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artigo convidado / Invited Article

MADEIRA NR; REIFSCHNEIDER FJB; GIORDANO LB. 2008. Contribuição portuguesa à produção e ao consumo de hortaliças no Brasil: uma revisão
histórica. Horticultura Brasileira 26: 428-432.

Contribuição portuguesa à produção e ao consumo de hortaliças no Bra-


sil: uma revisão histórica
“Este Brasil é já outro Portugal, e não falando no clima que é muito mais temperado e sadio, sem calmas grandes, nem frios, e donde os homens vivem muito
em poucas doenças, como de cólica, fígado, cabeça, peitos, sarna, nem outras enfermidades de Portugal; nem falando do mar que tem muito pescado, e sadio;
nem das cousas da terra que Deus cá deu a esta nação...” Fernão Cardim, 1625.

Nuno R Madeira1; Francisco JB Reifschneider1; Leonardo de B Giordano²


1
Embrapa Hortaliças, C. Postal 218, 70359-970 Brasília-DF; ² Pesquisador aposentado, Embrapa Hortaliças; nuno@cnph.embrapa.br

RESUMO ABSTRACT
Após a descoberta do Brasil em 1500 e o início da colonização The Portuguese contribution to the production and
sistemática em 1530, os portugueses foram paulatinamente se esta- consumption of vegetables in Brazil: an historical review
belecendo ao longo do litoral brasileiro. Ocorreu então, promovido After the discovery of Brazil in 1500 and the beginning of its
pelos colonos, navegadores e jesuítas portugueses um amplo pro- systematic colonization in 1530, the Portuguese have gradually settled
cesso de troca de plantas, dentre elas as hortaliças, entre Portugal, along the Brazilian coast. An extensive exchange of plants, including
Brasil e as outras possessões portuguesas na África e na Ásia. Além vegetables, took place among Portugal, Brazil and other possessions
de diversificar a alimentação, estas introduções serviram de mate- in Africa and Asia by the Portuguese colonizers, sailors and Jesuits.
rial básico para o melhoramento genético, muitas vezes realizado de In addition to diversifying the food, these introductions served as
forma empírica, na adaptação destas espécies às condições basic materials for breeding, often carried out empirically, searching
edafoclimáticas brasileiras. A partir do século XVIII, intensificou- the adaptation of these species to Brazilian soils and climate. After
se a imigração portuguesa para o Brasil em função da descoberta de the eighteenth century, with the discovery of gold in Minas Gerais,
ouro nas Minas Gerais, verificando-se também um forte surto urba- Portuguese immigration to Brazil was intensified, with a strong urban
no. Também, em meados do século XVIII, ocorreu a imigração sis- development. Also, in the middle of the eighteenth century, there
tematizada de açorianos para o Sul do Brasil. Com eles, muitas vari- was a strong and systematized immigration from Açores to the South
edades de hortaliças, especialmente de cebola e cenoura. Em cebo- of Brazil. With it, many varieties of vegetables, specially onion and
la, a maioria das variedades brasileiras são originárias deste mate- carrot, were brought to Brazil. Most of the Brazilian varieties
rial. A partir de seleção dentro da cultivar portuguesa Garrafal, ori- originated from this material. Cultivar Baia-Periforme, the
ginou-se a cultivar de cebola Baia-Periforme, cultivar mais plantada predominant onion variety in the Brazilian Southeast until the advent
no Sudeste até o advento dos híbridos. Também as cebolas do tipo of hybrids, originated from selection within the portuguese cultivar
Crioula, até hoje as mais plantadas no Sul do Brasil, são originárias Garrafal. The Creole onions, still today the most planted in Southern
de material vindo dos Açores. Em cenoura, o chamado germoplasma Brazil, were originated from germplasm brought by the Azoreans.
tropical, também seleção de materiais trazidos pelos açorianos, foi In carrots, the so-called tropical germplasm, formed by selection of
base para o melhoramento genético de cenoura tropical, culminan- materials brought by the Azoreans, was the basis for the genetic
do com o lançamento da cultivar Brasília em 1981 até hoje o mate- improvement of tropical carrot, culminating with the release of
rial mais plantado no verão. Os portugueses deixaram profundas cultivar Brasilia, in 1981, the most planted cultivar in summer. The
heranças para a cultura brasileira, determinando alguns de nossos Portuguese have left a profound legacy for Brazilian culture, present
hábitos, entre eles os alimentares. No ano em que se completam 200 in some of our habits, including food habits. In the year we are
anos da vinda da família real portuguesa ao Brasil, aproveitamos a completing 200 years of the arrival of the Portuguese royal family
oportunidade para falar sobre as contribuições lusas na introdução, to Brazil, it is our opportunity to mention the Portuguese contributions
na produção e no consumo de hortaliças no Brasil. to the production and consumption of vegetables in Brazil.
Palavras-chave: Imigração, introdução de variedades, intercâmbio Keywords: Immigration, introduction of varieties, germplasm
de germoplasma. exchange.

(Recebido para publicação em 15 de agosto de 2008; aceito em 31 de outubro de 2008)


(Received in August 15, 2008; accepted in October 31, 2008)

mera formalização da posse de territó- respectivas coroas. E todos os bons e


O Brasil foi achado, segundo termo
empregado pelo jornalista e histo-
riador Bueno (2000), pelos portugueses
rios já anteriormente visitados por ou-
tros navegadores que, entretanto, não
maus hábitos portugueses, como ressalta
Antonil1 foram transportados da matriz
a 22 de abril de 1500, referindo-se ao estavam autorizados a reivindicar a pos- para sua nova colônia (André João
descobrimento do Brasil como uma se destes territórios em nome de suas Antonil, 1711). A partir de 1500, os co-

1
“Se os senhores de engenhos, e os lavradores do assucar e do tabaco, são os que mais promovem hum lucro tão estimável, parece que merecem mais que os outros ser
preferidos no favor, e achar, em todos os tribunaes, aquella prompta expedição que atalha as dilações dos requerimentos, e o enfado, e os gastos de prolongadas demandas”

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Contribuição portuguesa à produção e ao consumo de hortaliças no Brasil: uma revisão histórica

lonos passaram a se estabelecer na nova Vieram nesse período portugueses roas de Portugal e Castela couberam si-
possessão. De início, aqui foram deixa- de todos os tipos: ricos fazendeiros, multaneamente a Felipe II, III e IV de
dos degredados, isto é, pessoas indese- aventureiros, mulheres órfãs, degreda- Castela em um regime de monarquia
jáveis em Portugal como ladrões e trai- dos, empresários falidos e membros do dualista que durou 60 anos, dá-se o re-
dores que tinham como pena o degredo clero. O foco da imigração foi o Nor- conhecimento de que Portugal perdera
no Brasil. Os primeiros colonos foram deste brasileiro onde as plantações de o comércio das especiarias orientais,
abandonados à própria sorte e acabaram cana-de-açúcar estavam em pleno de- levando o Rei de Portugal, D. Pedro II,
sendo respeitados, temidos e acolhidos senvolvimento. Esta imigração ficou a tentar estabelecer um novo pólo de
ou eliminados e até mesmo comidos marcada pela masculinidade da popu- especiarias no Brasil. Desde 1677, pelo
pelos grupos indígenas que viviam no lação, em função da imagem do Brasil menos, foram enviadas várias remessas
litoral. como uma terra selvagem e perigosa, de plantas vivas e sementes pelos bar-
Nas primeiras décadas do século difícil para as mulheres portuguesas, cos que aportavam no Brasil a caminho
XVI, a imigração portuguesa para o havendo inclusive o envio pela Coroa de Lisboa para as deixarem em vários
Brasil foi pouco significativa, pois a de mulheres órfãs para suprir a falta de locais do próprio Brasil e nas colônias
Coroa Portuguesa adotou por estratégia mulheres portuguesas. Ainda assim, as da África (Ferrão, 1993).
investir na expansão comercial nos con- mulheres indígenas e africanas, oriun- A introdução de hortaliças
tinentes asiático e africano, deixando das do florescente e terrível tráfico de
escravos, acabaram por substituir a fal- A colonização do Brasil pelos por-
suas possessões nas Américas para um tugueses provocou, sem dúvida, um dos
ta de portuguesas, acarretando ampla
momento posterior. Era gigantesco o mais amplos processos de troca de plan-
miscigenação (GNU FDL, 2008). Isso
desafio para a pequena população por- tas entre a Europa, as novas terras des-
influenciou nossa cultura e,
tuguesa pela enormidade do território cobertas e as outras possessões na Áfri-
consequentemente, nossos hábitos ali-
sob seu controle, praticamente todo o ca e na Ásia. Do reino e das ilhas, os
mentares, caracterizados pela mescla de
litoral africano e grandes porções na colonos e os navegadores portugueses
sabores entre a grande diversidade de
Ásia, em especial na Índia e nas Molucas trouxeram, além da cana-de-açúcar e da
espécies exóticas introduzidas pelos
(parte da atual Indonésia). Entretanto, colonizadores e de espécies nativas, efe- videira, outras fruteiras (limoeiros, la-
alguns anos após o descobrimento, pi- tivamente já utilizadas pela população ranjeiras, cidreiras, figueiras, romãzei-
ratas franceses e de outras nacionalida- indígena que habitava o Brasil. ras) e as hortaliças (alfaces, couves, re-
des começaram a rondar o território bra- polhos, nabos, cenouras, pepinos, espi-
Em 1711, o famoso livro-marco da
sileiro, traficando principalmente pau- nafres, cebolas, alhos, mostardas, toma-
história do desenvolvimento brasileiro,
brasil em terras sob domínio luso, o que tes, gengibres, inhames). Os Padres da
o Cultura e Opulência do Brazil por
obrigou a Coroa Portuguesa a começar Companhia de Jesus, que chegaram ao
suas Drogas e Minas escrito por Antonil,
efetivamente a colonização do Brasil. A Brasil a partir de 1549, possivelmente
registrava com detalhes a produção de
coroa então dividiu a colônia em capi- foram ativos também na introdução de
cana-de-açúcar e fumo e ressaltava a
tanias hereditárias em 1530 e repassou hortaliças no Brasil. As contribuições
vastidão da pecuária em todo o territó-
sesmarias a colonos que tinham um pra- rio. Dava uma idéia detalhada dos pro- dos Jesuítas na introdução de algumas
zo para desenvolvê-las. cessos sociais da agricultura e particu- espécies, como a canela, é bem conhe-
Assim, segundo Bueno (2006), a larmente das relações entre o senhor do cida e documentada (Ferrão, 1993). Aos
verdadeira colonização do Brasil me- engenho e todos os outros que com ele 21 de julho de 1773, o Papa Clemente
diante a imigração sistemática, teve seu interagiam e destacava a preponderân- XIV assinou o Breve “Dominus ad
início em 1530 após a famosa expedi- cia da agricultura sobre as minas. É Redemptor” que suprimiu a Companhia
ção de Martin Affonso de Souza e a fun- interessantemente mudo com relação às de Jesus. É incalculável a contribuição
dação da primeira vila brasileira, São hortaliças, já amplamente cultivadas no dos jesuítas com relação à difusão do
Vicente, na Baixada Santista. Mais que país. Possivelmente, a decisão estraté- cultivo e do consumo de hortaliças du-
uma simples Feitoria, a Vila de São gica de Portugal de reservar ao Brasil a rante os mais de duzentos anos de sua
Vicente desenvolveu-se, tornando-se posição de grande produtor de açúcar e permanência no Brasil.
sede de próspera capitania. A partir de fumo e concentrar as especiarias (entre Os legumes europeus foram intro-
então, numerosos portugueses foram elas olerícolas como o gengibre) no Ori- duzidos desde os primeiros anos de co-
paulatinamente se estabelecendo ao lon- ente, apesar de ter inicialmente feito as lonização. O padre jesuíta Fernão
go do litoral brasileiro, desde a foz do introduções destas no Brasil, em Ango- Cardim, que chegou ao Brasil em 1583,
Amazonas até o estuário do Rio da Pra- la e em São Tomé já no início do século relata: “Melões não faltam em muitas
ta. Eram atraídos pela exuberância de XVI. E Dom Manuel mandou-as des- capitanias, e são bons e finos; muitas
sua natureza e prodigiosidade de seu truir e proibiu o seu cultivo. É sabido, abóboras que fazem conserva, muitas
solo adequado ao cultivo agrícola e ao todavia, que a força das ordens reais alfaces, de que também a fazem couves,
pastoreio e, posteriormente, pelos tesou- perdia-se sempre na distância... pepinos, rabões, nabos, mostarda, hor-
ros em seu subsolo. A isso se aliava a Após a restauração, nome dado à telã, coentros, endros, funchos, ervilhas,
relativa facilidade de obtenção do bra- reconquista da independência de Portu- gergelim, cebolas, alhos, borragens, e
ço indígena trabalhador, pois os gal em 1640, isto é, o regresso à sua in- outros legumes que do Reino se trouxe-
brasilíndios litorâneos eram pouco hos- dependência plena em relação à Castela, ram, que se dão bem na terra.” (Fernão
tis aos primeiros desbravadores. em que por questões de herança as co- Cardim; Ana Maria de Azevedo [ed lit],

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NR Madeira et al.

1997). Os textos do padre Fernão cravos durante as longas viagens marí- Fato é que esta medida poupou Portu-
Cardim foram escritos entre 1583 e 1601 timas dos portugueses (Ferrão, 2005). gal do inevitável massacre frente às tro-
e mantiveram-se inéditos durante sécu- Os “inhames” eram alimentos estraté- pas napoleônicas. E o gosto dos portu-
los, só vindo a ser parcialmente divul- gicos para a armada portuguesa, à se- gueses pelas terras d’além mar foi tanto
gados em língua portuguesa em 1847. melhança dos repolhos para a armada que o Rei D.João VI ficou por aqui por
Na relação das hortaliças apresentadas Holandesa, pois reduziam o apareci- 13 anos, regressando à Portugal somen-
pelo padre Cardim nota-se a ausência mento de escorbuto durante o período te em virtude de percalços políticos que
do tomateiro que, entretanto, encontra- das grandes navegações. O inhame da o obrigavam a isso. Chegando ao Rio
se presente na relação das hortaliças espécie Dioscorea alata foi introduzi- de Janeiro, em 08 de março de 1808, e
cultivadas no Brasil em trabalho publi- do da Ásia e as espécies D. bulbifera, instalando-se abusivamente nas casas
cado em 1730 e citado por Ferrão D. cayanensis, D. dumentorum e D. dos senhores mais abastados, ao assu-
(2005). Portanto, pode-se depreender rotundata são originárias da África Oci- mir a rotina diária, os portugueses sen-
que, possivelmente, a introdução do to- dental (Ferrão, 1992), todas cultivadas tiram falta de seus alimentos e passa-
mateiro como cultura hortícola no Bra- nas regiões Norte/Nordeste do Brasil ram a promover sua produção e consu-
sil ocorreu após 1601, época em que já (Pedralli et al., 2002). O taro (Calocasia mo em maior escala. Consigo traziam
havia sido introduzido na Espanha, Itá- esculenta), comumente chamado de novas cultivares de couve, cenoura, ce-
lia e Inglaterra. inhame no Sudeste e Sul do Brasil, cuja bola, batata, alface, entre outras horta-
A introdução de várias espécies e origem é o Sudeste Asiático e Oceania, liças. Esta demanda e a resultante abun-
variedades de hortaliças, além de diver- foi outra cultura introduzida pelos por- dância de hortaliças no Brasil imperial
sificar a alimentação dos primeiros co- tugueses na nossa dieta. de 1853 é detalhadamente descrita por
lonizadores, serviu de material básico Incentivo ao consumo e à produ- Custódio de Oliveira Lima no “A Guia
para o melhoramento genético, na bus- ção de hortaliças do Jardineiro – Horticultor e Lavrador
ca por uma melhor adaptação destas es- A partir do século XVIII, intensifi- Brazileiro ou Tratado Resumido e Cla-
pécies às diferentes condições ca-se a imigração portuguesa para o ro Ácerca da Cultura das Flores, Horta-
edafoclimáticas encontradas no Brasil. Brasil em função da descoberta de ouro liças, Legumes, Fructos e Cereaes; da
Outras introduções tornaram-se indis- nas Minas Gerais e do aprimoramento Criação e Tratamento das Abelhas, Bi-
pensáveis à culinária regional em algu- dos meios de transporte. No início do cho da seda, Animaes e Aves Domésti-
mas regiões brasileiras. Neste particu- século XVIII, a cultura da cana-de-açú- cas”. Seu terceiro capítulo (Das hortas, e
lar, destaca-se a tradicional “couve mi- car e as minas de ouro tornaram-se os das Searas), aborda diversos aspectos, ci-
neira”, herança de um dos produtos mais principais motores da economia da co- tando que a horticultura ou arte do horte-
representativos da culinária portuguesa, lônia e o desenvolvimento e riqueza tra- lão demanda mais cuidados que a agri-
que criou raízes profundas no solo mi- zidos pelo ouro atraiu um grande con- cultura propriamente dita, exigindo do
neiro devido à forte presença lusa na tingente de colonos portugueses. O sur- horticultor dedicação diária, e que a
província das Minas Gerais durante o to urbano que se deu na colônia graças horticultura não se pode aplicar a grandes
ciclo do ouro. Entretanto, deve-se res- à mineração fez crescer as ofertas de terrenos. Já fala de algumas sugestões de
saltar que em terras lusas as variedades emprego para os portugueses, antes qua- rotação de culturas como o plantio de ce-
de couve mais usadas são do tipo bola após couves. São discutidas mais de
se que exclusivamente rurais e, agora,
tronchuda, enquanto que no Brasil as 50 hortaliças, incluindo: abóbora, acelga,
profissionais do comércio. A maior par-
couves do tipo manteiga “pé alto” adap- aipo, chicória, almeirão, alface (250 vari-
te desses imigrantes vieram do Minho,
taram-se melhor. edades, com três raças principais:
província ao Norte de Portugal, fixan-
Outra contribuição, esta indireta e repolhuda, crespa, romana ou orelha de
do-se principalmente na região Centro-
bem menos honrosa para os portugueses, mula), alcachofra, alho, anil, azedinha,
Oeste e no estado de Minas Gerais. Pela
mas que ocorreu de fato e que hoje re- batata (brancas, amarelas, cinzentas,
vinda em larga escala de colonos, a lín-
sultou no enriquecimento ainda maior do violáceas, compridas, redondas), batata
gua portuguesa tornou-se dominante no
miscigenado povo brasileiro, foi, em de- doce, berinjela, beterraba, borragem, car-
Brasil em meados do século XVIII, em
corrência do tráfico de escravos promo- dos, cebola, cenouras (branca longa, bran-
substituição ao tupi-guarani ou língua
vido pelos portugueses, o fluxo de mate- ca redonda, amarela longa, amarela redon-
geral (GNU FDL, 2008).
riais africanos, como os inhames, o quia- da, roxa de Hespanha, curva de Holanda
Particularmente, momento crucial e e vermelha da Alemanha), chalotas, chi-
bo, o jiló e o maxixe, entre outros. que este ano completa dois séculos, foi córias, coentro, couves, repolho, couve flor
A introdução dos “inhames” africa- a vinda da família real e sua comitiva e brocos, chus-chus ou caiota da Ilha da
nos e asiáticos no Brasil deve ter sido em 1808 (mais de oito mil pessoas), a Madeira, espargos, espinafres, favas, grão
realizada nos primeiros anos da coloni- elite da sociedade portuguesa. Por uns de bico, hervilha, inhame ou girassol
zação portuguesa, pois serviam, nos na- é vista como uma fuga covarde e por batateiro, lentilha, melancia, melão, mo-
vios, de alimento da tripulação e dos es- outros como uma estratégia de guerra. rangueiro, mostarda, nabo, nabo da Sué-

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Contribuição portuguesa à produção e ao consumo de hortaliças no Brasil: uma revisão histórica

cia, ortelãa, ouregões, pastel, pepino, pi- Santa Catarina ao Prata e o predomínio ao longo do ano em muitas regiões.
mentão, pimpinella, rabãos, rabanetes, da língua portuguesa, enquanto núcleos Os portugueses deixaram profundas
ruiva, salsa, tomates e túbara da terra. de resistência à expansão espanhola heranças para a cultura brasileira e tam-
A contribuição específica dos Aço- (GNU FDL, 2008). Introduziram seus bém para a etnicidade do povo brasilei-
rianos costumes e hábitos, inclusive alimenta- ro. Hoje, a maioria dos brasileiros têm
O fluxo de imigrantes açorianos con- res, trazendo consigo variedades alguma ancestralidade portuguesa. Cer-
tribuiu marcadamente para o desenvol- hortícolas que, após seleção empírica tamente, a influência da colonização
vimento da agricultura brasileira. A imi- pelos agricultores, formou o que hoje portuguesa em terras d’além mar foi
gração dos Açores para o Brasil foi es- chamamos de germoplasma nacional, fundamental em muitos fatores do nos-
porádica até 1617, quando se estabele- base do melhoramento genético em al- so dia-a-dia, determinando muitos dos
ceu um contrato para o transporte de gumas hortaliças para as condições hábitos que temos hoje, entre eles os
edafoclimáticas brasileiras. alimentares.
1000 açorianos, sendo os mesmos ins-
talados no Maranhão. Entretanto, foi Particularmente no caso da cebola, Portanto, neste ano em que se com-
durante o reinado de D. João V que se as cultivares introduzidas sofreram um pletam 200 anos da chegada da família
efetivou a vinda de maiores levas de processo de seleção pelos produtores, real portuguesa ao Brasil, momento his-
açorianos, quer seja para o Norte/Nor- dando origem a diversas populações tórico marcante para o desenvolvimento
deste (Pará, Maranhão) e principalmente mais adaptadas às novas condições de do nosso país, como integrantes da Asso-
para a Região Sul (Silva, 1994). No Sul, cultivo, mais resistentes a doenças e com ciação Brasileira de Horticultura, agrade-
a colonização açoriana instalou-se prin- melhor conservação pós-colheita (Melo cemos o convite e a oportunidade de falar
cipalmente em Santa Catarina e Rio et al., 1998). A cultivar Garrafal, oriun- um pouco sobre as contribuições lusas (ou
Grande do Sul por decisão regulamen- da de Portugal, após vários ciclos de como dizemos carinhosamente “da
tada pelo Conselho Ultramarino, de seleção, muitas vezes empírica, deu ori- terrinha”) na introdução, na produção e
modo a ocupar uma região que vinha gem à cultivar Baia-Periforme (Lisbão, no consumo de hortaliças no Brasil.
sendo ameaçada pela expansão espanho- 1993). Até o advento dos híbridos im- Finalmente, a título de reflexão, é
la proveniente do Prata. O primeiro portados na década de 1990, a cultivar importante lembrarmos do passado
transporte de açorianos chegou ao Sul Baia-Periforme foi a cultivar de cebola como forma de entender o presente e
do Brasil em 1748, após três meses de mais plantada no Sudeste. Também as muito do que somos hoje e como base
viagem em pequenos navios mercantes cultivares do tipo Crioula são originári- para planejar nosso futuro enquanto in-
(Wiederspahn, 1979). Nos Açores, o as de material trazido pelos açorianos divíduos, sociedade e nação.
excesso demográfico atingia níveis in- (Bendjouya, 1980), provavelmente de
toleráveis e a miséria grassava, resulta- origem egípcia, sendo até hoje planta- REFERÊNCIAS
do da baixa produção agrícola. Assim, das no Sul do Brasil.
o recrutamento de colonos ilhéus foi a Em cenoura, o germoplasma nacio- AMARAL L. 1958. História Geral da Agricultura
solução para os açorianos e para o go- nal ou tropical foi coletado por pesqui- Brasileira no tríplice aspecto político-social-
sadores da Embrapa Hortaliças (então econômico. Volume II. 2a. ed., São Paulo:
verno português que precisava povoar Companhia Editora Nacional. 385 p.
efetivamente o Sul do Brasil. A Coroa UEPAE de Brasília) em 1976 no Muni-
ANTONIL AJ. 1923. Cultura e Opulência do
oferecia vantagens aos colonos: passa- cípio de Rio Grande, sul do Rio Grande Brazil por suas Drogas e Minas, com um
gem gratuita, um pequeno lote de terra, do Sul (Vieira et al., 1983), aonde vinha estudo bio-bibliographico por Affonso de E.
ferramentas agrícolas, sementes, duas sendo cultivado por descendentes de imi- Taunay. São Paulo: Companhia
grantes açorianos, constituindo-se em Melhoramentos de São Paulo. 280 p.
vacas, uma égua e farinha suficiente
BENDJOUYA B. 1980. Aspectos gerais da cultura
para um ano. Único foco de coloniza- base genética para o melhoramento de
da cebola no Rio Grande do Sul. Ipagro
ção de povoamento no Brasil colônia, cenoura visando adaptação às condições Informa, 22: 7-13.
buscavam uma vida melhor e não so- climáticas tropicais. Este esforço de pes- BUENO E. 2000. A viagem do descobrimento - A
mente enriquecimento. Santa Catarina quisa culminou com o lançamento da expedição de Cabral e o achamento do Brasil.
cultivar Brasília, em 1981, e que até os Cascais: Editora Pergaminho. 131p.
recebeu 4.612 colonos em 1748, 1.666
dias atuais é o material mais plantado BUENO E. 2006. Náufragos, traficantes e
em 1749, 860 em 1750 e 679 em 1753, degredados. Rio de Janeiro: Editora Objetiva.
duplicando a escassa população da ca- durante o verão. Tendo a cultivar Brasília 160 p.
pitania. Outros tantos rumaram para o como material básico, foram CARDIM F; AZEVEDO AM. [ed lit]. 1997.
Rio Grande do Sul, fixando-se ao longo selecionadas novas populações de plan- Tratados da Terra e Gente do Brasil. Lisboa:
do litoral. No final do século XVIII, tas pelas empresas privadas de semen- Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses. 337 p.
quase todo o Sul estava incorporado ao tes, gerando algo como uma dezena de
FERRÃO JEM. 1993. Especiarias. Lisboa: IICT.
domínio português, predominando no novas cultivares para verão. Foi este 413 p.
litoral as pequenas propriedades agríco- material genético que permitiu a produ- FERRÃO JEM. 2005. A Aventura das Plantas e
las e no interior as grandes estâncias. Os ção de cenoura em praticamente todo ter- os Descobrimentos Portugueses. Lisboa: FCT.
açorianos reforçaram a presença lusa de ritório nacional, assim como a produção 287 p.

Hortic. bras., v. 26, n. 4, out.-dez. 2008 431


NR Madeira et al.

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