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cristã
Kaká Portilho1
Resumo:
O construto-pilar do pensamento ocidental reside no mito-religioso, mas não somente. Este estudo propõe,
a partir da análise das narrativas dos livros que compõe o pentateuco - na bíblia da mitologia judaico-cristã
- um levantamento das bases: a) da ordenação do princípio xenofóbico ou ainda, a chamada “intolerância
religiosa”, neste artigo, nomeada como racismo religioso; b) a supressão dos vestígios matriarcais e
africanos, a favor da construção ideológico-cultural de um sistema denominado patriarcado. É parte
integrante da pesquisa de dissertação do mestrado, desenvolvida no Programa de Relações Étnico Raciais
do CEFET. A pesquisa analítica propõe uma revisão bibliográfica para investigar os vestígios do
matriarcado africana e suas sobrevivências dentro de estruturas sociais afrodiaspóricas. O matriarcado
africana é um conceito sistematizado a partir da dissertação, significando estruturas sociais materno-
centradas, no seu sentido mais amplo, sugerindo um sistema de matrigestão ou GMATER ®, onde a
mulher é a centralidade do poder, sem excluir a presença e a importância do masculino como unidade
complementar.
O PROSELITISMO E A XENOFILIA
1
Mestranda do Programa PPRER-CEFET/RJ, coordenadora e pesquisadora do African Studies pelo
Centro de Altos Estudos e Pesquisa Afrikana e Afro-Diaspórico (CEPAA) Brasil e Nigéria (University of
Ibadan), docente do curso de História Geral da África do Instituto Hoju. Orientadora da pesquisa de
dissertação Eneida Cunha (PUC/RJ)
Nos últimos cinco séculos, descritos como era da modernidade, observamos o
proselitismo ocidental “estuprar cultural e psicologicamente” (ANI, 1994.p. xxxvi) culturas
que categorizaram como “outras”, sobretudo, as de matriz africana. Vemos na citação
acima, o relato do missionário/antropólogo Ronaldo Lidório, descrito em seu livro:
Komkobas: o nascer da igreja em uma tribo africana. O livro dedica-se a narrativa do
processo de ‘evangelização’ de uma nação ganesa, e demonstra o seu esforço para
fazer novos prosélitos, através do apostolado e do estudo da cultura daquela sociedade.
Nos relatos apresentados em seu texto etnográfico, o missionário e sua esposa
descrevem as estratégias de apagamento cultural e imposição dos dogmas bíblicos,
negando e demonizando as tradições locais. E junto a isso, a implantação de
assistencialismo social, travestido de caridade. Segundo ele, os Komkobas eram muito
receptivos a membro de outras ‘tribos’, que podiam inclusive participar de seus ritos,
desde que apreendessem seu idioma e suas tradições de dança, “demonstrando ser um
povo muito acolhedor” (p.19). Analisando o livro citado e comparando os dados com as
conclusões de Diop (2014), no livro: A Unidade Cultural da África Negra, e os estudos
de outras sociedades africanas ao longo da investigação da dissertação, percebemos
que existe um princípio que se repete em muitas dessas sociedades: a xenofilia (p.173).
Este princípio ordenador em sociedades africanas2, descreve a maneira como estas
sociedades eram receptivas a outras comunidades de origem cultura diferente das suas,
integrando-as como uma parte a mais de sua própria sociedade.
Partindo deste pressuposto, amparada pela tese dos dois berços civilizatórios de
Diop (2014) e a análise antropológica da cultura europeia desenvolvida pela antropóloga
Marimba Ani (1994), tomo como premissa: o impositivo centro da gravidade de mundo
euro-americana está caminhando para o seu fim. Entretanto, vale ressaltar que trabalhos
que desafiam, ou que rompam com as epistemologias do “Norte”, não devam focar seu
campo de análise a partir de estruturas de pensamento que tentaram destituir os povos
africanos de sua ontologia, como bem descreve Fanon (2008) no capítulo: A Experiência
Vívida do Negro (p.103-126). Logo, concordo com Mbembe (2014, p.9), que “a
descentralização é a experiência fundamental de nosso tempo”. Ou ainda, reiteirada por
Ani (1994. p. 3-9), o “desmame epistemológico”, é um passo fundamental para que
possamos compreender a colonialidade como um processo de deseducação
(WOODSON, 2005) dos povos colonizados, que ainda tentam descrever suas
experiências a partir de pressupostos epistemológicos que os estrangulam.
A ideia de que a cultura de matriz africana pode ser categorizada como cultura das
‘minorias’, tem sido descredibilizada, não apenas por teóricos, mas principalmente por
pesquisas continuadas que demonstram o aumento da auto declaração da população
brasileira, como negra (preta ou parda), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Continua 2016 do IBGE3. Além disso, o Brasil é o país, que fora do
continente africano, concentra a maior população negra no mundo, em conformidade
com a Fundação Cultural Palmares4. Declarar-se negro estaria diretamente relacionado
a um ato político, no sentido de reafirmação e reconhecimento cultural do berço africano
como princípio de origem ancestral. A causa desse aumento está intimamente ligada as
lutas dos movimentos negros africanos e brasileiros, que há muito vem reivindicando
reparação histórica a população afrodescendente (me refiro à movimentos não
institucionalizados, mas que foram importantes deflagradores das insurgências por
libertação da escravidão, a qual, pessoas de origem africana, foram submetidas na
diáspora). Estes movimentos contínuos tem garantido a população negra – ainda que a
passos lentos diante do passivo que nos legou a escravidão – acesso a alguns dos
direitos fundamentais que teoricamente todos os nascidos ou naturalizados no país,
teriam garantido. A multiculturalidade brasileira e o predomínio das culturas de matriz
africana, não apenas no campo da música, dança, arte, mas principalmente no campo
da linguística (LOPES,1995; PETTER, 2000; RAIMUNDO, 1993), assevera que existem
preconceitos estruturados em nossa sociedade que se baseiam, ainda hoje, em teorias
estruturalista e evolucionistas, de um passado racialista europeu (BITHENCOURT,
2018) que nos impõe o racismo estrutural no Brasil.
Neste estudo, não utilizarei a palavra intolerância religiosa, pois meu trabalho está
investigando o princípio xenofóbico dentro dos livros do pentateuco – parte do antigo
testamento da bíblia da mitologia judaico-cristã. Nesta perspectiva, o termo racismo
religioso, se torna mais aprazível para os argumentos que irei defender.
3 In: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-
pnad-c-moradores, acessado em 01//09/2018.
4 In: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/mre000073.pdf, acessado em 01/09/2018.
A cultura é política, e tem sido a maior arma de dominação dos povos colonizados,
que unificam e ordenam suas vivências a partir de experiências euro-americanas. Com
esta afirmativa, não assevero que a experiência da população negra no Brasil seja
essencialmente africana. Minha reflexão aponta para “sobrevivências” de características
essenciais que se mantiveram vivas nas estruturas sociais de matriz africana no país.
Isso quer dizer que grande parte de nós, afrodescendentes, reproduzimos
comportamentos que são característicos das sociedades matriarcais africanas do
passado, as quais fazem parte dos meus estudos. Por este ângulo, a nossa vivência,
parte de uma ontologia distinta da experiência eurocentrada, e desta forma, nossas
vivências não podem ser transformadas em experiências a partir do berço civilizatório
norte (DIOP, 2014).
Em maio deste ano, o padre Fábio de Melo, um dos mais conhecidos e respeitados
representantes da igreja católica no país, ao ministrar uma missa, narra em seu sermão:
[...] Você tem o poder de expulsar demônios. Você treme toda quando vê
aquela galinha preta na porta da sua casa [...] Fizeram uma macumba pra
mim. Eu preciso ir lá no padre Joel. Se você de fato acredita que uma
galinha preta na porta da sua casa, uma garrafa de cachaça e (ênfase)
uma farofa de banana, tem o poder de trazer destruição na sua casa, na
sua vida, você não conhece a força do Cristo ressuscitado [...]
6 In: https://www.cartacapital.com.br/internacional/israel-admite-uso-de-contraceptivos-em-imigrantes-
judeus-da-etiopia, acessado 05/04 2018.
7 Ver em: http://www.cvkimball.com/Tanach/Tanach.xml.
8 Uma publicação que registra os dados de catalogação de algumas obras antiga, contendo o local da
Para os seguidores da religião judaico-cristã, a ideia de deus único parece estar bem
consolidada.
Seus são os patriarcas, e deles procede a descendência humana
de Cristo, quem é deus sobre todos, sempre digno de louvor! Um
homem. Filipenses 2: 6
De acordo com a tabela das nações que aparecem no capítulo 10 de Gênesis, após
o dilúvio que destruiu a Terra, Nóe, a esposa, e seus três filhos: Cam, Sem e Jafé, -
segundo a mitologia, os únicos sobreviventes da catástrofe – foram os responsáveis pelo
povoamento da Terra. Cam, filho mais velho, partiu para o sul da Judéia, chegando ao
norte do Continente Africano. Teve quatro filhos. A um deles deu o nome de Kush, que
não por coincidência foi um grande reino africano localizado ao sul do Assuão entre a
primeira e a sexta Catarata do rio Nilo (1970 a.C). Seus outros filhos se espalharam entre
os países que eram divididos pelo Mar Vermelho. Canaã, seu filho mais novo, deu origem
ao nome da nação e aos povos que colonizaram a costa oriental do mediterrâneo (Líbano
e Israel).
"Canaã gerou a Sidom, seu primogênito, e Hete, e ao jebuseu, o
amorreu, o girgaseu, o heveu, o arqueu, o sineu, o arvadeu, o
zemareu e o hamateu. Depois se espalharam as famílias dos
cananeus. Foi o termo dos cananeus desde Sidom, em direção a
Gerar, até Gaza; e daí em direção a Sodoma, Gomorra, Admá e
Zeboim, até Lasa." Gênesis, 10:15-19
Deus ordena que os hebreus não façam aliança com os cananeus e não se misturem
com eles em matrimônio. A sentença de morte e a destruição do povo cananeu e da sua
cultura vem descrita livro de Gênesis capítulo 7:1-6:
1 Quando o senhor, teu deus, te traz para a terra, você está entrando
para possuir e expulsar diante muitas nações - os heteus, os
girgashitas, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os
jebuseus, sete nações maiores e mais fortes do que você - 2 e
quando o senhor seu deus os entregou e tu os derrotou, destrua-os
totalmente. Não faça nenhum tratado com eles, e não mostre
nenhuma misericórdia. 3 Não se familiarize com eles. Não dê suas
filhas a seus filhos ou leve suas filhas para seus filhos, 4 pois eles
vão afastar seus filhos de me seguir para servir outros deuses, e a
raiva do senhor vai se queimar contra você e rapidamente destruí-lo.
5 Isto é o que você deve fazer com eles: Divida seus altares,
Igualmente nos livros de Êxodo (34:16), Josué (3:10), Levítico (14:34), Números
(31:17), Gênesis (24:13), o deus judaico-cristão reafirma a violência com que o povo
cananeu deve ser destruído. Após ver a nudez de seu pai embriagado (Gênesis 9:18 -
10:32), Cam viu seu filho Canaã tornar-se servo de seus irmãos e tios. A partir desta
narrativa, escrita, reescrita e traduzida por mãos e mentes humanas, o deus todo-
poderoso dos judeus e cristãos sentenciou toda uma nação, amaldiçoando de dizimando
sua descendência. Qual seria o tamanho da violação de Cam ao ver a nudez e a
embriaguez de seu pai que justificaria a subalternização e sentença de morte de todos
os seus descendentes? Canaã foi amaldiçoado. Ele ia ser o menor dos servos de seus
irmãos. Cam foi o antepassado daqueles que construíram grandes cidades e impérios,
incluindo a Babilônia, a Assíria, Nínive e o Kemet. Put, provavelmente, foi o pai dos povos
negros, segundo a mitologia bíblica.
Carol Christ (2005, p.17) ressalta que “re-imaginar o poder divino como Deusa tem
importantes consequências psicológicas e políticas”, como caminho de descolonização
do pensamento que naturaliza a dominação masculina. Segundo Schroer (1995, p. 40),
o culto à Deusa era exercido tanto por homens como por mulheres, mas veio sobretudo
ao encontro das necessidades das mulheres, pois lhes oferecia mais espaço no âmbito
religioso.
Reconstruir a memória da Deusa a partir dos dados arqueológicos e identificando na
literatura bíblica a relação conflituosa que se estabelece com ela.
Asherah, a deusa proibida, esposa do deus Javé do tetragrama sagrado
YHWH. Deus não estava sozinho. A pesquisadora Francesca Stavrakopoulou do
Departamento de Teologia da Religião na Universidade de Exeter foi uma das pioneiras
a afirmar que o deus de Israel teve uma esposa. Alguns citam Dt. 33.2 e alegam que a
tradução “à sua direita, havia para eles o fogo da lei” deveria ser interpretada como “à
sua direita estava Ashera”, no intento de dizer que deus estava com sua esposa. É uma
possibilidade, mas a maioria dos eruditos não concordam. O versículo pode ser
entendido também como “e com ele havia miríades de Cades, à sua mão direita
guerreiros [ou: anjos] dela”11. “Com [as] miríades de Cades; à sua mão direita [havia]
com ele anjos”; “e com ele milhares de santos. As recentes descobertas arqueológicas
em templos antigos da história sagrada, têm demonstrado pistas de que deus não
estava sozinho. Há 3000 anos, os judeus ortodoxos, após o aparecimento bíblico dos
israelitas, reúnem-se para prestar homenagem a Javé, o todo poderoso deus de Israel.
Abandonam os rituais pagãos do passado para forjar uma aliança com um único deus, a
quem chamaram de YHWH. “Não terá outros deuses além de mim” (Exo 20). Antes disso,
11 Veja JTS, Vol. 2, 1951, pp. 30, 31. LXX.
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN
Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs
Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
os antigos judeus eram pagãos, adoravam vários deuses, dentre eles a deusa-mãe, o
símbolo quintessencial da vida e da fertilidade. Foi a deusa-mãe derrotada pelo deus de
Israel como a Torá sugere? Ou teria sido suprimida pelos tradutores da bíblia? Nos
últimos anos postularam que os antigos israelitas adoraram Asherah e outras divindades
ao lado de Javé, o Deus do Antigo Testamento. Agora outros tomaram um passo além e
afirmam que a suposta esposa de Javé, Asherah, foi posteriormente retirada da Bíblia
por escribas com uma agenda monoteísta.
CONCLUSÕES PRELIMINARES
Asherah e YHWH eram o par vital, mito fundador, par divino que promove a fertilidade
através de sua união? O culto à Deusa, a dama-do leão, existiu no início da história de
Israel, na época de Salomão? Com todas as evidências a favor da deusa, a supressão
do culto a Asherah, no ápice do monoteísmo, foi orquestrada pelos autores, padre e
escritores do velho testamento. Com medo da influência e do poder da deusa-mãe
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS