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Marcelo Carvalho
Universidade Federal de São Paulo
1.
A “Revolução Copernicana” que, segundo Kant, se situa na base
de seu projeto crítico, ocupa um lugar bastante singular na filosofia
dos dois últimos séculos. Para além de qualquer crítica direta ao idea-
lismo e à filosofia transcendental, a suposição de que a experiência não
é “ingênua” ou “passiva” provou ser bastante persuasiva e influente.1
Isso se torna claro quando descrevemos “inversão” promovida pela
“Revolução Copernicana” a partir da explicitação de duas alternati-
vas excludentes apresentadas por Kant: de um lado a suposição de
que temos uma experiência passiva e pura (no sentido específico de
que não é “contaminada” pelo sujeito que conhece ou por qualquer
coisa equivalente a uma “teoria” ou, como se dirá depois, “visão de
mundo”). Segundo esta perspectiva, o sujeito que conhece tem contato
direto com o mundo como ele é em si. Do outro lado está a alternati-
va oposta, de que de alguma maneira o sujeito não é passivo, e que
aquilo que se nos apresenta como nossa experiência é o resultado de
algum tipo de construção “transcendental”, anterior à possibilidade de
qualquer experiência.2 A suposição de uma objetividade pura e forte,
1
I. Kant, Crítica da Razão Pura, B xii-xxi.
2
O termo “transcendental” se refere aqui às condições pressupostas à totalidade de nossa
(qualquer que seja a amplitude atribuída a este termo) experiência.
Carvalho, M.; Braida, C.; Salles, J. C.; Coniglio, M. E. Filosofia da Linguagem e da Lógica.
Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 132-148, 2015.
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O argumento aqui apresentado parte da leitura de um texto de Rubens Rodrigues Torres
Filho e da descrição por ele apresentada da herança kantiana (R. R. Torres Filho, “A virtus
dormitiva de Kant”, in: Ensaios de Filosofia Ilustrada).
4
Cf. W. V. Humboldt, On Language; F. Nietzsche, “Verdade e Mentira no sentido extramoral”
e Curso de Retórica.
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2.
7
Kant, Crítica da Razão Pura, A367-380.
8
Cf. Strawson, The bounds of sense, p. 15.
9
H. E. Allison, Kant’s Transcendental Idealism.
10
Sobre este tema, cf. também M. Carvalho, Teoria e experiência.
11
D. K. Naugle Worldview, chap. 6.
12
Wittgenstein, Culture and Value, p. 15; Cf. e.g. D. Davidson, Inquires into Truth and Interpreta-
tion, p. 188.
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L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, parágrafo 115; as demais citações de parágrafos das
Investigações Filosóficas serão apresentadas no corpo do texto de acordo com o critério utiliza-
do aqui.
14
Por Período Intermediário entende-se aqui a produção de Wittgenstein entre seu retorno a
Cambridge, em 1929, e o ditado do Brown Book, em 1934, utilizado como base para a primeira
versão do início das Investigações Filosóficas, de 1936.
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3.
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Uma imagem nos mantinha presos. Nós não podíamos sair dela,
pois ela residia em nossa linguagem, e a linguagem parecia ape-
nas repeti-la para nós inexoravelmente. [PU, 115]
15
Kleist, poeta contemporâneo do fim da vida de Kant, em uma carta de 1801, em que compara
o intelecto a óculos coloridos que nunca tiramos, e, então, nunca poderíamos diferenciar o
que vemos e o que estaria sendo acrescentado por esta forma de ver. De maneira análoga,
nunca poderíamos estar certos de que “é realmente Verdade o que chamamos de Verdade,
ou se apenas parece sê-lo para nós”, e, então, todo nosso esforço em busca da verdade se
revela em vão.
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5.
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Cf. Philosophical Investigations, 198-201, 341-2.
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desta expressão é dado pelo uso que se faz dele, então não se pode
distinguir, sem mais, regra e seguir regra (significado e uso). No-
vamente, o que encontramos é a rejeição da suposição de que o uso
vem depois do significado do qual seria derivado. No mesmo sen-
tido em que significado é uso, a regra é seu uso, e a conexão entre
uma regra e nossas ações é interna, “lógica”, e não causal.
Para restringir nossas referências a uma das passagens mais cita-
das do livro, o §201 diz:
se todo curso de ação pode estar de acordo com a regra, então ele
pode estar em conflito com ela. E então não haveria nem acordo
nem conflito aqui.
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posição de que haja uma experiência pura, quanto a de que haja uma
construção transcendental da experiência. A linguagem é parte de uma
prática em um dado contexto. O que é um fato para nós depende de
nossas ações anteriores, e se situa no contexto de nossas ações presen-
tes. Nós podemos até mesmo descrever esse contexto de práticas com-
partilhadas como um sistema ou como alguma coisa que se assemelha
a um esquema conceitual. Mas ela não pode, no final das contas, por
ser a própria prática, se apresentar como uma pressuposição transcen-
dental às nossas ações e descrições – não se trata, aqui, de dar mais um
passo para trás. “No final das contas” tudo o que nós podemos dizer é
que “nós apenas fazemos dessa maneira” [PU, 1].
Essa concepção sobre uma prática que cuida de si própria certa-
mente não é de fácil24 assimilação e exigiria uma apresentação muito
mais cuidadosa. Mas a preocupação aqui não é apresentar essa descrição
detalhada de concepções de Wittgenstein sobre uso e prática, mas tentar
encontrar uma perspectiva wittgensteiniana da filosofia contemporânea
e, para além disso, esboçar de maneira preliminar uma concepção que
poderia ser apresentada, de maneira breve, como um perspectivismo
wittgensteiniano, dissociado, entretanto, de qualquer relativismo.25
Referências
24
Cf. D. Stern’s remarks about the temptation of creating something like a “theory of practice”;
cf. Stern, Wittgenstein’s Philosophical Investigation, chap. 6.1 and “The Practical Turn”, p. 185.
25
Cf. Santos, L. H. L., p. 453: “Para o segundo Wittgenstein, a única saída é recusar que o
contato entre linguagem e mundo seja um confronto entre a linguagem como um sistema
estruturado e um mundo estruturado (...). Em outras palavras, recusar que, no produto do
contato entre linguagem e mundo, se possam decantar dois pólos, a contribuição da lin-
guagem e a contribuição do mundo, a forma da representação e o conteúdo representado
– dois pólos que, embora essencialmente correlacionados, ainda assim seriam discerníveis.
Sem essa recusa, não haveria como evitar que a forma da representação fosse projetada no
representado como sendo sua estrutura essencial, não haveria como evitar a alternativa:
essencialismo ou relativismo.”
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