Você está na página 1de 13

Fichamento do livro “Visões de Liberdade” de Sidney Chalhoub

Vinícius Passos Paulucci

O livro a ser fichado é intitulado “Visões de liberdade: uma história das útimas
décadas da escravidão na corte”, sendo seu autor Sidney Chalhoub. Uma versão desse
livro foi defendida como tese de doutorado em História em 1989 justamente onde ele é
atualmente professor titular (Unicamp). A versão utilizada não se diferencia tanto da
original. O livro em si contém 287 páginas estruturadas e divididas em três capítulos.

INTRODUÇÃO: ZÁDIG E A HISTORIA


A obra começa a introdução da obra contando a história de Zádig presente no
livro de Voltaire. A história começa com Zádig andando e passeando por um bosque
onde encontra Eunuco e o muito ilustre monteiro-mor. Percebe na areia pegadas de um
animal, e facilmente conclui que são de um cão, na verdade cadela, pois os “leves e
longos sulcos”, visíveis nas ondulações da areia entre os vestígios das patas, parecia ser
uma cadela com as tetas pendentes, e que, portanto, devia ter dado cria poucos dias
antes. Outros traços em sentido diferente, sempre marcando a superfície da areia ao lado
das patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grande; e como, além disso, nota
que as impressões de uma das patas eram menos fundas que as das outras três, deduz
que a cadela da rainha mancava um pouco. Zadig ainda descreve o cavalo do rei que
também havia fugido há pouco “É o cavalo que melhor galopa [...] tem 5 pés de altura e
os cascos muito pequenos; sua cauda mede 3 pés de comprimento e as rodelas de seu
freio são de ouro de 23 quilates; usa ferraduras de prata de 11 denários” (CHALHOUB,
1990, p. 14). Ele descreve os animais mesmo sem tê-los visto, descrevendo-os apenas
com os vestígios deixados.
Outra obra em que esse método de Zadig aparece é em O nome da rosa, de
Umberto Eco,em que a sabedoria de Guilherme de Baskerville está firmemente
enraizada em sua capacidade de “reconhecer os traços com que nos fala o mundo como
um grande livro”
Segundo Chalhoub, “O método de Zadig tem encontrado seus adeptos também
entre os historiadores. Não é outro, por exemplo, o procedimento de Robert Darnton em
O grande massacre de gatos” (CHALHOUB, 1990, p. 116). Outro historiador que
também é um “adepto” de Zadig é Carlo Ginzburg, que assim
reconstitui as experiências de leitura do moleiro Menocchio como uma forma
de acesso a aspectos da cultura popular no norte da Itália no século XVI. O
queijo e os vermes apareceu na Itália em 1976; em 1980, exatamente o ano
da primeira edição italiana de O nome da rosa, Ginzburg publicou um artigo
sobre os métodos da história na revista inglesa History Workshop — o artigo
intitula-se “ Morelli, Freud and Sherlock Holmes: clues and scientific
method” [pistas — indícios? — e método científico]. (CHALHOUB, 1990, p.
116)

O artigo de Ginzburg segundo Chalhoub, tem o objetivo de discutir o


surgimento, em fins do século XIX, de um paradigma de construção do conhecimento
nas ciências humanas que busca ir “além do eterno contrastar esterilizante entre o
racional” e o irracional, o particular e o geral, a atitude fragmentária e a holística etc”
(CHALHOUB, 1990, p. 116).
Estes autores usam esse método sendo que o “objetivo do esforço intelectual
passa a ser a produção de uma visão da “cadela da rainha”, “ da cultura popular do norte
da Itália no século XVI” etc. — não qualquer visão da cadela da rainha ou da cultura
popular, mas aquela visão que o estudioso for capaz de produzir a partir de suas
escolhas teóricas e metodológicas (CHALHOUB, 1990, p. 18).
Segundo o autor, nesta obra, a cadela será o processo histórico de abolição da
escravidão na Corte. Mas para ele, descrevendo só isso, acaba deixando algumas
lacunas. Segundo Chalhoub, “o que falta ao método de Zadig, mesmo em suas
formulações mais recentes em Ginzburg e Darnton, é o movimento da história, a
preocupação em propor uma teoria explicativa das mudanças históricas” (CHALHOUB,
1990, p. 18)
Portanto Chalhoub tenta em sua obra tratar de diversos aspectos culturais e não
só os aspectos econômicos deterministas do marxismo “positivista” que já havia caído
em descrédito, pois “só analisando diferentes vestígios, e procurando relacioná-los entre
si, é que se pode eventualmente chegar a formar uma imagem una e coerente da
cachorrinha fujona” (CHALHOUB, 1990, p. 24)

CAPÍTULO 1 “NEGÓCIOS DA ESCRAVIDÃO”


O primeiro capítulo da obra é intitulado “Negócios da escravidão”. Este capítulo
é subdividido em 7 subtópicos com na seguinte ordem: Inquérito sobre uma sublevação
de escravos, Ficções do direito e da história, Veludo e os negócios da escravidão,
Negócios pelo avesso, Castigos e aventuras: as vidas de Bráulio e Serafim, Os irmãos
Carlos e Ciríaco: mais confusão na loja de Veludo, Epílogo. Ainda neste capítulo
Chalhoub nos apresenta um anexo intitulado “Bonifácio e outros escravos”, em que nos
mostra uma planilha e logo depois uma descrição dos processos de escravos utilizados
para a pesquisa.
“Era o Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1872, aos 17 de
março do dito ano, nesta Corte” (CHALHOUB, 1990, p. 29). Chalhoub começa o
primeiro capitulo com esta frase, esta que era padrão nos processos crime. Assim, o
autor já nos dá uma prévia de qual será uma das suas principais fontes utilizadas para a
sua pesquisa, os processos crime e cíveis.
Ainda neste capítulo, o autor nos apresenta pela primeira vez Veludo e
Bonifácio, o primeiro negociantes de escravos, e o segundo o escravo que estava sendo
negociado. Segundo o autor, o seu primeiro encontro com a história da dupla “ocorreu
no arquivo abafado e poeirento do Primeiro Tribunal do Júri da cidade do Rio de
Janeiro. Posteriormente, pude ler a notícia sobre a “sublevação” liderada por Bonifácio
no Jornal do Commercio do dia 18 de março de 1872. Encontrei Veludo acidentalmente
outras vezes, e acabei decidindo perseguir suas pegadas em fontes e momentos
diversos” (CHALHOUB , 1990, p. 35) . O negociante Veludo vai ser mencionado no
decorrer do capítulo inteiro. Segundo o autor, a opção por dar uma maior ênfase no
negociante era “uma estratégia para ir ao encontro de outros “ Bonifácios” , pois fiquei
interessado em entender melhor as atitudes e os sentimentos de escravos que estavam na
iminência de serem negociados” (CHALOUB , 1990, p. 29).
No decorrer do capitulo, o autor vai nos mostrando como esses negros “agiram
de acordo com lógicas ou racionalidades próprias, e que seus movimentos estão
firmemente vinculados a experiências e tradições particulares e originais — no sentido
de que não são simples reflexo ou espelho de representações de “ outros” sociais”. Ao
dar uma maior ênfase para o negociante, Chalhoub encontra diversos casos parecidos
com o de Bonifácio e Veludo, e a historia deles acaba sendo retomada de diferentes
perspectivas, tentando “entender suas especificidades numa rede mais densa de sentidos
e experiências” (CHALHOUB, 1999, p. 42), buscando apresentar uma visão de como os
negros pensavam e agiam diante da possibilidade, sempre presente nos horizontes de
suas vidas, de serem comprados ou vendidos, deixando de lado, em alguns momentos, o
provável desconforto em ver uma sociedade onde eram comuns as compras e vendas de
homens e mulheres. Dessa forma, o autor penetra “mais fundo nas racionalidades e
sentimentos de pessoas de um outro tempo” (CHALHOUB, 1990, p. 42).
No que diz respeito aos processos comerciais nos quais, Veludo esteve
envolvido, o autor apresenta casos bem diferentes entre si: “há escravos que fogem;
outros que decepcionam seus compradores e são devolvidos; outros que ficam doentes e
provocam a anulação de transações já realizadas” (CHALHOUB, 1990, p. 48). Dessa
forma, o autor nos mostra que negociar escravos não era como
vender badulaques ou bananas — isto é, apenas um a questão de conseguir o
melhor preço. Havia componentes morais e políticos a considerar em cada
transação. Nós vimos até aqui que existiam negros que recusavam
negociações porque não consideravam mais legítimo o seu cativeiro — são as
histórias de Felicidade e Carlota. Encontramos também negros que resistiam
a seus novos senhores porque entendiam que eles não lhes dispensavam o
tratam então devido — são histórias como as de Bráulio, Serafim e Martinho.
Havia, portanto, versões ou visões escravas da escravidão que impunham
limites bastante reais às transações de compra e venda. Bonifácio, Filomeno e
demais parceiros resolveram esbordoar Veludo motivados por noções
próprias de justiça e de moral, noções essas lavradas nas experiências
cotidianas e coletivas da escravidão. Esses negros não foram simples espelho
de outros mundos ou representações, e nem tampouco foram heróis da
resistência à escravidão (CHALHOUB, 1990, p. 67-68).

Existia também os casos em que os escravos combinavam as condições de


compra e venda, como no caso de Pompeu, Ciríaco e Josefa. Segundo Chalhoub, “Havia
escravos, portanto, que manifestavam a seus futuros senhores suas preferências quanto
às tarefas que desempenhariam no cativeiro” (CHALHOUB, 1990, p. 77).
O autor vai construir o seu argumento e refutar a análise feita por alguns autores
que tratam e defendem a tese do “escravo-coisa”, dentre eles Perdigão Malheiros e
Fernando Henrique Cardoso. Segundo Chalhoub, “A análise de Cardoso é densa e
instigante. O problema, todavia, é que ele interpreta o sentido da liberdade para os
escravos única e exclusivamente a partir das visões de liberdade inventadas para os
negros pelos cidadãos-proprietários dos brasis da época” (CHALHOUB, 1990, p. 80). A
interpretação de Chalhoub é bem diferente em relação a esses autores, que faz com que
se abra caminhos alternativos de análise. Para ele, a liberdade para os escravos seria em
primeiro lugar, a
“esperança de autonomia de movimento e de maior segurança na
constituição das relações afetivas. Não a liberdade de ir e vir de acordo com a
oferta de empregos e o valor dos salários, porém a possibilidade de escolher a
quem servir ou de escolher não servir a ninguém. Este sentido conferido à
liberdade foi lavrado por escravos como Bonifácio e seus companheiros na
incerteza e nas angústias que viviam cada vez que tinham de se sujeitar a uma
transação de compra e venda” (CHALHOUB, 1990, p. 80).
Dessa forma, podemos perceber que haviam modos completamente diferentes
de viver em liberdade. Segundo Chalhoub, “para os negros, viver em liberdade não
podia significar a necessidade de existir só para produzir dentro de determinadas
condições” (CHALOUB, 1990, p. 80), sendo as partes dos processos analisados pelo
autor a maior prova disso.

CAPÍTULO 2 “VISÕES DA LIBERDADE”


O segundo capítulo da obra é intitulado “Visões de Liberdade”, este que dá título a obra.
Este capítulo é subdividido em 8 subtópicos na seguinte ordem: BONS DIAS!, Vida de
peteca: entre a propriedade e a liberdade, Sedutores e avarentos, Charadas escravistas,
Atos solenes, Cenas do cotidiano, 1871: as prostitutas e o significado da lei, O retorno
inglório de José Moreira Veludo. Segundo Chalhoub, este capítulo é “uma tentativa de
descrição dos diferentes sentidos conferidos à liberdade dos negros por parte de
políticos, senhores, literatos, abolicionistas, escravos e libertos da Corte na segunda
metade do século XIX” (CHALHOUB, 1990, p, 80), para que assim fosse possível ver
as diferentes visões de liberdade.
O autor começa o capítulo já nos mostrando o objetivo, que se consiste em
desvendar os sentidos de uma piada e um ato solene. A piada é uma crônica escrita por
Machado de Assis escrita em 1888, antes da abolição da transcrita e analisada na visão
de Jhon Gledson, que consiste em explicar a história do processo de alforriamento do
escravo Pancrácio. Segundo o autor
Machado exagera nas demonstrações de submissão do bom Pancrácio não só
para conseguir um maior efeito cômico e debochar dos abolicionistas de fato
consumado — aqueles que, ao apagar das luzes, insistiam em anunciar
alforrias festivamente pelos jornais —, mas também porque ele identifica na
falência de uma política específica de domínio um dos pontos cruciais do
processo histórico de abolição da escravidão (CHALHOUB, 1990, p. 98).

Chalhoub vai ainda exaltar que o escravo era considerado coisa pela justiça, mas
isso não o impedia de tomar atitudes que defendiam sua liberdade. O autor vai nos
apresentar casos de escravos que tentavam comprar sua liberdade, mas o pecúlio do
escravo só passa a ter existência legal a partir da lei de setembro de 1871. Ou seja, as
economias dos escravos, assim como a alforria mediante indenização de preço, eram
práticas cotidianas relativamente comuns, porém não foram objeto de legislação
específica antes de 1871. Isto significa que os escravos que tentavam comprar sua
alforria antes de 1871, como no caso de Fortunata, não tinham rigorosamente direito a
economias, “ela não pode possuir coisa alguma — tudo que um escravo produz pertence
ao senhor —, e logo não pode arcar com o custo do processo” (CHALHOUB, 1990, p.
106). Assim, dentro do judiciário antes de 1871, havia juízes que cumpriam a lei e
tratavam os escravos como coisa, militando em favor da propriedade privada, e juízes
que são militantes da liberdade.” Era o problema da peteca, a dificuldade em arrancar
aos fatos um a significação” (CHALHOUB, 1990, p. 107).
Desse modo, podemos ver como era ainda mais difícil a luta dos escravos pela alforria
antes da década de 1870
Não é difícil imaginar os riscos que corriam os negros que tentavam obter a
liberdade na justiça e perdiam. Além da decepção da derrota, a volta para
“casa” podia incluir seu cortejo de sevícias por parte de um senhor irado e
vingativo. [...]O certo é que os cativos não podiam tentar nada sem o auxílio
de um homem livre, pois não tinham direitos civis e logo estavam legalmente
incapacitados de agir judicialmente sem a presença de um curador.
(CHALHOUB, 1990, p. 108-109).

O autor vai ainda nos mostrar como funcionava a alforria condicional destruíra a
ficção legal de que o escravo era “coisa”, pois passou a lhes atribuir vontade própria, o
que a tornava capaz de realizar a condição prevista na escritura de liberdade. Na
verdade, a carta de alforria com condição de prestação de serviços funciona como uma
espécie de contrato entre o negro e seu senhor, e logo pressupõe o estado de liberdade
da negra a partir do momento do termino do trato.
E o que ocorre quando um cativo recebe alforria condicional? Segundo
Chalhoub “alguns pensam que o estado natural de homem permanece suspenso até que
a condição esteja satisfeita. [...]A explicação é simples: a situação dos alforriados sob
condição é semelhante à dos menores, que dependem de certos fatos ou tempo para
entrarem , emancipados, no gozo de seus direitos e atos de vida civil” . (CHALHOUB,
1990, p. 130)
Havia também a possibilidade de revogação da alforria tanto condicional como
plena, pelo senhor caso o escravo tivesse um mal comportamento, mas “eficaz ou não
enquanto instrumento de domínio sobre escravos e libertos, o fato é que os números
parecem indicar que a possibilidade de revogação da alforria era raramente utilizada
pelos senhores”(CHALHOUB, 1990, p. 137). Segundo Chalhoub, ponto final de todo
esse problema viria com a lei de 28 de setembro de 1871, que estabelece num de seus
artigos que “ fica derrogada a Ord. liv. quarto, tit. 63, na parte que revoga as alforrias
por ingratidão.
Mais pra frente no capítulo, o autor vai no apresentar alguns exemplos de
libertos que possuíram escravos, e como era a relação entre eles. Um desses casos é o de
José Matos, lhomem liberto e proprietário de escravos. Ao explicar um atrito entre o
liberto e seu escravo Joaquim, Chalhoub nos diz que.
o pardo procura desempenhar esse papel dentro dos conformes,
mostrando-se ressentido com a atitude do africano e declarando
logo ao subdelegado que o entregava à justiça pública “ e desde
já o considera livre para que seja punido com as penas
estabelecidas por Lei” . Ou seja, o senhor liberta Joaquim e o
abandona à própria sorte diante da justiça como punição pela
ingratidão que supostamente cometera.66 Há ainda o
testemunho de Adão do Nascimento, inquilino de José Matos,
que afirma jamais ter visto o liberto aplicar castigos em seu
escravo. (CHALHOUB, 1990, p. 45)

Outro tema abordado no capitulo são as escravas que eram compradas e


submetidas a prostituição por seus senhores ou senhoras. A prostituição na época era
crime, e assim, quando os donos das escravas eram julgados pelo crime, na maioria das
vezes era dado como culpado e sua escrava considerada livre. Segundo o autor,
“Todavia, a história das escravas prostitutas é um tanto diferente dos casos descritos em
processos de liberdade nos quais os negros tentam a alforria nas brechas das brigas entre
herdeiros. Aqui, são autoridades policiais e judiciárias que tomam a iniciativa de
promover ações de liberdade” (CHALHOUB, 1990, p. 155).
Segundo Chalhoub, “a impressão geral que se tem, entretanto, é que os
senhores ficavam cada vez mais na defensiva com o passar dos anos. Haviam sempre
advogados dispostos a promover ações de liberdade, e os juízes da Corte não gozavam
de muita simpatia entre os senhores”. (CHALHOUB, 1990, p. 165)
Este capítulo mostrou, entre outras coisas, que o direito foi uma arena
decisiva na luta pelo fim da escravidão, e não se justifica o desdém ou o
mecanicismo que a historiografia habitualmente dispensa a esse tema. Nesse
sentido, a atuação de pessoas como Perdigão Malheiro e Nabuco, assim como
de um sem-número de curadores e juízes de vara simpáticos à causa da
liberdade, fez uma enorme diferença. Mas, por outro lado, e mesmo nesse
jargão legal cujo ideal é anular a voz do escravo e falar por ele, vimos que os
negros conseguiam impor pelo menos em parte certos direitos adquiridos e
consagrados pelo costume, assim como conseguiam mostrar o que entendiam
como cativeiro justo ou pelo menos tolerável. Vários souberam ainda como
conseguir o direito legal à liberdade e, percebendo a possibilidade da alforria,
procuraram, o auxílio de homens livres, fugiram para a polícia, se
apresentaram às autoridades judiciais e, o que é mais surpreendente,
perceberam muitas vezes exatamente o que deviam fazer para conseguir
transformar em histórias de liberdade alguns daqueles calhamaços que se
encontram até hoje nos cartórios e arquivos públicos. (CHALHOUB, 1990, p.
173-174)

Dessa forma, podemos ver que ao longo do século XIX as possibilidades de


alforria foram aumentando e sendo cada vez mais presente graças as resistências dos
escravos e luta por direitos. A lei de 28 de setembro foi de certa forma uma conquista
dos escravos, e teve consequências importantes para o processo de abolição na Corte.
CAPÍTULO 3 “CENAS DA CIDADE NEGRA”
O terceiro e último capítulo da obra, intitulado “Cenas da cidade negra”, contém
6 subtópicos. Este capítulo é dividido na seguinte ordem: De Bonifácio a Pancrácio: a
conclusão do capítulo anterior; Um “objeto” gravíssimo: “a segurança a segurança”;
“Profundo abalo na nossa sociedade”; A cidade-esconderijo; O esconderijo na cidade:
os cortiços e a liberdade; Epílogo: A despedida de Zadig, e breves considerações sobre
o centenário da Abolição. O objetivo deste último capítulo, é tratar da “cidade
negra”,pois segundo Chalhoub, os escravos, libertos e negros livres pobres do Rio
instituíram uma cidade própria, com racionalidades, resistências de diferentes formas
para desmanchar a instituição da escravidão na Corte.
Uma dessas formas racionais de resistir apresentadas por Chalhoub era a Galés,
pois
condições de vida dos negros nas fazendas são tão abomináveis a ponto de
poderem ser comparadas desfavoravelmente com a vida dos condenados a
galés; em seguida, a prescrição da cura: a pena de galés deveria se tornar
mais degradante do que o “ regímen” dos estabelecimentos rurais, pois só
assim os escravos deixariam de cometer crimes para se verem livres do
cativeiro [...]os proprietários realmente achavam que os escravos preferiam
cumprir pena de trabalhos forçados na penitenciária ou em serviços públicos
do que labutar em suas fazendas. [...]A opinião dos fazendeiros de Campinas
a este respeito já é conhecida: os escravos cometiam mais crimes na
esperança da impunidade e atraídos pelo éden nas galés. (CHALHOUB,
1990, p. 178-179)

O apogeu da instituição da escravidão na cidade do Rio ocorreu na primeira


metade do século XIX, mais precisamente entre 1808 e 1850. Segundo as estimativas de
Mary Karasch, os escravos chegaram a constituir mais de 50% da população da cidade
durante a década de 1830. Depois desse apogeu, vemos uma decadência no número de
escravos, que segundo Alencastro
Os cafeicultores do vale do Paraíba, incapacitados de recorrer à importação
de africanos ou à contratação de trabalhadores livres para recompor sua força
de trabalho, passaram a comprar escravos na Corte maciçamente. Os
proprietários urbanos venderam seus negros atraídos pelos altos preços que
os fazendeiros se mostravam dispostos a pagar e porque contavam com um
fluxo crescente de imigrantes portugueses para a cidade do Rio, fluxo este
que lhes garantia o suprimento de mão-de-obra a baixo custo. (CHALHOUB,
1990, p. 190)

Outro assunto tratado na obra é a dificuldade que se tinha para distinguir pretos
escravos e livres na corte, segundo o autor era por que os cativos se movimentavam
bastante pelas ruas, e se tornava cada vez mais difícil identificar prontamente as pessoas
e os sentidos de seus movimentos. “O meio urbano misturava os lugares sociais,
escondia cada vez mais a condição social dos negros, e desmontando assim uma política
de domínio em que as redes de relações pessoais entre senhores e escravos, ou amos e
criados, ou patrões e dependentes, enquadravam imediatamente os indivíduos e suas
ações”. (CHALHOUB, 1990, p. 192)
O imaginário dos proprietários da corte era de que “ a segurança a segurança” de
um município com mais de 100 mil escravos “não poderia estar garantida quando
cativos de municípios vizinhos se rebelavam, ou apenas ensaiavam se rebelar. Na
verdade, todos compartilhavam da sensação de insegurança em relação à Corte, e
Eusébio não a incluiu na lista do “ terror” simplesmente porque preferiu calar o
óbvio(CHALOUB, 1990, p. 197). Outras fatores que somavam para esse medo era o
haitianismo e a revolta do Malês. Dessa forma, Chalhoub vai nos dizer que
principalmente nas décadas de 1850 e 1860 na Corte, vender os escravos para o interior
ou alforriar podem ter sido questões de segurança para estes senhores que andavam
sobressaltados com a ameaça de insurreições, pois a cada dia ficava mais difícil
“acompanhar os movimentos dos cativos num a cidade cada vez mais desconhecida,
[...]em suma, cada vez mais negra e, naquela época, ainda predominantemente africana
(CHALHOUB, 1990, p. 198). Enviar esses escravos para longe era ainda uma forma de
castiga-los por mal comportamento.
Chalhoub vai nos apresentar outros motivos pelos quais se tivera a diminuição
no número de escravos na Corte depois de 1850. Segundo o autor, houveram altas taxas
de mortalidade nos anos iniciais da década de 1850, causadas pela febre amarela e a
cólera que foram responsáveis pela morte de muitos cativos em 1850 e 1853,
respectivamente. Outro motivo era baixa a taxa de natalidade entre os cativos. houve
também um aumento significativo no número de alforrias, principalmente na década de
1860.
Houve ainda nesse meio tempo um grande número de imigrações portuguesas
para a corte, causadas principalmente pelo contexto sócio-econômico do norte de
Portugal e das ilhas atlânticas, a demanda por mão-de-obra no Brasil e, segundo
Chalhoub, isso foi causado principalmente pelo “redirecionamento na utilização dos
equipamentos e a amortização dos capitais antes investidos no lucrativo comércio
negreiro — isto é, os tumbeiros nos anos 1850 passaram a transportar açorianos em
lugar de africanos” (CHALHOUB, 1990, p. 199).
O medo no imaginário dos brancos vinha principalmente por causa de casos
como o de Francelina e Romão em que este ultimo, acaba cometendo um crime
extremamente violento e que causaram “perplexidade” e “revolta” por parte da
sociedade”.
A distinção de classes ia ficando cada vez mais difícil. O sapato que antes era
um instrumento de diferenciação social, já não é tão importante quanto à qualidade dos
sapatos que se têm. Segundo o autor, “isto tudo sem sequer mencionar que certamente
havia libertos que andavam descalços e mal vestidos... Em suma, e antes que reine a
confusão: é pouco provável que na Corte, pelo menos nas últimas décadas da
escravidão, fosse possível descobrir a condição de um negro olhando para o que trazia
ou deixava de trazer nos pés” (CHALOUB, 1990, p. 214). Segundo Chalhoub,
A instituição da escravidão deixa de ser sem a vigência da ideologia da
alforria — conforme descrita no segundo capítulo — e, como vimos, os
escravos se mostraram incansáveis na luta para transformar, na prática, em
incontáveis batalhas individuais, o sentido da manumissão. A instituição da
escravidão deixa de ser quando se torna impossível identificar prontamente, e
sem duplicidades, as fidelidades e as relações pessoais dos trabalhadores, e os
escravos se mostraram incansáveis em transformar a cidade num esconderijo.
A cidade que esconde é, ao mesmo tempo, a cidade que liberta. É também a
cidade que engendra um novo tipo de sujeição, fundada na suspeição
generalizada... mas isto é um a outra história (CHALHOUB, 1990, p.
220).

Portanto, os escravos estavam cada vez mais criando formas para resistir.
Chalhoub vai nos dizer que “se havia escravos que recorriam à polícia e à justiça para
confrontar seus senhores, também havia aqueles que, dependendo dos apuros em que se
encontravam, evocavam sua condição servil no intuito de obter alguma proteção”
(CHALHOUB, 1990, p. 230). Um exemplo desse é o do preto Serafim apresentado
anteriormente, que estava desaparecido há anos da fazenda de seu senhor e acusado de
um crime na Corte, tenha colaborado tanto para que as autoridades localizassem seu
proprietário nas Minas Gerais.
O autor ainda vai mencionar o código de postura de 1830, que
“proibia que os donos de casas de negócio consentissem na presença “em
suas portas Ide] pessoas cativas sentadas, ou a jogarem, ou paradas por mais
tempo, do que o necessário para fazerem compras” . O código de 1838, em
geral mais rigoroso e detalhado em relação aos movimentos permitidos aos
escravos e “pessoas suspeitas”, não reafirmou, porém, a determinação acima.
Por outro lado, recomendava aos donos das tavernas que não autorizassem o
“ ajuntamento de mais de quatro escravos” em suas casas de negócio. O
mesmo código, que ao que tudo indica não fora formalmente revogado nestes
pontos em plena década de 1880, estabelecia ainda que todo o escravo, que
for encontrado das sete horas da tarde em diante, sem escrito de seu senhor,
datado do mesmo dia, no qual declare o fim a que vai, sofrerá oito dias de
prisão, dando-se parte ao senhor. (CHALHOUB, 1990, p. 231)

Uma característica presente na relação dos escravos com seus senhores na


segunda metade do século XIX são o pagamento de jornais pelos escravos aos seus
senhores. Assim, vamos ver cativos no mercado de trabalho do meio urbano como
pedreiros, alfaiates, cigarreiros, etc. Assim, os escravos pareciam precisar de mobilidade
para terem condições de pagar os jornais determinados e segundo Chalhoub, “aí estaria
a origem das autorizações para que escravos morassem em quartos de cortiços ou em
casas de cômodos. Por outro lado, isto implicava que tais cativos tivessem o modo de
vida que eles escolherem” (CHALHOUB, 1990, p. 235), o que transformava a cidade
num esconderijo era um a escolha de luta dos próprios negros: “não é de admirar que
não queiram passar como escravos que se inculquem como livres” . O autor vai usar
como exemplo de escravos que acreditavam ser livres, sendo um desses exemplos a
história de Júlia.
Se o cativeiro acabava definindo como uma relação de sujeição e dependência
pessoal do escravo com seu senhor, para ao autor, é possível supor que “uma pessoa que
viva sobre si, que possa escolher seu, não esteja sob o domínio de senhor algum. Em
outras palavras, a estratégia do curador foi procurar aplicar de forma irrestrita a
definição ortodoxa, por assim dizer, do cativeiro” (CHALHOUB, 1990, p. 235). Isso
acabava se tornando algo cada vez mais difícil para a manutenção da escravidão nos
moldes que conhecemos. “Torna-se claro, então, que escravos vivendo “ sobre si”
contribuíam para a desconstrução de significados sociais essenciais à continuidade da
instituição da escravidão” (CHALHOUB, 1990, p. 236). Dessa forma, o autor vai nos
dizer que Liberdade nesse período tem a ver com mobilidade, com a possibilidade de
deixar a casa do senhor. “[...]Um dos lances decisivos num processo de luta pela alforria
podia ser conseguir sair da casa do senhor, sem que isso implicasse necessariamente um
confronto direto, uma fuga” (CHALHOUB, 1990, p. 236). Chalhoub vai defender a
teses de que
Tanto para escravos, assim como para libertos e negros livres em geral, as
alternativas viáveis de moradia na Corte no período eram cada vez mais os
cortiços e as casas de cômodos. Sair da casa do senhor, ou do ex-senhor, era
um desejo que talvez não tivesse muito a ver com a expectativa de melhores
condições materiais de vida. Os cativos continuavam a ter de pagar os
jornais, e havia agora a despesa do aluguel e da alimentação; os libertos
estavam pelo menos livres dos detestados jornais que antes pagavam aos
senhores. Como dizia Bertoleza, a negra que era amásia de João Romão, em
O cortiço, a respeito dos jornais que tinha de “escarrar” para o proprietário: “
Seu senhor comia-lhe a pele do corpo” (CHALHOUB, 1990, p. 239).

Portanto, vemos que havia uma grande relação entre escravos e libertos dentro
dos cortiços, sendo ele palco de muitas brigas, sendo algumas dessas brigas abordadas
por Chalhoub na obra, mas segundo o autor, vai dizer que pesar das relações violentas
entre os escravos “donos de si” e libertos, ele também vai apresentar diversos casos
onde se tinha uma boa relação entre os escravos e libertos dentro dos cortiços. Segundo
Chalhoub “do desenlace violento, portanto, o que ressalta nesta história é a continuidade
no tempo e a solidariedade existente nas relações entre os libertos.” (CHALHOUB,
1990, p. 246)
Nas considerações finais do capítulo e do livro, Chalhoub vai retornar a história
de Zadig, contada na introdução da obra. No final Zadig acaba decidindo não mostrar
mais seus conhecimentos para as observações dos vestígios e mesmo assim acabou
entrando em apuros. A moral da história para Chalhoub é que “Zadig ficou em apuros
quando decidiu falar; ficou igualmente em apuros quando decidiu calar. Parece que não
faz nenhuma diferença. Escrevo, então, estas considerações finais. Na esperança de que
possa, eventualmente, fazer alguma diferença. Qualquer diferença” (CHALHOUB,
1990, p. 149).
O autor vai nos dizer que este livro foi uma contestação, mais ou menos explícita
ao longo dos capítulos, mas sempre presente, daquilo que ele batizou de “teoria do
escravo-coisa”, teoria essa que foi tão difundida na historiografia e no mundo
acadêmico. Fernando Henrique Cardoso foi o “autor-protótipo” contra quem Chalhoub
embateu mais profundamente seus argumentos, combatendo esse argumento de uma
“coisificação social” dos negros sob a escravidão. isto é, a consciência do escravo
apenas registrava e espelhava, passivamente, os significados sociais que lhe eram
impostos . Outro autor-protótipo no caso seria Jacob Gorender, para quem “o oprimido
pode chegar a ver-se qual o vê seu opressor” (CHALHOUB, 1990, p. 150).
Referencia Bibliográfica:
CHALHOUB, S. 2001. Visões da liberdade: senhores, escravos e abolicionistas da corte
nas últimas décadas da escravidão. São Paulo: Companhia das Letras.

Você também pode gostar