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JUSTIFICATIVA

DESCRIÇÃO DO FENÔMENO – UM MUNDO DE “SUPERFÍCIE”


Iniciaremos por Benjamin a fim de alcançar nossa abordagem da experiência
contemporânea. Em seu artigo Experiência e Pobreza o autor nota que, a despeito do
que os combatentes viveram no front da Primeira Guerra Mundial, estes voltavam mais
silenciosos e não mais repletos de história para contar. A tese do autor é a de que o
mundo fora coberto por uma espécie de excesso de experiências (inflação, guerra,
desenvolvimento tecnológico acelerado etc.) para as quais não havia uma gramática de
transmissibilidade – dirá o autor: “Os livros literários que inundaram o mercado literário
nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca”
(BENJAMIN, p. 115). A partir daí o mundo se torna num ambiente superficial, que o
autor pretende mostrar descrevendo a diferença entre um quarto do fim do século XIX e
um salão burguês pós-guerra, o primeiro é habitado por seu dono sob o modo de seus
bibelôs e adornos, o segundo é um ambiente com hábitos ou protocolos que anulam a
subjetividade daquele o adentra. Notemos, no ensaio, como o autor aponta a
sobreposição entre dois domínios caros à modernidade: “A natureza e técnica, o
primitivismo e o conforto se unificam completamente” (BENJAMIN, pp. 118-119), se
tratando, aqui, da vivência num mundo sem contrastes, sem um ponto, ainda que
suposto, a partir do qual o sujeito pudesse polarizar o vivido.

Benjamin não deixa de notar que, com o desenvolvimento em alta velocidade da


técnica e, a despeito de um mundo de empobrecido de experiências, um amontoado de
práticas protocolares e de ideias postiças desmoronou sobre as pessoas (astrologia,
yoga, vegetarianismo etc.), talvez possamos notar, aí, o germe do diagnóstico de Debord
quanto à sociedade mediada por imagens, representações. Se Benjamin fala da perda da
experiência, talvez possamos implicar a Debord a descrição de uma experiência que
remanesce após sua própria perda, isto é, o espetáculo. O espetáculo, como aponta o
autor, não é somente o resultado da massificação ou do abuso das mídias – termo
derivado do latim médium, “meio” –, não se trata da capacidade expandida de
comunicação, mas da criação de estilos e valores pelo próprio “meio-ambiente” ou
forma do contemporâneo, qual seja, a esfera de produção e consumo. Por conta dessa
capacidade autopoiética do par produção-consumo em se disseminar num ambiente de
espetáculo, imagético, lê-se na proposição 9:
O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo
da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é
bem mais uma Weltanschauung tornada efetiva, materialmente
traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou (DEBORD, 2013,
posição 420).
Uma figura expositiva preferencial de Debord é a antimetábole, através da inversão dos
termos o que o autor parece querer transmitir é a inversão própria ao mundo do
espetáculo, mas, também capta, noutras vezes, potencialidades de superação do estado
aí presente. Para o primeiro caso: “A economia transforma o mundo, mas o transforma
somente em mundo da economia” (DEBORD, 2013, posição 596); para o segundo,
visando se ocupar do espírito dialético da teoria crítica: “Não é uma negação do estilo,
mas o estilo da negação” (DEBORD, 2013, posição 1911) (ressaltamos, contudo, que
esse segundo aspecto, por ora, não nos interessará). Na redoma do mundo que cria suas
próprias condições de reprodutibilidade, o autor nota, a perda social da referência à
história; a história, como possuidora de direção e significação, vem a termo na
temporalidade cíclica do espetáculo e coletivamente os agentes “não têm consciência
senão de um presente perpétuo”, e “O tempo permanece imóvel como um espaço
fechado” (DEBORD, 2013, posição 1361). Outrossim, o que se vê é a própria perda de
unidade, perda esta conferida pela produção incessante do espetáculo e suas imagens:
“A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo (...). O espetáculo reúne o
separado, mas reúne-o enquanto separado” (posição 536), donde tem-se que “O
espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens” (posição 419, grifo nosso).

Essa descrição da sociedade baseada no espaço, em detrimento do tempo, bem


como da perda da unidade, a encontramos, novamente, em Jameson, sobre a rubrica de
capitalismo tardio. O autor situa esse estágio do capitalismo, quanto à sua esfera
produtiva, na década de 1950, “depois que a falta de bens de consumo e peças de
reposição da época da guerra tinha sido solucionada e novos produtos e novas
tecnologias (inclusive, é claro, a mídia) puderam ser introduzidos” (JAMESON, 2007,
p. 23), e, quanto à esfera cultura, sob o nome de pós-modernismo, dirá que “o habitus
psíquico de uma nova era exige a quebra radical, fortalecida por uma ruptura de
gerações, que se dá mais propriamente nos anos 60” (IDEM) – bem-entendido, o pós-
modernismo, aqui, comparte daquela característica fundamental da sociedade do
espetáculo, ser ideologia materializada, assim sendo, esfera produtiva e esfera cultural
apresentam-se, desde já, sobrepostas. O primeiro aspecto do pós-modernismo, ao que
nos interessa, é: o termo nomeia o momento em que a modernidade se completou, de
modo que não mais encontramos contrastes entre modos de produção pré-capitalistas e
capitalistas, assim, o capitalismo e sua diferenciação em modo cultural (o próprio pós-
modernismo) é hoje um todo pervasivo que tudo engloba ou tudo traduz numa lógica de
mercado ou midiática. Desta sorte, no diagnóstico de Benjamin pudemos entrever o
início do fenômeno, em Debord, embora se observe o fenômeno já desdobrado, a
proximidade com a coisa, contudo, não parece ter permitido a ele um diagnóstico mais
aprimorado (aliás, talvez derive daí o estilo de escrita aforismático do livro). De todo
modo, Jameson nos fornecerá coordenas adicionais para explorar esse novo estado. As
quais desdobraremos de uma característica própria à pós-modernidade, esta que conjuga
dificuldade de explicação com heterogeneidade do fenômeno.

Qualquer leitura da pós-modernidade padece de uma refração própria ao objeto


(“princípio de Heisenberg do pós-modernismo” (p. 21)) de modo que, uma imersão na
coisa corre o risco de não nos oferecer coordenadas nenhumas, dado que a coisa é, em si
mesma, desconexa e desarticulada, por outro lado, a seleção de pontos de ancoragem
arrisca revelar um contorno que não é próprio à pós-modernidade, mas à fração que se
isola do material, qualificado pelo autor por “um pluralismo absoluto e absolutamente
aleatório” (JAMESON, 2007, p. 371). Essa característica repercute sobre o agente que
faz a experiência desse e nesse cenário, é como se circulássemos ora numa floresta de
signos e fôssemos atravessados por eles de modo a não conseguir constelá-los numa
coerência e segurança representacional mínimas, ora nós conseguimos interpretar ou
relacionar signos ou textualidades diferentes, mas ao preço de perder ou separar-se da
instância que os produz.

Quanto à falta de nexo, a experiência do pós moderno é identificada por


Jameson com a esquizofrenia – termo que autor diz derivar de Lacan: “Lacan descreve a
esquizofrenia como sendo a ruptura na cadeia de significantes, isto é, as séries
sintagmáticas encadeadas de significantes que constituem um enunciado ou um
significado” (p. 53). A concepção do psicanalista de significante e significado não
estabelece uma relação unívoca entre um e outro, antes, significado é o nome para o
resultado de uma série desdobrada do significante (Lacan denomina, passo-de-sentido
(LACAN, 1999)).

Quando essa relação se rompe, quando se quebram as cadeias da


significação, então temos a esquizofrenia sob a forma de um
amontado de significantes distintos e não relacionados (...). Com a
ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à
experiência dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras,
a uma série de puros presentes, não relacionados no tempo
(JAMESON, 2007, p. 53).
A esquizofrenia (não significando que somos ou esquizofrênico) se apresenta, então,
como uma espécie de fundamento da realidade “anterior ao que acontece na psique – a
esquizofragmentação pós-moderna em oposição às ansiedades e histerias modernas ou
modernistas –, que assume a forma do mundo que modela e que busca reproduzir na
forma da experiência e dos conceitos” (ID, 371). Experiência que, por sua vez, declina
num tipo de luto impossível, no qual nos sentimos mortificados por uma sociedade
incapaz de “atingir qualquer tipo de transparência” (ID, p. 320), isto é, não conseguimos
simbolizar ou representar o mundo, ou, medo generalizado e difuso; encontramo-nos,
assim, submetidos à incerteza advinda da “mudança imediata de todas as valências na
próxima rolagem financeira (ID, p. 351),

É como se você fosse parte de um jogo de computador cujas


constelações estivessem sujeitas a mudança sem aviso e incluíssem
você entre os parâmetros opcionais: mesmo o bom comportamento
pode não ser um motivo suficiente para reter uma posição ou manter
um emprego (ID, p.353)
Quanto ao estabelecimento de nexo, nesse “amontoado de significantes”,
Jameson sugere a operação ideológica tal como tomada por Althusser, como “a
representação imaginária das relações do sujeito com suas condições reais de
existência” (ID, p. 411). Ideologia, assim entendida, não é um conceito de valor
negativo, mas nomeia uma função de preenchimento da lacuna que separa a “percepção
fenomenológica e a realidade que transcende todo pensamento ou experiências
individuais” (IDEM). E aparecerá emparelhada a estilos de vida e identificações de
grupo, sob o modo de Weltanschauungen,

mas que hoje se tornaram conhecidas como códigos. Onde eu


costumava ‘acreditar’ em uma certa visão de mundo, filosofia política
ou sistema filosófico, ou em uma religião propriamente dita, hoje falo
um idioleto específico ou um código ideológico – a marca de uma
adesão a um grupo, vista de uma perspectiva diferente, mais
sociológica (ID, p. 391).
Sob uma base não traduzível ou mal-traduzível, é oportuno agora elencar três
aspectos que nos permitirão intitular a vivência do contemporâneo por “superficial”;
primeiro, esses significantes puros ou esquematicamente costurados (ideologia)
apresentam um “tipo de achatamento ou falta de profundidade” (ID, p. 35), segundo, os
objetos agora são tornados num “conjunto de textos ou simulacros” (ID, p.37), por fim,
“o esmaecimento do afeto na cultura pós-moderna” (IDEM). É como se toda atmosfera
pós-moderna pudesse ser lida, codificada, descodificada, interpretada, mas, faltasse a
ela um referente que remetesse, ou à essência, ou ao conteúdo latente, ou ao significado,
ou à autenticidade, na sua ausência, a leveza textual é contrabalançada pelo peso
daquilo que Jameson chama de medo, que nos parece ser o afeto existente quando do
esmaecimento do afeto, o autor o associa especificamente à fobia da perda da razão, do
narcisismo ou do amor-próprio, em suma, do colapso de si

Essa fobia é, sem dúvida, o medo de um medo, a sensação da


proximidade desse colapso, em vez da coisa-em-si, o terror do
anonimato iminente; e podemos utilizar esse medo para explicar certas
opiniões e reações políticas, ainda que ele seja basicamente abafado
por aquela forma de repressão que é o esquecimento e a omissão, o
auto-engano do que não quer saber e tenta se afundar ainda mais em
um voluntarismo involuntário, uma distração dirigida (ID, p. 358).
Ao que podemos notar, nos três teóricos muito brevemente expostos, em
decorrência da expansão das mídias e do mercado, que agora são a lógica ou forma do
sistema, o mundo convergiu (completa ou incompletamente) para um espaço
unidimensional, irrepresentável e fluido, portanto, o capitalismo tardio constitui-se da

mais pura forma de capital que jamais existiu, uma prodigiosa


expansão do capital que atinge áreas até então fora do mercado (...):
Nesse sentido, somos tentados a falar de algo novo e historicamente
original: a penetração e colonização do Inconsciente e da Natureza, ou
seja, a destruição da agricultura pré-capitalista do Terceiro Mundo
pela Revolução Verde e a ascensão das mídias e da indústria da
propaganda (ID, p. 61).
Devemos, porém, recuperar a consistência e a potência do Capital em se espraiar
pelo globo, em se tornar uma totalidade sem exterioridade.

O CAPITAL COMO MODO DE INTERCÂMBIO – O “NEXO SUPERFICIAL”


Normalmente, as leituras de inspiração marxista do capitalismo o definem como
um modo de produção, Kojin Karatani, em seu livro Structure of World History (2014),
propõe ler esta categoria econômica, em vez disso, como um modo de troca ou
intercâmbio. Se o modo de produção diz de como uma sociedade organiza a produção
de bens, o modo de intercâmbio versa sobre como esses bens são distribuídos ou
trocados entre os agentes. Nas leituras clássicas do marxismo o modo de produção se
reflete em outras esferas sociais, as assim chamadas superestruturas, de modo que
comunismo primitivo, modo asiático, feudalismo ou capitalismo, cada um teria sua
organização social baseada no modelo produtivo. Para Karatani, o modo de produção
encontra-se próximo do modo de troca, porém, ele propõe uma mudança de tônica;
partindo da leitura do antropólogo Marcel Mauss da lógica do dom (dádiva), o autor
observa que essa relação de intercâmbio não se explica por um modelo de produção,
sendo necessário um modelo de aliança ou troca. Os modos de intercâmbio seriam
quatro: puro dom, em operação no período nomádico da humanidade; dom e contradom,
dominante quando no contexto do totemismo; espoliação e distribuição, referente ao
período imperial; e a troca de mercadorias, próprio ao ambiente de mercado e
dominante no capitalismo, o qual Marx descreveu por “nexo superficial” (MARX, 2011,
p.62). Ao menos quatro fatores podem ser depreendidos desse tipo de mediação:

1) Desde que munidos da gramática universal do capital, a mercadoria, podemos


estabelecer intercâmbio com povos culturalmente muito díspares. Tal fator faz com que
o mercado seja facilmente universalizável: “A mercadoria em si e por si é superior a
qualquer barreira religiosa, política e linguística. Sua língua universal é o preço e sua
comunidade, o dinheiro” (MARX, 2008, pp.192-193).

2) Diferentemente da lógica do dom e contradom, na qual a oferta do dom


carrega consigo a obrigação de devolvê-lo como contradom. Quanto ao mercado, no ato
de troca, está excluído o veículo do laço social, da aliança, que é o próprio ato de
presentear; os atores intercambiam coisas e logo em seguida estão desconectados.
Karatani diz que, contrariamente à lógica do dom e contradom, na qual a propriedade do
dom não é transferida, ficando o recebedor do dom devendo obrigações (contradom), no
mercado, a propriedade é totalmente transferida, estando ambos os atores desobrigados
um com relação ao outro (KARATANI, 2003). No capitalismo:

desenvolve-se o cosmopolitismo dos comerciantes, como um dogma


da razão prática, opostamente aos preconceitos hereditários,
religiosos, nacionais e todos os demais que criam obstáculos à
circulação da matéria da humanidade (MARX, 2008, p. 193).

3) Enquanto no sistema embasado no laço social os atores importam por seu


valor imaginário ou simbólico – identidade, títulos etc. –, no mercado, a magnitude na
troca é medida pelo valor da coisa em relação a outra coisa. Assim, são as coisas que
têm magnitude, não os homens (que são todos iguais) e “os homens são obrigados
finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e suas relações com outros
homens” (MARX & ENGELS, 2007, p.43). Passa-se, assim, de um fetichismo entre
pessoas para o fetichismo entre coisas (ZIZEK, 1996. p.310).

4) Libertos do laço social fetichista, as relações sociais adquirem o caráter de


uma relação entre coisas – “coisificação das pessoas” (MARX, 2013, p.254) – pois,
entidades outrora desprovidas de valor, desde que postas na gramática da mercadoria ou
da equivalência adquirem valor de troca:

coisas que em si mesmas não são mercadorias, como a consciência, a


honra etc. podem ser compradas de seus possuidores com dinheiro e,
mediante seu preço, assumir a forma-mercadoria, de modo que uma
coisa pode formalmente ter um preço mesmo sem ter valor (IBID,
p.239).
Com efeito, acreditamos poder estabelecer o ambiente de mercado, calcado no
nexo superficial, como aquela dimensão onde se desenrola a pós-modernidade. Nele,
temos as condições de possibilidade para a perda da experiência, bem como seu
desenvolvimento em um mundo mediado pelas imagens ou textualidades. Destarte, se
Jameson acentua a mídia como veículo da perda da profundidade no capitalismo tardio,
a partir das elaborações de Karatani, o mercado apresenta-se como esse correlato no
campo da economia. Vale ressaltar que a diferença se dá no nível do acento, posto que,
com vimos, a dimensões estrutural e superestrutural se apresentam, antes, como
sobrepostas.

SOBREPOSIÇÕES – NÃO-TODO E DESAMPARO


Nos interrogaremos, agora sobre essa sobreposição. Uma lógica semelhante
aparece numa série de teóricos contemporâneos, cada um em seu campo chega a um
diagnóstico segundo o qual, termos que outrora apareciam como opostos ou
contrastantes se interseccionam ou se sobrepõem. A despeito dos distintos teóricos e
domínios com os quais eles trabalham, duas convergências são importantes de serem
observadas para o problema de pesquisa aqui proposto, a primeira se refere a: nesta
sobreposição ou intercessão, nessa zona de penumbra, a dominância de um termo que
daria contorno ao conjunto, isto é, a operação de totalização do campo, se perde, o que
vincularemos ao não-todo lacaniano; a segunda, aparece aí uma certa vulnerabilidade ou
o desamparo, o qual associaremos ao gozo, tal como elaborado por Lacan.

a) Iniciaremos por Agamben. Balizado por duas figuras, o soberano e o homo


sacer – antiga figura do direito romano – a proposta de Agambem é deduzir o político a
partir de um estado de exceção. Esse topos da exceção é o lugar onde o sujeito se vê à
mercê de um ato soberano em potência, um ato que pode ou não se realizar. Embora nos
encontremos num lugar pautado pela ausência de normatividade, de legalidade ou de
um estatuto jurídico, a potência soberana se faz sentir nessa zona, ou ainda, “A
soberania é, de fato, precisamente esta ‘lei além da lei à qual somos abandonados’”
(AGAMBEN, 2002, p. 64). E bando – um antigo termo germânico, designando “tanto a
exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do soberano” (AGAMBEN,
2002, p. 35) – será o nome dessa potência exercida sobre o sujeito no estado de exceção,
onde “não é mais possível distinguir entre exceção e regra” (AGAMBEN, 2002, p. 69).

Assim, soberano é aquele que tem a potência do bando e homo sacer é a figura
sobre a qual essa potência é exercida. Homo sacer é uma categoria carregada de
ambiguidade; por um lado é matável, seu assassínio não é punido, por outro, não pode
ser oferecido como sacrifício aos deuses; seria, por decorrência, aquele resquício
abandonado em relação à comunidade, pertencendo à comunidade excluindo-se dela e,
ao mesmo tempo, a Deus não sendo sacrificável. Temos, desse modo, a íntima relação
entre o a soberania e o homo sacer: “Soberania é a esfera na qual se pode matar sem
cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e
insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (AGAMBEN, 2002, p. 85). O
homo sacer seria aquele para quem todos os outros homens são soberanos e no limite
oposto, o soberano é aquele para quem todos os outros homens são homo sacer. Sendo
assim, homo sacer é “a formulação política original da imposição do vínculo soberano”
(AGAMBEN, 2002, p. 86).

Por política ou relação política original devemos entender o direito de morte ou


o poder que ameaça de morte a vida nua, isto é, uma vida matável “que se politiza
através de sua própria matabilidade” (AGANBEM, 2002, p. 89). A política assim
entendida, como vínculo original com a soberania, não se cumpre ou não se cumpriu de
uma vez por todas, mas é operada constantemente nas zonas de penumbra ou exceção
do Estado, e, soberano, como dizia Carl Schmitt, “é aquele que decide no [sobre o]
estado de exceção” (SCHMITT apud AGAMBEN, 2002), ou seja, sobre e na suspenção
dos direitos civis, o que implica, novamente, o abandono. Com efeito, se a política
original é a imposição do vínculo soberano, o vínculo normativo, ou legalista, nada mais
é que o recobrimento daquele (o soberano), o qual, por sua vez, se aparente, significa a
dissolução deste. Temos assim, em momentos propícios, “uma sobrevivência do estado
de natureza no próprio coração do Estado” (AGAMBEN, 2002, p. 106). Desta sorte,
Agamben descreverá a topologia da política como: “uma figura topológica complexa,
em que não só a exceção e a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o
fora e o dentro transitam um pelo outro” (AGAMBEN, 2002, pp. 43-44).

b) Em Zizek encontramos um modelo, agora negativo, de ideologia, no qual se


encontram sobrepostos o gozo e o simbólico, ou ainda, onde se sobrepõem o sentido e o
não-sentido. Se o modelo implicado a Althusser por Jameson é “positivo”, no sentido de
fornecer coordenadas para se entender ou simbolizar a experiência, em Zizek se trata,
sobretudo, de encontrar no cerne da ideologia um ponto não simbolizável, mas que, no
entanto, opera como fonte pulsional do sistema. Ele resumirá o processo analítico da
seguinte maneira:

Na psicanálise, o conhecimento é marcado por uma dimensão letal: o


sujeito deve pagar a abordagem com seu próprio ser. Em outras
palavras, abolir o erro do desconhecimento significa, ao mesmo
tempo, abolir, dissolver, a ‘substância’ que deveria esconder-se atrás
da forma-ilusão do desconhecimento. Essa ‘substância’ – a única
reconhecida na psicanálise – é, segundo Lacan, o gozo [jouissance]: o
acesso ao conhecimento é então pago com a perda do gozo – o gozo,
em sua estupidez, só é possível com base em certo não-saber,
ignorância (ZIZEK, 1991/2008, p. 73).
Se a psicanálise opera nessa linha tênue que polariza gozo e sentido, utilizando
da transferência, o vínculo libidinal com o analista, como veículo do processo, a
ideologia, por seu lado, funciona congregando gozo e sentido, também, a partir do
vínculo transferencial com um significante qualquer. Devemos notar, no entanto, que a
relação transferencial com vistas à constituição de um edifício ideológico se dará, para
Zizek, sob o fundo da perda das coordenadas simbólicas, que ele associa ao processo
desterritorialização próprio ao capitalismo (ZIZEK, 1992)1. Desta feita:

A dimensão propriamente ‘ideológica’ é, portanto, o efeito de um


certo ‘erro de perspectiva’; o elemento que representa dentro do
campo do significado, a agência do significante puro – o elemento
através do qual o não-significado do significante entra em erupção no
meio do significado – é percebido como um ponto de extrema
saturação do significado, como o ponto que ‘dá sentido’ para todos os
outros e, assim, totaliza o campo do significado (ideológico) (ZIZEK,
1991/2008, pp. 109-110).
c) Alliez e Lazzarato investigam, em seu Guerras e Capital (2018), o
desenvolvimento do Capital e como este encontra como motor a acumulação primitiva,
1
Zizek, S. (1992). Eastern European liberalism and its discontents. New German Critique, (57),
25-49.
inicialmente em operação nas colônias. Para os autores, a acumulação primitiva não se
refere somente à transformação em mercadoria de áreas outrora não englobadas pelo
Capital, mas, nessa transformação estão envolvidos todas funções próprias à guerra:
“introdução de dispositivos disciplinares, racionalização e aceleração da produção,
criando assim o terreno de experimentação e aperfeiçoamento de novas tecnologias, de
gestão biopolítica e da própria força produtiva” (ALLIEZ & LAZZARATO, 2018, p.
81). Desta sorte, os princípios de guerra envolvem tanto uso do poderio bélico, quanto o
próprio princípio administrativo, que nada mais seria do que o aparato burocrático
mobilizado à administração da paz, enquanto durar a paz – orientados por essa acepção
de guerra, os autores desmembrarão e equivalerão, ao longo do texto, tanto a famosa
frase de Clausewitz, “a guerra não é mais que a continuação da política por outros
meios”, quanto sua inversão por Foucault, “a política é a guerra continuada por outros
meios”.

Assim, o processo de acumulação de capital se dá por duas vias, no Norte


desenrola a extração de mais-valia por um processo predominantemente econômico-
administrativo, seja na fábrica, no campo ou na mineração, seja na própria esfera de
circulação; e no Sul,

os métodos são a política colonial, o sistema de empréstimos


internacionais, a política de interesses privados, a guerra. Aparecem
aqui, sem dissimulação, a violência, a trapaça, a opressão, a rapina.
Por isso é difícil descobrir as leis severas do processo econômico
nessa confusão de atos políticos de violência, nesse confronto de
forças (ID, p. 85).
O Capital funcionaria, então, com um lado de dentro, onde valeriam todos os princípios
republicanos ou iluministas (alcançados sob o fundo do princípio hobbesiano) e um lado
de fora, necessário à manutenção do lado de dentro, onde tais princípios encontram-se
suspensos. Contudo, o que acontece no capitalismo atual é a supressão desse fora que
lastreava o dentro, “A violência, a opressão e a guerra são agora voltadas,
indistintamente, contra os assalariados do Norte rico, que, até pouco tempo antes,
haviam se beneficiado, de uma maneira ou de outra, da pilhagem do ‘terceiro mundo’”
(IDEM). Acontece aqui uma sobreposição entre a lógica antes operativa no Norte e
aquela, também antes, em operação no Sul, o primeiro tem seus suis (“imigrantes,
descendentes de colonizados que vivem nos países colonizadores, trabalhadores,
desempregados, precários, pobres etc.” (ID, p. 354)) e o segundo seus nortes (“zonas de
produção high-tech e de grande consumo para aqueles que se enriquecem:
consumidores de elite” (ID, p. 355)). Motivo pelo qual os teóricos predicarão a nova
modalidade de guerra por fractal, no qual predomina princípios estratégicos típicos de
guerra (aparato bélico e administrativo), porém, em escalas e lugares variáveis.

E desterritorialização, termo emprestado de Deleuze e Guattari, será o modo de


operação do Capital em seu princípio autopoiético; pelo termo devemos entender moeda
e guerra, os quais “sobrepõem-se perfeitamente na globalização capitalista
contemporânea” (ID, p. 331). Os autores propõem duas reflexões a partir daí:

A finança tornou-se um exército não militar que permite a condução


de ‘guerras não sangrentas’ cujos efeitos são tão devastadores quanto
os das ‘guerras sangrentas’. A guerra deixou de ser a política
perseguida por meios sangrentos, a política do Capital é a continuação
da guerra por todos os meios de que sua máquina de guerra dispõe. A
segunda reflexão: a rainha das ‘crises’, que é a crise financeira, a
partir da qual se abrem e se encadeiam, no ciclo econômico clássico,
as crises de produção e as de comércio, cola sua identidade à da
própria ‘guerra’. A guerra ocupa, assim, o lugar da “crise” que ela
mesma subsumiu (ID, pp. 331-332).
Nesse sentido, a máquina inesgotável do Capital, operando com o princípio segundo o
qual se sobrepõem moeda e guerra, acabou por abolir a fronteira (a linha do Equador)
que separava o dentro e o fora do Capital, ação esta que, por sua vez, nos leva a um
estado de indiscernibilidade entre paz e guerra.

4) Por fim, com a finalidade de compor os diagnósticos do contemporâneo que


versam sobre uma lógica de sobreposição, trabalharemos com William Davies e seu
livro Nervous States (2018), no qual o autor trabalha com a tese de que estados
nervosos são aqueles que residem “No espaço de penumbra entre mente, corpo e guerra
e paz” (DAVIES, 2018, posição 74).

Segundo Davies, o processo civilizatório europeu se deu através do processo de


pacificação – a teoria hobbesiana seria uma elaboração sobre como alcançar a paz – e a
ascensão da razão – Descartes fora o filósofo que instaura o dualismo mente e corpo,
porém, dando primazia ou dominância ao primeiro termo. O processo civilizatório,
portanto, teria como tarefa central a eliminação do afeto de insegurança, o medo gerado
pela “guerra de todos contra todos” de Hobbes e concomitantemente a manutenção do
estado de paz, tarefa esta que só poderia ser empreendida pela construção de um
governo balizado em princípios racionais visando manter seguros os governados, daí o
auxílio da ciência, pois esta configura-se como um conhecimento desinteressado e
objetivo, baseado em fatos:
Este período da história produziu os blocos de construção intelectuais
da era moderna. Noções contemporâneas de verdade, perícia
científica, administração pública, evidências experimentais e
progresso são todos legados do século XVII. A elevação da razão
acima do sentimento foi extremamente produtiva, na verdade mudou o
mundo em suas implicações (DAVIES, 2018, posição 102).
Contudo, ainda seguindo o autor, o conhecimento configurado como Ciência
carece ser avalizado por resultados, isto é, o progresso, na medida em que o corpo
técnico-científico entrega como produto a melhoria na qualidade de vida geral de uma
população, esses agentes são imbuídos de confiança e as pessoas aceitam ter seus corpos
geridos pelas ferramentas técnicas, as quais elas mesmas desconhecem. No cenário atual
em que o teórico nota o ressurgimento de comportamentos de “massas” (baseado na
teoria de Le Bom) ele intuirá que os pilares da modernidade encontram-se em estado de
desfazimento e, portanto, estaríamos vivento numa época de indiscernibilidade entre paz
e guerra e entre razão e emoção (corpo), ou seja, em um estado nervoso.

Pela leitura de Davies, o populismo que reascende no mundo teria como


fundamento um ambiente de insegurança tomado como estado nervoso e o vínculo que
nos mantém atados a tal estado o autor deriva das elaborações de Freud sobre as
neuroses de traumáticas, rebatizadas Transtornos de Estresse Pós-Traumáticos (TEPT):
“existem certos tipos de sofrimento que não podemos abandonar facilmente e que nos
prendem ao passado. Nossos nervos ficam sintonizados em um nível de ameaça
constante, ao qual nos adaptamos” (DAVIES, 2018, posição 2102). E, baseado em
estudos de neurociência, o que tornaria um evento mais propenso a gerar TEPT seria o
sentimento de impotência diante da situação, é essa impotência que se repete e coloca os
agentes em constante guarda, assim,

os sintomas de TEPT podem se desenvolver mesmo quando não há


um causador claro para o trauma. Pais constantemente preocupados
com a segurança do filho, uma garota consciente de que todas suas
amigas a estão julgando pela aparência via mídias sociais ou um
indivíduo que experimenta bullying ou discriminação contínua pode
desencadear os sintomas de TEPT (ID, posição 2136).
Assim, o que as elaborações freudianas sobre a compulsão à repetição “nos ensinam é
que a essência do trauma não é a dor, mas a aguda impotência que nos deixa vulneráveis
à dor, mesmo que somente como uma possibilidade” (ID, posição 2162). Por sua vez, a
sensação prolongada de vulnerabilidade ou impotência gera um tipo de conhecimento
que não é baseado em fatos ou desinteressado, mas em boataria ou desconfiança, típicos
de um estado de guerra; diante de um cenário turvo e incerto, de uma sociedade sem
nenhuma transparência ou que não se representa, os arroubos de violência e/ou
comportamento de horda (que poderíamos associas à ideologia no sentido zizekiano)
tornam-se maneiras de exteriorização de um estado nervoso de fundo.

O OBJETO MAIS-DE-GOZAR E O NÃO-TODO


O que pretendemos captar com esses diagnósticos do contemporâneo,
diagnósticos estes que versam sobre uma sobreposição de operadores outrora disjuntos é
a presença, tanto da lógica do não-todo, quanto do desamparo ou mais-de-gozar, que
Lacan toma em homologia à mais-valia de Marx (LACAN, 2008). Quanto à primeira
Vieira descreverá o recurso lacaniano à lógica do não-todo como aquele que configura
os termos como meio (como contrário ao todo), meio existente e meio estruturado
(VIEIRA, 2004), algo entre uma existência plena conferida pela totalidade, o universal
ao qual o particular encontra-se submetido, e uma não existência simples; de modo que
poderíamos situar o não-todo, ainda sem estabelecer uma relação forte com as
elaborações anteriores, na zona de penumbra. Por sua vez, o mais-de-gozar Lacan o
define como o saldo obtido pela perda ou renúncia ao gozo, à qual se apresenta, por um
lado, como um gozo relacionado aos meios de produção do próprio gozo (LACAN,
2008), e, por outro, como a contraparte do próprio objeto a, se apresentando aí como “o
não-gozo, a miséria, o desamparo, a solidão” (LACAN, 2008, p. 25). Assim, nossa
questão de partida é a de que aqueles referidos como novos sintomas ou novas formas
de sofrimento, nomeados por depressão, pânico ou ansiedade possuem relação com
cenário aqui traçado, de espraiamento do capitalismo e junção de domínios que outrora
apareciam como disjuntos. Resta, contudo, estabelecer como se dá a relação entre não-
todo e mais-de-gozar.

Lacan iniciará sua construção do mais-de-gozar pela novidade de Marx em


relação a Hegel; no segundo, ao fim da dialética da Dominação e Escravidão, há uma
consciência-de-si que é Senhor – função de dominação – e uma consciência-de-si que é
escrava, submetida à primeira e que trabalha para aquela, sendo o trabalho, aí, insígnia
da covardia ou da renúncia em arriscar a própria vida (HEGEL, 1992), que Lacan
associa à renúncia ao gozo. O psicanalista dirá, então que a renúncia ao gozo ou o
trabalho, já existia, o que Marx acrescenta é o fato de o trabalho, agora, encontrar-se
articulado no mercado, o que o dota da propriedade de veicular ou produzir a mais-
valia. Pelo lado da psicanálise, continua, “O que há de novo é existir um discurso que
articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-
de-gozar” (LACAN, 2008, p. 17). A comparação prossegue, é preciso supor, no campo
do Outro, um mercado ou discurso que detém os meios de gozo, dos quais o sujeito
lança mão para a construção da fantasia – uma articulação significante que propicia o
desejo –, a operação realizada pela psicanálise é fundamentar a fantasia ou o desejo
naquilo que os causa, o objeto a como “causa do desejo” (LACAN, 2008, p. 332), bem
como a mais-valia como a causa do circuito de acumulação de dinheiro. Desta feita, se o
mais-de-gozar é efeito do discurso da psicanálise que o isola como causa do desejo, “A
mais-valia, portanto, é fruto dos meios de articulação que constituem o discurso
capitalista” (LACAN, 2008, p. 37).

A questão que se nos impõe, a partir daí, é o porquê de o mais-de-gozar aparecer


não só como meio de produção de gozo, mas também sob a face do desamparo. No
seminário seguinte, O Avesso da Psicanálise, Lacan trata da equivalência entre pai
morto e gozo, tal equivalência é reputada como “operador estrutural” (LACAN, sem 17,
p. 116). Para que se goze é necessária uma estrutura de produção ou de promoção do
gozo, assim, o pai morto é tanto aquilo que faz conjunto ao campo do gozo, quanto o
causador do gozo, a contraparte do gozo estruturado, ou ainda, opera “como a perda de
onde o mais-de-gozar toma corpo” (LACAN, sem 17, p. 117). Desse modo, chegamos
ao pai morto como condensador de mais-de-gozar ou o lugar, o Outro, onde se supõe
concentrar a parcela de gozo não presente no interior da estrutura.

O pai morto, o pai de Totem e Tabu, é o que constituirá, por sua vez, um
Discurso que não fosse o semblante – título do Seminário 18 (LACAN, ANO). Neste
seminário Lacan nota que à diferença do mito de Édipo, aquele de Totem e Tabu é
inteiramente inventado por Freud, se o primeiro

foi ditado a Freud pela insatisfação da histérica, o segundo, por seus


próprios impasses.

Do menino, da mãe ou do trágico da passagem do pai para o filho –


passagem do quê, senão do falo? –, de tudo isso que serve de estofo ao
primeiro mito, não há nenhum vestígio no segundo (LACAN, sem 18,
p. 148, grifo nosso).
Sendo o segundo um mito escrito e além disso constituído de uma única versão e não
articulado por aqueles a quem ele implica, mas pelo próprio Freud, ele é apto a formular
um discurso que não compartiria da dimensão do semblante – os semblantes são termos
diretores de um discurso e por meio dos quais os agentes se vinculam a ele, operam
como um mediador entre a verdade implícita no discurso um modo de gozo ali invocado
(LACAN, sem 18 e 19). Desse modo, o mito fabricado por Freud e a partir de seus
impasses se presta a articular um dos lados da não equivalência radical que fundamenta
a psicanálise – não há equivalência sexual, ou posto por Lacan: não há relação sexual –,
qual seja, o lado do masculino. Definido por duas operações, a primeira referente à
castração, na qual encontramos separados o gozo de seu causador, mais-de-gozar e a
segunda referente à totalização ou fabricação do todo, centrada no Pai primordial que
fecha o conjunto daqueles castrados e concentra em si a parcela de gozo excluída e
necessária ao estabelecimento do gozo parcial, apresentando-se, portanto como a
exceção, não-castrada que funda o regime da totalidade (LACAN, sem 18).

Por sua vez, o lado feminino será mais demoradamente examinado no seminário
subsequente, ...ou pior (LACAN, Ano), seu primeiro enunciado é: não existe x que não
esteja submetido à função da castração, x é uma variável qualquer que não existe e, por
isso, não encontra-se apartada de sua parcela que causa o gozo, o mais-de-gozar – a
existência Lacan a definirá por: “existir é depender do Outro” (LACAN, sem 19, p.
103), ou seja, se submeter à totalização. Contudo, desse enunciado não se deriva que x é
plena, teria acesso a um gozo total, mas que ela está submetida a um tipo de castração
própria à falta de totalidade, daí o segundo enunciado: não-todo x encontra-se
submetido à castração; ou, conforme dito por Lacan: “Ela não está contida na função
fálica, mas nem por isso é sua negação” (LACAN, sem 19, p. 117). O que media, então,
a construção masculina com a feminina, isto é, não haver relação sexual, é o Um, no
contexto do Seminário 19, tomado por “nunca ser senão o Um de uma falta, de um
conjunto vazio” (LACAN, sem 19, p. 156). O Um será remetido a duas acepções, o Um
que se repete devido à estrutura do significante – a repetição dentro de um todo
estruturado que, por sua vez, remete ao mais-de-gozar fora da estrutura – e o Um como
produção significante o S1, referente ao discurso do psicanalista, como, conforme
assinala Lacan, mais-de-gozar (p. 159). Chegamos, por essa via, ao sentido do título do
seminário, ...ou pior, é o gozo não estruturado que se impõe por si mesmo não advindo
do Pai ou do todo e acrescenta: “é a isso que deveria conduzir um discurso que não
fosse semblante. Mas é um discurso que acabaria mal. Não seria em absoluto um laço”
(LACAN, sem 19, p. 175).

Nos parece, a partir de um gozo que não cria laço, no seminário seguinte, Lacan
iniciará por definir o gozo como “aquilo que não serve para nada” (LACAN, sem 20, p.
11) e logo em seguida dirá que isso que não serve para nada é ainda submetido a um
imperativo, “o superego é o imperativo do gozo – Goza!” (IDEM). Esse gozo puro ou
não estruturado, dado não haver a estrutura de exceção, paterna, se inscreve no corpo e
tem na mulher seu índice, por não ser toda. A partir dessa perspectiva, Lacan se lança,
neste seminário, a exposições sobre como a ideia de totalidade ou visão de mundo
encontra lastro (por exemplo na filosofia), mas que, não seria esse o caso da psicanálise
nem do atual estado de coisas – como dirá “o mundo está em decomposição, graças a
Deus. O mundo, vemos que ele não mais se aguenta. O mundo, vemos que ele não mais
se aguenta, pois, mesmo no discurso científico, é claro que não há mais o mínimo
mundo” (LACAN, sem 19, p. 51) (na esteira de Freud, ao dizer que a ciência e a
psicanálise não constituem uma Weltanschauung – visão de mundo (FREUD, fut
ilususão)). Por outro lado, o Um aparece aqui relacionado ao Eros freudiano, como a
operação de ligação a fim de exercer o processo de construir uma totalidade – “Esse Há
Um não é simples – é o caso de dizer. Na psicanálise, ou mais exatamente no discurso
de Freud, isto se anuncia pelo Eros que, de grão em grão, é suposto tender a fazer só um
dessa multidão imensa” (LACAN, sem 20, p. 90).

O que gostaríamos de apontar quanto à exposição lacaniana do não-todo é que


essa lógica não é a da simples multiplicidade dispersa numa espécie de pura imanência,
o que poderíamos referir à Natureza, todavia, não é, também, um Todo ou totalidade,
dado que não se organiza em torno de um significante excepcional, mas é algo entre o
todo e o multiplicidade, uma lógica do meio (para retomar Vieira), a qual, embora
Lacan a ligue explicitamente à ciência, gostaríamos de investigar a pertinência de
relacioná-la ao Capital, bem como trabalhar com a hipótese de que o Capital, desde seu
início, encontra-se em comunhão com a ciência – lembremos que as gêneses do Capital
e da ciência possuem um marco de proximidade. Outrossim, Lacan sugere um
diagnóstico para a era das mídias (tal como acima expusemos):

Tratando-se do discurso científico, é muito difícil manter igualmente


presentes dois termos, que vou lhes dizer. Por um lado, esse discurso
engendrou todo tipo de instrumento que precisamos, do ponto de vista
que aqui se trata, qualificar de gadgets. Desde então, vocês são,
infinitamente muito mais do que pensam, os sujeitos dos instrumentos
que, do microscópio ao rádio-televisão, se tornam elementos da
existência de vocês. Vocês nem podem atualmente medir o vulto
disso, mas isso não faz menos parte do que eu chamo o discurso
científico, na medida em que um discurso é aquilo que determina uma
forma de liame social (LACAN, sem 20, p 110).
Note que Lacan diz liame e não laço, o que coaduna com as leituras supracitadas de que
o Capital desterritorializa o espaço simbólico, ocasionando um gozo não referido à
totalidade. Além disso, nesse espaço desterritorializado, o imperativo de gozo, nos
parece, opera como um gozo que não serve para nada, semelhante à tautologia do
processo de valorização do valor descrita por Marx: “Esse impulso [Trieb] absoluto de
enriquecimento, essa caça apaixonada ao valor” (MARX, 2013, p. 296). Tendo isso em
conta, os novos sintomas ou novas formas de sofrimento, objeto do projeto de pesquisa
aqui proposto, seriam, a título de hipótese, derivados do desengajamento do sujeito no
que tange à dinâmica da sociedade do capitalismo tardio – uma sociedade que não
oferece amparo aos agentes, por faltar a ela o termo excepcional condensador de gozo,
mas, oferece o desamparo, como contraparte do objeto a.

PERSPECTIVAS SOBRE AS NOVAS FORMAS DE SOFRIMENTO


A literatura vem apontando novos fenômenos clínicos e, por vezes, os associa à
dinâmica do nosso tempo. Jameson sugere, no cenário do pós-modernismo:

os casos notórios de autodestruição e burnouts do final dos anos 60 e a


proliferação das experiências com drogas e a esquizofrenia pareceriam
não ter mais quase nada em comum com histéricas e neuróticas do
tempo de Freud, ou com aquelas experiências canônicas de isolamento
radical e solidão, de revolta individual, de loucura (...). Essa mudança
na dinâmica da patologia cultural pode ser caracterizada como aquela
em que a alienação do sujeito é deslocada pela sua fragmentação
(JAMESON, p. 42).
Nos questionamos sobre a possibilidade de modular essa leitura para a gramática
lacaniana. Se é possível, hipotetizamos, é como se tivéssemos passado de um arranjo de
exceção, no qual o sujeito enfrenta os dilemas da alienação ao significante paterno, para
um arranjo materno, no qual o não-todo não oferece as coordenadas de síntese
simbólica. Por sua vez, Zizek comenta que na sociedade contemporânea:

Em lugar da integração de uma lei propriamente dita, temos uma


multiplicidade de regras a serem seguidas: regras para ter sucesso,
regras de adaptação – o sujeito narcísico só conhece ‘regras do jogo
social’ que lhe permitam manipular os outros, ao mesmo tempo em
que se mantém distante de um compromisso sério. Mas esse
desmoronamento do ideal do eu acarreta (...) o surgimento de uma lei
muito mais louca e feroz, de um ‘supereu materno’ que não proíbe,
mas que inflige o gozo e pune o ‘fracasso social’ de um modo muito
mais severo (ZIZEK, eles não sabem, p. 71).
Sob esse fundo de fragmentação e/ou injunção superegoica materna, recolhemos
os diagnósticos depressão e pânico ou ansiedade. Gostaríamos de nos interrogar sobre a
precisão de tais diagnósticos, bem como das leituras a eles referidas nos campos da
psicanálise. Por exemplo: Kehl (ano) e Chemama (ano) associarão a depressão à perda
do regime de temporalidade no mundo atual, bem como à queda do regime paterno.
Dunker (ANO), escreve:

o espectro de sintomas em torno da depressão mostra-se dependente


da narrativa da perda da alma e da alienação do desejo. Os sintomas
relacionados à ansiedade e ao pânico, tais como o medo de lugares
abertos, a vertigem diante de multidões ou de lugares estranhos,
exprimem a perda da experiência de unidade corporal em homologia
com narrativas sobre a perda ou sobre o excesso de organização
sistêmica do mundo (DUNKER, posição 1968).
Por fim, Birman centrará a depressão e o pânico, também, na perda do regime de
temporalidade, bem como na dissolução do espaço simbólico, e qualificará tais
modalidade de sofrimento como silenciosas, contrárias ao impulso à fala próprio às
neuroses clássicas, tal vazio acaba transformando o corpo numa espécie receptor e
emissor de sinais de sofrimento, porém, agora, mudos. Com isso, “o corpo assume a
forma do somático, materializando-se como volume e profundidade, perdendo qualquer
dimensão significante” (BIRMAN, p. 104). Inscreve-se, aí, o estresse, caracterizado
pelo “colapso do psiquismo” (BIRMAN, p. 116),

Depreende-se disso que, se o corpo, a ação e as intensidades são os


registros do mal-estar hoje, isso é o correlato da condição solipsista da
subjetividade, coartada da interlocução com o mundo. Este se
restringe cada vez mais ao registro supostamente pragmático,
perdendo sua dimensão simbólica. Daí por que a linguagem como
poiesis se empobrece, perdendo seu poder metafórico. O desejo fica
então à deriva, nas cadeias metonímicas do discurso, não sendo
relançado mais pelas rupturas, que são promovidas pela simbolização
metaforizante (BIRMAN, p. 142).
A partir do percurso traçado intenciona-se trabalhar as conexões entre novas
formas de sofrimento ou fenômenos clínicos recentes e isso que Jameson qualificou de
Capitalismo Tardio, o qual, neste projeto, reverberou por autores diversos. Acreditamos
que Lacan pode servir de mediador nessa tarefa, precisamente por vincular o objeto
mais-de-gozar ao capitalismo tal como constituído por Marx e, além disso, por nos
fornecer uma lógica em operação na não-totalidade, a qual referenciamos ao
capitalismo, mas, especialmente, às leituras aqui trazidas de autores que versam a
respeito dessa zona de penumbra onde se sobrepõem algumas oposições culminando
num ambiente desterritorializado ou num mundo não centrado numa visão de mundo –
diagnóstico, que fizemos notar, já presente em Lacan. Por fim, como nota Birman, se
esses fenômenos clínicos recentes trazem consigo o sinal da mudez, e considerando que
a psicanálise tem consigo a fala como motor e dimensão do tratamento, seria o caso,
principalmente, de traçar estratégias e elaborações para lidar com esse tipo de sintoma.

Na época do Freud sofria-se por um Outro consistente, na nossa época, sofre-se por
conta de um Outro inconsistente. O sujeito reflexivo é se apropria de uma lacuna no
Outro, a histérica transforma o desejo insatisfeito em desejo de um desejo insatisfeito, o
obsessivo transforma o desejo profano em obstáculo a esse desejo. O sujeito incômodo
“lamenta a desintegração”.

A interpretação do analista perde a eficácia simbólica. “interpretação do analista” (fim


da interpretação do Miller).

Iluminar os conceitos de mais-de-gozar e não-todo na introdução.

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