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Resumo
Este artigo é um recorte de pesquisa de doutorado e traz como discussão o papel do estágio supervisionado como
espaço privilegiado no processo de formação inicial e de constituição da profissionalidade docente de futuras
professoras. As contribuições de Montero (2001), Goodson (2008) e Shulman (1987) sobre conhecimentos
profissionais e profissionalidade docente, bem como as contribuições de Passeggi (2010) sobre o papel das
narrativas na formação indicaram que os significados e as conquistas alcançadas durante a participação no
estágio fazem parte da compreensão sobre os conhecimentos necessários para o exercício da docência. O artigo
traz as análises das narrativas de cinco alunas do curso de Pedagogia decorrentes do estágio junto às professoras
das séries iniciais nas aulas de matemática. O compartilhamento das narrativas evidenciou o potencial formativo
dos estágios associado a sua possibilidade de afetar o processo de constituição da profissionalidade docente dos
futuros professores.
Palavras-chave: Profissionalidade docente; Conhecimentos Profissionais; Formação Inicial; Narrativas.
Abstract
This article is an excerpt of a PhD research and discussion brings to the role of supervised internship as a
privileged space in the initial formation and constitution of professional teaching future teachers process. The
contributions of Montero (2001), Goodson (2008) and Shulman (1987) on teacher professionalism and
professional knowledge as well as the contributions of Passegi (2010) on the role of narrative in the formation
indicated that the meanings and achievements during participation in the internship are part of the understanding
of the knowledge required for the practice of teaching. The article presents the analysis of the narratives of five
students from the Pedagogy arising from the stage to the teachers of the lower grades in math classes. The
sharing of narratives highlighted the potential of formative stages associated with its ability to affect the process
of constitution of professional teaching future teachers.
Keywords: Teaching Professionalism; Professional knowledge; Initial Training; Narratives
racionalização dos conhecimentos e das habilidades concebido como um período limitado do tempo em
necessárias ao exercício da atividade docente pode- que o aluno em formação é obrigado a cumprir uma
se identificar a constituição da profissionalidade carga horária e frequentar ambiente escolar, cuja
docente. Defende-se, assim, que a formação inicial atividade não faz parte integralmente da realidade
dos professores, de forma geral, e o estágio da qual ele se aproxima. Esse tempo de obrigação
supervisionado, de forma particular, devem afetar o se restringe, muitas vezes, à frequência e à produção
processo de constituição da profissionalidade e de relatórios para cumprimento das exigências
profissionalização dos docentes em formação. legais propostas pela disciplina.
Em outro artigo, Pimenta e Lima (2004)
O estágio supervisionado como objeto de estudo enfatizam que a aproximação da realidade
e o contexto da pesquisa desenvolvida pelo estagiário, no caso do estágio
cumprido por obrigação sem articulação com a
Estudos e discussões sobre a legislação formação oferecida no curso superior, assemelha-se
vigente e sobre os objetivos e as contribuições do ao “olhar de estrangeiro”, ou seja, de alguém que
estágio supervisionado levam a conceber que, ao está de fora, que veio de um outro contexto, que não
adentrar na sala de aula, o aluno da formação inicial está condicionado ao cotidiano daquela prática.
tem, pela primeira vez, a oportunidade de fazer a A frequência e a participação do aluno da
leitura da profissão docente não mais na condição licenciatura dentro da escola, durante a realização
de aluno, e sim como aprendiz da profissão. Dessa do estágio, permitem-lhe verificar que a prática do
forma, concebe-se que o estágio é um momento professor para ensinar é complexa e singular e, até
especial do processo de formação do professor, em mesmo, incerta, por vezes, exigindo do professor a
que ocorrem, de maneira mais efetiva, a transição e busca intencional do diálogo entre os saberes da
a passagem de aluno a professor. prática, para construção do conhecimento
Cochran-Smith e Lytle (1999) utilizam a profissional sobre ensinar (MOURA, 2001).
metáfora “dentro/fora” para representar a imagem Essas considerações demandaram um
ambígua que simboliza o futuro professor quando processo de coleta de dados mais ampliado durante
está na condição de aprendiz da profissão e a realização da pesquisa. Outros instrumentos foram
frequenta o ambiente de sala de aula. Ora ele fica utilizados como questionários para os 46 alunos do
perplexo com a situação, que envolve aspectos de curso de Pedagogia; entrevista exploratória com um
ensino e de aprendizagem, aspectos afetivos de grupo de 5 alunas que optaram por realizar o estágio
comportamento do aluno e do professor e uma ou na escola de Ensino Fundamental que aceitou fazer
outra vez ele faz relação com as questões históricas, parte da pesquisa; e, na fase final de pesquisa, um
econômicas e sociais e afirma não adotar tal grupo de discussão com 12 alunos desse curso,
procedimento ou postura; ora fica em dúvida se teria incluindo as 5 alunas que se tornaram sujeitos da
conhecimento suficiente para ensinar e oferecer pesquisa. A participação na pesquisa articulou-se
oportunidades para aprendizagem ou resolver o com a proposta de produção de narrativas pelas
conflito instaurado durante a aula; ora, ainda, alunas e pela pesquisadora, para leitura e reflexão
considera que ser professor é reproduzir o que nos encontros quinzenais com a pesquisadora, nas
vivenciou como aluno. dependências da instituição de Ensino Superior.
Para Sanmamed e Abeledo (2011), o aluno
estagiário, ao interagir com o ambiente físico, social As narrativas: o processo de construção, as
e educacional, precisa ser encorajado a desenvolver percepções iniciais as contribuições para
por si seu próprio conhecimento, agindo de forma constituição da profissionalidade docente
reflexiva diante das inúmeras situações do cotidiano
escolar, já que, normalmente, ele visualiza os As narrativas sobre as vivências no estágio
professores das classes como o “conhecedor do e os elementos de discussão durante suas leituras
conhecido”, que tem status de manejar as situações pautaram-se nos registros sobre o contato das alunas
da classe e que domina todo o conhecimento para estagiárias com a professora da classe e das
ensinar. O estágio “é um fator chave no processo estagiárias com os alunos. Essas vivências foram
educacional e para o aluno em formação, é uma determinantes para que suas memórias e lembranças
oportunidade única de aprender a profissão docente (re)significassem suas concepções sobre ensinar e
sem ter a enorme responsabilidade que ela exige”1 ( aprender, recuperassem suas visões de escola e
p. 48). oportunizassem uma nova concepção da profissão.
Pimenta (2001) faz críticas ao estágio A construção das narrativas era individual e
acontecia logo após a participação no estágio estágio: foi a partir do estágio que ela concluiu que
realizado na escola municipal. As alunas do curso tinha escolhido a profissão certa.
de Pedagogia dispunham de um caderno, e seus
registros pessoais serviam de suporte para a Para mim, o estágio está sendo um espelho
produção das narrativas. Esse caderno ficava à do que vou encontrar na profissão. Eu
disposição da pesquisadora e da professora titular da percebi que mudou muito o ambiente de
classe e dava transparência ao processo de pesquisa. sala de aula em relação à época que fui
É importante destacar que a relação das aluna de 1º ao 4º ano. Eu fico um dia com
professoras titulares com as alunas estagiárias uma professora e outro com outra
inicialmente era de desconfiança, porém, a partir do professora. Eu consigo analisar os
momento em que as alunas começaram a deixar procedimentos de cada professora para dar
seus registros à disposição das professoras e da aula e para atender os alunos. Enquanto
diretora, essa relação foi se alterando e tornando-se uma professora é mais dinâmica, explica
mais próxima, já que os registros eram fiéis ao que bem e atende os alunos, outra professora é
ocorria na escola. mais preocupada com a rotina e com o
Como ressalta Bruner (1997), as narrativas tempo de cada atividade. Reflito sobre cada
são versões da realidade, orientadas, por convenção situação, vejo o quanto é difícil ter que
e necessidade, para o relato de histórias e fatos decidir sobre o que deve ser feito e o que
considerados verdadeiros ou falsos. A defesa e a deve ser seguido, reflito sobre as situações
apresentação do que é narrado depende da intenção e faço um ensaio: se eu fosse a professora,
do narrador. faria dessa forma. Penso que o estágio é
Passeggi (2010), corroborando a ampliação uma oportunidade de fazer este ensaio de
da compreensão sobre a narrativa como versão da como eu faria para conseguir que todas as
realidade, mostra que a narrativa, quando adotada crianças aprendam. Enfim, por isso
como instrumento de pesquisa, exige uma análise considero que estágio é um espelho.
multirreferencial inserida na perspectiva do (MARTA, n.12, 28 ago. 2010) 2
interacionismo sociodiscursivo, pois é um gênero
textual em que o processo de autoria e o de As alunas estagiárias, mesmo tendo sido
construção identitária se entrelaçam: o narrador informadas de que o foco da pesquisa estava
coincide, enquanto escreve, com o autor empírico direcionado para o ensino dos conteúdos de
do texto. Ele é o agente responsável pela totalidade matemática nos anos iniciais, sentiram necessidade
das operações do ato de escrever. Assim, o processo de discutir outros aspectos que observaram no
de escrita consiste na apropriação de novos saberes cotidiano escolar, uma vez que ficavam cinco horas
conceituais, sobre a língua e sobre o conteúdo que na sala de aula. Essa era a riqueza do processo de
narra, transformadores dos conhecimentos sobre apropriação da docência que resultava das
suas práticas pedagógicas, de escrita e sociais. A indagações que emergiam. Marta, por exemplo, viu-
escrita, também, transforma um conhecimento de se cúmplice da situação real e registrou que entendia
senso comum em acadêmico, na medida em que a postura da professora. Deixou implícito que
ressignifica, examina e retoma suas palavras para concordava com a autoridade da professora, em
apresentar suas ações, suas crenças e seus valores. diferentes momentos, para conseguir a atenção dos
Para a autora, a liberdade do narrador de controlar, alunos. Contudo, no encontro com a pesquisadora,
censurar e aprovar o que escreve provoca mudanças ao ser questionada a respeito da situação narrada,
na constituição identitária, o que lhe permite Marta concordou que existe algo que não é coerente
apropriar-se das representações de si mesmo. com a concepção de ensino que defende o aluno
As narrativas, nesse sentido, demonstraram como protagonista da aprendizagem e o professor
ser excelentes recursos para que as alunas como mediador da aprendizagem e cujas
estagiárias comunicassem suas vivências, suas intervenções precisam ser desafiadoras. Declarou
impressões e seus conhecimentos. A análise de cada não ter resposta sobre como fazer com que aqueles
texto implicava não apenas a exploração do que alunos se sintam desafiados e percebam que os
estava escrito, mas também a análise do modo conteúdos da escola e a proposta da professora
figurativo da linguagem. ajudarão na sua formação; por vezes ficava em
A narrativa da aluna Marta sobre as dúvida se a postura da professora era a mais
contribuições do estágio traz de modo figurativo a aceitável, pois os alunos só realizam a atividade por
percepção dos significados que atribui para o se sentirem obrigados, mas afirmava que não
saberia como agir diante aquele dilema. das indagações sobre os detalhes que envolviam a
A reflexão foi produtiva, não havia a cena, os procedimentos adotados e os que poderiam
intenção de prescrever o que é correto nem o que ser empregados e sobre as percepções do momento.
deveria ser feito; procurava-se, ao contrário, adotar Assim, o acompanhamento do estágio, pela
uma postura cuidadosa para as interpretações da pesquisadora e pelas alunas, acontecia de forma
prática educativa, pautadas num olhar mais significativa e transformadora dos conhecimentos
direcionado à apropriação de conhecimentos profissionais: tanto aqueles conquistados durante a
profissionais para legitimar o processo de realização do curso de Pedagogia quanto os que
profissionalização individualmente e coletivamente. foram adquiridos mediante as reflexões críticas nos
Letícia, na narrativa abaixo, também expõe encontros com a pesquisadora ou durante as
suas dúvidas e dilemas diante uma realidade escolar vivências na escola de Ensino Fundamental.
complexa, como a que presenciava no estágio: Para Passeggi (2010), os vínculos que se
entretecem entre a linguagem selecionada, a
Nesta escola vejo que o dia-a-dia é muito reflexividade biográfica e a consciência histórica,
difícil. As salas são grandes e serve de para produzir a narrativa, têm como princípio a
biblioteca, palco de teatro, ambiente de dimensão autopoiética focalizada nas práticas
estudo. Sinto que somente com a presença pedagógicas que favorecem a reflexão sobre a
mais firme e exigente da professora os ressignificação da experiência no contexto da
alunos são obedientes. Contudo, vejo formação. Referindo-se a Larrosa, a autora enfatiza
algumas possibilidades de trabalho que “somos a narrativa aberta e contingente das
diversificado dentro deste precioso histórias de nossas vidas, a história de quem somos
ambiente – sala de aula – para esta escola em relação ao que nos acontece” (PASSEGI, 2010,
que tem poucos recursos físicos adequados p.147).
para as crianças.Considero que as crianças
precisam ser estimuladas para o conteúdo Sinto que o estágio, não só para mim, mas
que será apresentado e, em algumas vezes, para todos, é um momento único. A escola
poderiam decidir como poderiam realizar tem vida, gosto muito de participar de tudo:
as tarefas. O uso do caderno, lápis e lousa roda de leitura, merenda, montar os cantos
para copiar a atividade é cansativo. para estudos, ensaio de danças para as
(LETÍCIA, 4º ano do EF, narrativa n. 10, 02 festas e comemorações. Nunca imaginei que
abr. 2010) fazer estágio era tão bom. Estamos ficando
mais questionadoras. (ANA CLARA).
Assim, no contexto dessas narrativas e de
outras não apresentadas, as descobertas das Nas suas narrativas, Ana Clara normalmente
incompreensões e de caminhos ainda não trilhados faz críticas aos procedimentos dos professores que
ficaram evidentes, e os espaços que inicialmente não permitem que as crianças apresentem suas
eram narrados com certa naturalidade agora se opiniões. Compreende que o professor deve ter
transformavam em lugares de formação, pois o perfil de líder, mas não concorda com o
sentido e o significado das experiências eram autoritarismo. Realizou grande parte do estágio
apresentados com cumplicidade nas narrativas. numa única classe. Optou por produzir as narrativas
Havia a certeza da criticidade em relação à somente das aulas de Matemática e analisa com
complexidade de ser professor, decorrente da veemência a postura da professora em relação à
necessidade de romper com a racionalidade ainda gestão da sala na hora da explicação dos exercícios:
presente na escola hoje, seja na relação de poder da
professora com o conteúdo selecionado ou da sua Hoje prefiro registrar que a professora D-1
autoridade para garantir o ensino. deve estar com algum problema. As
Nesse contexto, o espaço, o estágio e os crianças não podem nem se mexer do lugar
conhecimentos matemáticos ficavam imbricados e que ela altera a voz. Para explicar como
traziam, tanto para as alunas como para a deveriam copiar e resolver a situação
pesquisadora, indagações que exigiam pesquisa, problema da p.46, fez três paradas e pediu
discussão e ressignificação. silêncio, ameaçando não explicar mais.
Esta estrutura foi se ampliando à medida Algumas crianças apenas copiaram do livro
que as leituras aconteciam nos encontros, e, posteriormente, anotaram o resultado
constituídos também de narrativa orais, resultantes colocado na lousa, ainda bem que após o
recreio os alunos terão aula de Língua conhecimentos do conteúdo pedagógico geral e dos
Inglesa seguida da aula de Educação Física conteúdos curriculares.
ministradas por outros docentes. Fico Ana Clara, por exemplo, na narrativa nº 2,
muitas vezes abismada com a postura traz uma experiência que se refletiu na sua
autoritária do professor que ainda profissionalização, pois algo que considerava “fácil”
permanece no final dessa primeira década se modificou após a análise da situação, do contexto
do século XXI. (ANA CLARA). e das intervenções. Ela percebeu que suas relações
com os saberes sobre o conteúdo em evidência
A narrativa de Larissa, com o título foram ressignificadas. A proposta consistia na
“Observação da relação aluno e aluno e aluno e escrita, pelos alunos, de números de 0 a 50.
professor”, expõe a contribuição para sua
constituição profissional. Muitas crianças se perderam, não
conseguiam ver e registrar a sequência. O
Pensando em construção do saber caderno ficou todo sujo e feio de tanto os
matemático, sabe-se que um ambiente alunos apagarem, e isso os deixou
favorável às relações, onde os alunos visivelmente frustrados. Depois de algum
possam expressar-se sem ter medo de errar, tempo a professora escreveu os numerais na
é fundamental. lousa, para aqueles que ainda não haviam
Percebe-se que se trata de um grupo muito terminado copiar.
harmonioso e que há cumplicidade entre os Um aluno em especial me chamou atenção,
alunos e comprometimento por parte da ele não conseguiu fazer os números: nem
professora, que se mostra sempre atenta ao copiando ele não sabia a sequência.
Quando ele começou a copiar, fez os
andamento do aprendizado da classe como
números espelhados. Em nenhum momento
um todo. E pontualmente, quando
houve intervenção da professora sobre esse
necessário faz devolutiva às perguntas, aluno.
mesmo que por vezes em um tom de voz alto [...]
e desnecessário. Mas o interessante é que No momento não achei a atividade
os alunos expressam suas idéias e são significativa. Fiquei com a impressão de
ouvidos pela professora. Outro aspecto que que eles não compreenderam a sequência
observei que define essa harmonia é que os dos números de 10 em 10 (a configuração
alunos se ajudam, tanto em questões do nosso sistema). Enfim, pensei que não
práticas como na falta de materiais, quanto sabiam por que tinham que escrever os
para realização das atividades propostas números e, também, como fazer os
pela professora.. (LARISSA). registros. Depois entendi que é preciso
propor os registros dos números para
Assim, é possível confirmar que a verificar se os alunos, ao registrarem e
constituição da profissionalidade docente das alunas recitarem os números, identificam seu valor
evidenciava-se nas narrativas e nas transformações numérico e posicional, além de avaliar
que o curso e a participação do estágio favoreceram, quais alunos conseguem fazer os números
pois, além das observações referentes à postura na sequência, quais tem dificuldades e até
docente, à rotina da classe e às formas de onde conseguem registrar. A atividade foi
apresentação e intervenção para favorecer demorada e considero que a professora
aprendizagem de conteúdos de Matemática, existem deveria fazer intervenções durante a
também, nas narrativas algumas observações e atividade para verificar as dúvidas e
reflexões sobre a classe, o entrosamento dos alunos incentivar os alunos que pararam de fazer,
e as posturas éticas (ou não) dos professores. e ainda mais, deveria se apoiar em
diferentes formas de ensinar. (ANA CLARA,
Nesse contexto, é possível afirmar que
1º ano EF, narrativa n. 2, 30 abr. 2010)
algumas narrativas evidenciam que as relações
estabelecidas com os saberes, associadas à ocupação
Entende-se que a narrativa merecia alguns
e à atuação dos professores (neste caso, das alunas
questionamentos. Assim, no encontro com a
estagiárias) no cotidiano escolar, influenciam
pesquisadora, o parecer de Ana Clara em relação à
significativamente no processo de
postura da professora: - “deveria se apoiar em
profissionalização. Essas evidências, por vezes,
diferentes formas de ensinar” - foi elemento de
propiciaram a ampliação dos saberes e dos
reflexão, diante da questão: o que fica implícito numeração do sistema decimal! A narrativa
quando, como sujeito externo da situação, da Ana Clara fez nosso encontro voar: o
consideramos que existem outras formas de ensinar? tempo ficou pequeno para tantas
Uma das considerações do grupo referiu-se indagações sobre ensinar e aprender
ao perfil dos alunos da classe e à postura da numerais. A atividade proposta para
professora durante a realização da atividade. alunos do 2º ano parece ser tranquila:
Prevaleceu, nesse momento, a questão de identificar sabem recitar e, muitas vezes, não sabem
se os alunos conhecem os números, se estão registrar na ordem crescente, contudo para
preparados para realização dos registros numa o aluno é trabalhosa e exige que conheçam
ordem numérica crescente e se sabem organizá-los a sequência e a regularidade numérica para
no espaço e nas linhas do caderno, para que os realizarem os registros.
registros estejam separados por traços para leitura. Explicita os números na ordem crescente,
Também se discutiu a diferença entre recitar o pareceu ser novidade, e o grupo anunciou
número e escrever o numeral: por exemplo, o aluno, não havia pensado nisso! A inclusão
quando recita 20, 21, 22, 23, 24,..., identifica o numérica, a sequência de 10 em 10, a
número 2 como sendo vinte (duas dezenas) e os verificação da posição numérica e da
demais, como as unidades (quantidades diferença entre, por exemplo, 23 e 32, para
individuais). Essa relação do número com a o aluno que escreve espelhado também
quantidade, com compreensão do valor posicional, foram elementos de discussão. A aluna Rose
poderia ser explorada. Na ocasião, outras duas comentou: “eu falo muito sobre este sistema
alunas - Vivi e Larissa - deram como opção a decimal para meus alunos e não associava
colocação dos números em intervalos de dez em a questão do 10 em 10 sem ser 20-30 40,
dez, ou seja de 0 a 10, de 11 a 20, de 21 a 30, [...] não havia pensado no 10 em 10 entre 15-
numa folha, para copiarem embaixo. Outra proposta 25-35”. (DENISE MARQUESIN, narrativa
foi da escrita dos números com intervalos em da pesquisadora, n. 4, 02 maio 2010).
branco para colocação dos numerais que faltavam.
Ou, ainda, propor a escrita de intervalos, por Verifica-se que as reflexões do grupo
exemplo, de 13 a 23, ou de 34 a 50, com orientações relacionadas à função do professor como
para os alunos que chegam ao 50 continuarem, avaliador do que as crianças conhecem sobre o
dando a possibilidade de acompanhamento, pela conceito de números, associadas às formas de
professora, dos alunos com dificuldade para intervenção para o entendimento das
concluírem a sequência. regularidades do sistema de numeração decimal,
Assim, ficou evidente a necessidade de o contribuíram para a constituição da
professor estar atento a todos os alunos, dando profissionalidade docente. Gauthier (1998, p.71)
diferentes oportunidades de construção de justifica esta interpretação:
sequências numéricas com orientações. Essas
considerações levaram o grupo a definir condutas A profissionalidade se legitima e se remete
docentes para o trabalho com os conteúdos e à compreensão das imagens ou
conceitos que envolvem o estudo do sistema de representações que o professor constrói a
numeração decimal. respeito do magistério, mesmo antes de ter
Tais reflexões e indagações sobre as começado a ensinar, já que a
respostas possíveis permitem às estagiárias a profissionalidade no ensino supõe assim
aproximação com o conhecimento do conteúdo uma mudança nos saberes e na integração
pedagógico imbricado nos conhecimentos dos na formação.
conteúdos da matéria a ser ensinada.
Na narrativa da pesquisadora sobre o Aqui cabe um parêntese, pois as alunas
encontro nº 3, é possível verificar esses aspectos, normalmente consideram que a questão da
bem como as opções de intervenções que o afetividade e carinho por si só garante a
professor tem para que o aluno entenda e reconheça aprendizagem; esse aspecto fez parte dos estudos
a regularidade do sistema de numeração decimal, realizados, e, de acordo com Nóvoa (2000), a
naquele intervalo e/ou em outros. educação escolar é feita por atividades educativas
que envolvem a preparação, coordenação e
Quanta informação sobre a escrita de avaliação das mesmas, com respeito à
numerais e a regularidade do sistema de individualidade e ações centradas nos saberes
subjacentes ao ato de ensinar, sem refração dos bom entendimento do conteúdo, saber como
sentimentos e emoções. a criança aprende e quais os
Retornando às categorias da base de questionamentos que vão realmente ajudar
conhecimento anunciadas por Shulman (1987), a aos alunos na construção de conceitos
aluna Ana Clar refere-se não somente ao desse conteúdo. Nesse momento fui
conhecimento pedagógico do conteúdo específico e orientada pela professora, que ajudava com
ao conhecimento pedagógico geral, mas também ao as perguntas aos alunos, para que o
conhecimento dos contextos educacionais, ao momento não fosse apenas de diversão para
conhecimento dos fins, dos propósitos e dos valores os alunos, mas para que contribuísse na
educacionais, ao mencionar que é necessário ter construção de conceitos pelos alunos.
foco na aprendizagem esperada. (ROSE, narrativa n. 2, 4º ano, 24 mar.
Outras narrativas semelhantes à de Ana 2010).
Clara mostraram que os conhecimentos
profissionais relativos ao ofício docente envolvem o As narrativas de Ana Clara e de Rose
aprender a ensinar e a ser professor, atuando como evidenciam que as apropriações dos conteúdos
professor: “ensinar exige um conhecimento do matemáticos adquiridos durante a escolaridade ou
conteúdo a ser transmitido, visto que, no curso de Pedagogia não foram suficientes para
evidentemente, não se pode ensinar algo cujo ensinar. Declaram que não estão preparadas para
conteúdo não se domina” (GAUTHIER, 1998, exercer a profissão, ou seja, expõem sua identidade
p.29). A narrativa de Rose traz essa percepção: e iniciam-se no processo de profissionalidade
docente.
No segundo dia de estágio, acompanhei a As reflexões das futuras professoras sobre a
resolução de operações inversas e divisão. ação de ensinar e sobre os conhecimentos
A professora relatou-me que havia profissionais do conteúdo pedagógico geral, do
necessidade em retomar o conteúdo desde a currículo e dos alunos, que envolvem a ação de
adição, pois alguns alunos não estavam ensinar e sua apropriação, estão sendo conquistadas
acompanhando essas operações. Pude por sua experiência como estagiárias.
perceber que a professora precisa trabalhar Esses aspectos esclarecem que a construção
os conteúdos propostos pela apostila, de conhecimentos profissionais resulta das relações
porém a dificuldade de se fazer uso da estabelecidas com os saberes e com a reflexão sobre
mesma, sem deixar “para trás” os alunos a experiência. Essas evidências ampliam-se
que ainda não têm definidos conceitos quando se concebe que os conhecimentos
básicos da matemática, é um grande profissionais são mais amplos que os saberes,
desafio. exigem saberes contextualizados a respeito da
Para driblar esse desafio, a professora escola, do programa de ensino, do conteúdo, da
retomou, passo a passo, fazendo teoria e da ação pedagógica.
intervenções a todo o momento, a fim de
garantir o aprendizado. Auxiliei a Tecendo considerações
professora no momento das intervenções,
orientando os alunos a partir da maneira A proposta de realização de estágio pelas
como a professora fazia e explicava na alunas do curso de Pedagogia confirmou que, nos
lousa e pontualmente, para os que mais momentos de estágio do aluno da formação inicial,
precisavam de ajuda. existem possibilidades de sair da condição de
Pude perceber que, para ensinar espectador do ensino para assumir as condições de
matemática, além de ter o domínio do docente quando existe reflexão, individual ou em
conteúdo, o professor precisa, ainda, saber grupo, sobre as responsabilidades, os desafios e os
como o aluno aprende, para usar uma conflitos docentes, relacionados às vivências e às
linguagem que ele entenda. No caso desta experiências com os rituais de ensino e, no caso
classe, a professora D-2 faz isso muito bem, deste artigo, sobre a aprendizagem de conteúdos
e eu espero aprender um pouco mais sobre matemáticos. Neste estudo de caso, as alunas do
a maneira adequada de exemplificar e curso de Pedagogia anunciaram com naturalidade
explicar os conceitos matemáticos para os que os conteúdos de Matemática são “difíceis” de
alunos. serem ensinados e que deve ser modificada a
Enfim, pude perceber que é necessário um postura do professor que ainda adota a exposição do
Sobre as autoras:
Denise Filomena Bagne Marquesin: Doutora em Educação Matemática, PUC- SP. Pós-doutoramento em
Educação pela USF. Atua como professora e Coordenadora de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade
Anhanguera de Jundiaí, SP.
Laurizete Ferragut Passos: Possui graduação em Pedagogia, mestrado em Educação pela Universidade Estadual
de Campinas, doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua como professora da PUC São Paulo.