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Lectio divina: um método monástico de meditação

Esta noite eu gostaria de refletir com vocês sobre uma forma de meditação
muito antiga, judaica e cristã, que chamamos de lectio divina. A lectio
divina é uma parceria entre Deus e a pessoa que medita as Sagradas
Escrituras. Como o próprio nome indica, ela é, em primeiro lugar, uma
atividade divina: é Deus que age. Deus fala ao ser humano por meio de sua
Palavra viva, a Bíblia. E falando, Ele se revela e se comunica e aguarda a
resposta à sua revelação. Trata-se, essencialmente, de um diálogo: Deus me
aborda através do texto bíblico, numa profundidade cada vez maior; e eu,
acolhendo essa Palavra, interpelado por ela, falo com Deus.
Para nós cristãos, as Escrituras não são letra morta, escritas em um passado
distante por pessoas de outro tempo e cultura, algo historicamente
condicionado. A Bíblia é Deus que fala no presente. Ele é o autor de sua
Palavra, que ele continuamente vivifica. E essa Palavra nos é endereçada
no hoje da nossa existência, nas circunstâncias interiores e exteriores que
vivemos agora. São Bernardo de Claraval diz que na lectio divina devemos
estar sempre com dois livros nas mãos: o livro da Escritura e o livro da nossa
própria experiência. Trata-se de um encontro entre a Palavra revelada e a
minha pessoa, atingida por essa Palavra.
A Palavra de Deus é poder divino. Ela não se limita a tocar a superfície do
meu ser. Ela quer alcançar o coração, o centro absoluto do nosso ser; ela quer
nos recriar. A meta da Palavra de Deus que vem ao meu encontro na lectio
divina é levar-me à minha plenitude, à plenitude que Deus deseja para mim.
Ela forma em mim a mente de Cristo, e estabelece em todo o meu ser uma
nova lei, a lei do Espírito, capacitando-me a amar como Deus ama e, de fato, a
amar a Ele e a tudo aquilo que existe com o mesmo amor divino com o qual
eu sou amado.
Lectio divina é a vivência da salvação. Cada vez que me deixo ser penetrado
pela Palavra viva, sou posto à prova, julgado pelo meu egoísmo e pela minha
indiferença à vida dos outros. Ao mesmo tempo, abrindo-me ao novo
horizonte que a Palavra me manifesta, sou liberto dos meus limites para
dedicar-me mais plenamente à adoração de Deus e à comunhão com todas as
criaturas.
A lectio não é um exercício intelectual, não é um prazer estético, não é uma
prática devocional. É um acontecimento existencial, que deve ser
transformativo. Quando leio a Palavra de Deus, tenho que dizer sim ou não à
nova possibilidade que Deus me apresenta. O grande teólogo luterano do
século XX, Dietrich Bonhoeffer, disse: “Aquele que se senta para meditar o
Evangelho, e ao levantar ainda é a mesma pessoa que era quando começou,
não estava lendo o Evangelho”.
A Palavra de Deus nos transforma. A mente humana tem resistências de
todo tipo, muitas delas inconscientes, ao projeto da Palavra de Deus de fazer
sua morada em nós e de fazer de cada um de nós uma nova criatura. Ao
mesmo tempo em que desejamos a comunhão com Deus, causa-nos uma
profunda angústia a ideia de nos entregarmos a um outro, mesmo que esse
Outro seja Deus, e permitir que ele viva e aja no recinto da nossa liberdade.
Como antídoto a essas resistências, a tradição mística cristã desenvolveu um
método de abertura, uma maneira de deixar-nos cada vez mais acessíveis à
vinda da Palavra em nós. Quem sistematizou esse método foi um monge
cartuxo do século XII, Guigo, e o título de seu tratado sobre a lectio divina é
“a Escada dos Monges”. Vamos olhar os quatro graus da escada que será a
base de nossa própria lectio divina.
O primeiro grau é o simples ato de leitura – lectio – de uma passagem
bíblica, preparado por uma oração ao Espírito Santo. A passagem deve ser lida
lentamente, pausadamente, e deve ser breve. Em algum momento, diante de
algum versículo ou palavra do texto, mesmo numa segunda ou terceira leitura,
sentiremos a nossa atenção atraída, presa. Quando isso acontecer, não há
necessidade de ler mais nada. Uma vez que uma palavra do texto nos prende,
paremos. É esta a palavra que nos foi dada.
Passamos então ao segundo grau, chamado de meditação ou ruminação
– ruminatio. Trata-se de um processo de repetição interior (daí “ruminação”)
daquele versículo ou palavra, sem nenhuma tentativa de analisá-la ou
compreendê-la. Simplesmente deixar esse versículo ecoar dentro de si. Muitas
vezes a lectio não vai além disto; não precisa. E nunca devemos aplicar força.
Pela própria repetição interior da palavra que nos foi dada, Deus está
remodelando – divinizando – a nossa interioridade. A Palavra está, pouco a
pouco, se tornado carne dentro de minha carne. Outras vezes, a Palavra evoca
memórias, emoções, conflitos, esperanças, desejos. Nesse caso, a Palavra está
chamando essas realidades interiores para a sua luz, iluminando-as e
unificando-as.
Quando isso acontece, passamos para o terceiro grau: oração – oratio.
Uma vez interiorizada, a Palavra de Deus age em nós e suscita a nossa
palavra: um grito de ajuda, uma explosão de alegria, um transbordamento de
amor, uma dor profunda – que normalmente sairá de nós em uma única
palavra.
O quarto grau, raramente concedido, é a contemplação – contemplatio. É a
superação de toda distância entre a palavra sagrada e nós. De uma forma
silenciosa e tranquila, a palavra se realiza em nós: “Faça-se a luz!” – e de
repente somos luz. “Teus pecados estão perdoados” – e isso vira
acontecimento. No momento da lectio, quando chegamos à contemplatio, a
palavra torna-se evento.

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