o esfôrço pessoal.
.Curados pelo batismo, não deixamos de ser conva­
lescentes, incapazes de recuperar a energia senão ao con­
tato do ar livre da ação. Ora, qual a ação própria para
estimular a vontade, para dar mais vigor a seus senti­
mentos, mais intensidade ao amor do ideal divino que
a solicita?
Talvez a ação dêsse ideal ? Vimos, porém, que êle
não é capaz de exercer mais fôrça sôbre a vontade, para
fazê-la agir, do que sôbre os impulsos passionais, para
moderá-los.
Não acharemos, então, alguma solução, e a educação
do caráter será uma burla ? Absolutamente não, pois o
remédio está no seio do próprio mal.
A vontade, insisto, é uma fôrça sentimental. O seu
fundamento é o amor. Ora, o amor chama o amor. Em vez
de ordens luminosas, porém frias, apresentemos ordens
sentidas, quentes, coloridas de paixão e logo havemos de
vê-la obedecer, de todo o "coração", em tudo.
Não será possível prender ao ideal cristão paixões
fortes, impulsos cavalheirescos, capazes de excitar a von­
tade e fazê-la agir com eficácia ? :Esse processo existe
e a própria vontade tem o poder de realizá-lo. No fundo,
é apenas uma questão de tática, que já Aristóteles inti­
tulava : arte de filosofar com as paixões.
Antes, porém, de indicar em pormenores em que con­
siste precisamente esta arte, devo dizer uma palavra sôbre
a natureza das paixões.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 65

As paixões

Pràticamente, as paixões designam as emoções agra­


dáveis ou desagradáveis que experimentamos con�tante­
mente na região sensível d a alma. Quando se fala do fogo
das paixões, é em alusão ao caráter espontâneo, violento,
dessas emoções. Basta muito pouco para acender êsse fogo :
um encontro, uma lembrança, uma imagem ; basta uma
fagulha para fazer saltar um depósito de pólvora.
Em geral, os moralistas dão uma significação pe­
j orativa à palavra paixao, que entendem por desregra­
mento, excesso. Com efeito, há paixões que se podem
tornar desregradas e excessivas, pelo abuso. Mas não
é isso motivo para anatematizá-las tôdas. E' possível abu­
sar das melhores coisas ; não haveria, então, nada de bom
neste mundo.
As paixões sãó, pois, emoções agradáveis ou desa­
gradáveis da sensibilidade. Eis . as formas gerais pelas
quais se traduzem essas emoções ; apenas insisto em
relembrá-las.
O amor próprio acha-se na origem de tôdas as pai­
xões. E' uma fonte contínua que as alimenta tôdas.
"O ódio que se sente por qualquer objeto, observa
Bossuet, tem sua razão de ser no amor que se tem por
outro objeto oposto. Se tenho aversão por alguém será
porque essa pessoa é um obstáculo à posse do que desejo.
"O desejo é um amor que se estende a um bem não
possuído. A alegria é o amor da posse.
"A aversão e a tristeza não são mais do que um amor
que se afasta do mal pelo qual está privado de um bem,
e sofre disso."

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66 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

"A aud-ácia é um amor que empreende o que há


de mais difícil para garantir a posse do objeto amado ;
e o temor é um amor inconsolável pelo objeto perdido
para sempre, sucedendo-se um abatimento invencível.
� cólera é um amor irritado pelo fato de lhe pre­
tenderem tirar o b�m, e que se vinga contra o culpado.
E nfim, se suprimirmos o amor, não haverá mais paixões ;
com êle, nascem tôdas". 21
Amor, desejo, alegria, ódio, aversão, tristeza, audácia,
temor, esperança, desespêro, cólera, eis a escala das pai­
xões. Assim como com tôdas as notas da escala se pode
obter música boa ou má, também, com as notas das paixões ,
se pode, sob o ponto de vista moral, atingir um resultado
bom ou mau.
Tudo depende da moralidade do objeto para o qual
tendermos. Por si mesmas, com efeito, as paixões não s[;.o
boas nem más, pois a bondade ou a malícia, sob o ponto
de vista moral, só começam com a intervenção da vonta de
inteligente.
Disse São Gregório que, assim como o ferro aquecido
toma a forma que lhe imprime o ferreiro, e, prestando-se
ao emprêgo ao qual o destina, se transforma em espada
nobre ou ferramenta vulgar, acontece. o mesmo com as
paixões. S ubmetidas à vontade do homem, tornam-se ins­
trumentos de virtude ou de vício, conforme êste as submete
à razão ou aceita-lhes o jugo, abdicando da razão.
Se é uma vantagem ter saúde excelente, bons olhos,
músculos sólidos e um cérebro bem equilibrado, não é
menor a de possuir um coração ardente, uma alma cheia dê


21 BossUET, Connaissance de Dieu et de soi-même, ch. I, n.o 6.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 67

pa1xoes enfim, com a condição, bem entendido, de que


elas se limitem a servir e não pretendam dar ordens.
Sobretudo, os rapazes sentem ferver, dentro de si,
essas paixões. Tanto melhor, se estiverem dispostos a
utilizá-las convenientemente. Pois essas emoções se;nsíveis,
apanágio peculiar da mocidade viril, podem tornar-se as
molas vivas de sua conduta. Hàbilmente dirigidas e ali­
mentadas, constituem para o homem de caráter um estímu­
lo que não teme obstáculos. Essa tecla sensível, essa
efervescência que a paixão empresta ao amor, é um móvel
poderoso da vontade e um auxiliar precioso da virtude.

II

Sentimentos e paixões

Há, no entanto, em tudo isso, uma condição .essencial


a tôda a questão da educação do caráter, isto é, o acôrdo
possível entre as paixõ�s e os sentimentos próprios da
vontade.
Encontramos, com efeito, na vontade, uma escala de
sentimentos correspondente à das paixões. A vontade ama,
deseja, goza ; odeia, afasta-se, sofre ; espera e desespera ;
teme ou é audaciosa ; é calma ou se zanga.
Enquanto, porém, as paixões, para exultar ou se
queixar, rir ou chorar, vão, às cegas, buscar inspiração
nos bens de tôda espécie, apresentados com vivas côres
pelos sentidos e pela imaginação, vemos os sentimentos
�u emoções da vontade só se atirarem sôbre a sua prêsa
guiados pela luz da inteligência.
A vontade poderá, sem dúvida, desprezando o ideal
cristão que se impõe à sua atividade, comprazer-se em

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68 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

bens sensíveis, ou, com mais precisao, poderemos, por


seu intermédio, saturar o corpo de gozos, com prejuízo
da alma ; será sempre, no entanto, com conhecimento
de causa, livremente, senão ?'a,zoàvelmente. Sob o influxo
da vontade, as nossas paixões recebem dela o cunho rno1·al,
que pode ser pró ou contra o ideal cristão ; tornam-se boas
ou más ao contato dos atos da vontade, e, por uma reação
compreensível, comunicam aos sentimentos, sob uma for­
ma mais intensa, a bondade ou a malícia recebida.
Tôda a questão está, pois, em saber até que ponto
os sentimentos cristãos atingidos de anemia, desprovidos
de amor, como os da nossa vontade, decaída, podem receber
das paixões fortes, mas cegas, um pouco do sôpro de vida
que lhes é necessário para fazer com que a vontade, soli­
damente prêsa ao ideal cristão, reine soberana sôbre tôcb :>
a s energias.
A alma é como um órgão de dois teclados : o das
paixões sensíveis e o dos sentimentos voluntários. Ser­
vindo-nos de um têrmo técnico, seria possível emparelhar·
êsses dois teclados de modo que uma nota emocional da
sensibilidade fizesse ecoar a nota correspondente da von­
tade e vice-versa ? No caso afirmativo, será possível a edu­
cação do caráter. Como observei acima, o caráter é a
harmonia da alma ; e essa harmonia deve consistir jus­
tamente no acôrdo da vontade e da sensibilidade.
Quando, pois, à custa de habilidade e perseverança,
chegarmos a conhecer a fundo o nosso instrumento, a
estabelecer um acôrdo entre paixões fortes e sentimentos
cristãos, a assegurar, por meio de hábitos sólidos, o seu
funcionamento quase automático, não teremos mais de
temer dificuldades. Nossos dedos correrão sôbre o teclado

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AS PAIXÕF.S E O CARÁTER 69

duplo, como espontâneamente, com surpreendente agili­


dade ; multiplicar-se-ão os acordes cada vez mais ricos
e sonoros ; a vida inteira será então uma longa sucessão
de atos harmoniosos, encadeados uns dos outros, formando,
pela sua continuidade, a grande sinfonia do caráter.

111
As paixões e o ideal cristão

As paixões são, pois, movimentos de sobressalto da


sensibilidade, que, sob a forma de amor ou ódio, de desej o
ou aversão, de temor ou audácia, de alegria ou tristeza,
nos levam espontâneamente para os bens sensíveis ou
nos afastam dêles.
Antes, porém, de verificar se a vontade está em
condições de soldar pràticamente essas emoções passionais
ao ideal cristão, para avivar, fortificar nela o amor dêsse
ideal e estabelecer-lhe o domínio absoluto, é mister resolver
uma questão preliminar. O ideal cristão, longe ele poder
acomodar-se com as paixões, não terá como função própria
exterminá-las, e sôbre essas ruínas estabelecer o seu
império?
Porque, enfim, o ideal cristão consiste em viver de
uma vida divina, sobrenatural por essência e, portanto,
cada vez mais desprendida da matéria. Ora, o objeto das
paixões é todo material : apela somente para os sentidos ;
provoca uma emoção sensível, a qual, quanto mais espon­
tânea, violenta, mais nos afasta das alturas divinas onde
resplandece o ideal cristão.
No correr dos séculos foram dadas respostas bem
diferentes a essa questão. Seja-me permitido lembrar aqui,
em poucas palavras, as principais, a fim de esclarecer

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70 A EDUCAÇ.4.0 DO CARÁTER

melhor a que considero mais de acôrdo com a doutrina


católica.

O IDEAL ESTÓICO. - Os estóicos, na antiguidade, por


motivos que não temos a discutir aqui, sustentaram serem
as paixões radicalmente más, devendo consistir o ideal
do homem - a fortiori o ideal do cristão ! em ex­
-

tingui-las na fonte.
Segundo Zenon de Citium e seus discípulos, o sábio
deveria conseguir o domínio de si mesmo. Não, porém,
como um rei pacífico que reforma súditos indisciplinados,
assim firmando a sua submissão, mas como um tirano
que os reduz e suprime sem piedade.
O verdadeiro estóico foge às suas emoções sensíveis,
tanto aos gozos como aos sofrimentos ; paralisa-lhe� as
influências ; não as reforma, fá-las desaparecer ; o seu
ideal é a impassibilidade.
"Diante da leviandade do seu povo, os desmandos
e a traição dos capitães, a deserção dos soldados, o crime
da espôsa e a morte dos filhos, os atos celerados de seu
filho Cômodo, o aviltamento dos caracteres, a prostitui­
ção do casamento, o desaparecimento da coragem, a des­
preocupação pelo bem público, o reino da superstição,
diante, enfim, do desmoronamento e da vergonha do exér­
cito, da família e do império, Marco Aurélio domina-se
contra a indignação, a cólera e a tristeza ; gaba-se, qual
o promontório inabalável batido pelas tempestades, "de
viver isento de dor, insensível aos golpes de hoje, inaces­
sível ao temor de amanhã." 22

22 JA NVIER, Les Passions, 32, Conf., pág. 3. Paris, Lethiel­


leWI:, 1906 .

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 71

Essa solução radical e inumana do problema das pai­


xões devia acarretar outra, não menos radical, além de
diametralmente oposta. Não me demorarei em fazer-lhe o
histórico ; acha-se exposta em todos os manuais de moral.
0 IDEAL EPICURISTA. -
Epicuro é tido como pai dêsse
ideal e Rousseau como padrinho. Eis a que se· reduz :
a natureza humana é excelente no fundo ; tôdas as tendên­
cias aí originadas, como em fonte l ímpida, participam des­
sa excelência. O que é mau e contra a natureza é querer
impor limites às suas expansões.
Era de prever o acolhimento entusiasta da massa por
uma doutrina tão agradável aos apetites de tôda espécie.
"Das paixões, os pagãos fizeram de� ses aos quais
consagraram templos, festas, dando assim à terra não
somente o espetáculo e o escândalo de suas desordens, mas
promovendo na humanidade os excessos nêles personifica­
dos. Como se a natureza humana pervertida não fôsse
capaz de se exceder bastante, as saturnais, as bacanais, as
festas da grande deusa vinham abrir às almas os hori­
zontes de uma libertinagem infinita ; os mortais desciam
do céu para estimular as consciências enojadas, impondo
a obrigação de honrá-los por meio de · orgias de que se
proclamavam os verdadeiros autores". 23
Substitua-se a palavra deus pela palavra ciência e
fàcilmente reconhecemos na teoria acima uma certa dou­
trina contemporânea da glorificação das paixões. Falsos
doutores preconizam, hoje, em nome da ciência, o mesmo
que os pagãos pregavam em nome dos deuses.
Em presença destas duas teses contraditórias, uma
exaltando desmedidamente as paixões, outra conde'ilando-as

.23 JANVIEB, ibid., pág. 6.

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72 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

com severidade excessiva, qual a atitude conveniente para


um católico ?
O IDEAL CRISTÃO. - Zenão e sobretudo Epicuro -
não nos iludamos - tiveram entre nós, avisados e cristãos,
alguns discípulos inconscientes.
Quantas vêzes teremos ouvido em tôrno de nós, em
ambientes que se dizem católicos, alguns sofismas que
desapontam, e dos quais se abusa com o fim de encobrir
desmandos deploráveis : "/l faut que jeunesse se passe" ?
( A mocidade precisa divertir-se) . Não será isto puro
epicurismo ?
A mocidade precisa divertir-se ! Pràticamente, signi­
fica que um rapaz, apenas porque é jovem, e não porque
é homem, deve ceder ao impulso das paixões, sem tentar
vencê-lo ou orientá-lo no sentido de um ideal superior.
Trata-se, não de negar a impetuosidade das paixões,
·

sobretudo na mocidade ; mas de saber se, só pelo fato de


ser j ovem, será permitido abandonar-se a elas sem cons­
trangimento, e mesmo de caso pensado. Nada mais con­
trário aos ensinamentos da razão e da fé.
:tl:sses rapazes não serão um dia homens ? E, se o ideal
do homem consiste no domínio das paixões, será possível
crer que, de um dia para outro, decretado o fim da moci­
dade, um j ovem seja capaz de, por um simples fiat de uma
vontade desamparada, opor um dique irresistível às vagas
tumultuosas que êle voluntàriamente desencadeou ?
Eis os resultados nefastos de uma moral tôda livJ;"esca
que sacrifica de boa vontade a realidade a abstrações ! Não,
cem vêzes não, a mocidade não se deve divertir no sentido
dado pelo mundo. Repito ainda : a educação do caráter não
é obra de um dia. Depois de escravos das paixões durante

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 73

vinte anos ou mais, não dependerá de nós livrar-nos subi­


tamente dêsse j ugo e dominá-lo.
Quererá isso dizer que, em nome do ideal cristão,
devemos visar uma impassibilidade quimérica, sufocar as
paixões no início, a fim de assegurarmos o domínio sôbre
nós mesmos ?
Essa atitude estóica, tal como a precedente, nada tem
de humano : é contra a natureza. "Qui veut fai1·e l'ange
fait la bête", disse Pascal, e a experiência vem prová-lo.
Ora, tôda a fôrça e atrativo do ideal cristão vem de que
êsse ideal é humano por excelência. A graça só nos é dada
para aperfeiçoarmos nossa natureza. Tudo aquilo que fôr
cont1·a a natureza é, por . isso mesmo, anticristão.
Não precisamos de outra prova além do exemplo de
Jesus Cristo, nosso modêlo. Basta abrir o Evangelho para
verificar que o Filho do homem não foi isento de paixões.
Os exploradores do povo, os fariseus, excitaram-lhe a có­
lera ; êle chorou sôbre Jerusalém infiel e sôbre o túmulo
de seu amigo Lázaro ; na agonia, sofreu as emoções terrí­
veis do temor ; na última ceia, demonstrou pelos discípulos
uma ternura intensa, desejou ardentemente comer a pás­
coa com êles ; amou o sofrimento ; teve enfim a loucura
da cruz.
Tudo isso não será uma prova evidente de que nem
tôda paixão é repreensível e que o ideal humano encarnado
no Cristo não constitui um exemplo apenas para a vonta­
de intelectual, mas também para o cérebro, os nervos, os
músculos, o coração, para tôdas as fôrças que nos foram
concedidas, para a carne e para o sangue ?
Não quer isso dizer que tôdas as paixões sejam boas,
seja qual fôr a d ireção que tomem ou os excessos em que
caiam. As paixões são boas quando nos permitem tomar

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74 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

de assalto o ideal proposto pela fé à nossa atividade ; são


más quando dêle nos afastam e nos paralisam a vontade.
Eis a doutrina católica sôbre as paixões. Não é aca­
nhada demais nem excessivamente larga : é conforme à
verdade. E a verdade é que as paixões fortes, como as da
mocidade, se forem bem orientadas, e ligadas pela vonta­
de ao ideal cristão, poderão facilitar-nos a ascensão para
êsse ideal, dar um brilho ao olhar, uma auréola à fronte
que seduzam os homens e possam restituir o vigor aos mais
fracos e aos mais insensíveis.
Não temamos as paixões. Elas devem servir de tram­
polim para nos lançarmos à conquista do caráter. Há, sem
dúvida, em tudo isso, algumas condições a examinar ; há
uma tática a observar. Mas, para pô-la em prática, já é
bastante saber que a vida cristã não age sôbre um· cadá­
ver humano e que não é necessário - muito ao contrário
- ter aniquilado em nós o homem, para ter o direito de
nos proclamarmos cristãos.

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CAPÍTULO li

TÁTICA DA VONTADE EM FACE DAS PAIXõES


NA EDUCAÇÃO DO CARATER .

O ideal do cristão não é apagar na alma o fogo das


paixões, mas saber utilizá-lo. Todos os psicólogos estão
de acôrdo em reconhecer que é próprio de uma paixão bem
di1·igida estimular a inteligência e decuplicar o impulso vo­
luntário. "Não se faz nada de grande sem a paixão", disse
Pascal. Nela está a fonte de tôdas as ações nobres, das
belas descobertas, das dedicações heróicas.
Uma paixão mal dirigida, ao contrário, cega a inteli­
gência. Exaltando a imaginação em prejuízo do julgamen­
to, ela paralisa a reflexão, falseia-nos a apreciação. Além
disso, acaba por dominar a vontade e esta, que devia ser
fôrça dirigente, fica escravizada. Será preciso acrescentar,
enfim, que a reação de uma paixão dominante, no sistema
nervoso por ela excitado, no organismo por ela abalado,
pode muitas vêzes ser fatal e levar à loucura ou à morte ?
Já notamos como a qualidade moral das paixões está
completamente subordinada à orientação dada. Numa alma
cristã, por exemplo, há lugar para afeições castas e ódios
legítimos, para desejos violentos e cóleras santas, para
alegrias e tristezas permitidas, para audácias sublimes e
temores salutares.
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76 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Trata-se de saber, porém, até que ponto exatamente


estamos em condições de associar o ideal cristão a essas
paixões diversas, de modo a reforçar os sentimentos da
vontade que nos levarão à vitória.
Qua,ndo a idéia cristã cai numa alma ardente em
acolhê-la, atrai para si, por um fenômeno duplo e miste­
rioso de endosmose que ainda estudaremos, as paixões pró­
prias a fecundá-la. E' um fato da experiência. Com elas
alimenta-se de certo modo, fortifica-se e além disso a niti­
dez da idéia passa para as paixões e lhes dá, não o vigor,
mas a orientação.
Já verificamos, no entanto, que êsse poder de atração
não pertence à idéia pura, mas à idéia desejada. As paixões
não se apegam espontâneamente à idéia : seu objeto - pri­
meiro é outro ; é de ordem sensível.
Cabe, finalmente, à vontade operar essa reunião. Em
virtude do seu amor inicial ao bem divino, e com o
fim de aumentá-lo, irá buscar a fonte viva das paixões.
Aí encontra uma reserva de energia que só pede para ser
utilizada. Insensível às ordens frias, pálidas, do ideal, a
vontade procurará aproveitar a faísca das paixões à qual
acenderá os próprios sentimentos em seu favor. Melhor
ainda ; retomando a comparação de há pouco, a vontade
tentará pôr de acôrdo os dois teclados, o das paixões e o
dos sentimentos pessoais, de modo a que o canto espontâ­
neo e vibrante das emoções sensíveis em honra do Weal
cristão, desperte nela o desejo de procurar o uníssono, e
fazer com que todos os seus atos sejam outros tantos acor­
des harmoniosos cuja seqüência ininterrupta terá como fim
a composição do caráter.

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As PAIXÔEs E o cARÁTER 77

A vontade e os efeitos psicológicos da paixão

�as a vontade terá sôbre as paixões êsse poder de


orientação que indicamos ? Aí está tôda a questão e a ela
'
devemos responder desde j á. À primeira vista confesse­
mos a espontaneidade, a rudeza dos movimentos passionais,
daria a impressão de não ter a vontade nenhum domínio
sôbre êles. Parece, com efeito, bem difícil a um homem
encolerizado dominar-se imediatamente. Do mesmo modo,
quando a sensualidade explode como um raio, nada mais
temerário do que pretender atacá-la de frente. A história
não nos diz que os nossos antepassados atirando inocente­
mente suas flechas contra o trovão tenham conseguido im­
pedi-lo de estrondear e de fulminá-los.
Com a paixão dá-se o mesmo que com um rio : "é mais
fácil desviá-lo do que paralisar-lhe o curso".24
Quer isso dizer que o poder direto da nossa vontade
sôbre a sensibilidade é fraco, se fôr mesmo apreciável. Em
C'>mpensação, temos um poder um pouco mais direto.
Para compreender bem, é preciso distinguir na paixão
os efeitos fisiológicos pelos quais ela se exterioriza habi­
tualmente e as causas de tôda espécie das quais depende.
Fisiologicamente falando, a paixão é uma "comoção
orgânica", uma perturbação da circulação, dos movimen­
tos respiratórios, das pulsações. Essa perturbação mani­
festa-se por gestos, gritos, movimentos de tôda espécie.
Não temos nenhuma influência direta por meios psico­
lógicos sôbre o material fisiológico essencial da paixão,

24 BossUET, De la connaissancc de Dieu et de soi-même, cb.


UI, § 19.

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78 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

compreendendo êste a maioria dos órgãos que não se acham


submetidos à vontade, sobretudo o coração. Nossos únicos
meios de ação são exteriores e dependem da terapêutica.
Não me cabe indicá-los aqui.
O mesmo não se dá, porém, com a parte muscular do
material ' da emoção.
"Quando uma emoção ferve em nós, podemos impedir
a sua manifestação exterior. Para exprimir-se, a cólera
necessita de punhos fechados, maxilares cerrados, contra­
ção dos músculos faciais, respiração arquejante : quos ego !
Posso ordenar aos meus músculos que se distendam, à
minha bôca que sorria, posso moderar os espasmos respi­
l"Rtórios. Mas, se não tentei extinguir as primeiras mani­
festações ainda leves da emoção nascente, se a deixei cres­
cer, meus esforços correm o risco de se tornar inúteis,
sobretudo se, interiormente, a vontade não consegue vir em
auxílio por meio de outras emoções como o sentimento de
dignidade pessoal, o receio de uma explosão e outras cir­
cunstâncias." 2ó

li

A vontade e as causas da paixão

Assim é que nossa influência real sôbre as paixões


atinge antes as ca usas que os efeitos. E ainda, entre essas
causas múltiplas, é preciso distinguir as remotas e as
próximas.

CAUSAS REMOTAS. - São de duas espécies : exteriores,


como o meio físioo e o meio moral. "Certas paixões são

n PAYOT, op. cit., pág. 63.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 79

corno o fruto natural de certos climas". 26 Por outro lado,


a educação, os exemplos, as companhias, em virtude da
lei de contágio que preside a difusão das emoções, consti­
tuem um alimento contínuo.
·
São, porém, de notar, as causas interiores. ne fato,
cada um de nós traz em si o germe de tôdas as ' paixões.
Não é raro, no entanto, que a criança, ao nascer, apresente
tendências mais acentuadas prontas a predominar e a se
resolver em paixões. Essas tendências são, muitas vêzes,
fruto da he1·editariedade, um caso de atavismo, dada a
solidariedade profunda que nos liga aos ascendentes. Acon­
tece, às vêzes, adormecerem durante uma ou duas gera­
ções, prontas a despertar em seguida bruscamente.
Neste ponto de vista, o poder direto da vontade é nulo.
Evidentemente, não somos l ivres de escolher os antepassa­
dos ; só com o tempo, indiretamente, a custo de habilidade
e perseverança, conseguiremos consertar algumas tendên­
cias más que herdamos, e neutralizar-lhes os efeitos desas­
trosos.
O mesmo direi da vontade nas suas relações com o
nosso temperamento físico individual. Segundo a prepon­
derância de certos elementos orgânicos, cada temperamen­
to é predisposto a uma ou outra paixão. Ora, essa prepon­
derância é um fato que não depende de nós. Não escolhe­
mos o temperamento bilioso, nervoso, sanguíneo ou linfá­
tico ; tampouco a tendência à cólera, à preguiça, ao rnêdo,
à sensualidade, nem mesmo à tristeza ou à exuberância.
A que se reduz, en Lão, o poder da vontade sôbre as
paixões, se lhe escapam essas causas exteriores e inte­
riores ?

26 MONTESQUIEU, Esprit des Lois, 1. XIV, eh. 11.

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80 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

CAUSAS PRÓXIMAS. - 1!:sse poder é maior do que ima­


ginamos. Observemos, de fato, como as tendências heredi­
tárias, do mesmo modo que os elementos orgânicos carac­
terizam o temperamento físico, não constituem as paixões
prôpriaip.ente ditas, mas são apenas as predisposições mais
ou menos afastadas de uma ou outra paixão. Podemos com­
pará-las a depósitos de pólvora que para explodir precisam
de uma fagulha.
Muitas vêzes, sem dúvida, uma aragem de loucura,
junta ao acaso das circunstâncias, pode provocar essa faís­
ca que as fará saltar, e transtornará em um minuto o orga­
nismo moral, porém soterrando-nos nas ruínas.
Na maioria dos casos, podemos provocar uma explo­
são, fazendo saltar, com j eito, como a dinamite, os obstá­
culos de tôda espécie, existentes entre a vontade e o ideal
cristão.
Como assim ? Pela direção que impusermos às percep­
ções sensíveis ou imaginativas, e às nossas idéias. Essas
percepções e idéias por meio das imagens a que se refe­
rem, têm uma influência preponderante na evocação das
paixões, como a da faísca nos depósitos de pólvora ou de
outros materiais inflamáveis. Colocam diante de nossos
olhos, com as côres mais vivas, o objeto que nos atrai, ou
inspira repulsa, provoca desejos ou aversões, alegria
ou abatimento, incute esperança ou desespêro, enche-nos de
audácia ou de cólera. Ora, a experiência prova ser-nos pos­
sível, em muitos casos, dominar as percepções sensíve !s, as
imaginações, sobretudo as idéias capazes de atear em nós
o fogo das paixões.
Por exemplo, não gosto de alguém e não penso nêle no
momento. De repente, encontro-o ao dobrar uma rua. Essa
surprêsa me transtorna : gesticulo, agito-me, enraiveço.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 81

Não dependeu d e mim o encontro com êsse adversário


nesse dia, pois nem pensava nêle. No entanto, se habitamos
a mesma cidade e se, além disso, eu lhe conheço os hábi­
tos, dependerá de mim, depois, evitar os encontros, ou des­
viar-me quando o avistar de longe.
Numa vitrina de livraria exibem gravuras inconve­
nientes, mas eu o ignorava. A vista súbita dessas incon­
veniências provoca-me movimentos violentos de sensuali­
dade. Não sou responsável. Posso, porém, tomar amanhã
outro caminho e, sobretudo, não sou obrigado a comprar
essas gravuras para expô-las no meu quarto ou deixá-las
na minha gaveta. E assim com tôdas as representações
imaginativas capazes de despertar em mim paixões ador­
mecidas ou mal extintas.
O mesmo direi das próprias idéias. Por natureza, o
pensamento está exposto a um vaivém contínuo. Mas o jo­
vem refletido, observador, estudioso, pode alcançar sôbre
êle um grande poder. Sabendo que uma determinada idéia,
por meio de imagens nas quais se baseia, provoca emoções
irresistíveis na sensibilidade e o coloca em estado mani­
festo de inferioridade moral, acha-se livre de procurar ou­
tra idéia ou propor-se uma diversão por uma leitura, um
passeio, um j ôgo ou uma conversa.
O poder da vontade sôbre as percepções e sôbre o curso
das idéias fornece um poder indireto sôbre as paixões pro­
vocadas por essas idéias e percepções, como causas pró­
ximas.
Já podemos resolver a questão suscitada no início dês­
te capítulo : pode a vontade associar o ideal cristão a emo­
ções sensíveis, capazes de despertar sentimentos corres­
pondentes e assegurar assim sôbre tôdas as energias o pre­
domínio dêsse ideal ?

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82 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

E' claro que se formos senhores, em grande escala, do


curso das percepções e das idéias, bastará ligar a idéia
cristã a idéias de percepções que ouso chamar de passionais
- visto provocarem movimentos de paixão - e assim
comunicaremos vigor e fôlego à idéia cristã, inflamando
ao mesmo tempo a vontade em seu favor.
A isso se reduz a arte de filosofar com as paixões, arte
que exige muita reflexão e energia. Voltaremos a êste
ponto.

III

A utilização das paixões

A vontade tem, sôbre as paixões, um poder real


apesar de indireto, pela direção que impõe às percepções
e às idéias. E' simplesmente o poder que possui um indi­
víduo razoável de impedir que um incêndio lhe devore a
casa, tratando apenas de vigiar o próprio fogão.
Não é preciso apagar em nós o fogo das paixões, como
não nos garantimos contra o incêndio, privando-nos de
fogo. Seria um processo ingênuo e desastroso.
Devemos vigiar as paixões e impedi-las de explodir
por qualquer motivo e sem motivo.
Para isso bastará orientá-las em direção bem deter­
minada e pô-las ao serviço das necessidades mais urgentes
da vida moral, como uma dona de casa utiliza o fogo para
atender a tôdas as necessidades domésticas. Nisto consis­
te, repito, a arte de filosofar com as paixões. Trata-se,
agora, de saber como, pràticamente, podemos exercer essa
arte em função do próprio ideal cristão. Na maneira de
respondermos a esta pergunta está a chave de tôdas as
dificuldades relativas ao problema da educação do caráter.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 83

O PROBLEMA. - Suponhamos um estudante lançado


na vida e desejoso de fazer alguma coisa. Não se pode ima­
ginar com efeito um estudante que venha para a Univer­
sidade e siga os cursos durante vários anos, com a inten­
ção de nada fazer mais tarde.
O seu fito é ser médico, advogado, tabelião, · profes­
sor, pouco importa. A carreira que pretende seguir tem,
para êle, o valor de um ideal, e não somente de um ideal
apenas percebido, mas dese,iado, amado.
Ora, o que se dá em nós tôdas as vêzes que, voluntà­
riamente, encaramos o ideal, ou que as circunstâncias no-lo
trazem à mente ? Não nos sentimos inflamar para atingi-lo ?
Em tôrno dêle produz-se uma concentração de tôdas as
fôrças vivas, principalmente das paixões. O amor que lhe
temos eleva-nos acima de outros que nos prendem à terra,
ao domínio da sensualidade, capazes de paralisar as me­
lhores energias e tornar-nos cativos. Se por temperamento
ou herança formos sujeitos à cólera, não teremos dificulda­
des em desviar a corrente impetuosa sôbre as inúmeras
dificuldades que se opõem, ao ideal proposto, como se faz
com uma corrente caudalosa, proporcionando-lhe saídas.
Se, ao contrário, formos tímidos, receosos de natureza, pou­
co a pouco, por uma espécie de auto-sugestão, à fôrça de
pensar na alegria de um bom êxito e na vergonha de um
fracasso, nós nos afoitamos. Sustenta-nos a esperança de
sermos bem sucedidos, e tôda a vida, sobretudo os estudos,
disso se ressentem.
Em resumo, a 1.1ontade de realizar alguma coisa, de
adquirir uma boa posição, de colocar-se, age sôbre as pai­
xões como o ímã sôbre as inúmeras correntes da barra
de ferro doce. Atrai as mais capazes de torná�la fecunda ;
"dirige-as no mesmo sentido, destrói os conflitos, e trans-
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84 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

forma o que era apenas um amontoado incoerente em cor­


rente disciplinada e de fôrça centuplicada".27
E' evidente que a vontade, tocada, por sua vez, pelas
pa1xoes que despertou, orientou e agrupou em tôrno do
ideal a realizar, só pode vibrar em uníssono com elas.

O MÉTODO. A grande dificuldade, motivada pela


-

fraqueza de origem, é j ustamente a de alçar o vôo e atin­


gir a região do ideal. Mas, tendo adquirido êsse impulso
com as paixões favoráveis, ela o comunica a todos os atos.
Eis mesmo uma coisa surpreendente sob todos os pontos
de vista : sacudida do torpor pelas paixões e por elas trans­
portada, a vontade retribui, em energia esclarecida e cons­
tante, o que recebeu em fôrça cega, intermitente. Faze­
mos então, voluntàriamente, de maneira inteligente, o que
havíamos começado instintivamente, movidos por emoções
passionais violentas, mas passageiras. A nossa vida tor­
na-se, assim, unificada e realmente estável.
Quantos estudantes atravessaram o período tempes­
tuoso da mocidade sem choques nem acidentes, graças a
êsse poder maravilhoso da vontade de unir um ideal bem
determinado a paixões fortes, ou, melhor ainda, de orien­
tar no sentido dêsse ideal tôdas as emoções próprias a lhe
facilitar o impulso e a neutralizar, ao mesmo tempo, as
emoções contrárias e nocivas !
'
Tomemos cuidado, no entanto : o ideal do homem não
consiste unicamente em ser alguma coisa neste mundo,
mas, sobretudo, a tornar-se alguém, um caráte1·. O estu­
dante sério logo se aperceberá disso.
Se, para realizar o ideal do homem, se tratasse apenas
de atingir um dia uma posição honrada ou lucrativa,

21 PAYOT, op. cit., pág. 40.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 86

haviam de consegui-lo fàcilmente muitos daqueles que fa­


zem convergir para êsse alvo interesseiro a massa move­
diça e desordenada das paixões.
Na verdade, nada se faz sem trabalho, e, para cavar
um sulco na vida, é preciso ter coragem de empunhar o
arado. Mas, para isso, basta ser enérgico e hábil ; não é pre­
ciso ser moral. A moralidade do "parvenu", do que subiu,
reprimindo somente algumas paixões, poupando as que lhe
são caras, lembra a atitude de um homem atacado de gan­
grena, que consente em se deixar amputar um membro,
para salvar os outros e a vida.
Quando se trata, no entanto, de vir a ser alguém, a
habilidade e uma certa energia de nada serviriam, se a
moral não entrasse em jôgo. A meta, neste caso, não tem
nada de interesseira. Trata-se, apenas, de ser senhor de
si, de pôr um dique ao transbordamento de algumas paixões
grosseiras e de orientar tôdas as outras para o lado ela
razão, aproveitando-lhes esta a energia na observància das
suas leis.
E' possível ser alguma coisa em detrimento da pru­
dência, da justiça, da fôrça, da temperança e de muitas
outras virtudes. Não se pode ser alguém excluindo algu­
ma virtude do campo moral, e sem estar disposto a prati­
cá-las tôdas.
Êsse ideal austero não tem por si o dom de atrair a
maioria dos homens, mesmo os de boa vontade. E' então
necessário usar de habilidade.
Voltemos ao nosso estudante que queT ser alguma
coisa e que também desejaria tornar-se alguém. O primeiro
sentimento é o dominante, porque nêle há interêsse. Subir,
custe o que custar, eis a sua meta.

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86 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Refletindo, porém, um dia, percebe que o meio mais


seguro para ser alguma coisa, é tornar-se alguém ; que
o domínio próprio é o caminho mais curto para a posse
de uma colocação, de urna fortuna, de uma bela situação.
Nesse momento, a idéia de tornar-se alguém liga-se
por si· à de ser alguma coisa, e beneficia das emoções
que a acompanham. Ainda não é certamente a perfeição,
pois o ideal mais nobre está subordinado a um fim utili­
tário.
Enfim, é preciso tomar-nos corno somos. Antes chegar
a ser um caráter por um caminho indireto, do que passar
a vida recriminando contra os obstáculos apresentados
pelo caminho direto, pela linha reta que a êle chega.
Uma vez senhor de si, o próprio estudante corri­
girá seu modo de ver. A alegria superior de se ter ele­
vado pouco a pouco acima de si mesmo, desejando ele­
var-se acima dos outros, fá-lo-á desprezar tudo o mais,
ou pelo menos dar-lhe o justo valor.
Seríamos mais exigentes do que Deus, que tira o
bem do mal, e transforma os pecadores em j ustos ? Dei­
xemos falar êsses puritanos da moral, que, desdenhando
os dados da experiência, pretendem tudo condenar em
nome de princípios, em nome do absoluto. De fato, é
preferível chegar diretamente ao cimo do ideal humano,
sem passar pelos degraus de uma ambição me�quinha,
de um ideal menos elevado. Mas, se me arrisco lançan­
do-me de um só impulso para o desconhecido, ainda mere­
cerei . repreenl:lão se, de preferência, subir os degraus um
por um, seja a escada reta ou circular ?
Andemos sempre para diante, e aproveitemos os dons
da natureza e de Deus. Nada nos impede de desejar
ser alguma coisa ; é, mesmo, uma ambição legitima, e,

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 87

se dela soubermos aproveitar para domar os instintos


animais, para dominar-nos, para ter um caráter, para
ser alguém enfim, não hesitemos um só minuto . Nosso
futuro está garantido.

A SOLUÇÃO. - Eis o que acontecerá de fato. Tendo


'
fé, conhecemos o ideal cristão. Ora, o ideal cristão é o ideal
humano aperfeiçoado, levado ao extremo ; é o ideal hu­
mano, mas com todos os meios naturais e sobrenaturais
para realizá-lo. É, pois, impossível pensar em um sem
se lembrar do outro.
Mas, se o simples fato de desejar ser alguma coisa,
fêz com que chegássemos a ser alguém, grupando em
tôrno dêsse ideal um primeiro núcleo de paixões e sen­
timentos, que acontecerá quando percebermos, à luz da
fé, que só poderemos pretender realmente ser alguém
visando, como é conveniente, o ideal de cristão.
O mesmo trabalho de imantação analisado há pouco
reproduz-se aqui. A idéia cristã atrairá tôdas essas fôrças
e as organizará e disciplinará ; por sua vez, a vontade,
auxiliada pela caridade divina, vai assimilá-las e com elas
se fortalecerá. Comunica-lhes em fôrça sobrenatural, sob
a forma de sentimentos, o que tiver recebido em fôrça
natural sob a forma de paixões.
Nossos dois teclados ·estarão assim de acôrdo ; bastará
tocar em um dêles para fazer soar o outro. Estará realizado
o poema do caráter. Só nos lembraremos das dificuldades
da composição para gozar melhor da harmonia.

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CAPiTULO 111

TÁTICA DA INTELIGtNCIA EM FACE DAS PAIXõES


E DOS SENTIMENTOS NA EDUCAÇÃO DO CARÃTER

Se falei tanto até agora do papel da vontade nas


suas relações com as paixões, na educação do caráter, fi-lo
com a intenção bem nítida de pôr em destaque o da
inteligência. Pois a vontade, dissemos, deve ser conside­
rada como a forma mais perfeita da atividade humana,
uma atividade refletida em oposição ao instinto, que é uma
atividade inconsciente e fatal. Mas a reflexão é, preci­
samente, a característica da inteligência. Só podemos refle­
tir na medida da nossa inteligência. Ora, nem é preciso
lembrar o trabalho da vontade em ligar o ideal cristão a
paixões e sentimentos favoráveis, em afastar sentimentos e
paixões hostis, é, antes de mais nada, um trabalho de
reflexão. E' preciso, sem dúvida, querer ainda 1"efletir,
para realizar essa liga, e eis o ponto onde é capitál o
papel da vontade na educação do caráter ; mas é preciso
saber refletir, e isto compete à inteligência.
Falemos da importância da reflexão meditativa em
face das paixões sensíveis ou dos sentimentos voluntários
na educação do caráter. Veremos, em primeiro lugar, em
que consiste.
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AS PAIXÕES E O CARÁTER 89

A reflexão meditativa

De início, é preciso não confundir a reflexão medi­


tativa com o estudo propriamente dito. Há semelhança nos
seus processos, mas a finalidade é outra.
Eis o que escreveu a êsse respeito um psicólogo con­
temporâneo. Pela reflexão meditativa, "não entendemos,
nem é preciso dizer, a divagação, principalmente a diva­
gação sentimental, um dos inimigos a combater com mais
energia no trabalho de dominar-se. Enquanto a atenção
está adormecida, durante a d ivagação, deixando mover-se
com moleza a trama das idéias e dos sentimentos, dei­
xando ao acaso o encadeamento das associações de idéias,
muitas vêzes da maneira mais imprevista, a reflexão me­
ditativa nada deixa ao acaso. Difere, no entanto, do estudo,
que visa adquirir conhecimentos precisos, porque tende
não a "povoar a alma", mas a "forjá-la". 28 "No estudo,
com efeito, buscamos o saber, na reflexão meditativa o
caso é outro. Trata-se de provocar na alma movimentos
de ódio ou de amor". 29
Tudo isto está perfeitamente certo, mas eis o que
acrescenta o mesmo psicólogo : "No estudo, preocupa­
mo-nos com a verdade ; na reflexão meditativa, a verdade
não importa. Preferimos uma mentira útil a uma verdade
nociva : nossa pesquisa é dominada excl-usivamente poT um
motivo de utilidade."
Isso não podemos admitir. A meu ver, a verdade é
tão importante na reflexão meditativa como no estudo, mas

28 MONTAIGNE, lU, 3.
29 PAYOT, op. cit., págs. 92 e 99,

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90 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

não da mesma forma. No estudo visamos a verdade espe­


culativa, científica ; na reflexão visamos a verdade prá­
tica, viva.
Qual a diferença entre verdade especulativa e ver­
dade prática ?
E'' tão importante, a ponto de depender dela a obra
de educação do caráter. Infelizmente não faz parte dos
programas universitários, onde, ao contrário, tudo parece
estar combinado para fazer adquirir a verdade especula­
tiva em detrimento da verdade prática.
Explico-me. Qual a meta de um estudante que vai
para a Universidade ? E' pôr-se no nível intelectual da
época, adquirir conhecimentos profundos e ao mesmo tem­
po precisos em filosofia, matemática, história, direito,
medicina. Há também um fim remoto, o de ocupar uma
posição na sociedade e fazer valer os conhecimentos ad­
quiridos. Mas, é estranho, êsse motivo geral de utilidade
em nada altera o caráter especulativo dos conhecimentos.
E' mesmo na medida dos seus conhecimentos de filosofia,
ciências matemáticas, históricas ou médicas, que êle será
bem sucedido, atingirá o seu alvo.
A verdade especulativa, para a qual tendem os es­
tudos universitários, consiste em um conhecimento per­
feito da realidade submetida às pesquisas. Essa v�rdade
é absoluta, a mesma para todos. Pode o estudante mudar
de universidade quanto quiser, os estudos, para serem
sólidos, deverão chegar aos mesmos resultados. Talvez
·
não se ensinem em tôda a parte os mesmos sistemas filo-
sóficos, mas êstes não constituem a filosofia, e no fundo
.
de cada um encontra-se a mesma preocupação de atingir
a verdade absoluta.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 91

As teorias do hiper-espaço e a metageometria podem


ter seduzido por um momento as imaginações, mas não
conheço universidade alguma onde se apliquem essas teo­
rias ao nosso mundo, e onde tenha sido alterado o teorema
do quadrado da hipotenusa.
.
Resumindo, a verdade especulativa é independente
do fim prático proposto e das disposições subjetivas tra­
zidas para a pesquisa. Desejamos ser advogado ou histo­
riador, sejamos por temperamento levados à cólera ou
à sensualidade, nunca impediremos que dois e doio façam
quatro e - para servir-nos de uma expressão clássica -
nunca faremos com que uma porta esteja ao mesmo tempo
fechada e aberta. Falando especulativamente, nada é
menos modificável diante da nossa vontade, do que o
princípio de contradição. Êle se vinga mesmo daqueles
que o negam, obrigando-os a basear-se nêle para dar uma
aparência de verdade à negação.
Tal é a verdade especulativa para a qual nos levam
os estudos. Dela não se pode dizer como Pascal : "Ver­
dade aquém dos Pirineus, êrro além." Ela é e permanece
absoluta. Não quero dizer com isto que essa verdade não
tenha uma influência considerável na marcha da huma­
nidade. Creio, ao contrário, que tudo o que há de grande
e durável no mundo foi feito por pensadores ; que os
verdadeiros heróis da história são os grandes inventores
nas ciências, nas artes, nas letras, na filosofia, e não
os "grandes agitados", os barulhentos, os políticc::, nem
mesmo os conquistadores mais ilustres.
E' preciso reconhecer, no entanto, que a verdade es­
peculativa j amais converteu alguém sob o ponto d2 vista

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92 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

moral e que, abandonada unicamente à sua irradiação,


é impotente para moralizar povos ou indivíduos, para
construir um caráter "de raça" ou um caráter individual.

li

Verdade especulativa e verdade prática

Para isEo, precisa ela de especulativa tornar-se prá­


tica, descer do absoluto, onde impera, a fim de governar
o relativo. Quer dizer que em vez de nos limitar a con­
templar a verdade exterior, devemos vivê-la no íntimo ;
em vez de ir a ela apenas com a inteligência, devemos
para ela dirigir-nos com tôda a nossa alma, e fazê-la passar
em todos os nossos atos.
Mas nossa alma é um todo complexo, se por isso
entendermos o conj unto ele tôdas as energias, a inteli­
gência, a vontade, a sensibilidade, com tôdas as gradações
aí introduzidas em cada um de nós pela hereditariedade,
o temperamento, a educação, o meio social e. os hábitos
adquiridos.
A verdade não irá sofrer da assimilação por tantas
fôrças diversas e muitas vêzes tão opostas ? E speculati­
vamente talvez, pràticamente não, com a condição, porém,
de sermos movidos a seu respeito, na maneira de vi;vê-la,
por uma real preocupação de adaptá-la a nosso modo de
ser. Pois o grande recurso da verdade · absoluta é poder
dobrar-se a tôdas as exigências relativas da vida. Ela
nada perde com isso, e nós sempre lucramos. Pode sem
dúvida acontecer - e isto se dá muitas vêzes envere­
darmos por um caminho errado. e, pensando alcançar
a verdade, abraçarmos o êrro. Mesmo aí a verdade não

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 93

sofre,· pelo menos como verdade prática, pois só agimos


assim em seu nome, e teríamos agido doutra maneira,
se tivéssemos reconhecido nosso êrro.
Não somos infalíveis no que diz respeito à verdade,
nem sob o ponto de vista prático, nem tampouco sob o
ponto de vista especulativo. Essa infalibilidade é certa­
mente o ponto ideal a atingir, seja simplesmente para co­
nhecê-la, seja para vivê�la, mas só aí chegaremos gra­
dativamente, por etapas, à custa de correções e retoques
infinitos. Daí a imensa importância da reflexão medi­
tativa para estabelecer o domínio da verdade prática em
cada um de nós. De nada nos serviria saber em geral
o que todo cristão deve fazer para adaptar a vida moral
às exigências da verdade. O importante é estarmos cientes
da maneira de agir nas condições em que nos acharmos,
em nosso meio social, com as nossas disposições atávicas,
com tal ou qual tipo de temperamento, na idade em que
estivermos em face da profissão escolhida, no estado de
saúde ou de fraqueza que nos caracteriza.
Pràticamente, nada disso deve escapar ao império
da vontade ; e se, para tornar-se um cristão de caráter,
é preciso afastar dela tudo o que lhe fôr nocivo, soldan­
do-a aos estados afetivos, - paixões e sentimentos - que
lhe são favoráveis, é preciso djscernir em nós todos êsses
elementos, familiarizar-nos com os pormenores da ciência
da nossa natureza ; chegar a conhecer as relações entre
todos êsses fenômenos ; prescrutar-lhes a influência recí­
proca, as associações, combinações e dependência em face
das sugestões exteriores e interiores.
Só conseguiremos isso pela reflexão meditativa, a
custa de observação aguda e sutil. É essa reflexão, essa
volta constante sôbre nós mesmos que nos fará procurar

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94 A EDUCAÇ10 DO CARÁTER

com pac1encia todos os motivos capazes de despertar


em nós paixões nobres, sentimentos cavalheirescos ; de
associá-los à prática das idéias cristãs ; de transformar
essas idéias abstratas em afeições sensíveis. Ela nos fará
conhecer a fundo nosso instrumento, a maneira de usá-lo,
de renovar os registros, de combiná-los, de subir ou baixar
o tom, conforme a natureza se expandir à custa ou em
proveito da graça ; ela, enfim, nos fará homens de caráter,
sabendo para onde ir, e indo de fato, senhores de si, tendo
no coração a paixão da verdade.

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CAPÍTULO IV

O PAPEL DA GRA ÇA EM FACE DAS PAIXõES NA


EDUCAÇÃO DO CAR.ATER

Eis, em resumo, em que ponto estamos em nossa


análise. Três elementos bem diferentes devem concorrer
para a educação do caráter : a inteligência, a vontade,
as paixões.
A inteligência mostra-nos em primeiro lugar o fim
a atingir, o ideal a realizar, que no caso é o ideal cristão.
Por si, a vontade tende a êsse ideal ; falta-lhe, porém,
a fôrça para assegurar-lhe o domínio sôbre tôda a nossa
sensibilidade. Pois o pecado introduziu aí terríveis fer­
mentos de discórdias. As emoções de tôda espécie aí levan­
tadas pelo vento das paixões não sofrem naturalmente
o influxo do ideal e recalcitram contra a dominação volun­
tária. Não quer isso dizer que a nossa vontade seja total­
mente impotente para dominar os impulsos passionais,
sobretudo quando são encarados, não em conjunto, mas
isoladamente. Nossa liberdade seria então cortada pela
raiz. Não impede, porém, que êsse trabalho de domínio
sôbre si por meio da' vontade, seja um trabalho difícil.
Será preciso, então usar de prudência na guerra às
paixões. Estas são com efeito movimentos espontâneos
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96 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

e violentos da sensibilidade, originados em nós de uma


quantidade de dispos:V;ões hereditárias ou adquiridas, e
renovadas nas fontes vivas sempre jorrando dos senti­
dos, da imaginação, das idéias.
� e não fôssemos capazes de dominar o curso das idéias
e das percepções morais, como se dá com as predisposições
naturais a tal ou qual paixão, a luta pela vida moral seria
um empreendimento quimérico.
Mas, de fato, depende de nós imprimir direções di­
ferentes às sensações, à imaginação, e, mais ainda, man­
tê-las, recorrendo às leis psicológicas da atenção, da asso­
ciação. Segue-se que atingimos as paixões nas fontes
tmediatas e podemos, por conseguinte, orientá-las por s1
mesmas. Tôda a habilidade, desde então, consistirá em
associar uma idéia relativamente inferior, mas capaz de
elevar as paixões. a sentimentos elevados.
Cabe à reflexão meditativa multiplicar as associa­
ções dêsse gênero à luz de um ideal cristão, e é claro o
que resultará para a vontade em relação a êsse mesmo
ideal. A tendência natural que a leva para êle, aprovei­
tando o impulso das paixões, atraídas agora pelo ideal,
será decuplicada.
Será então para a vontade uma tarefa relativamente
fácil, em seguida, garantir o domínio do ideal_ cristão
sôbre tôdas as energias. Pois êsses sentimentos serão
fortificados ao contato das paixões, e, por uma espécie
de reação, as paixões serão moralizadas ao contato dos
sentimentos voluntários. Nada mais próprio para asse­
gurar em nós o equilíbrio moral do que êsse intercâmbio
contínuo de luz e de fôrça, e, para tornar-se um homem
de caráter, sob o ponto de vista natural, não é preciso
contar com outros recursos.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 97

Não se dá o mesmo quando nos colocamos sob o ponto


de vista sobrenatural. Eis porque desejaria indicar ràpi­
damente o papel da graça em face das paixões na educação
do caráter.

A natureza e a graça

Já vanas vêzes repeti que uma harmonia perfeita


entre o ideal do homem e o do cristão, e que o ideal
�ristão, no fundo, é simplesmente o ideal humano, porém
transposto, levado ao extremo, com um acréscimo divino
de luz e de fôrça, que nos permite elevar-nos até êle .
Sob o ponto de vista natural, a luz da inteligência
tem por fim, na purificação das paixões, deduzir os prin­
cípios diretores da conduta. Ora, essa dedução faz-se com
dificuldade. Pois as paixões, como tôdas as fôrças instin­
tivas, são antes refratárias à luz ; e os espíritos mais
esclarecidos confessam que, em certos momentos, no auge
da luta, os impulsos violentos da sensibilidade empanam
·
de algum modo a seus próprios olhos a nitidez dos prin­
cípios nos quais até aí se haviam fiado, para assegurar
em si o equilíbrio moral .
Nesses momentos assemelhamo-nos a viajantes que
desejam refazer de noite, em sentido contrário, um ca­
minho difícil percorrido d urante o dia. Conhecem êsse
caminho, têm todos os pormenores gravados na memória
e na imaginação. Sabem onde existe um precipício a evitar,
um marco a consultar. Mas as sombras da noite enganam
muitas vêzes os olhos mais perspicazes e mais habituados
à obscuridade. �sse véu espêsso que a noite estende sôbr�
tôdas as coisas esconde também os abismos e torna menos

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98 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

nítidos os pontos de mira mais seguros. Desamparado,


então, o viaj ante prudente não tem outra alternativa senão
voltar e procurar uma luz. Quando se trata de procurar
o caminho do dever, na noite obscura das paixões, não
se trata de voltar para trás, pois temos que andar para
diante. O único recurso é guiar-nos pela luz dos princípios
naturais mais bem estabelecidos e mais bem adaptados
à nossa natureza particular. Mas, no vaso frágil que
somos, essa luz não está sempre ao abrigo dos golpes
de vento. Vacila e pode mesmo apagar-se.

A FÉ. - Nesse caso, que faríamos, se a luz clivina,


se a fé, não viesse em nosso socorro ? Ao menos essa luz,
acesa no foco divino, não corre o risco de apagar-se tão
depressa. Deus só nos pede um pouco de boa vontade para
entretê-la em nós de maneira constante.
E que nos faz ver a fé ? Não é ainda o dia claro,
com o sol radiante de luz ; mas não é mais a noite negra.
A fé é, acima do sol da razão que se eclipsa às vêzes
e muitas vêzes se esconde atrás da nuvem das emoções
passionais, a pequena estrêla que cintila sempre, ilumina
com um raio mágico o caminho da nossa vida, põe em
relêvo as leis morais segundo as quais nos devemos guiar,
indica-nos os precipícios a evitar, as voltas a dar, os exem­
plos a imitar, mostra-nos claramente a nossa' fraqueza
e ao mesmo tempo indica-nos onde está a nossa verdadeira
fôrça.
Como é penetrante essa luz da fé, quando nos aban­
donamos à sua irradiação ! A princípio parece ser ainda
a noite. Pouco a pouco, porém, o olhar da alma adapta-se
a essas santas trevas ; segue a estrêla da fé em tôda parte
aonde o conduz. E aonde conduz ela ? Não é mais às regiões

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AS PAIXÕES E O CARÁTER. 99

abstratas da filosofia, mas às regiões mais concretas


da vida cristã. Como outrora os Magos, ela nos leva ao
presépio para contemplar o ideal do cristão, encarnado na
pessoa do Filho de Deus ; orienta-nos em seguida através
de todos os caminhos que o Cristo achou dever tomar,
e onde nos convida a segui-lo ; faz-nos assistir às · suas
lutas interiores contra as paixões ; m ostra-o obediente à
vontade do Pai até a morte. Depois, quando o Cristo voltou
ao céu, a estrêla da fé continua a iluminar-nos ; põe em
plena luz os exemplos vivos do Cristo, deixados pelos
santos ; penetr.a , enfim, até o mais profundo da nossa
consciência onde dissipa as ignorâncias, os mal-entendidos,
as segundas intenções, as covardias de tôda sorte que nos
são habituais. Ela nos obriga a refletir, a nos conhecer,
sem procurar desculpa em nossa fraqueza ou em nossa
cegueira. Pois, e aí está o grande poder da fé, ela nos
ensina que se, sem Deus, nada podemos fazer, por causa
das conseqüências do pecado, em compensação, com Deus,
podemos tudo. A luz divina atrai aqui a fôrça divina ;
à fé corresponde a caridade.
Com a fé, sabemos, sem dúvida e sempre, o que deve­
mos e podemos fazer ; com a caridade, podemos fazê-lo.
Como ?

A CARIDADE. - A São Paulo que se queixava de estar


sempre às voltas com as violências das paixões, de ser,
como êle dizia, esbofeteado por Satanaz, Deus respondeu :
A minha graça te basta.
E creio bem que basta ! Pois a graça é Deus tanto
quanto pode estar em nós ; a graça é a própria ação divina
envolvendo-nos em suas energias infinitas, sem destruir a

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100 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

nossa ; a graça é a mão de um amigo todo-poderoso toman­


do a nossa, para aj udar-nos a subir até êle .
É se Deus estiver conosco, quem estará contra nós !
Ouçamos êsse nobre desafio de São Paulo : "Quem me
separará da caridade do Cristo !" Nada no mundo, sôbre
a terra nem no céu era capaz de separá-lo dela. Pois a
vontade do apóstolo confundia-se com a vontade divina ;
pelo mesmo fato, gozava da onipotência, beneficiava do
impulso infinito.
Assim será conosco, se quisermos. Mas prestemos
atenção ao seguinte : a perspectiva de usar, pela graça,
da própria fôrça de Deus, para realizar o nosso ideal
cristão, não nos dispensa de utilizar a fôrça das paixões
como dissemos. Deus tem empenho em que procedamos
como se êle não estivesse presente, apesar de estar sempre
ali. �le age de maneira que a sua graça venha em auxílio
à nossa natureza, mas �le exige que esta proceda de acôrdo
com a graça. Dá-nos meios sobrenaturais, não, porém, em
detrimento dos meios naturais.
Quando tivermos feito naturalmente todo o possívei
para disciplinar as paixões, depois de nos têrmos utilizado
do impulso espontâneo, temos o consôlo de pensar que
não estamos sós no cumprimento dessa tarefa ingrata.
Deus está conosco ; age em nós ; e nos movemos nêle.
Parece-me que êsse sentimento da presença de Deus
em nós e do apoio por �le concedido em nossas lutas
interiores, é de natureza a fazer os mais covardes recupe­
rarem a coragem.
O exemplo de um amigo virtuoso já é tanta eficácia
quando corremos o risco de rolar no abismo ! E, no entanto,
é apenas um exemplo, um apoio moral, uma fôrça exterior
que pára no limiar da nossa consciência. E, quando se
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AS PAIXÕES E O CARÁTER 101

trata de ter Deus consigo e em si, para nos dar mão forte,
em tôdas as circunstâncias, até nas mais difíceis, havemos
de desesperar de conseguir a reforma do nosso caráter,
o domínio sôbre nós mesmos, o govêrno da nossa vida
moral ?
O desespêro neste caso seria covardia ; pois, repito,
se Deus está conosco, quem estará contra nós ?

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CAPÍTULO v

EGOfSMO E ALTRUfSMO

O mundo das paixões é um mundo turbulento que,


abandonado a si mesmo parece não obedecer a lei alguma.
Nossas diversas paixões, como cometas loucos, parecem
descrever curvas à vontade, sem preocupação dos vizinhos.
Mas é uma simples ilusão de ótica. Na realidade, tôdas
as nossas paixões se prendem a uma delas, em tôrno da
qual gravitam tôdas, e que por isso tem o papel de centro
de atração : quero falar da paixão do egoísmo.
Não há palavra em nosso vocabulário, que soe pior
do que esta, e tal é a influência das palavras sôbre a
direção do pensamento, que é difícil distinguir entre egoís­
mo e egoísmo, e admitir a possibilidade de ser egoísta no
bom sentido da palavra. Poderá esta palavra ter um
sentido bom e outro mau ? Sim, ao lado de um egoísmo
odioso, há lugar para um egoísmo louvável ; ao lado do
egoísmo-paixão, há um egoísmo-virtude, às vêzes apenas
transposição inteligente do primeiro.
O egoísmo passional é odioso, por quê ? Por consistir
em querer tudo para si, em só encarar as pessoas e as
coisas sob o ângulo estreito dos próprios caprichos, em
apreciar o mundo unicamente nos limites forçosamente
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AS PAIXÕES E O CARÁTER 103

restritos e mesquinhos da utilidade própria e dos designios


pessoais.
Ao contrário, o egoísmo virtuoso é louvável, porque,
apesar das aparências, é generoso e é a base de todos
os movimentos desinteressados.
É preciso não pensar que oponho uma à outra essas
duas maneiras egoístas de ser, por puro gôsto de paradoxo.
Se houver paradoxo, é apenas nas palavras e não nas
idéias. Vou tentar demonstrá-lo.

Egoísmo passional

Em primeiro lugar precisamos lembrar existirem


em nós dois homens : o homem animal e o homem ra­
cional ; o homem-carne e o homem-espírito. Todos dois
nos são inerentes e é mesmo essa coexistência que dá
à nossa natureza sua verdadeira originalidade. Não basta
dizer que coexistem ; na realidade se compenetram a ponto
de constituírem um só, na unidade inviolável da consciên­
cia, do cu. Por isso, solicitam ambos o nosso amor, apesar
de não lhe terem direito com o mesmo título. Pois, em nós,
o animal deve dar a primazia ao homem, e a carne do­
brar-se às exigências legítimas do espírito. Daí a diferença
acima aludida entre egoísmo-paixão e egoísmo-virtude.
Obedecendo exclusivamente à paixão do egoísmo,
favorecemos em nós o eu animal, o eu bruto ; damos aos
nossos desejos como único horizonte o gôzo puro e simples,
o prazer sob tôdas as formas, até as mais degradantes,
as mais vis. Por outro lado, cultivando a virtude do
egoísmo, desenvolvemos em nós o eu razoável, o eu ver­
dadeiramente humano ; talhamos no bloco informe das nos-

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104 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

sas energias morais a estátua viva do homem de caráter,


do homem que se eleva acima de si mesmo, em detrimento
do animal, e procura tornar-se uma pessoa, deixando pouco
a pouco de ser uma coisa.
Dêsses dois egoísmos, qual dêles é sobretudo próprio
aos rapazes ? Para responder a essa pergunta, é melhor
consultar a experiência. Ora, esta nos mostra que um
rapaz tem paixões antes de adquirir virtudes. Concebe-se
isso, aliás, quando se pensa que, para ter paixões, basta
abandonar-se aos movimentos espontâneos da sensibilidade,
enquanto a virtude requer intervenção refletida e cons­
tante da vontade. A virtude tem, sem dúvida, por objeto
próprio moralizar as paixões, purificá-las ; e isso é uma
prova evidente da prioridade das paixões sôbre a virtude.
Concluo, pois, que um rapaz, pelo fato de ser jovem e
não ter tido ainda tempo para transformar as paixões
em virtudes, está exposto à paixão do egoísmo, que contém
tôdas as outras.
No entanto, os rapazes têm a reputação de serem
generosos. Como conciliar essa generosidade com seme­
lhante egoísmo ? A generosidade dos rapazes é real, mas,
em alguns pontos, mais aparente do que real. Se o próprio
egoísmo nêles toma ares de generosidade, devem-no sempre
à sua mocidade, ao desejo de viver, à exuberância. Como
tôda fôrça vital de alguma intensidade, a paixão do egoís­
mo obedece a dois movimentos, um de fôrça centrífuga, em
virtude do qual vamos buscar fora todo o necessário para
alimentar-nos a vida, e outro de fôrça centrípeta que nos
faz tudo concentrar em nós. Assim faz o polvo, quando
estende os tentáculos para atingir a prêsa e os retrai
para dela gozar. Mas êsses dois movimentos não passam
de duas fases de uma só paixão.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 1 05

O rapaz, precisamente porque é jovem, ainda não


pôde fazer provisão de vida. Nêle a inteligência, o co­
ração, a sensibilidade, são faculdades novas que só de­
seiam tomar contato com a realidade para assimilá-la
e saciar-se com ela . Eis por que a mocidade se abre para
tudo e a tudo se atira com avidez. O impulso espontâneo
que leva o rapaz a expandir-se ao mesmo tempo em tôdas
as direções, o desejo de vida intensa que brilha no seu
olhar e nêle acende como que uma chama de entusiasmo,
as emoções de s ua sensibilidade a tornam semelhante a
uma harpa, dócil ao menor sôpro, dela tirando acordes
maravilhosos, tudo isso tem algo de sedutor e pode iludir
espíritos superficiais. Os jovens dão a impressão de se
darem, quando muitas vêzes, e do modo mais inconsciente
do mundo, seu único fim é tomar ; parecem desapegar-se
de si mesmos, quando naturalmente procuram apegar-se
a outrem. A paixão do egoísmo, nos jovens, toma fàcil­
mente a aparência de generosidade. E como, acima de
tudo, amamos a vida, sobretudo onde ela se manifesta
com mais brilho, não nos damos sempre ao trabalho de
chegar até à origem de suas manifestações mais sedutoras
para explicá-las.
Dá-se em parte com os jovens o mesmo que com
os cegos recentemente operados de catarata. Por falta de
experiência e de reflexão, vêem no mesmo plano todos
os objetos que lhes impressionam o olhar ; ainda não tive­
ram tempo de adquirir a noção de perspectiva que, mais
tarde, quando se tiverem chocado contra as dificuldades
da vida, lhes permitirá situar todos os bens no lugar
respectivo, e hierarquizá-los. Deve-se por isso querer-lhes
mal ? Evidentemente não, pois seria incriminá-los por
serem jovens. E' bom, no entanto, preveni-los para que

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106 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

sua j uventude não se prolongue além dos limites per­


mitidos. E' urgente mostrar-lhes ser possível, desde agora,
converter em virtude essa paixão do egoísmo, própria da
idade, deslocando-a, orientando-a para o ideal do homem
de be;m e do cristão i trata-se no fundo de um deslocamento
de energia, e não de um desperdício ou perda de fôrças ;
não se trata absolutamente de se odiar a si mesmo, porém
de se amar mais e melhor.

11

Egoísmo virtuoso

Como operar essa conversão ? Pela maneira citada,


unindo ao desejo real, mas tão ineficaz, de ser homem
de bem, a paixão que nos leva instintivamente a procurar
as satisfações animais. Todo homem traz em si - a menos
de ser algum tarado de nascença - o desejo de ser alguém,
de desenvolver a vida, de ampliar-lhe infinitamente os ho­
rizontes. Ora, corno ser alguém sem realizar o ideal de
homem de bem i corno desenvolver a vida humana sem es­
capar aos laços da animalidade i onde achar, para desdo­
brar tôdas as energias da alma, um horizonte mais extenso
que o da vida cristã?
Nós ternos, suponho, paixões cujas emoções nos ator­
mentam i sentimos o desejo de viver que nos estimula i
sonhamos ir muito além da nossa pequena estatura. Não
haja dúvida. Não sufoquemos essas paixões em comêço,
suprimindo todo o egoísmo. Amemo-nos, ao contrário, com
tôda a alma, mas corno deve ser. "A caridade bem enten­
dida, disse o apóstolo, começa por si mesma". Amemos
em nós o que nobilita e não o que avilta i amemos o dever
e não o prazer ; submetamo-nos ao j ugo da razão e da

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 1 07

Fé, e não à tirania da carne. Não nos deixemos arrastar


pela corrente das paixões, sem reagir, mas, ao contrário,
procuremos dirigir essa corrente. Em vez de afundar no
riacho um tanto lamacento da sensualidade atiremo-nos
corajosamente a nado, no grande rio da virtude. Sobretudo
no comêço, para manter-nos na superfície, precisaremos
lutar contra as dificuldades de tôda espécie e empregar
vigorosamente os músculos. Mas êsse desporto, creio, vale
bem outros. Adquirimos músculos "espirituais", utilizando
nossas faculdades, isto é - proponho-me a demonstrá-lo
adiante - adquirindo sólidos hábitos morais.
Os hábitos morais, também chamados virtudes, são,
com efeito, para a alma o que os m�sculos vigorosos são
para o corpo. Quanto mais a alma procurar fortificá-Ias,
desenvolvê-Ias, mais probabilidades terá de salvação. Essas
probabilidades, cabe a nós multiplicá-las, repito ainda de
passagem, não suprimindo em nós todo o egoísmo, porém
pela conversão inteligente e ao mesmo tempo moral do
egoísmo-paixão em egoísmo-virtude, do amor próprio mal
entendido em caridade "bem entendida".

III

A falsa solidariedade

"Caridade bem entendida começa por si mesma" .


Enunciando há pouco êsse princípio de vida cristã, pre­
tendia acrescentar e demonstrar que na realidade o meio
mais seguro para amar os outros é ainda começar por
amar-nos devidamente a nós mesmos. De fato, que é que
nos torna insaciáveis e nos isola em um círculo mesquinho
de simpatias interesseiras, pondo de parte a solidariedade ?

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108 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Uma umca coisa : o amor exclusivo do nosso eu animal,


do nosso eu bruto .
Quando o horizonte dos desejos pessoais é limitado
pelo puro e simples gôzo, é assaz lógico ver nos outros
apenas instrumentos de prazer, servir-se dêles em vez
de servi-los, trazê-los a si em vez de se dar a êles. Não
falta quem, a êsse respeito, ouse falar de solidariedade.
E', em todo o caso, uma solidariedade odiosa, que tem
seus charlatães, como a verdadeira solidariedade, seus
apóstolos. Seu fim não é completar o homem em nós, mas
satisfazer o animal; seu ideal não é amar os outros por
êles mesmos, porém amá-los exclusivamente para nós.
Mais do que todos os outros, em virtude mesmo do
egoísmo-paixão, próprio da idade, os jovens são tentados
a confundir essa solidariedade de aparato com a solidarie­
dade verdadeira, a tomar por "altruísmo" o que no fundo
é apenas egoísmo. O fato de viver lado a lado ilude-nos,
às vêzes, a ponto de confundir um simples contato com
a fusão de almas. Por isso convém dissipar essa ilusão
separando nitidamente a "camaradagem" exterior da ami­
zade "interior", da solidariedade franca e cristã.
Um dos grandes obstáculos, como um dos grandes
recursos da vida de estudante - tudo depende do ponto
de vista em que nos colocamos - é precisamente a vida
em comum. Em cada Universidade existe um certo número
de rapazes a quem tudo convida para se associarem. Mas
é preciso distinguir entre associações e associações. Há
as oficiais, formadas sob as múltiplas influências de raça,
l íngua, educação, idéias, etc. A respeito destas, nada tenho
a dizer senão que merecem ser incentivadas e servem, aju­
dadas pela caridade, a estimular as energias individuais.
Mas, ao lado dessas associações oficiais, há outras oficio-

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 109

sas, que me inspiram menos confiança, quando observo as


razões que presidem à sua formação. Um rapaz entra para
a Universidade. Sua primeira impressão, ao chegar, é de
estar "desambientado". Instintivamente procura, entre as
fisionomias novas que observa, se por acaso não encontrará
um conterrâneo. Encontra-se - sempre encontra-se algum,
mesmo no exílio ! - E, se preciso fôr, " inventa-se".
Ei-lo imediatamente, de um dia para outro fazendo
parte de um grupo do qual terá que aceitar os gostos,
as maneiras, o modo de viver ou "de não viver", sem
poder sempre fugir a essas suj eições. Tanto melhor se
o grupo em questão é o que deve ser. Mas se não fôr ?
e é o que acontece muitas vêzes. Em tôrno de si, êsse
estudante encontrará, pois, atrás de fisionomias amigas
os inimigos mais certos do seu futuro. Suponhamos que
êsse rapaz é ingênuo - e quem não o é aos vinte anos ?
- um pouco vaidoso e de caráter fraco. Acontecerá quase
infallvelmente que sua vaidade o fará submeter-se docil­
mente à opinião pública, isto é, à opinião dos camaradas
"emancipados" cujo grupo êle veio aumentar, e principal­
mente dos piores, que têm quase sempre o conjunto de
qualidades que impõem aos espíritos superficiais e às
vontades fracas, isto é, audácia, maneiras decididas, falar
convincente, e gestos de orador que renunciou à santidade
e à devoção. Pouco a pouco, sob a influência dos maus
exemplos, acabará por cauterizar a consciência e aceitará
cegamente, como vida ideal, como vida por excelência para
o estudante, a vida ma! s enervante, mais vazia, mais tôla
que se possa imaginar. Se, por intervalos, a consciência
se revolta de cólera, como vulcão mal extinto, abafará os
gritos, não por gôsto pessoal, talvez, mas por compla­
cência com aquêles que admira - ou que o intimidam -

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1 10 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

chegando a imitá-los servilmente ; a inteligência, o coração


e a própria saúde, todos pagarão ?
Será isso solidariedade, já não direi de cristã0, mas
de homem de bem. Nem é mesmo camaradagem. Ou, se
fôr, é preciso convir que essa é uma triste maneira de
se exprimir. Graças a Deus, não são assim todos os grupos
de estudantes ; nem todos os estudantes que, por infeli­
cidade, são atraídos para grupos semelhantes, chegam
a êsses extremos. Mas, apesar de tudo, o número dêsses
estudantes, que, tendo vindo para a Universidade a fim
de alargar o horizonte da existência, acabam reduzindo-o
completamente, é bastante considerável para j ustificar
êsses avisos e protestos. "Brilhar como brilham os rapazes
que levam a vida de divertimento, escrevia Lord Chester­
field ao filho, é brilhar como brilha a madeira podre na obs­
curidade". 30
Dou margem para tôdas as fraquezas e misérias ine­
rentes à nossa natureza complexa e decaída ; aliás insisti.
Os rapazes que se divertem na grande maioria nunca
refletiram sôbre a direção da própria vida ; são arrastados
como em um turbilhão pelas circunstâncias exteriores à
mercê de todos os ventos das paixões ; e vítimas, às vêzes,
de uma educação malsã, ou pelo menos superficial. Quanto
ao estudante "bem educado" que se perde entre êles, pode
acontecer que no comêço não compreenda o mal. Mas, se
fôr inteligente, não tardará em compreender o engano ;
perceberá o vazio dêsses corações aos quais se deu impru­
dentemente, a ausência de valor dessas inteligências às
voltas com preconceitos absurdos. E, se perceber, pare-

ao Cartas de lord Chesterfield a seu filho, setembro-outu­


bro, 1748.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 111

ce-rne que noblesse oblige. O fato d e haver rapazes com


preconceitos absurdos, não é motivo para - se tenho cons­
ciência dêsse absurdo, - submeter-me à sua maneira de
ver ; sacrificar a liberdade, a saúde, as alegrias fecundas
do trabalho e da virtude, para evitar sarcasmos ou me­
recer admiração !
Por que, pois, na massa dêsses "desencaminhados in­
teligentes" haverá tão poucos que mostrem independência,
procurem fugir a sugestões tão loucas e troquem essa vida
de prazeres fáceis por uma vida de felicidade real ? E'
porque para isso seria imprescindível fazer um esfôrço
vigoroso, derrubar essa muralha de preconceitos, abrir
no meio dos abrolhos e espinhos um caminho praticável,
e o seu egoísmo - a paixão do egoísmo ainda não con­
vertida em virtude - não lhes permitirá isso. Preferem
acalentar ilusões e acreditar que se dã,o aos camaradas,
quando na verdade tomam dêles o que têm de pior. Con­
tanto que se salve a fachada, que importa o interior ! Que
importa tão pouco que se associem para um aniquilamento
moral recíproco, se ao menos dão a impressão de viver !
Só vejo um remédio para essa situação : substituir
a paixão do egoísmo pelo egoísmo virtuoso, pela cari­
dade "bem entendida", que nos salvará, e, salvando-nos,
garantirá a salvação dos nossos camaradas.

IV

A verdadeira solidariedade

Ao lado da falsa solidariedade, imitação do egoísmo


passional, do amor-próprio mal entendido, há lugar inegà­
velmente, para uma solidariedade t•eal, de valor. A ju-

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112 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

ventude - não se pode dizer o contrário - é a idade


das amizades nobres, cuja influência se faz sentir por
tôda a vida. Há, porém, uma condição indispensável para
isso, que é amar os outros com amor espontâneo, generoso,
desin�eressado ; um rapaz deverá começar por se amar a
si mesmo generosamente e com desinterêsse, quer dizer,
deverá subordinar o eu animal ao racional, o animal ao
homem.

SOLIDARIEDADE HUMANA. - Para compreender isso -


que está ao alcance de uma criança - bastará admitir
que não existe oposição, porém harmonia, entre o bem
humano individual e o bem humano social. Sem dúvida,
o bem social é o bem humano para todos, e não só para si ;
mas enfim é, apesar de tudo, o bem humano ; é o ideal
do homem realizado na sua plenitude, a felicidade em tôda
a sua extensão. Certamente, não podemos pretender, cada
um para si, o desenvolvimento completo e regular do nosso
eu racional sem o concurso dos outros, na sociedade de que
fazemos parte. Mas os outros poderão pretendê-lo sem a
nossa colaboração ? Por conseguinte, amando-me devida­
mente, submetendo-me ao que me ditar a consciência, en­
tregando-me com tôda a alma ao cumprimento dos meus
deveres, de todos os meus deveres de homem de bem,
contribuo do meu lado para a realização do bem alheio,
de tal modo que, se todos os outros agirem do mesmo
modo, se todos forem fiéis à sua vocação de homem, estará
obtido o bem social : teremos atingido a organização de
uma sociedade ideal. Tinha, pois, razão de observar que
há um modo generoso de nos amarmos a n ós m8smos, que
é em suma a fonte viva de onde jorra ininterruptamente
o sentimento de uma solidariedade franca e louvável.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 113

Não é tudo. O fato de me amar assim humanamente,


não somente contribuirá para a felicidade alheia, mesmo
que não existisse um sentimento consciente dêsse amor,
mas, se eu amar em mim, na realidade, o homem e não
o animal, a dignidade humana e não a degradaçãQ bestial,
terei naturalmente simpatia por todo aquêle que possuir,
como eu, essa dignidade ; sua imagem, onde quer que lhe
encontre os traços, atrairá o meu amor. Será como en­
contrar-me a mim mesmo, encarnado em outrem ; e amarei
assim aos outros, sem exceção, por serem todos homens,
com as mesmas prerrogativas que eu. Amá-los-ei como
a mim mesmo, embora não para mim, mas para êles ; ou,
melhor ainda, amando-os nem por êles, nem por mim,
mas pela parte de ideal humano que nos envolve a todos
e nos cinge a fronte dessa auréola de esplendor que nos
eleva acima das criaturas e vem a ser o nosso mais belo
título de glória.

SOLIDARIEDADE CRISTÃ. - Engano-me. Acima do ideal


"humano, paira, mais resplandescente e mais completo, o
ideal cristão. A solidariedade humana pede-nos somente
que amemos nossos irmãos em nome da humanidade que
está ao mesmo tempo nêles e em nós ; a caridade cristã
pede-nos além disso que os amemos em nome da divindade
da qual podem participar, como nós. A solidariedade hu­
mana exige que aj udemos os outros a realizar em si
o ideal de homem de bem : a caridade cristã impõe-nos,
como um dever, contribuir para fazer dêles, não somente
homens, mas deuses. A solidariedade humana limita suas
exigências aos horizontes terrestres e visa apenas a vitória
do homem sôbre os impulsos animais ; a caridade cristã
abre-nos as perspectivas do céu e quer que acrescentemos

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114 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

a essa vitória do homem, em nós e em nossos irmãos, o


triunfo de Deus. E is razão de sobra para arrancar um
rapaz inteligente e de boa vontade ao egoísmo vergonhoso
e induzi-lo a amar os companheiros. Se é dêle que se trata
em p:rimeiro lugar, se é sua própria felicidade que está
em jôgo em primeiro lugar, não lhes será difícil transpor
o egoísmo, unir êsse ideal de nobreza a tôdas as paixões,
a todos os sentimentos que o levam a procurar a si mesmo,
e fazer beneficiar seu querer, seu amo1· do bem divino,
de seus impulsos espontâneos.
E' de boa tática, e também os outros lucrarão. Ins­
tintivamente afastar-se-á dos camaradas que tentarem cor­
rompê-lo e tornar-se-á um centro de atividade superior
em tôrno do qual gravitarão outros, menos fortes ou mais
tímidos. Sem excluir ninguém da órbita da sua caridade,
ser-lhe-á permitido escolher, ou criar amizades preciosas,
multiplicar os círculos íntimos. Então se terá êle tornado
um homem de caráter, não somente em todo o vigor,
mas em tôda a extensão do têrmo. Será ao mesmo tempo
senhor de si e dos outros, não com êsse domínio que se
impõe pela violência e que expõe a todos os golpes, mas
com essa autoridade que seduz pelo poder de atração que
prende e encanta a quem se lhe aproxima.

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CAPÍTULO IV

A SENSUALIDADE

Vimos, no capítulo precedente, como urge estabelecer


uma distinção capital entre egoísmo-paixão e egoísmo-vir­
tude. O primeiro é inimigo nato da solidariedade ; o segun­
do, ao contrário, é a sua fonte. Amando-nos de um modo
animal, só amaremos os outros para nós ; ao contrário,
amando-nos de um modo razoável, nos amaremos para
os outros. Cabe a nós a escolha. Por mim, e com o único
fito de facilitar essa escolha, desejaria terminar a segunda
parte dêste trabalho por uma análise, breve, sem dúvida,
mas leal, de uma das formas mais pérfidas e mais debili­
tantes do egoísmo passional. Trata-se da sensualidade, e o
menos que se possa dizer dela é que põe em perigo a pró­
pria vida social, prejudicando as fôrças vivas dos indi­
víduos. Em primeiro lugar procurarei assinalar-lhe a na­
tureza e as causas ; dês se modo será possível compreender
melhor os seus efeitos funestos ; e uma vez êstes conhe­
cidos, será fácil indicar os re médios que se impõem a todo
j ovem preocupado com a dignidade pessoal e a felicidade
alheia.
I

Natureza da sensualidade

Os velhos têm a inocente mania de gabar o tempo


da sua mocidade ; viviam na idade de ouro, enquanto
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116 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

nós vivemos num século de ferro ; laudator temporis acti.


Tenho sôbre os velhos esta vantagem - se fôr uma !
- de só poder falar do meu tempo. Ora, êsse tempo me­
rece elogio e crítica. Seria impossível louvar demais
o fato de ter pôsto em realce e em circulação os
sentimentos humanitários, a dedicação à causa do pró­
ximo. Parece hoj e ter-se apoderado de todos os homens
uma grande onda de solidariedade, a qual contribui para
aproximá-los cada vez mais em grupos compactos e sólidos.
Mas, por uma dessas estranhas anomalias que desorientam
a lógica mais avisada, acontece que, nunca em outra época,
foi o culto do individualismo, a análise mórbida do eu,
levado a maiores extremos do que hoje em dia. Indivi­
dualismo e socialismo - tomo aqui socialismo no seu
sentido mais amplo - aparecem nitidamente como os dois
polos em tôrno dos quais evolve o pensamento moderno.
Daí êsse estado de equilíbrio instável característico das
nossas sociedades e do qual elas serão vítimas. E' inútil
propagar em teoria idéias generosas, combatidas obstina­
damente na prática. Ora, pràticamente, o culto do indi­
vidualismo é a negação brutal das idéias de solidariedade ;
a análise mórbida do eu é um dos males que minam mais
seguramente as tentativas atuais de regeneração social.
São inúmeros aquêles entre os nossos contemporâneos que,
em vez de se observarem para viver melhor, vivem só para
se observar.
Particularmente a juventude está infestada dêsse es­
tado de alma, chamado por um psicólogo muito apreciado
e fino, de "egoísmo emotivo". Assim é que nunca seria
demais preveni-Ia contra êle, contra "êsse perigoso apetite
da emoção, êsse gôsto de complicar sàbiamente o coração,
para aí despertar um novo frêmito, essa tendência para

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 117

uma vivissecção da própria alma por curiosidade, por uma


lassidão precoce e pela incapacidade de experimentar dian­
te da vida impressões frescas e douradouras". 31
São múltiplas as formas que êsse egoísmo emotivo
pode apresentar em um rapaz, algumas ocultas, outras
aparentes. Não falarei dessas vergonhas solitárias que
prejudicam a sociedade apenas por atacar indivíduos .
Lacordaire, referindo-se uma vez aos efeitos do que chama
de sentido depravado, descreve-nos "êsses homens que, na
flor da idade, apenas honrados com os sinais da virilidade,
já apresentam as injúrias do tempo ; degenerados antes
de ter atingido o nascer total do ser, a fronte cheia de
rugas precoces, os olhos vagos e fundos, os lábios incapazes
de sugerir a bondade, arrastam, sob um sol ainda jovem,
urna existência caduca". 32 A experiência prova que, de
fato, não há nada corno o vício da carne para desorganizar
o ser humano e reduzi-lo ao estado de "cadáver".
A par, e, muitas vêzes além dessas vergonhas so­
litárias, existem as vergonhas sociais. Tôdas têm origem
num egoísmo brutal. O rapaz que a êle se entrega, con­
sidera tudo sob o ponto de vista das suas próprias incli­
nações e não faz urna idéia das ruínas que o cercam,
pelas quais é êle próprio muitas vêzes o responsável .
Habituado, com efeito, a só pensar em si, a tudo referir
a si, pouco a pouco perde o respeito às pessoas e calca
aos pés tudo que lhe parece inútil ou oposto à satisfação
dos desejos ou apetites. Muitas vêzes crê amar, porém só
ama a si mesmo ; tem nos lábios a palavra amor, e, no
entanto, já não tem coração. Quanto sofrimento pode um
Sl PAUL BoURGET, P1·éface de l'Accalmie, romance de Pierre
Gérard Francislaur, Paris.
32 LACQRDAIRE, Conf. de Notre-Dame, 1844, 22.a Conf.

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118 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

homem dêsses provocar em tôrno de si ! Com que rapidPz


se apega ou desapega ! Como é incapaz do dom de si e da fé
em outrem". 83
É inútil deter-me aqui a esmiuçar as variadas formas
que g egoísmo emotivo é suscetível de inspirar à sensua­
lidade de um rapaz. São bastantes conhecidas. Dessas
descrições está cheia a literatura atual, ou de outras no
gênero. O mais importante é estudar as causas do vício
impuro cujos efeitos devemos j ulgar para remediar.

II

Causas da sensualidade

CAUSAS PESSOAIS. A primeira de tôdas não é difícil


-

de achar : é o foco de miséria existente em cada um, a febre


de concupiscência herdada de nossos primeiros pais. Aqui
a religião e a experiência estão de acôrdo para clamar
o desespêro da alma prêsa a êsse "corpo mortal". Mas se
essa febre nos mina o temperamento moral, se ninguém
lhe escapa, há, no entanto, na vida dos povos como na
dos indivíduos, dessas épocas de sensualidade mais delicada
ou mais grosseira. Há em particular a crise da juventude.
"No rapaz sujeito ao trabalho da natureza e subtraído
às influências cristãs, a maturidade da carne produz essa
invasão súbita, que Padre Gratry denominou expressi­
vamente "a prova do fogo". A sensualidade desperta e
transborda ; o coração sente como uma fome desconhecida
de desejos ora vagos, ora de uma precisão terrível, espécie
de febre surda a princípio, que em alguns, explode deli-

33 PAUL BOURGET, op. cit.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 1 19

ranternente em certos momentos. Há ocasiões, como diz


energicamente Bossuet, em que todo o ser humano sente-se
apenas carne. Dá-se a abdicação do pensamento em pro­
veito dessa carne cheia de orgulho ; o corpo sufoca a alma,
os sentidos transbordam sôbre o espírito e a lâmpada inte­
rior se apaga - seja momentâneamente, seja, infelizmen­
te, por muito tempo, senão mesmo para sempre. E o sol
moral eclipsado pelo satélite, a inteligência pelo corpo,
a vida psíquica pela vida dos órgãos feitos para servir". 34

CAUSAS SOCIAIS. -A própria crise da mocidade re­


flete, porém, as idéias do tempo e do meio social onde
explode. Quando os costumes públicos agitam sem cessar
o lôdo para o qual a nossa natureza decaída contribuiu,
quando a literatura sob tôdas as suas formas - romances,
teatros, jornais - espalha-o em profusão ; quando a pró­
pria rua, pelas exibições escandalosas de cartazes, foto­
grafias e postais, salpica de lama os transeuntes ; quando
um luxo desenfreado proj eta os raios de sua luz falsa
e os odores estonteantes de seus perfumes artificiais ;
quando, enfim, pessoas tidas como pensando bem fecham
os olhos a todos êsses excessos, ou se contentam, a êsse
respeito, de esboçar um sorriso, que esperar de rapazes
de vinte anos, entregues a si mesmos, sem fiscalização
oficial, podendo tudo ler, tudo ver, tudo ouvir, e respirar
amplamente um ar assim empestado ?
"A revelação antecipada e tôda intelectual do uni­
verso sentimental não ( lhes) permite por assim dizer
esperar pelo coração. As leituras mal dirigidas e incoe-

84 SERTILLANGES, Nos vrais ennemis, Paris, Lecoffre, 1902,


pág. 219.

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120 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

rentes, as conversas não fiscalizadas, uma promiscuidade


escolar impossível de ser controlada por qualquer regu­
lamento ; um nervosismo favorecido por um regime por
demais sedentário, tudo conspira para um despertar pre­
maturo da imaginação, contra o qual só o freio religioso
poderia prevalecer . . . O resultado é achar-se o adolescente
iniciado em todos os ardores, sutilezas, e perversões - con­
fessemos - da vida passional, em urna idade onde apenas
sentiu de fato as emoções de urna existência de colegial". 35
Suponhamos agora que um rapaz, vítima desde o
colégio dessas influências nefastas, uma vez entrado para
a Universidade, caia sob o domínio de um grupo cuja con­
duta segue as máximas correntes, cheias de indulgência
para com o vício impuro, e poderemos então entrever a
derrocada. Ou sofrerá docilmente o ascendente dos rapazes
ricos, não estimulados pela preocupação de ganhar a vida
e estragados pelos hábitos frouxos de casa, que passam
totalmente a adolescência preparando a nulidade da idade
madura ; ou então, por fraqueza, procurará os pessimistas,
os desanimados antes do combate, os preguiçosos de tôda
espécie, os diletantes ingênuos e "blasés", que o aconse­
lharão a nada fazer, arrastando-o para os bares e faci­
litando-lhe tôdas as ocasiões de dissolução.
Tais são, brevemente resumidas, as causas afastadas
e próximas que produzem, nos rapazes de hoje o egoísmo
emotivo aludido, e os entregam indefesos à tirania da
carne. Resta-nos agora anotar os principais efeitos de
semelhante sensualismo, para depois assinalar os remédios
capazes de combatê-lo e impedi-lo de acumular ruínas.

36 PAUL BOURGET, op. cit.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 121

11

Os efeitos da sensualidade

Não se pode negar que a sensualidade, sob tôdas


as suas formas, seja por excelência um vício anti-social.
O valor moral de uma sociedade decorre, com efeito, da
moralidade de seus membros. Se êstes estiverem corrom­
pidos, como poderá a própria sociedade escapar à corrup­
ção ? Zeros acrescentados a zeros j amais poderão formar
um número. Por outra, pode acontecer - e isso se dá
muitas vêzes - depender a corrupção individual de causas
sociais. Já falei das condições da vida moderna que mais
se opõem à educação do caráter. Não é ocasião de voltar­
mos a êste assunto ; mas é manifesto que em nossos dias
se multiplicaram, em proporções assustadoras, as causas
sociais de corrupção individual. Ora, analisando as prin­
cipais dentre elas, chama-me a atenção e aflige-me o fato
de decorrer o "mal moral" provocado, mais dos nossos
progressos do que dos nossos recuos.
A fôrça, por exemplo, de exaltar a ciência e de atri­
buir-lhe um fim exclusivamente utilitário, acabamos por
considerá-la um instrumento maravilhoso de prazer, uma
fonte inesgotável de gôzo. Com isso deslocou-se o eixo
da moralidade. Sem dúvida, nunca se falou tanto quanto
hoj e em c1esinterêsse, altruísmo, solidariedade ; não há
orador de "meetings" ou de reuniões públicas de caráter
oficial, que se ache dispensado de fazer alusão a êsse
assunto, sobretudo nas horas em que as fórmulas e ::-tereo­
tipadas e as palavras retumbantes, mas ôcas, são capazes
de impressionar as massas. Se, no entanto, observarmos
de perto, se de leve erguermos essa máscara humar itária,

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122 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

ficaremos assustados pela sorna de egoisrno que ela enco­


bre. Não chego a querer afirmar que tudo é sinceridade
ou falsidade nesses protestos de amor e dedicação para
com o próximo, que se erguem de todos os pontos da
socied�de, ao mesmo tempo ; quero mesmo crer na since­
ridade da maioria. Quantas ilusões, porém, e quantos im­
pulsos generosos despendidos em pura perda por aquêles
mesmos - e formam legião - que anulam na. p1·ática
aquilo que mais parecem prezar em teoria! Volto freqüen­
temente a esta idéia, perdoe-me o leitor e permita-me
mostrar ainda urna vez o seu valor e alcance, falando
principalmente dos efeitos anti-sociais do egoísmo sensual,
e dos remédios possíveis.

EFEITOS Físicos. - De corpo e alma somos devedores


à sociedade ; ela tem o direito de contar com tôdas as
nossas fôrças e de pedil· que não as desperdicemos. Ora,
a sensualidade é um verdadeiro desperdício de fôrças ; não
há vício que mais seguramente mine o corpo, diminua a
inteligência, e com mais rapidez endureça o coração. A sen­
sualidade é, pois, na verdade, um vício anti-social. Deve­
mos notar, em primeiro lut5ar - em matéria tão delicada
nunca se poderá falar com precisão demasiada - que
há sensualidade e sensualidade. Por enquanto, não me
refiro a essas descaídas individuais e passageiras, devidas
sobretudo ao nosso temperamento físico, à natureza decaí­
da e mesmo ao meio em que vivemos, que uma alma nobre,
com um pouco de energia e habilidade pode fàcilmente
reduzir ao mínimo, ou mesmo impedir totalmente. A sen­
sualidade que agora combato é esta à qual um rapaz se
entrega quase sem luta, ou que cultiva por ela própria,
não lhe poupando satisfação alguma, espécie de verme

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 123

impuro que ataca de preferência as flôres apenas desa­


brochadas, bebe-lhes sorrateiramente a seiva e lhes devora
o talo. E' suficiente observar quais são as vítimas. Apesar
de todos os artifícios empregados para atenuar o seu
descalabro aos olhos dos outros, fàcilmente são reconhe­
cidos pelo corpo enfraquecido pelos excessos de gôzo, pelo
andar sem energia, pela fisionomia sem nobreza, e pelo
olhar sem limpidez.
Que pode esperar a sociedade de semelhantes refor­
ços ? Só a podem prejudicar, em primeiro lugar privando-a
de um capital de energias individuais que lhe são estri­
tamente devidas, em seguida legando-lhe - por conta -
apenas um sangue empobrecido, em corpos de crianças de
antemão condenados a tôdas as ignomínias. Pois, pergunto
eu, a quem êsses rapazes sensuais oferecerão um dia seu
corpo em ruínas, cansado de luxúria ? Talvez a uma espôsa
que, como por milagre, tiver escapado ao contágio geral ;
e então, é horrível pensar que esta fôrça será neutralizada
por fraquezas tais. Se, ao contrário, escolherem uma es­
pôsa igualmente vítima dos mesmos costumes, é fácil en­
trever qual será o resultado dessa união de "corpos mor­
tíferos" num esfôrço de vida : nenhum filho, ou então - o
que é ainda pior - pobres pequenos sêres aos quais o vício
impuro, como um vampiro, terá de antemão sugado o san­
gue, empalidecido a face, amortecido o olhar. Fale-se, pois,
de regeneração social a homens para os quais, voluntà­
riamente a vida não passa de um longo suicídio, e que
assim se resignam, todos os dias, a morrer à custa dos
outros, com a condição de poderem viver para si !

EFEITOS INTELECTUAIS. - Não são menos deploráveis


os efeitos intelectuais da sensualidade. Não será preciso

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124 A EDUCAÇ.�O DO CARÁTER

repetir aqui que a satisfação dos sentidos é feita à custa


do espírito e que a vida dissoluta do corpo destrói por sua
vez as energias da alma. Para expandir-se, a inteligência
necessita da tranqüilidade da carne, do equilíbrio das fun­
ções, da pureza e do frescor do sangue, do repouso dos
nervos. · Quando considero o corpo nas suas relações com
a inteligência, da qual êle é o instrumento natural, não
posso impedir-me de pensar nas harpas eólias, que os
antigos penduravam nos ramos dos salgueiros e que vi­
bravam ao sôpro da brisa frêsca das manhãs de abril ou
do zéfiro tépido das tardes de outono. Se está tudo calmo
em derredor, se a carne não está sacudida pela paixão,
nem o sangue viciado, nem os nervos demasiadamente
tensos, então a inteligência poderá, como um vento leve
passando pelas inúmeras fibras dêsse maravilhoso instru­
mento, fazer soar acordes cheios e agradáveis cuja sua­
vidade e plenitude compensam amplamente da agrura e do
vazio dos sons sensuais. Se, ao contrário, o corpo fôr sa­
cudido pelo sôpro violento da volúpia, nesse caso os mi­
lhares de fibras sensíveis - tais como as cordas delicadas
de uma harpa sob um vento de tempestade - se torcem
e se rompem ; a inteligência não consegue tirar nem o
mais leve som.
Os gozos corporais não são, portanto, compatíveis
com as alegrias intelectuais ; além do mais, quem repousa
na carne, é incapaz de t1·a balhar com o espírito. A carne,
com efeito, só encontra repouso nas excitações sensuais
de tôda espécie, ao passo que, para trabalhar, o espírito
precisa de uma atmosfera de paz. "O rapaz que, de volta
de uma noitada, entra no seu modesto quarto de estudante,
vem com a imaginação perturbada : o contraste dessas

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 125

luzes, danças e vestuários provocantes com o seu modesto


quarto de trabalho é mortal par aa saúde do seu espírito.
Não há, para êle, impressão mais desanimadora, pois não
foi habituado a fazer a crítica dêsses supostos prazeres.
Nunca se compenetrou dessa verdade que, apesar de rico
ern fôrças e ilusões, é incapaz de ver a realidade. Com a
imaginação, compõe o mundo exterior e os personagens
que nêle faz mover, e essa alucinação é tão viva a ponto
de se interpor entre êle e a realidade que ela oculta. Não é
para admirar-se que, como contraste, a vida tão calma,
tranqüila, livre e verdadeiramente feliz que leva, lhe pareça
insuportàvelmente monótona e triste". 30
Quantos desanimados a vida de prazer produziu entre
os rapazes ! Entraram para a Universidade com belas es­
peranças e enorme provisão de boa vontade. O futuro
sorria-lhes. Seriam algum dia homens de ciência que fa­
riam honra à sociedade e portanto à pátria. Tudo correu
bem um ano, dois talvez ; depois, pouco a pouco, o ardor
foi se relaxando. Depois de ter tudo dado à inteligência,
não teria o corpo também direitos ? Por todos os lados
foram solicitados, e cederam. No comêço, procuraram so­
bretudo evitar excessos ; mas a paixão alimentada dia a
dia, mesmo em doses infinitesimais, desafia todos os cál­
culos ; é o cancro que invade o corpo e acaba por devorá-lo ;
é a torrente que, lentamente vai separando as pedras do
dique e acaba carregando tudo por água abaixo. Assim
foram êles arrastados ; a carne tomou os seus supostos
direitos sôbre o espírito e, em vez de rapazes sãos, labo­
riosos, inteligentes, de cujos talentos reais a pátria tinha

ao PAYOT, op. cit., pág. 207.

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126 A EDUCAÇAO DO CARÁTER

o direito de esperar, temos agora diante de nós "frutoz;


secos", isto é, corpos gastos antes do tempo, inteligências
obscurecidas, vontades enfraquecidas, corações mirrados.
Pois a sensualidade não se contenta em degradar o corpo,
estiolar a inteligência e arruinar a vontade, também seca
o coração e o enruga como uma fôlha morta.

EFEITOS MORAIS. -"Eu declaro, exclamava Lacor­


daire, que nunca encontrei ternura de coração em um
rapaz dissoluto. Almas capazes de amar, só as encontrei
entre as que ignoram o mal, ou lutam contra êle. Uma vez
adquirido o hábito de emoções violentas, corno poderá o
coração, planta tão delicada, que se alimenta de gotas de
orvalho caídas cá e lá do céu para êle ; que se abala com
leves sopros, que fica feliz durante dias pela simples lem­
brança de uma palavra, de um olhar, da animação caída
dos lábios de uma mãe ou da mão de um amigo ; o coração
cujo pulsar é tão calmo, de natureza quase insensível,
devido à sua própria sensibilidade e de mêdo de que se
rompesse por uma só gôta de amor, se Deus o houvesse
feito menos profundo ; corno digo, poderá o coração opor
seus doces e frágeis gozos aos prazeres grosseiros do
sentido depravado ? Um é egoísta, o outro, generoso ; um
vive de si, outro fora de si ; entre estas duas tendências,
urna deverá prevalecer. Se vencer o sentido depravado, o
coração irá se abatendo pouco a pouco, não sentirá mais
a fôrça das alegrias simples, não se sentirá mais atraído
pelos outros e acabará por pulsar somente para movimen­
tar o sangue e marcar as horas dêsse tempo vergonhoso,
cuja fuga é precipitada pela vida dissoluta". 37

37 LACORDAIRE, Conf. de Notre-Dame, 1844, 22.a Con.f.

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 127

IV

Os remédios para a sensualidade

A êsse respeito, lembremo-nos do que jâ tantas vêzes


verificamos : O 1·emédio encontra-se no seio do próprio
rnal. O mal, com efeito, na sensualidade, provém imica­
mente de nos amarmos mal. Para remediar, será pois
necessário, não odiar-nos, mas nos amarmos convenien­
temente. Que quer isso dizer, senão que devemos amar
em nós o que eleva e não o que avilta, o homem e não
o animal, e o cristão ainda mais do que o homem ?

A SENSIBILIDADE.- Não é proibido amar o nosso corpo


e sim amá-lo em prejuízo da alma. Suponhamos, porém,
um instante, que nos seja permitido ter por êle um amor
exclusivo, sem levar em conta a subordinação necessária
das exigências da carne às leis do espírito. Mesmo nesta
hipótese absurda, não está provado ser o egoísmo sensual
a última palavra da sabedoria. O próprio Epicuro ensinava
que é mais sábio preferir os prazeres delicados e duráveis
aos violentos e passageiros da luxúria. De tal modo que
o amor bem entendido do corpo, encarado em si mesmo,
j á condena em absoluto a sensualidade.
Que dizer então quando, em vez de considerar o corpo
como uma realidade independente, com vida própria, nós
o consideramos nas suas relações com a alma ? Sob êsse
ponto de vista, é claro, mesmo os prazeres corporais legí­
timos, os que se prendem à saúde física, à harmonia dos
órgãos, à fineza e à complexidade das impressões nervosas,
não têm finalidade própria ; são subordinados às alegrias
superiores da inteligência e do coração. Daí tudo aquilo
que, nesses prazeres, fôr, de natureza a corromper

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128 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

essas alegrias ou a prejudicá-las deve ser afastado impie­


dosamente. Já não se trata, para um rapaz, de tudo ver,
tudo ler, tudo ouvir, tudo fazer ; porém de só fazer, ouvir,
ver e ler o que fôr capaz de lhe nobilitar a inteligência
e dilatar o coração.

CULTURA INTELECTUAL. - Nosso dever de cristão e


de homem de bem é, inicialmente, desenvolver a inte­
ligência : é a condição da perfeição humana. Não temos
todos uma vocação intelectual de modo a cultivar o estudo
pelo estudo, é certo ; todos, no entanto, temos a vocação
de ser tão inteligentes quanto possível. Se o estudo não
tem para nós um atrativo em si, pelo menos podemos
orientá-lo em vista de um futuro honrado. Não há estu­
dante que não tenha essa ambição ! Já é um bom remédio
para a sensualidade. E' que a ambição tem a particulari­
dade de atrair as energias próprias a fecundá-la e de
repelir as outras. Um rapaz que, por ambição, procura
ser casto, forçosamente se apega à castidade, quando lhe
tiver provado o encanto indizível.

CULTURA MORAL. -- Não devemos, porém, ser castos


com o fim de cultivar a inteligência ; devemos sobretudo
ter por fim dilatar o coração. Um homem de bem, na
verdade, e com maior razão um cristão, deve ser essen­
cialmente um homem bom, isto é, cuja bondade só tenha
os limites atribuídos pela razão e pela Fé. Ora, se não há
nada como o amor desinteressado dos outros para extin­
guir em nós o amor interessado de nós mesmos, acrescento
logo a seguir, para completar o meu pensamento : nada,
tampouco, como o amor casto e desinteressado de nós mes­
mos será capaz de nos fazer amar os outros com desin--

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AS PAIXÕES E O CARÁTER 129

tetêsse. Nessas condições servimos a êles em vez de nos


servir dêles ; amamo-los por êles mesmos em vez de amá-los
para nós. Há pouco referi-me à espôsa que um dia terá
lugar no lar. Sei de rapazes que se conservaram castos
pelo respeito antecipado que lhe tinham, pelo amor desin­
'
teressado que já lhe haviam votado. Isso não basta a um
cristão para lhe tornar meritória a castidade ; porém se­
melhantes motivos, em um coração sincero, levam-no len­
tamente para o ideal supremo que se impõe à atividade
total e que, por virtude própria a purifica.
Ainda uma vez, não somos anjos e precisamos nos
resignar. Mais vale, penso eu, atingir a Deus por c.a­
minhos indiretos que chegam até Êle, do que renunciar
a vencer de um pulo, em linha reta, a distância que dêle
nos separa. E' nesse sentido que o amor dos homens, de
todos aquêles que são nossos irmãos em humanidade e
em divindade, pode conduzir-nos ao amor de Deus. Pode­
mos ser do nosso tempo, procurando seguir a corrente
atual de solidariedade amando os outros pela parte de
humanidade que nêles existe como em nós e, depois, acabar
por nos elevarmos acima do nosso tempo, amando-os, além
disso, pela parte de divindade que os envolve como a nós.
Daí ao amor de Deus sôbre tôdas as coisas há apenas
um passo e, uma vez dado êste, ficaremos salvos. Pois,
amando a Deus com perfeição, amaremos os outros e nós
mesmos por Êle. Desceremos com segurança a encosta
galgada com dificuldade ; tendo provado uma vez as ale­
grias celestes, apreciaremos no seu j usto valor as alegrias
terrestres ; perto do céu, a terra nos parecerá pequena
demais ; a nostalgia das alturas há de curar a atração dos
abismos. Assim faz o viajante, quando o amor da monta­
nha o fêz escalar os picos. Sübitamente, alargou-se-lhe a

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130 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

vista ; o céu tornou-se mais profundo e o horizonte sem


limites. A seus pés estendem-se as colinas e florestas si­
lenciosas. Ouve subir das cidades como que um murmúrio
de vozes humanas. Nesse momento, indizível alegria in­
vad�-lhe o coração, alegria de estar por um instante desa­
pegado das mesquinharias da terra, e, nesse sublime iso­
lamento, poder dominá-la tôda num olhar.

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TERCEIRA P ARTE

A AÇÃO E O CARATER

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CAPÍTULO I

O HABITO

Eis-nos bem informados a respeito da importância do


Ideal e das Paixões, na educação do caráter. Com energia
e habilidade, a vontade pode unir pràticam e·nte as emoções
passionais e sentimentais do ideal cristão, de modo a avi­
var e fortificar em si mesma o próprio amor dêsse ideal,
e estabelecer o seu absoluto domínio sôbre todo o campo
da sensibilidade. Infelizmente, a educação do caráter não é
trabalho de um dia, mas obra de longo fôlego. Não basta
saber que podemos servir-nos das paixões e dos nossos
melhores sentimentos para conformarmos a conduta de
cada dia ao ideal de vida que se nos impõe ; importa utili­
zá-los em realidade, e com ]Jersistência. Como consegui-lo ?
Pela ação. Esta pode ser dupla : natU?·al e sobrenatural.38
"A ação natural tem por fim criar em nós sólidos hábito.'l

38 Muitos críticos impressionaram-se com essa distinção que


estabelecemos aqui entre ação natu1'al e ação sobrenatural. Levam
para a prática a distinção, que , pelas necessidades da análise, esta- ·
belecemos na teoria. Na prática o homem de bem e o cristão não
passam de um só. Mas assim como, no Ideal c1·istão se pode distin­
guir um aspecto humano e um aspecto divino, também quando se
trata da realização dêsse ideal, a ação cristã tem um aspecto natural
e um aspecto sobrenaturaL Os dois dependem da graça, mas de um
modo diferente.
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134 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

morais, os quais, uma vez adquiridos, irão facilitar-nos a


tarefa e torná-la agradável. A ação sobrenatural, por sua
vez, com tudo o que compreende, a graça, a oração, a práti­
ca dos sacramentos, o exercício da caridade sob tôdas as
suas formas, ser-nos-á precioso auxílio, pois, sem dúvida,
a graça não destrói a natureza, mas a apPrfeiçoa ; não
diminui o homem, mas o torna maior ; não ü enfraquece,
mas o fortifica. Por enquanto, vamos nos deter apenas sô­
bre o papel da ação natural na educação do caráter, para
mais adiante tratar e desenvolver o da ação sobrena­
tural".39
O fim da ação natural é, portanto, a aquisição de sóli­
dos hábitos morais, os quais, reunidos inteligentemente em
tôrno do eixo da vontade, farão de nós homens de caráter.
Que é um hábito moral, e em que consiste, ao certo, a sua
moralidade ? Tentarei responder a essas duas questões pre­
liminares.

A natureza do hábito

Todos sabem o que se entende em geral pela palavra


"hábito", isto é, uma tendência, adquirida pela repetição
de certos atos, a reproduzir outros análogos, com facilida­
de e prazer. Daí, o hábito moral será apenas a tendência
a reproduzir fácil e agradàvelmente atos morais, pelo sim­
ples fato da repetição. Para bem fazer compreender esta
definição, bastará indicar o mais claramente possível a
razão de ser do hábito no organismo moral.

111 Cf. La Virilité chrétienne, Desclée De Brouwer et Cie.

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A AÇÃO E O CARÁTER 135

RAZÃO DE SER. - Tornemos uma criança na idade da


razão, no momento preciso em que sua qualidade de cristão
a obriga à prática de atos conformes às regras humanas e
divinas que os prescrevem. Seu estado de alma não é tão
simples como se poderia supor à primeira vista. Não me
refiro à fraqueza da pequena inteligência que, apenas aber­
ta à verdade, não compreende senão o que pode, o suficien­
te talvez para os primeiros passos na vida, porém necessi­
tando que a observem a cada passo. Falemos de preferên­
cia da vontade. A vontade de urna criança é algo de muito
fraco e delicado. Tendo ficado por longos anos como domi­
nada pela sensibilidade, a muito custo consegue libertar-se.
Não fica paralisada, porém adormecida. Ora, como para
desenvolver as pernas é necessário andar, do mesmo modo
a vontade precisa querer. E' à fôrça de querer, isto é, de
praticar atos de �;o n tade, que se adquire vontade.
Não pemcmos que uma criança, pelo fato de ser j o­
vem, e de a vida não lhe ter ainda marcado suas taras,
esteja em estado de puro espírito, onde a vontade do bem
divino não encontre resistência alguma. Seria supor que a
vontade lhe fôsse concedida já formada ao nascer ; que os
sentidos, por natureza, fôssem orientados para Deus. Ora,
vimos que isso não se dá. A vontade de uma criança só
se forma com o tempo, à custa de repetidos esforços sôbre
si mesma e de atos enérgicos, m ultiplicados indefinida­
mente. Do mesmo modo as fôrças sensíveis só aceitarão o
j ugo de um ideal austero, como o ideal cristão, se tiverem
sido longamente preparadas para a vontade ; pois a educa­
ção moral da sensibilidade é antes de tudo uma questão de
exercício e de docilidade voluntária. Não ignoro a existên­
cia de crianças cujas virtudes de t emperamento favorecem
muito a educação moral. Constituem, porém, exceção. Além

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136 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

disso, mesmo as mais favorecidas não estão dispensadas


de agir. São coisas distintas não ser levado ao mal graças
a uma natureza bem dotada ou ser levado ao bem à custa
de vontade e de energia. Há pessoas que se conservam
virtuosas por serem incapazes do vício e, outras, que adqui­
rem à virt u d e, apesar d as tendências para o vício. Estas
são caractm·es, as outras, não. De tudo isso concluo que
uma criança, na idade em que deve agir segundo a razão
e a fé, acha-se em estado patente de inferiorid rde, j usta­
mente pelo fato de ser criança. Quem a fará sair dêsse
estado ? Quem lhe cortará uma a uma as amarras sensíveis
que a prendem à terra, e assemelham sua alma a um balão
cativo, incapaz de alçar o vôo ? A vontade, mas vontade que
age, que não repousa um instante das obrigações e que,
sem nervosismo nem cansaço, lenta mas seguramente, ali­
menta-se, fortifica-se dos próprios atos.
Dá-se com a educação do caráter o mesmo que se dá
com a instrução. "Quando uma criança não põe em prática
uma regra de gramática, observa Kant, pouco importa que
a repita, não a sabe. Sabê-la-á infalivelmente aquêle que a
aplique, embora não saiba repeti-la . . . O melhor meio de
compreender é fazer. Aquilo que se aprende mais solida­
mente e se guarda melhor é o que se aprende à própria
custa". Pouco valerá a uma criança saber dizer de cor o
catecismo moral, se não puser em prática as regras pres­
critas. Conheço "prêmios de instrução religiosa" que mais
tarde se tornaram sectários famosos. As regras morais
mais bem sabidas são as que se praticam ; um homem ver­
dadeiramente casto está mais informado sôbre a castidade
· -·mesmo E e fôr analfabeto - do que um escritor de gênio,
porém dissoluto, que disserte longamente sôbre o encanto
incomparável de uma virtude que não possui. A ação tem,

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A AÇÃO E O CARÁTER 137

pois, importância capital na educação, importância supe­


rior à de todos os tratados, por mais bem pensados e escri­
tos que sejam. Ora, "se é sob a forma de recordações que
se deposita na memória (da criança) urna parte do traba­
lho que realiza, é sob a forma de hábitos ativos que se de­
posita ( nela) a atividade. Nada se perde na vida psicoló­
gica ; a natureza é um registrador minucioso. Os atos mais
insignificantes na aparência, mesmo com poucas repetiçõe�,
formam com as semanas, os meses e os anos, um total enor­
me que se grava na memória sob a forma de hábitos indes­
trutíveis. O tempo, aliado tão precioso da nossa liberta­
ção, trabalha contra nós com a mesma obstinação tran­
qüila, quando não o obrigamos a trabalhar por nós. Utili­
za êle, em nosso favor ou contra nós, a lei dominante da
psicologia, a lei do hábito. Soberano e seguro da vitória,
o hábito avança insidiosamente, sem se apressar. Dir-se-ia
conhecer a prodigiosa eficacidade das ações lentas e repe­
tidas indefinidamente. Realizado uma vez o ato, mesrnc
penoso, a repetição custará menos. Na terceira e na quartf.
vez, o esfôrço ainda será notável, mas irá se atenuando até
desaparecer ! Êsse ato, a princípio penoso, pouco a poucCl
se transformará em necessidade e, se fôra francamentl"
desagradável no início, a sua não-realização é que se to!"­
nará penosa".40
No fundo, a razão de ser do hábito moral é rernedial:'
a fraqueza natural das noRsas faculdades ativas, decup]i ..
car-lhes a energia, lançando-nos dêsse modo no bem, come
se fôsse natural. Nesse sentido o hábito é verdadeiramenb
urna segunda natureza. Mas, enquanto recebemos já nror -

40 PAYOT, op. cit., pág. 135 S.

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138 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

ta a nossa primeira natureza sem a menor cooperação de


nossa parte o hábito é trabalho exclusivamente nosso ;
adquirindo-o, somos os criadores de nós mesmos. E isto me
leva a falar do grau de moralidade dos hábitos morais.

II

Moralidade do hábito

Houve filósofos que contestaram a moralidade dos há­


bitos morais. Pode parecer um paradoxo ; no entanto, o
fato aí está, incontestável. Se a virtude é o hábito de pra­
ticar o bem, disseram, acabará por ser uma espécie de
rotina de onde ficará excluída a liberdade.
Diminuindo o esfôrço, diminui também o mérito, e a
moralidade dos atos ficará comprometida. Conclusão :
adquiramos bons hábitos o menos possível. Eis-nos ainda
uma vez em face dessas teorias livrescas contra as quais
nunca seria demais insurgir-nos, tal a sua influência debi­
litante na prática. E' verdade que um ato virtuoso é tanto
mais meritório, quanto mais exige esfôrço e é produto da
liberdade. Mas não é êsse o caso. Ao contrário, trata-se de
saber se é possível a um homem de boa vontade, persegui­
do pelo dever incessante e impiedoso, despender a cada mo­
mento da existência, sem se cansar nem desanimar, a mes­
ma sorna de esforços que precisou empregar no início da
vida moral. A esta pergunta a experiênc:a comum respon­
de sem hesitar : não é possível. Para sustentar o contrário,
será preciso ter perdido o senso da realidade ou nunca ter
precisado lutar contra um temperamento indócil, reagir
contra paixões violentas, vencer certas tentações e apro­
veitar certas circunstâncias. A simples perspectiva de re­
começar continuamente a luta, nas mesmas condições, sem

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A AÇÃO E. O CARÁTER 139

nunca retomar o fôlego, bastaria para desanimar os mais


corajosos.

0 HÁBITO E A LIBERDADE. -Na opinião dos melho­


res psicólogos, o bom hábito adquirido pessoalmente, em
vez de diminuir a liberdade, aumenta-a. "Fala-se sem ra­
zão, escreve um dêles, como se o bom hábito substituísse o
efeito moral, único meritório, por uma virtude automática
sem valor, espécie de rotina útil e feliz. Dá-se justamente
o contrário. Essa infalibilidade adquirida, ou antes con­
quistada, é o grau mais alto do mérito, a mais alta libel'­
dade." 41 Repitamos ainda : ninguém é livre se não o mere­
ce. Ora, adquire-se justamente o mérito pelo hábito mora l.
:J!:ste é realmente a mola da nossa atividade livre, por tôda
espécie de razões, sendo a principal que êle é adquirido
por atos voluntários repetidos incessantemente, e que en­
tão, sob seu impulso benfazejo, cada dia adquirimos maior
domínio sôbre nós mesmos, meta ideal para a qual deve
tender a educação do caráter.
Talvez objetem que, pelo fato de diminuir o esfôrço.
o hábito diminui a consciência ; eis-nos forçados a uma prá­
tica instintiva, maquinal, do dever. A objeção não é novft
e, para responder, não chegarei a sustentar com alguns qu�
êste deve ser o fim a visar na educação do caráter, e quP
a educação só estará completa quando o consciente se tor.
nou inconsciente, isto é, quando se chegou a manusear f'
teclado das virtudes, de olhos fechados, como um artist.�
dedilha em seu instrumento ; que as qualidades do caráter .
vontade, perseverança, ini ciativa, etc., não são filhas d P
raciocínios abstratos e não s e aprendem nos livros ; que só

u M.ARION, La. Solidaritá morale, Paris, Alcan, pág. 106.

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14'0 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

se fixam quando - hereditárias ou adquiridas - se tor­


naram hábitos inteiramente livres da esfera do raciocí­
nio . 42
Na verdade, a moral que discute é uma pobre moral,
e o escrupuloso, por exemplo, que passa a vida a sondar
as menores ações é, muitas vêzes, o contrário de um homem
de ação. Estamos longe, no entanto, de afirmar que a prá­
tica conscienciosa do dever deve finalmente chegar a eli­
minar a consciência do domínio da moralidade. A própria
complexidade da vida moral o impede. Se os atos de virtu­
de se nos apresentassem sempre da mesma maneira, sob
o mesmo aspecto e nas mesmas circunstâncias, seria possí­
vel esperar, depois de dez ou vinte anos de prática, agir
cegamente, maquinalmente. Não é assim, porém. Não so­
mente de um dia para outro, mas de uma hora para outra,
há mil maneiras, para o mesmo indivíduo, de praticar a
prudência, a j ustiça, a caridade, a fôrça, a temperança,
a castidade, a humildade. Os caminhos do dever cruzam-se
ao infinito. E' impossível nêles se aventurar - como em
cada fôlha da floresta - pode esconder-se uma serpente,
e o fato de ter escapado a seu bote durante vinte anos,
não constitui uma garantia absoluta para o futuro. Não
há, pois, um instante ela vida onde, ao mesmo tempo que
o hábito exerce sua atividade, a consciência fique dispen­
sada de velar. O teclado das virtudes é diferente elo teclado
dos instrumentos ele música ; não tem um número deter­
minado de notas, nem de escalas. Sem dúvida, o fato de
ter feito soar �corcles harmoniosos desde a tenra infância
dá uma facilidade admirável ; mas sendo inesgotáveis as
combinações, o estudo não deve ser interrompido. Eis por

42 G. LE BoN, op. cit., pág. 204, s.

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A AÇÃO E O CARÁTER 141

que a educação do caráter é obra de tôda a vida. Nunca


os santos, que são os grandes artistas na ordem moral,
deixaram de ser vigilantes ou de acuinular esforços para
diminuí-los, aumentando sempre seu mérito. Concluo, por­
tanto, que o hábito moral equivalente à virtude, é o mais
alto gra u do mérito, assim como é, também, a mais alta
liberdade.

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CAPÍTULO li

AS LEIS DO HÁBITO

Não basta enunciar de um modo geral, como muitos


psicólogos, que o hábito se adquire por meio de atos, e que
o seu desenvolvimento está na razão direta da repetição.
Importa antes saber a que leis se subordina, a fim de
obter todos os seus efeitos. Ora, essas leis são de duas
espécies, segundo dizem respeito à higiene da alma, ou lhe
regulam o exercício das faculdades. Desejaria consagrar
êste capítulo ao seu estudo nesse duplo ponto de vista. Não
há assunto ao mesmo tempo mais importante e mais inte­
ressante, mas, devo acrescentar, não há outro mais des­
prezado. Não será demais, pois, insistir um pouco nêle.

Higiene da alma

HIGIENE FISIOLÓGICA. - Bem compreendidas e bem


observadas, as leis da higiene do corpo são próprias a
conservar a saúde física ; o mesmo se dá com as leis da
higiene moral em relação à saúde da alma. Assim como
se pode definir a saúde do corpo como o equilíbrio das
funções fisiológicas, não vejo inconveniente em definir a
saúde da alma como o equilfbrio das funções morais. Nes-
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A AÇÃO E O CARÁTER 143

sas condições, basta lançar os olhos sôbre o modo de se


aplicar as leis da higiene corporal para garantir ao nosso
temperamento físico o equilíbrio das funções, e assim per­
ceberemos qual atitude devemos assumir, higiênicamente
falando, se pretendemos preservar a saúde da alma. Não
tenciono fazer um curso de higiene ; a maioria. dos meus
leitores poderiam ensinar-me. Visto, porém, que só pode­
mos avaliar a vida da alma por meio de analogias com a
vida do corpo, vejo-me obrigado a entrar em certos porme­
nores relativos ao bom funcionamento da vida orgânica,
para indicar em que condições as faculdades da alma pode­
rão funcionar bem. Ora, se formos crer nas sumidades da
ciência, a saúde do corpo depende, antes de mais nada, do
equilíbrio das duas funções seguintes : a respi1·ação e a
nutrição. Não há vigor físico sem a assimilação, pelos pul­
mões, de um ar puro, pelo estômago, de alimentos sãos.
À primeira vista, seria possível crer que nada é mais fácil
do que proporcionar ao corpo êsses "princípios de vida"
necessários. No entanto, assim não é. Sem dúvida, não nos
faltam nem o ar puro, nem os alimentos sãos, porém somos
nós que, na maioria das vêzes, faltamos às leis de higiene
para alcançá-los. Um estudante acha-se no seu quarto cujas
janelas, suponho, não tenham sido abertas desde a véspera.
Assenta-se à mesa de trabalho. Ao cabo de pouco tempo,
tem a impressão de que não está bem, falta-lhe ânimo ;
a cabeça lhe pesa, o sangue está aquecido. Que fazer ? Bas­
taria talvez abrir as j anelas durante alguns minutos para
renovar o ar viciado . . . Mas abrir uma janela quer dizer
incomodar-se, interromper a leitura de um j ornal diver­
tido, de um romance sedutor, de uma tese de exame muito
árdua, ou suspender algum sonho sentimental que agrada
mais do que o ar puro para os pulmões. O estudante indis-

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14'4 A EDUCAÇJ.O DO CARÁTER

posto prefere, porém, não se incomodar, ou então, se -o faz,


será para ir passear e perder o tempo precioso com ninha­
rias. Teria sido tão simples, no entanto, proporcionar-se
um pouco de ar puro. O corpo teria lucrado, a inteligência
teria despertado e a vontade, sobretudo, teria ganho em
'
firmeza por êsse esfôrço para vencer a indolência natu­
ral. Mas, desprezamos o que é simples ; desdenhamos, por
serem pequenas, essa multidão de ações que fazemos cente­
nas de vêzes por dia, quando desej amos de coração pôr um
temperamento são a serviço de uma alma sã : m,ens sana in
corpo1'e sano. No entanto, seria bom pensar, a saúde do
corpo, assim como a da alma, dependem disso.
Falei da higiene da respiração ; o mesmo se pode dizer
da higiene alimentar. Todos os que se ocupam especial­
mente dessas questões, concordam em que se come e bebe
demais e que o trabalho enorme dos órgãos na assimilação
prejudica o organismo, chegando a ter uma ação debili­
tante até sôbre a vida intelectual e mesmo moral. Seria
preciso, então, adotar o regime "vegetariano", fazer parte
de sociedades de abstinência, limitar-se às bebidas chama­
das higiênicas. Eis remédios violentos que não se impõem
forçosamente a todo mundo e, além do mais, é um ideal
pouco atraente, em particular para os rapazes.
A meu ver, há remédios mais necessários, com os
quais não se preocupam mesmo aquêles que preconizam
os "grandes remédios". Consistem em observar-nos todos
os dias sôbre o nosso modo de comer e de nos distrair ; em
levar em conta o estado geral da saúde, o trabalho intelec­
tual que devemos realizar, ou ainda o repouso de que neces­
sitamos. Eis uma suj eição que não se coaduna com a nossa
vontade preguiçosa. Não gostamos de "viver com regime",
mesmo no sentido mais amplo da expressão, pois custa à

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A AÇÃO E O CARÁTER 145

ri ossa inércia e significa o opósto de se ir vivendo. Ora, aos


.
vinte anos gosta-se de "ir vivendo", sob a influência do
ardor do temperamentó, da despreocupação do dia seguin­
te, dos companheiros de prazer, dos milhares de circuns­
tâncias da vida social, que parecem autorizar tôdas as
licenças, em detrimento da higiene mais elementar. ·

HIGIENE MORAL. - Se agora passarmos do terreno


fisiológico para o moral, encontramos os mesmos precon­
ceitos. Mais do que o corpo, a alma precisa respirar uma
atmosfera pura e nutrir-se de alimentos sãos, pois as con­
seqüências das moléstias da alma não se comparam com
as do corpo. Além de tudo, a saúde da alma é das mais deli­
cadas ; um nada pode prej udicá-la, e para sempre. E, no
entanto, quantos rapazes passam uma boa parte do dia
principalmente das noites, numa atmosfera moral irrespi­
rável, pesada, com todos os miasmas do ceticismo e da sen­
sualidade ! Freqüentam todos os lugares, em particular
aquêles onde se aceitam os princípios da vida fácil ; uma
grande parte da sua fôrça dalma dissipa-se em festas,
salões e espetáculos. Não quer dizer que desejem o mal
pelo mal : a maioria dirá, nos momentos de sinceridade,
que essa existência lhes pesa, que as convicções se ressen­
tem, que têm o coração apertado e a alma sufocada. Mas
seria preciso um esfôrço para libertar-se dos compromis­
sos sociais, sacudir-se um pouco e romper de face com os
hábitos inveterados de moleza. Não têm essa coragem. Se,
ao menos, como antídoto, alimentassem a inteligência e o
coração de pensamentos sãos e de sentimentos revigoran­
tes ! Ei-los, no entanto, em ação. Prolongam no íntimo a
vida enervante do exterior. Muitos não se aplicam, ou o
fazem med-iocremente, dois meses antes dos exames. Para

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A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

contrabalançar, devoram tudo que lhes cai nas mãos, prin­


cipalmente as banalidades da moda, os romances atraentes.
Em vez de procurar um remédio para o vazio do coração,
nas afeições legítimas e nobres, e preparar-se, por um
longo trabalho de purificação moral, para o futuro papel
de espôso e de pai, preferem alimentar tôda sorte de sonhos,
multiplicar relações superficiais, gastar ao acaso a provi­
são de sentimentos elevados e delicados adquiridos no lar.
Isso porque custa muito lutar contra paixões que desper­
tam, reagir contra seus gostos, preservar-se, cercar-se de
precauções minuciosas, em urna palavra, viver com regi­
me, no modo de nutrir a inteligência com a verdade e o
coração com sentimentos viris. Alguns há, bem sei que dei­
xam para mais tarde uma conversão brilhante. Então, sob
a pressão dos acontecimentos, em face das necessidades,
entrarão no bom caminho, como dizem : farão marcha à ré
e abismarão a sociedade pela honestidade dos costumes e
pela fôrça das convicções Que perigosa utopia ! Dá-se o
mesmo com a saúde da alma e com a saúde do corpo. Quan­
do se passou a mocidade minando-a, vivendo em ambientes
deletérios, intoxicando-se cada dia corno por prazer ; quan­
do se rompeu de todos os modos, por abusos atrozes, o equi­
líbrio das funções essenciais da vida, não é de um dia para
outro que será possível refazer-se, restabelecer o equilíbrio
comprometido.

II

Ginástica da alma

Para conservar urna saúde física florescente, já é mui­


to observar as leis elementares da higiene do corpo. Entre­
tanto, não é suficiente ; é preciso acrescentar o exercício

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A AÇÃO E O CARÁTER 147

muscular. Estão todos de acôrdo a êsse respeito. lVIas que


exercícios ? Aqui, divergem as opiniões. Será melhor limi­
tar-se a exercícios moderados e regulares próprios para
tornar flexíveis os músculos e ao mesmo tempo fortifi­
cá-los, facilitando o bom funcionamento dos órgã9s essen­
ciais da vida e mantendo a saúde em equilíbrio estável ;
- ou então, será preferível recorrer à prática de despor­
tos violentos, os quais praticados sem prudência, podem
centuplicar, indiscutivelmente, a fôrça muscular, mas, na
maioria dos casos, em detrimento da economia geral ?
O fato é que, em nossos dias, chegou-se, em alguns meios
- não é nova a observação - a confundir essas duas
coisas tão diferentes : saúde e fôrça muscular. Parece-me,
no entanto, que é possível evitar semelhante confusão e
que, observado de mais perto, o problema se apresenta em
têrmos muito simples. A saúde do corpo terá valor em si
e poderá ser procurada como fim exclusivo ; ou, ao contrá­
rio, terá valor relativo, provindo unicamente das relações
íntimas com a saúde da alma ?

Os DESPORTOS. - Por mim, não sou dos que pensam


a meta da vida nesta terra seja passar bem, nem rivalizar
em fôrça muscular com os atletas de circo. Nessas condi­
ções, não será difícil achar os exercícios adequados. Os
mais simples serão os melhores, se contribuírem para au­
mentar a capacidade respiratória dos pulmões, se facilita­
rem a circulação de um sangue rico e provocarem um vivo
e enérgico trabalho de assimilação. A primeira lei do exer­
cício muscular é, pois, o que, de bom grado, chamarei a
lei dos infinitamente pequenos. Em virtude dessa lei, não
é necessário a um rapaz, j ustamente preocupado com a
saúde, procurar exercícios complicados e violentos, senão

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148 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

de vez em quando, à guisa de jôgo. Ser-lhe-á melhor limi­


tar-se a processos simples, calcados sôbre os da natureza,
cuja repetição lhe irá proporcionar o equilíbrio das dispo­
sições físicas. Pois, à lei dos infinitamente pequenos, que
determina a matéria dos exercícios corporais, é preciso
acrescentar a lei da continuidade, que lhes regula a forma.
Esta última lei é como que a alma da ginástica corporal.
Se, por cansaço, deixarmos de nos exercitar, se, mesmo,
afrouxarmos os esforços antes de atingir um resultado
completo, em pouco tempo perderemos tôda a reserva de
energia adquirida durante muito tempo. Ao contrário, se
perseverarmos, se tivermos método, depois de algum tem­
po, longe de nos cansar, êsses exercícios se tornarão hábi­
tos, necessidades, uma segunda natureza.
Tem sua razão de ser a insistência que ponho em
esmiuçar as leis do exercício corporal. Em primeiro lugar
delas depende a saúde física, e já não é pouco. Além disso,
essa ginástica simples, mas metódica, tem grande impor­
tância para a educação do caráter. Dela foi dito, muito jus­
tamente, que é como a "escola primária da vontade". Pode·
ela servir de modêlo à ginástica da alma, cuja saúde está
submetida, guardando-se as proporções, às mesmas leis que
a saúde do corpo.

LEI DOS INFINITAMENTE PEQUENOS. - Todos os psicó­


logos estão igualmente de acôrdo sôbre a necessidade dos
exercícios espi?·ituais. Cessa, no entanto, êsse entendimen­
to, quando se trata de determinar o gênero dêsses exercí­
cios. Fui do tempo em que se limitavam êsses exercícios
espirituais propriamente ditos à leitura quotidiana de um
capítulo de piedade ou de ascetismo. Parece-me, no entan­
to, que o verdadeiro exercício espiritual deve ser mais uma

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A AÇÃO E O CARÁTER 149

ação do que uma leitum, e que essa ação nAo deverá ser
j amais interrompida.
A alma tem faculdades como o corpo tem membros.
Se os hábitos morais são para as faculdades morais o que
os músculos são para os membros do corpo, urge fortifi­
cá-los. O seu desenvolvimento facilitará, para a .alma, as
funções morais de respiração e de nutrição, a que aludi­
mos. Claro está que um rapaz de hábitos sãos e sólidos,
por si só e sem dificuldades, evitará os meios debilitantes
e sentirá a necessidade de uma alimentação moral fortifi­
cante.
Como, porém, desenvolver êsses hábitos ? Pelo exercí­
cio, obrigando-se diàriamente à observação de leis muito
simples, mas rigorosas, e, em primeiro lugar, à lei dos inf'i­
nitamente pequenos. No terreno moral, os rapazes não pre­
cisarão buscar muito longe ; o dever quotidiano já está tra­
çado ; as obrigações de estudantes católicos estão bem indi­
cadas, dia a dia para cada hora. Ou têm disposições natu­
rais para adquirir bons hábitos, o que se chama virtudes
de te mperam c H fo, e nada é mais fácil do que valorizá-las
e momlizá-las ; ou, então, vieram ao mundo com disposi­
ções viciosas e necessitam, neste caso, de grande energia
e ao mesmo tempo de prudência para neutralizá-las e subs­
tituir-lhes outras melhores.

LEI DA CONTINUIDADE. - Suponho, por exemplo, que


um estudante seja naturalmente inclinado à temperança.
Nesse caso, ser-lhe-á fácil orientar semelhantes disposições
no sentido do ideal cristão e assim beneficiar a sua vonta­
de. Esta, por sua vez, inspirando-se do mesmo ideal, impri­
mirá a essas disposições naturais um caráter moral e as
transformará em virtude. Outro, ao contrário, é por tempe�

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150 A EDUCAÇ.:\0 DO CARÁTER

ramento propenso à sensualidade ; é vítima nesse ponto de


disposições hereditárias ou adquiridas. Que fazer ? Alguns
estudantes crêem nas grandes medidas, nos remédios amar­
gos ; chegam a falar em batina e em convento. Em teoria
é um belo gesto, concordo, mas nem sempre prático. Prà­
ticamente, há remédios menos atraentes, e apesar disso
muito eficazes, como o de transformar semelhante paixão
em virtude, de converter um amor próprio mal entendido
num amor bem entendido. Impõe-se aqui um trabalho me­
tódico ; a lei dos infinitamente pequenos pede a lei da con­
tinuidade. Nada de supostos esforços heróicos, que muitas
vêzes esgotam e desanimam, porém esforços sérios, repeti­
dos, perseverantes. Trata-se, em primeiro lugar, de discer­
nir em nosso modo de viver, qual a origem das nossas fra­
quezas quotidianas. Talvez sejam causadas pela leitura ?
Então, não leiamos mais, ou leiamos menos, ou variemos as
leituras. A causa será o teatro ? Não voltemos a êsse diver­
timento, senão quando nos sentirmos mais fortes. Será tal
ou qual companhia ? Tenhamos a coragem de mudar. Será
apenas questão de temperamento ? Neste caso consultemos
igualmente o médico e o confessor. Mas guardemos bem
o seguinte : um temperamento moral doentio - assim como
o temperamento físico - não se modifica de um dia para
outro, por meio de reações violentas, mas com o tempo,
por ações repetidas indefinidamente. Ao mesmo tempo,
afastemos as ocasiões próximas de queda e tomemos os
meios positivos de adquirir e desenvolver as virtudes cor­
respondentes. Se formos sensuais, quer dizer, se tivermos
tendência para cultivar o egoísmo passional sob a forma
brutal da sensualidade, despertemos em nós a idéia de um
egoísmo mais elevado, de um amor próprio virtuoso. Em
tôrno dessa idéia, façamos surgir os motivos mais aptos a

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A AÇÃO E O C.�ÁTER 151

torná-la sedutora desde o s motivos de interêsse, corno o do


nosso futuro, até os mais desinteressados, como o amor da
virtude, da dignidade humana, o respeito dos outros e a
glória de Deus. À fôrça de evocar essas razões superiores,
a paixão do amor sensual de que somos vítimas, se desape­
gará das razões inferiores que teríamos para entretê-lo ;
pouco a pouco, ela se tornará mais espiritual ; sem deixar­
mos de nos amar, ao contrário, amando-nos mais e melhor,
conseguiremos transformá-la em verdadeira caridade ; nos­
sa vontade será decuplicada e depois de ter beneficiado dos
impulsos inerentes a tôda paixão um pouco forte, ela irá
restituir-lhe em valor moral e energia durável, habitual,
o que tiver recebido em fôrça cega e passageira. Não será
isso um martírio contínuo ? E' verdade, porém, essa morte
interior de todos os momentos encerra preciosos germes
de vida. Em virtude da própria lei de continuidade que pre­
side ao desenvolvimento dos hábitos morais, os esforços
diminuem com a repetição dos atos. Acaba-se por ter pra­
zer, onde a princípio só havia fadiga. O repouso vem da
própria ação. Quanto mais agirmos nesse sentido, mais
sentiremos necessidade de agir e verificaremos pessoal­
mente como a satisfação contínua dessa necessidade será
para nós a última palavra da saúde da alma, a sua plena
expansão.

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CAPÍTULO III

OS HÁBITOS MORAIS E O CARÁTER

De acôrdo com o precedente, o caráter poderia bem


ser definido como "um conjunto de hábitos morais, grupa­
dos inteligentemente em tôrno do eixo voluntá1·io". Desde
já, pode o leitor entrever como é justa essa definição, sen­
do verdade, por um lado, como observamos, que se reco­
nhece um homem de caráter pela unidade e estabilidade de
sua atitude moral, e por outro lado, sendo inegável, como
veremos, que os hábitos morais bem compreendidos são a
melhor garantia de unidade e de estabilidade dessa atitude.
O hábito é, com efeito ao estado fixo, o que os atos, que
contribuíram para adquiri-lo, são ao estado passagei ro.
Trata-se, apenas, de saber qual grupo de hábitos morais
poderá contribuir na formação do caráter, e em que condi­
ções um rapaz deverá presidir pessoalmente a êsse agru­
pamento.
I

O equilíbrio moral

A priori, são numerosos os hábitos morais que podem


contribuir para a formação do caráter. Para verificá-lo é
suficiente abrir qualquer manual de moral e lançar uma
vista de olhos sôbre o capítulo da classificação das virtu-
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A AÇÃO E O CARÁTER 163

des. Em linguagem filosófica, virtudes e hábitos morais


vêm a ser o mesmo. Daí, a pergunta que se impõe, ao mes­
mo tempo imperiosa e profunda : ser-me-á permitido esco­
lher, entre todos, os mais apropriados a meu temperamen­
to, a meus gostos pessoais ; ou, ao contrário, terei obriga­
ção, em consciência, de possuí-los todos ? Teõ.1·icamente,
não é permitida a escolha ; e pràticamente, ninguém se
pode gabar de possuí-los todos.

CONEXÃO ENTRE AS VIRTUDES. - E' compreensível não


ser permitida a escolha, tratando-se da moral. O homem
de caráter é, com efeito, por estado, homem de dever. Sua
finalidade é realizar, em tôda a plenitude, o ideal de vida
que se impõe à sua atividade livre. Ora, o dever huma­
no, como tal, não exclui virtude alguma do seu domínio.
E' antes o ponto convergente aonde tôdas as virtudes se
vêm concentrar, o foco onde �e acendem, o sol do qual elas
são os raios. Pretender, de caso pensado e apenas consul­
tando as preferências pessoais, apagar tal ou qual raio,
é ferir o próprio sol, é prejudicar o foco. Ninguém tem o
direito de agir dêste modo. Além do mais, temos a expe­
riência para provar a ineficácia de semelhante maneira de
agir. Por exemplo, o rapaz que tomasse a resolução de ser
forte, sem a intenção de ser temperante, não seria nem
forte nem temperante, pois, do ponto de vista prático, não
é possível ser uma coisa sem a outra. Sua fôrça teria ape­
nas a aparência de fôrça, pois, na hipótese de haver confli­
to entre a fôrça e a temperança, o fato de ser voluntària­
mente intemperante, levá-lo-ia a quedas nesse ponto deli­
cado. Teoricamente falando, não podemos escolher uma ca­
tegoria de virtudes com a exclusão de outra. Acrescente­
mos, no entanto, ser impossível a qualquer pessoa a prátiça

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1 54 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

de tôdas. Um mendigo não está apto a dar esmola ; um


homem casado não poderia ser virgem ; um incapaz deve
renunciar ao estudo. Daí devemos concluir que, em certas
condições, para determinados indivíduos, há virtudes ou
hábitos morais cuja aquisição é dispensável para a forma­
ção do caráter. Para cada um de nós, é no entanto, indis­
pensável estar disposto a praticá-las tôdas eventualmente.
Não t':xistirá, porém, um conjunto de virtudes que se
possa propor a ttldo jovem preocupado em se tornar um
homem de caráter ? Não há dúvida, visto não só têrmos
deveres para com nós mesmos, para com o próximo e para
com Deus como também porque o cumprimento integral
e constante dêsses deveres está subordinado ao exercício
regular das virtudes correspondentes.

A PRUD�NCIA. - O primeiro dever do homem racional


é o d_e agir razoàvelmente. Não se pense que isso se faz
naturalmente, desde o despertar da razão, bastando fórmu­
las estudadas de cor. No laboratório da consciência, as
reações morais da inteligência sôbre uma vontade pregui­
çosa e sôbre paixões violentas não se submetem exatamen­
te às mesmas leis que as reações químicas. Não se operam
segundo fórmulas. A reação moral sôbre si mesmo só se
consegue à fôrça de reflexão meditativa e de energia mode­
rada, levando em conta tôdas as circunstâncias de pessoa,
de tempo, de meio, de educação, que imprimem aos atos
livres uma fisionomia moral. Isso, como tudo o mais, é
questão de hábito. Seja qual fôr o nome que dermos a êsse
hábito de agir sempre razoàvelmente, seja que o denomine­
mos prudência, como as sumidades da filosofia, o fato é que
o. adquiriremos e desenvolveremos se, de antemão, nos sub­
metermos às duas leis que regulam a aquisição e o desen,

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A AÇÃO E O CARÁTER 155

volvimento de qualquer hábito : a lei dos infinitamente


pequenos e a lei da continuidade. O homem de caráter é,
antes de tudo, um homem razoável, que utiliza a prudência
como um farol de luzes móveis e cambiantes, para ilumi­
nar o horizonte da moralidade e não se lançar às cegas na
refrega das inclinações. À luz dessa virtude, êle adquire
tôdas as outras, em particular as que são próprias a facili­
tar os impulsos espontâneos da sensibilidade sob as exigên­
cias permanentes do ideal humano. Compreende-se que me
refiro à fôrça e à temperança. Essas virtudes também são
adquiridas e desenvolvidas por atos repetidos indefinida­
mente e com método. O seu fim não é absolutamente, como
pensam muitos, suprimir em nós a sensibilidade ; têm por
fim, muito ao contrário, intensificar os impulsos, espiri­
tualizanclo-os, isto é, fazendo-os a servir à realização dos
nossos deveres ele sêres racionais. Com efeito, não somos
puros espíritos, mas também não somos simples animais.
Nossa vida deve, portanto, consistir em um certo equilíbrio
moral que mantenha os direitos absolutos da razão e, ao
mesmo tempo, leve em conta as exigências relativas da
carne.
tsse equilíbrio moral, nas relações contínuas ela carne
e do espírito, é a obra própria das virtudes de temperança
e de fôrça. A temperança impede a simples sensibilidade de
degenerar em sensualidade ; a fôrça encarrega-se de con­
verter em posse consciente do próprio eu todos os primei­
ros movimentos de ordem sensível que nos arrebatam in­
conscientemente de nós mesmos, pela sua violência, e nos
tiram o domínio próprio, pela sua espontaneidade ! Daí re­
sulta que, para ser um "caráter", um rapaz deve necessà­
riflmente adquirir essas virtudes.

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156 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

Mas, se essas virtudes são necessárias para a forma- .


ção do caráter, não são, entretanto, suficientes. O ho- ·
mem de bem, com efeito, no desenvolvimento integral de ,
sua personalidade, não tem apenas deveres pessoais 8'
cumprir ; tem igualmente deveres sociais, sobretudo numa .
época como a nossa, onde a "moral social" tende ante�.
a absorver em seu proveito a "moral individual".
Ora, deveres sociais pedem virtudes sociais. Hoj e·
em dia, criamos mu.itas palavras, com o fim de caracterizar
essas virtudes, como as de justiça social, solidariedade,
altruísmo, humanitarismo. Mas teremos feito bastante·
para nos adaptar à realidade correspondente ? Não creio ..
Até aos últimos tempos, muitos católicos, em particular,
foram vítimas, quanto à vida moral, de um preconceito·
tradicional, em virtude elo qual esta vida é sobretudo uma
questão ele fôro íntimo, a se tratar com Deus, longe do
coritágio do século, a salvo de todo contato impuro. Vi­
mo-los, então, retirarem-se ela liça, levar uma vidazinha
mediocremente honesta, na sua torre ele marfim, desin­
teressados do progresso social que os assustava e da
civilização que desprezavam ; suficientemente justos para
não incorrerem em penas ela j ustiça ; caridosos de má
vontade, e pelas esmolas excusando-se de se dar ao pró­
ximo, inteiramente, ele corpo e alma. Não imitemos êstes
medrosos de viver, que não merecem o dom da vida. Não
se adquire a vida sem choques e ela não se desenvolve
sem esfôrço. Além do mais, não se vive prêso, por opinião
própria, a uqt passado extinto ; vive-se, porém, e dupla­
mente, levando em conta as lições do passado para melhor
adaptação ao presente. E se a humanidade hoje é tor­
turada . por uma necessidade mais intensa de j ustiça, e

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A AÇÃO E O CARÁTER 167

de todos os pontos do globo os homens tendem a se asso­


ciar, no desejo de se auxiliarem mutuamente e, de mãos
dadas buscarem um ideal mais próximo do ideal humano,
não fiquemos à margem de semelhante movimento ; ao
contrário, tomemos a dianteira, com tôda a fôrça de nossas
convicções e o ardor de nossos vinte anos. Não pensemos
que para isso basta pronunciar belos discursos nem orga­
nizar reuniões ruidosas. Antes de tudo é preciso forti­
ficar nossa vontade, adquirindo hábitos sólidos de j ustiça
e de solidariedade. Ora, êstes só se adquirem e desen­
volvem por meio de atos cotidianos, de reações contínuas
Ido ideal desejado, amado, sôbre o nosso egoísmo ; d o
sacrifício heróico e constante d o "eu odioso", sempre in­
terposto entre os desejos e a realidade. Eis, pois, u m
conjunto d e hábitos morais, forçosamente necessários a
um jovem desejoso de ser um homem de ca1·áter. Muito
de propósito, não me referi a virtudes cristãs. Pretendo
fazer essa referência mais à vontade, consagrando um
volume à questão bastante delicada da educação cristã do
caráte?". Aqui pretendo apenas chamar a atenção dos rapa­
zes para a relação íntima entre o caráter e os hábitos
morais, também chamados virtudes. O homem de caráter
é o homem virtuoso por excelência, no qual a realização
do ideal, do dever, tornou-se uma necessidade, uma se­
gunda natureza, trata-se de deveres gerais ou de deveres
de estado. Reconhece-se um caráter pela unidade e pela
estabilidade de sua atitude em face do dever. Ora, sem
êsse conjunto de hábitos morais acima descritos, a unidade
e a estabilidade estão ameaçadas a cada instante. tsse
conjunto, sem dúvida, contribui essencialmente, como con­
j unto, para a formação do caráter.

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158 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

II

Unidade e estabilidade do caráter moral

U N IDADE.- O ideal moral é, incontestàvelmente, uno.


Na re�lização, está, sem dúvida, sujeito a muitas grada­
ções e variações, devido às diferenças de temperamento,
meio, tempo e educação. Mas, no que há de essencial, é
o mesmo para todos. E ' uma espécie de todo indivisível,
ao qual nada se pode subtrair conscientemente, sem des­
truí-lo ou deturpá-lo. Por que, então, tantos homens e
cristãos, desejosos de viver êsse ideal em tôda a plenitude,
não o conseguem, e, em lugar de uma vida cujos atos
sejam marcados com o sinal do dever, nos dão em vez
disso, o lamentável espetáculo de urna vida dispersiva,
desequilibrada, sem orientação, exposta ao menor sôpro
de cepticismo ou de imoralidade que lhes passa pela mente ?
A razão dessa desordem moral é fácil de ser encontrada.
Acha-se no preconceito absurdo de bastar conhecer um
ideal para realizá-lo imediatamente, e mostrar boa von­
tade a seu respeito para assim adquirir a vontade . Mos­
trei como um ideal, por mais elevado que seja, ou mesmo
por causa de sua elevação, não contém por si a fôrça
necessária sôbre a nossa vontade debilitada e sôbre a
brutalidade das inclinações. Para tornar-se um princípio
de vida, precisa ser, não apenas conhecido mas desejado,
não apenas uma idéia-luz mas uma idéia-fôrça . Que é,
.

porém, em última análise, a idéia-fôrça, senão a virtude,


o hábito moral, adquirido sob a influência do ideal dese­
jado e amado ? Quem diz virtude diz, com efeito, luz e
fôrça : luz, pois a virtude só se adquire por meio da
razão ; fôrça, por ser atividade livre concentrada, depósito

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A AÇ.4.0 E O CARÁ TEit 15�

de energia deixado nas diferentes potências por atos vo­


luntários repetidos indefinidamente e com método. Quando
um homem está de posse de todos os hábitos morais exi­
gidos para a plena realização do ideal, sua vida moral
reflete forçosamente a unidade dêsse ideal. Êle próprio
concretiza êsse ideal. Êsse ideal vivido tornou-"o um ideal
vivo, um ser equilibrado, um caráter.

ESTABILIDADE. - Além do mais, essa unidade de


vida, êsse equilíbrio moral, indício de um grande caráter,
é, graças à virtude adquirida, ou melhor ainda, ao hábito
virtuoso, uma unidade fixa, um equilíbrio estável. Que
haverá de mais estável do que uma tendência natural ?
Ora, o hábito equivale a uma tendência dessa ordem, é
como uma segunda natureza. Inculca-nos um desejo de
agir no sentido da atividade ideal de onde brotou ; uma
vez virtuosos pelo hábito, virtuosos nos tornamos por
necessidade. Daí a estabilidade da nossa conduta moral.
Rigorosamente falando, podemos definir o caráter que
se distingue pela unidade e pela estabilidade como : um
conjunto de hábitos morais grupa.dos inteligentemente em
tôrno do eixo voluntário.

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CAPÍTULO IV

OS HÁBITOS INTELECTUAIS E O CARATER

O capítulo precedente respondia à seguinte pergunta :


Queremos ser homens de caráter ? Se assim é, não nos
contentemos com alguns atos de virtude esparsos ao longo
da estrada que conduz ao ideal humano ; arriscar-nos-íamos
a ficar em meio do caminho. Ao contrário, multipliquemos
infinitamente êsses atos, e com método. Assim adquirimos
sólidos hábitos morais que nos farão conquistar o ideal
'amado e comunicarão unidade e estabilidade à nossa
conduta.
Vou tornar mais precisa a pergunta, e, dirigindo-se
êste livro especialmente a homens de estudo, vou formu­
lá-la nos seguintes têrmos : Qual o meio natural mais
seguro para chegardes a ser homens e cristãos de cará­
ter ? Não é preciso buscar a resposta muito longe. Sêde
estudantes sérios, conscientes dos deveres de estado, e,
que a custo de ciência e de trabalho, consigam trabalhar
ao mesmo tempo na educação da inteligência e da vontade.

Moral e ciência

Na realidade, a questão abordada não é outra senão


a já muito discutida das relações da ciência e da moral.
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A AÇ.�O E O CARÁTER 161

A êsse respeito, há dois preconceitos, ambos igualmente


odiosos. O primeiro resume-se em uma fórmula assaz
simplista : Multipliquemos a ciência e dêsse modo multi­
plicaremos a virtude ; tornemos obrigatória a instrução,
é a única maneira de promover sábios e homens. O outro
preconceito não mostra menos ingenuidade, apesar de ser
formulado de modo mais circunspecto. Os seus adeptos
não chegam a dizer : Suprimamos a ciência e veremos
florescer de novo a virtude. Partindo, porém, dêsse prin­
cípio - se assim se pode chamar - de que a ciência
ensoberbece : sciencia inflat, recomendam de preferência
a ignorância em proveito da humildade, persuadidos de
que essa virtude que, segundo êles, diminui os homens, é,
no entanto, a maior entre tôdas. São dois preconceitos
odiosos, repito, e não resistem a um exame. Para formar
homens de caráter, no sentido viril da palavra, não basta
impor aos homens nem interditar-lhes a instrução. A prova
está em acharmos "mártires do dever" em todos os níveis
na escala social, tanto entre ignorantes como entre inte­
lectuais. Seria bem mais razoável - portanto mais hu­
mano - procurar em que grau e em que condições a
educação da inteligência pode ou não contribuir para
a educação da vontade. Ora, tenho para mim que ela
o pode em larga escala e em condições relativamente
simples.
Talvez, acontece muitas vêzes que a ciência enso­
berbece, mas isto não é atributo da ciência. Nesse ponto,
a ignorância - refiro-me à ignorância afetada - nada
deve à ciência, se não a ganha de l<mge. A experiência
mostra-no,s, com efeito, que, de ordinário, os verdadeiros
.:>ábios são humildes e os perfeitos imbecis são orgulhosos.
Na verdade a ciência só incha aquêles cujo espírito ela

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162 A EDUCAÇ_:\0 DO CARÁTER

não encheu completamente, deixando lugar mais ou menos


considerável para a vaidade. Deus não é vaidoso nem
orgulhoso, j ustamente porque é a plenitude da ciência.
Aliás, a humildade e a ciência têm a mesma origem :
ambas são filhas da verdade. Como não haveriam de se
entender perfeitamente ? A ignorância, ao contrário, é filha
da mentira e, por êsse motivo, da humildad e só tem a
máscara. Olhemos de perto e verificaremo8 como a hu­
mildade dos ignorantes consiste em humilhar os sábios.
E' fácil ser humilde, quando não se tem razão de orgulho ;
resta a saber se essa humildade não será orgulho às
avessas vulgarmente chamado despeito. Não ouçamos
aquêles que desejariam desviar-nos do estudo, sob pretextos
tão falaciosos. Uma religião como a católica, baseada intei­
ramente sôbre a verdade, não lhe teme as manifestações,
venham de onde fôr. O próprio São Paulo, o primeiro
a advertir-nos caridosamente de que a ciência ensoberbece,
suplicou-nos que tivéssemos uma fé racional : rationabile
obsequium, baseada na verdade.
Não é, contudo, razão suficiente para chegar a ex­
tremos e proclamar, com certos utopistas em matéria
de educação moral, que basta esclarecer a inteligência
para estimular a vontade : que alguém, uma vez bacharel,
licenciado, ou doutor, se tornará, como por encanto, um
homem de caráter. Infelizmente a experiência prova bem
o contrário. O diploma da educação não é dado com a
mesma facilidade que o da instrução. E ' preciso mais de
dez anos de trabalho interior e mais de um exame de
consciência por ano.
Daí surge a seguinte interrogação : em que grau e em
que condições os hábitos intelectuais, chamados ciência,

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A AÇÃO E O CARÁTER 163

concotrem para favorecer o desenvolvimento integral da


personalidade do homem moral ?
PURIFICAÇÃO PESSOAL. - Em primeiro lugar, é claro
que o contato com idéias elevadas preserva-nos das suges­
tões inferiores. O tempo consagrado à busca da verdade
escapa à satisfação das paixões animais. E' sempre algu­
ma coisa que se rouba ao inimigo. O homem não é um
puro espírito, mas é espírito antes de tudo. Por aí se
distingue dos animais, e sua carne tem a especialidade
de poder dobrar-se às exigências da razão, como a argila
de modelar-se sob os dedos do escultor. Já nesse ponto
de vista a ciência é um princípio fecundo de purificação
moral. Permité-nos dominar a sensualidade, tirando-lhe
o tempo e as ocasiões de satisfazê-la. Certamente podemos
cultivar a ciência como fim próprio ; mas, ao contrário,
nada nos impede que nos sirvamos dela para "moralizar"
as paixões, tanto mais que as paixões "moralizadas" vão,
por sua vez, facilitar a alta cultura intelectual. A escra­
vidão proposital da carne é o penhor da liberdade do
espírito.

PURIFICAÇÃO SOCIAL. - Não param aí, porém, os


efeitos morais da ciência. Ela não é apenas um meio
excelente de aperfeiçoamento pessoal ; presta-se, além
disso, a desenvolver em nós as virtudes sociais. Para
ilustrar meu pensamento, bastará dizer que um estudante
católico não deve esbdar somente por necessidade pes­
soal, mas ainda para corresponder a necessidades sociais ;
não deve cultivar a ciência apenas para si, mas também
para os outros ; o futuro para o qual se prepara impõe-lhe
a obrigação de j ustiça e de caridade de ser um bom estu­
dante .

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164 A EDUCAÇÃO DO CAI�ÁTER

E m primeiro lugar, um dever de j ustiça. Enunciando


essa verdade, viso principalmente os estudantes de direito,
de ciências, de medicina, todos os que escolheram urna
carreira liberal e terão um dia deveres profissionais bem
delicàdos para preencher. Já terão pensado na respon­
sabilidade que assumem quando, em vez de empregar todo
o tempo e tôdas as energias no estudo, desperdiçam a
maior parte a fazer nada ou coisas sem importância ?
Terão pensado que seus irmãos de humanidade, nas difi­
culdades da vida, doentes física ou moralmente, virão
bater-lhes à porta, escolhê-los corno árbitros do seu des­
tino, e que os conselhos e cuidados, que poderão dar então,
serão apenas o que lhes tiver ficado do capital intelectual
adquirido a custo de trabalho nos bancos da Universidade
e na sala de estudo ? Terão pensado que os sofrimentos
alheios aumentarão talvez um dia com os prazeres inúteü;
que tiverem procurado, durante horas, dias e meses que
deviam ter sido consagrados ao estudo ? Muitos estudantes,
mesmo entre os sérios, não pensam bastante . nisso. Ima­
ginam que o pergaminho bastará. Deveriam saber, no
entanto, que não se cura um doente declinando títulos ou
apresentando o diploma de doutor. Só é possível curar
quando se está à altura dos deveres profissionais, e isso
só se dá quando houve um preparo consciencioso, durante
anos. Aí se acha, pois, para todos, insisto, um dever
estrito de j ustiça. E' um dever análogo ao do pai de
família, o qual tem a obrigação de cultivar seu campo,
lavrá-lo, semear a tempo, ará-lo, se quiser prover os filhos
do pão que têm o direito de esperar dêle. Que diríamos
nós, se um pai de famil1a, depois de ter cruzado os braços
no inverno, só se lembrasse de pegar no arado dois meses
e.ntes da colheita e, depois, se lamentasse por ter colhido

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A AÇÃO E O CARÁTER 165

pouco ou mesmo . nada ? As lágrimas dêsse preguiçoso


humilhado desculpá-lo-iam da sua negligência, e o arre­
pendimento, apesar de sincero, evitaria a fome e a miséria
da mulher e dos filhos, pelos quais é responsável ? O
mesmo se dará com aquêles que preferem o prazer ao
estudo. Não estarão à altura nem de sua vocação de ho­
mem, nem de sua profissão. Isso quer dizer que um estudo
consciencioso, ao mesmo tempo que disciplina o espírito,
fortifica a vontade. O estudante aplicado normalmente
adquire e desenv'llve simultâneamente duas virtudes : uma
virtude intelectual, pela qual acumula a provisão de ciência
que lhe servirá um dia, e uma virtude moral que o tornará
capaz de cumprir os deveres de estado. Essa reflexão
é uma demonstração evidente da grande repercussão da
ciência sôbre a nossa conduta. Ela constitui um dever de
j ustiça para todos aquêles que, sem ela, não poderão pre­
encher seus encargos para com a sociedade. Acrescento
ser ela ainda um dever de caridade e o meio mais seguro
para desenvolver essa grande virtude social.
A maioria dos estudantes católicos meus conhecidos
estão bem a par do seu tempo, e disso me orgulho. O sôpro
de união que passou sôbre as almas de hoje não deixou
de movê-los. Amam o próximo e o próximo pode contar
com a sua dedicação. Católicos antes de tudo, sonham
em arrancar os irmãos transviados pelo êrro e pelo cepti­
cismo e abrir-lhes a alma para a luz da verdade. Conheço
alguns de alma apostólica e ansiosos de pregar a boa
nova aos humildes. Não há nada melhor em teoria : como
realizá-lo ? Está a seu alcance : tornem-se h omens de ciên­
cia por amor ao próximo. Busquem a fonte duplamente
fecunda da ciência e da fé, mas sem precipitação ! Disso
depende sua saúde intelectual. Quando tiverem então atin-

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166 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

gido a maturidade, façam brilhar aos olhos do mundo,


e principalmente do povo, isto é, dos ignorantes, dos sacri­
ficados, dos desviados, essa harmonia da ciêneia e da fé
que encantará. Sejam para todos um motivo real de cre­
�ibilidade. Quando o povo vir que os sábios, cuja palavra
é ouvida com respeito pela elite são homens que se incli­
nam diante do Deus, da sua mocidade, e que vêm r ezar
nas suas igrejas, ajoelhar-se a seu lado na santa mesa,
nesse dia a conquista estará feita. Refletindo no intimo,
o povo compreenderá, olhando para o céu, agora sereno,
a realidade das suas duvidosas quimeras de antigamente ;
o coração santamente comovido tornará a pulsar de espe­
rança ; o fardo da vida parecer-lhe-á mais leve, a sorte
menos implacável. Isso tudo será devido aos moços, depois
de Deus, ao menos àqueles que se tiverem mantido fiéis
aos deveres de estudantes católicos e se tiverem tornado
verdadeiros apóstolos, aos quais ninguém resiste, nem as
massas ; apóstolos de fato, pelo exemplo.
Vimos como a ciência é um elemento moralizador por
excelência. Por ela podemos dominar as paixões violentas
da carne e elevar em nós mesmos o nível da justiça e da
caridade. Há, no entanto, uma condição indispensável :
é' preciso saber est'udar. O modo de estudar, assim como
a ciência, favorece a educação do espírito e, paralelamente,
a educação da vontade.

11

O trabalho e o repouso

A maioria dos estudantes tem a êsse respeito estra­


nhas ilusões ; muitos não sabem estudar. Fazem-no, como
se fôsse um divertimento, por ímpetos e ao acaso. Pre-

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A AÇÃO E O CARÁTER 167

param-se para o exame, como para uma confissão geral,


o mais tarde possível ; folheiam, então, os livros, como
um penitente escrupuolso, a consciência. · E acontece no
exame o mesmo que no confessionário : a impressão do
momento paralisa a memória, superexcita os nervos ; as
perguntas precisas são mal respondidas, isto é, acha-se
dificuldade em restituir por pequenas doses o que se
enguliu de uma só vez. Essa preparação "instantânea"
é das mais funestas ; não permite uma assimilação com­
pleta e normal do ensino dado. O melhor meio de passar
um exame consiste em se preparar com antecedência, sem
preocupação do próprio exame, dosando o trabalho dià­
riarnente. A vida intelectual, corno a moral, é questão de
hábito ; é regida, no desenvolvimento, pela lei dos infini­
tamente pequenos e pela da continuidade. Um estudante
. que se aplicasse seriamente todos os dias durante o ano,
mesmo durante duas ou três horas apenas, não teria ne­
cessidade de sobrecarregar o cérebro três meses antes do
exame. Teria podido assimilar a matéria, digeri-la ; e
mesmo, sendo necessário um maior impulso no fim do ano,
êsse esfôrço iria estimulá-lo, em vez de esgotá-lo. Pois,
há um verdadeiro prazer em refazer correndo, sem perder
o fôlego, o caminho percorrido em oito ou dez meses a
passo lento e comedido.

A APLICAÇÃO. - E' só benefício sob o ponto de vista


moral. A virtude da aplicação, para que tende semelhante
trabalho, adquire-se corno tôdas as outras. Exige uma
intervenção contínua da vontade, a qual se nutre e fortifica
corno os próprios atos.
Por que um estudante, em geral, não tem hora fixa
e tempo determinado para o estudo ? unicamente porque

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168 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

lhe custa sacudir a moleza, reagir contra os capriChos,


as comodidades, o desejo de borboletear, para aproveitar
o que pomposamente chama de "liberdade". Em vez de
estudar quando é preciso, fá-lo quando lhe agrada : ora
isso se dá quando se aborreceu de urna quantidade de
coislls que não pedem esfôrço. Se a lembrança do exame
o leva a estudar, não é pelo atrativo : é a perspectiva das
conseqüências de um sucesso ou de um fracasso. Que será
não somente da vida intelectual, mas também da vida
moral, diante de semelhante concepção do estudo ? Reduz-se
n zero.
Ao contrário, se um estudante se aplicar todos os
dias, com o tempo ficará admirado com os sucessos. Nêle
se terão afirmado o homem e o sábio. C omeçará por estu­
dar alguns minutos para evitar o desânimo ; mas guardará
um horário fixo, para educar a vontade. Neste último
ponto será intransigente ; não fará alteração de hora sob
pretexto algum. Quando se tiver habituado a estudar, por
exemplo, um quarto de hora tôdas as manhãs - e êsse
hábito logo se adquire - passará a meia hora, e assim
por diante, até conseguir produzir o trabalho possível a
um rapaz de vinte anos, de boa saúde, desejoso de um dia
se tornar alguém, ou ao menos alguma coisa.
Apesar de modesto na aparência, êsse regime é o
verdadeiro para a média dos espíritos ; é o único próprio
para a educação da vontade, nos estudantes.

O REPOUSO. - O mesmo direi do repouso exigido pelo


trabalho. A arte de repousar é uma arte difícil, o inverso
da arte do trabalho. Entretanto, o repouso a que me
refiro não se confunde nem com a preguiça nem com
a o ciosidade . Um preguiçoso, um ocioso, foge do es-

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A AÇÃO E O CARÁTER 169

cudo. O estudante sério, ao contrário, descansa para


poder estudar mais. O verdadeiro repouso deve ser orga­
nizado corno o estudo, não digo matemàticamente, mas
voluntàriamente. Muitas vêzes, a melhor maneira de des­
cansar é mudar de trabalho. Outros repousos s�o, no en­
tanto, legítimos. E' permitido distrair-se, jogar, viajar,
divertir-se honestamente com os · amigos, cultivar artes
de �ecreio, ou por elas se interessar ; tudo isso conserva
o vigor do espírito, a frescura da imaginação e não depri­
me os sentidos nem a vontade. Melhor, quando assim se
repousa, não por capricho mas por vontade, êsse descanso
é uma ação tão fecunda em conseqüências morais como
o estudo que, afinal de contas, é um repouso.
Muito haveria a dizer sôbre êste assunto. Deixo,
porém, aos j ovens, o cuidado de sôbre isto refletirem
mais longamente. Se consentem, desde já, em serem estu­
dantes, em todo o vigor do têrmo e do modo acima exposto,
respondo pelo seu futuro. Sem contar que as alegrias
superiores do trabalho intelectual e a paz da boa consciên­
cia lhes prestarão grande auxílio, afirmo, sem pretender
arvorar-me em profeta, que um dia serão a grande satis­
fação da Igreja e da Pátria, homens de dever, cristãos
de caráter.

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CAPÍTULO V

OS HÃ.BITOS SOBRENATURAIS E O CARÁTER

Está quase terminada a minha tarefa. Restar-me-ia,


sem dúvida, falar mais especialmente do caráter cristão
e dos meios sobrenaturais para desenvoivê-lo. Mas seme­
lhante assunto não pode ser esgotado em algumas páginas.
Assim é que deixarei para mais tarde tratá-lo a fundo.
Por enquanto, contentar-me-ei em lembrar, em duas pa­
lavras, as principais conclusões, fazenào entrever o plano
das próximas reflexões. 48

Ideal humano

Em primeiro lugar, recordemos os têrmos do pro­


blema a resolver. A inteligência duplamente iluminada
pela razão e pela fé, faz-nos enfrentar um ideal a realizar :
o ideal do homem de bem. Com essa qualidade, indica-nos

43 Antes de ser cristão e para que p ossa ser, é preciso ser um


homem de caráter. No entanto, é o mesmo indivíduo que , ao mesmo
tempo e paralelamente, deve realizar o ideal humano e o cristão,
e construir s ôbre o rochedo das virtudes humanas o edifício inabalá­
vel das virtudes cristãs. No nosso trabalho La Virilité chrétienne,
consagramos perto de quatrocentas p áginas ao estudo e .à solução
dêsse p roblema. ( Pedimos l icença para recomendá-lo a o leitor.)

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A AÇÃO E O CARÁTER 171

o fim a atingir e nos esclarece a respeito dos meios. Seu


papel limita-se apenas a isso. E' o farol aceso na costa,
cujo rastro luminoso é um precioso auxílio para a tra­
vessia ; não é êle, porém, que nos faz chegar à terra.
Para isso, com efeito, não é suficiente enxergar bem,
é preciso ser forte. Certamente, não nos faltam energia�
de tôda espécie. Falta-lhes, antes, certa disciplina. Quem
as disciplinará ? A vontade esclarecida pelo ideal, o que
quer dizer que, para ter uma influéncia eficaz sôbre a
direção da nossa conduta, não basta ver o ideal, mas dese­
já-lo ; que a idéia-luz, que êle é por essência, deve tor­
nar-se na prática uma idéia-fôrça.
Assim compreendido, o ideal desejado, amado, atrai
as energias passionais e sentimentais mais próprias para
fecundá-lo. O que delas recebe em fôrça instintiva e cega,
devolve em fôrça moral esclarecida. Com o tempo, e sob
a influência de repetidos atos de vontade, os hábitos se
formam e o seu agrupamento inteligente em tôrno do eixo
voluntário constitui o caráter moral.

li

Ideal cristão

Quantas vêzes repeti que antes de ser cristão, e para


sê-lo, é preciso ser homem de bem ! Não vou contestá-lo
ao terminar, mas acrescentarei que, para ser um cristão
de caráter, é necessário adquirir, além das virtudes natu­
rais próprias ao homem de bem, as virtudes sobrenaturais
que fazem o super-homem ; ao humano dos nossos atos,
é preciso acrescentar o divino. As virtudes sobrenaturais
são, com efeito, divinas ; tanto na origem como no desen­
volvimento e nos efeitos. Só Deus no-las dá, ao conce-

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1 72 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER

der-nos a graça ; só êle as aumenta, na proporção dos


nossos méritos ; finalmente, fazem de nós filhos de Deus.
Apesar de divinas, as virtudes sobrenaturais não deixam
de ser condicionadas no exercício pela aquisição e pelo
desenvolvimento das virtudes naturais correspondentes.
Imaginemos dua;,; basilicas superpostas nas C!Uais a abó­
bada de uma serviria de adro para a outra ; sem dúvida,
enquanto uma tem a base na terra, a flecha da outra
perde-se no céu. A beleza da segunda basílica está con­
fiada à solidez da primeira ; suprima-se a primeira e a
outra será destruída. O mesmo se dá com as virtudes sobre­
naturais em relação às naturais. Na verdade são virtudes
divinas de poder maravilhoso, mas para sua plena expansão
precisam do apoio das virtudes naturais. Volto pois à
fórmula do início : Queremos ser cristãos de caráter ?
Comecemos por ser homens de bem.

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