Você está na página 1de 102

2

O olho azul de Hórus

Esta é uma obra de ficção. Qualquer


semelhança com personagens ou
eventos reais poderia ter sido mera
coincidência...
A Turmalina Paraíba é uma das gemas mais belas e
raras do mundo. Encontrada pela primeira vez na
Paraíba, recebeu este nome de seus descobridores.
No mundo todo existem somente cinco locais onde
esta pedra pode ser encontrada. Três estão no
nordeste brasileiro, um está em Moçambique e o
outro na Nigéria. As pedras, que são de um azul
intenso e translúcido, podem chegar a valer três
milhões de reais. E só não são mais caras porque a
procura ainda é infinitamente menor que a oferta...

2
“E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal que dizia:
Vem e vê.
E olhei. E eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele
tinha por nome Morte e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para
matar a quarta parte da terra, com a espada, e com a fome, e com a peste,
e com as feras da terra.”
Apocalipse 8:7-8

“E, havendo aberto o sexto selo, olhei, e eis que houve um grande tremor
de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se
como sangue.”
Apocalipse 8:12

UM
D jhozer desceu de seu carro de guerra, uma biga puxada por dois cavalos
inquietos e negros como a noite.

O dia já estava clareando e o sol não tardaria a despontar no horizonte.


A seu lado estava seu conselheiro, sumo-sacerdote, arquiteto e médico,
Imhotep, que vinha acompanhando o faraó em outra biga. E ao redor, soldados
para proteger a ambos. Era sua comitiva.
_É neste lugar que construiremos a minha morada do além vida. Eu quero que
seja grandiosa, majestosa como o meu reinado. Que resplandeça todo o meu
poder e a minha glória.
_Seja feita a vossa vontade ó grande senhor do deserto e das águas do Nilo.
-respondeu Imhotep- Eu erguerei uma pirâmide até que o topo esteja
alcançando a morada dos deuses, meu senhor.
_Confio na sua engenhosidade para proteger meu corpo enquanto eu estiver
no além vida.
Dhjozer, que também era conhecido como Neterket, havia expandido os
domínios do império egípcio despachando várias expedições militares para a
Península do Sinai, durante as quais os habitantes locais foram subjugados.
Ele também enviou expedições em busca de minas de minerais valiosos, como
turquesa e cobre. Ao Sul, ampliou as fronteiras até a primeira catarata.
_Meu rei há de viver bastante e seus feitos serão cantados por todo o reino,
assim como foram cantados os feitos de2 seus antepassados. E a glória e honra
de seu império hão de prevalecer para todo o sempre.
_Que suas palavras sejam uma profecia, meu bom vizir.

SAQQARA, SUL DO EGITO ANTIGO. CERCA DE TRINTA QUILÔMETROS


AO SUL DE HELIÓPOLIS (ATUAL CAIRO). MAIO DE 2.700 a.C.

Um dos soldados de sua comitiva viu um brilho de um azul intenso


resplandecendo, meio enterrado na areia que logo se tornaria escaldante.
Abaixou-se e ia apanhar o objeto quando um escorpião do deserto lhe ferroou
a mão. Ele ajoelhou-se enquanto uma dor lancinante tomava conta de seu ser.
Os tecidos da mão ao redor da picada imediatamente necrosaram. Seu
coração começou a bater cada vez mais rápido, enquanto sua respiração
tornava-se ofegante e as náuseas o obrigavam a vomitar tudo o que havia no
estômago.
O soldado egípcio, que não deveria ter mais do que quinze anos, caiu, em
posição fetal. Imhotep correu até ele e levantou sua cabeça colocando-a em
seu colo, verificou se o corpo ainda tinha vida. Em seguida, olhou para Dhjozer
e balançou a cabeça negativamente.
Imhotep olhou ao redor e, imediatamente percebeu as intenções do jovem
soldado. Ao lado do escorpião, ainda vivo, estava a ponta de uma gema de um
azul maravilhoso.
_Mate o escorpião e pegue aquela pedra azul! -ordenou ele a um dos
soldados.
Tão jovem quanto o primeiro, o segundo soldado aproximou-se da pedra e
pisou com sua sandália no animal, esmagando-o. Em seguida abaixou-se para
pegar a pedra azul, quando uma víbora do deserto saiu da areia e mordeu-lhe
a mão. O jovem soldado desembainhou a espada e decepou a serpente. Sabia
que sua vida não duraria mais que alguns minutos, então pegou a pedra e
levou-a até Imhotep.
Imhotep sentiu imediatamente o peso da maldição que aquela pedra carregava
consigo e preferiu não tocar nela. Retirou o lenço de linho que protegia sua
cabeça raspada do sol escaldante do Saara e, com ele, segurou a pedra.
Ela era linda!!!
A forma como a natureza a produziu fazia com que ela se parecesse com um
olho humano. Um olho de um azul intenso e profundo, que causava a
admiração de todos.
Imhotep entregou a pedra a Dhjozer:
_Deve ser o Olho Azul de Hórus, meu senhor. -sussurrou ele.
_Que estes soldados possam ser sepultados como homens verdadeiros e leais
ao seu rei!!! -gritou o faraó- Quando minha alma abandonar esta vida, vou
encontrá-los no Além e lá eles me servirão como serviram aqui.
Os homens levantaram suas lanças e gritaram em saudação ao faraó.
2
Dhjozer levantou a pedra:
_Este é o Olho Azul de Hórus. O olho que foi arrancado por seu tio Seth, que
não se conformava com o poder do irmão, nosso amado deus Osíris. O Olho
Azul de Hórus foi achado por nós, pois era parte da profecia: o olho iria nos
mostrar o local onde deveremos construir o grande túmulo de seu senhor. Que
se cumpra a profecia!!!

Começava ali a saga de uma das gemas preciosas mais amaldiçoadas do


planeta.

DOIS
G
uilherme Romanov acordou de um sono atribulado. Parecia que tinha
sonhado, e muito, embora não se lembrasse de nada. Percebeu que
era madrugada ainda, pois a luz que invadia seu quarto vindo da janela
aberta era a luz da cidade e não a luz do dia.
Seus sonhos mais frequentes costumavam ser com sua esposa, mas já fazia
um tempo que ela não aparecia em sonho para ele. Durante anos Romanov
carregou a culpa pelo acidente que matou sua esposa Vésper e sua filha
Beatrice. Na época, Vésper estava grávida de cinco meses do pequeno
Guilherme Júnior. Essa culpa se dissipou depois que Vésper apareceu em um
sonho e mudou o destino de Romanov, levando-o a encontrar Gabriel Vazquez
e Denise Querol e juntos solucionarem um mistério que já durava séculos. Foi
a sua redenção. Depois disso, pôde seguir em frente e levar uma vida mais ou
menos normal. Esforçava-se para manter sempre viva a memória de Vésper e
da pequena Beatrice, que tinha só quatro anos na época.
Olhou para o relógio que marcava exatamente três horas e trinta e três
minutos. Ajeitou o travesseiro e deitou-se melhor esperando, com isso, voltar a
dormir. Foi quando, na penumbra do quarto percebeu que havia alguém ao seu
lado na cama, coberta com o lençol dos pés à cabeça. Uma mulher.
Será que eu bati a cabeça tão forte que não consigo me lembrar de quem seja
ela?
A mulher virou-se lentamente e, quando Guilherme viu o seu rosto, levou um
susto tão grande que caiu da cama.
A mulher soltou uma risada que ele conhecia muito bem.
_Quem é você??? -perguntou, numa mistura de grito e rouquidão.
_Ora Guiga!! -exclamou ela sorrindo- Sou sua mulher!!!
Do sorriso à tristeza ela não levou mais2que um segundo:
_Você não me ama mais? -perguntou ela com a voz embargada e os olhos
encharcados.
_Eu amo a minha esposa, que faleceu há muitos anos. E você, com certeza,
não é ela.
_Para de ser bobo, Guiga!! E volta pra cama.
_Quem é você? -gritou ele irritado.
Os olhos da mulher, que eram antes de um azul claro intenso, ficaram
totalmente negros. A pele escamada e esverdeada mostrava vasos sanguíneos
arroxeados e hematomas.
_Eu sou a soma de todos os seus medos! -disse ela com uma voz masculina e
gutural, quase animalesca.
Suas mãos, antes delicadas, pareciam agora patas com unhas compridas
semelhantes a garras e ela se movia pela cama com movimentos que
lembravam os de uma serpente.
_O que você quer de mim?
_Vou me alimentar do seu sofrimento até te matar. E quando eu te matar, vou
levar a sua alma comigo para me servir. Ou você acha que quando morrer você
vai pro mesmo lugar que foi aquela vagabunda da sua mulher?
Guilherme Romanov desferiu-lhe um bofete com as costas da mão. Aquela
agressão, no entanto teve pouco ou nenhum efeito:
_Não ouse falar da minha esposa, espírito imundo!!!
O que acabara de dizer soara tão estranho que até ele custou a acreditar.
A mulher riu uma gargalhada insana:
_Sua raiva é como seu sofrimento. Ambos me alimentam. Por que você não
me bate mais? Ou acha que esta bofetada ridícula doeu?
Romanov percebeu as intenções daquele ser horrendo, cujo hálito fedia a
carne podre misturada com enxofre. Foi até o armário da cozinha e pegou um
pequeno frasco de vidro:
_E que tal isto, vagabunda? -disse ele enquanto abria o frasco e jogava o
líquido sobre o corpo dela- Vamos ver se a água benta não te incomoda.
A mulher soltou uma nova gargalhada que estremeceu as janelas e deve ter
acordado os vizinhos. O rosto dela era a mais pura expressão de ódio:
_Você acha que pode me derrotar com umas gotinhas de água benta?!? Como
você é patético!!!
Ela segurou sua cabeça com as mãos asquerosas e o suspendeu no ar.
Romanov não tinha percebido o quanto ela era alta. Com a unha comprida e
afiada do dedo indicador, arranhou o pescoço de Guilherme. Foi um arranhão
profundo e logo o sangue começou a descer por seu pescoço. Ele tentou se
livrar das garras daquele ser horrendo, mas não conseguiu.
_Primeiro, professor Romanov, você tem que acreditar! Ter fé! Algo que você
não tem. Eu vou levar a sua alma comigo, quando eu te matar, mas não será
2
agora. Tem muita coisa em jogo e eu preciso de você. Vamos nos ver de novo.
Pode apostar.
Guilherme Romanov acordou num pulo. Saiu da cama como se seu colchão
estivesse em brasa:
Foi um sonho. Foi um pesadelo, isso sim!!!
Olhou para o relógio digital sobre o criado-mudo. Hora e minutos realizavam
uma dança macabra soando todos os possíveis alarmes do aparelho. Essa
dança durou alguns segundos e depois parou, deixando um forte cheiro de
enxofre no ar.

ZONA NORTE DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, CAPITAL DO ESTADO DE


SÃO PAULO. BRASIL. 19 DE ABRIL DE 2019. SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO
DE CRISTO. 3h33min.

Foi até a cozinha e pegou um copo da água que estava na geladeira. Em


seguida foi até o banheiro. Ao passar pelo espelho sobre a pia do banheiro
ficou perplexo com o que viu: no pescoço havia um arranhão que mais parecia
um corte com, talvez, três centímetros de comprimento.
_Filha da puta!!! -gritou ele- O que eu vou explicar lá na escola???
2

TRÊS
O
Primeiro Conde da Vila Pouca de Aguiar, Senhor António Teles de
Menezes olhou mais uma vez para a corrente de ouro que tinha nas
mãos. Era uma corrente com elos nem grossos nem finos, feitos do
mais puro ouro que poderia haver. Mas nem de longe a corrente se comparava
ao pingente que ela carregava. Uma grande gema incrivelmente azulada com
pequenos filetes de cor azul num tom mais escuro, só perceptível na presença
de muita luz ou da total ausência dela. Era o Olho Azul de Hórus.

CAPITANIA REAL DA BAHIA DE TODOS OS SANTOS. ATUAL ESTADO DA


BAHIA. BRASIL. 09 DE SETEMBRO DE 1648. QUARTA–FEIRA, DIA DA
NATIVIDADE DE NOSSA SENHORA. 16h30min.
O nome escondia o fato de que o Olho Azul de Hórus era uma joia condenada
à maldição. Quase todos aqueles que a usaram tiveram uma morte violenta.
Menezes tinha uma vontade enorme de livrar-se da joia, mas algo –uma
intuição talvez- o impelia a permanecer com a gema maldita e não era somente
a beleza da joia, cujo formato, ao ser lapidada, parecia-se propositadamente
com um olho; ou o brilho do ouro que a cercava e que compunha cada elo da
corrente num trabalho de ourivesaria que ele nunca tinha visto igual; ou o fato
de a pedra emitir luz no escuro.
Ele contou sobre a joia ao Bispo de Salvador Dom Pedro da Silva Sampaio,
que benzeu o Olho Azul de Hórus com água benta trazida de Roma e mandou
rezar nove missas pelas almas daqueles que morreram em posse dela.
_Pelo poder investido a mim por Deus, pelo Espírito Santo e por Nosso Senhor
Jesus Cristo, eu o batizo Sacro Mare Oceanum 1 e abençoo sua nobreza
livrando-o de todo e qualquer mal para todo o sempre. In nomine Patris et Filii
et Spiritus Sancti. Amen.
_Temo que isto só não seja suficiente... –disse o Conde.
_Peço-lhe, senhor Conde, que me conte a história desta joia. –pediu o bispo.
_É uma história longa, Vossa Eminência. Receio que vossa santíssima
autoridade a ache uma heresia de minha parte...
_Não vos preocupeis Senhor Conde. Não existe nada mais herético que o calor
constantemente sufocante das terras brasílicas de Vossa Majestade Dom João
IV.
2
_Não há muito que contar. –disse o Conde sentando-se numa das confortáveis
cadeiras instaladas na varanda de sua confortável Casa Grande.
Ele encheu seu cachimbo de um perfumado fumo e o acendeu. Logo a fumaça
invadiu o ambiente:
_Dom Duarte I de Aviz, nosso Eloquente Soberano, como bem sabeis, tinha
dois irmãos, o Infante Dom Henrique, Primeiro Duque de Viseu e Primeiro
Senhor de Covilhã; e o segundo irmão, Infante Dom Fernando, Primeiro Senhor
de Salvaterra de Magos e Primeiro Senhor de Atouguia da Baleia, também
chamado de o Infante Santo.
Dom António Teles de Menezes deu uma longa baforada em seu cachimbo e
prosseguiu:
_É certo que pelas nossas sagradas leis, o primogênito herda o título e os bens
do pai. Seus irmãos mais novos, entretanto, não gozam de tais privilégios. Foi
assim com Dom Duarte I e com os infantes Dom Henrique e Dom Fernando.
Acontece que ambos eram ambiciosos e tencionavam fazer fortuna. Dom
Fernando chegou a recusar o título e os privilégios de Cardeal oferecido por
Vossa Santidade o papa Eugênio IV, por acreditar que as campanhas contra os
infiéis no Norte da África lhe garantiriam mais fortuna.
O cachimbo havia apagado. Ele voltou a acendê-lo e deu mais uma longa
baforada.

1
Sagrado Mar Oceano (N.A.)
_No ano da Graça de Nosso Senhor 1437 eis que os infantes partem para o
Norte da África com uma carta de conselhos de El-Rei para os momentos de
batalha. Carta essa que o comandante da expedição Dom Henrique ignorou
totalmente.
Teles de Menezes deu mais uma baforada em seu cachimbo para evitar que se
apagasse.
_No caminho encontraram dois irmãos. Dois turcos sarracenos fiéis ao Islã.
Ambos brigavam pela posse de uma joia cuja pedra tinha sido retirada dos
tesouros de uma tumba saqueada do faraó egípcio, um rei-deus africano, por
ladrões de tumba, circa de cem anos depois da crucificação de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Portanto uma pedra amaldiçoada por hereges que não
conheceram as Palavras das Sagradas Escrituras. A pedra foi vendida por
estes ladrões a um mercador árabe que percorreu as quentes areias do
deserto africano até os domínios do Mali. Lá no Mali este mercador foi picado
por uma víbora e morreu em poucas horas. Seu filho lhe herdou todos os bens,
os oitenta camelos, as mercadorias, algumas concubinas e a amaldiçoada
pedra. Mas o jovem também morreu. Vítima de um mal-entendido, em terras da
Etiópia: foi confundido com um homem que havia abusado da esposa de um
cavaleiro. A lâmina da espada do cavaleiro ofendido separou a cabeça do
mercador do restante de seu corpo antes que ele pudesse dizer algo em sua
defesa. O ofendido ainda retirou seu colar como quem ganha um troféu numa
justa.
_Que história horripilante, meu caro senhor.
2
O Primeiro Conde de Vila Pouca de Aguiar ajeitou-se melhor na confortável
poltrona de couro:
_Na verdade saiba Vossa Eminência que a contenda entre os mouros não era
para disputar a posse do diadema e sim para livrar-se dele. Mas disso não
sabiam no momento os Infantes. Dom Fernando, que era o menos afeito a
brigas tentou acabar com a contenda obrigando que os mouros se ajoelhassem
diante de presenças reais. O que estava em posse da joia disse em árabe que
se os augustos soberanos os deixassem partir que poderia ficar com a joia. No
entanto esqueceu-se de dizer o infiel que ganharia também a maldição que o
amuleto pagão carregava. Dom Fernando pergunta ao mouro qual o nome da
joia ao que o muçulmano responde que só os que poderão entrar no Reino de
Allah recebem um nome, o que não é o caso da diadema. A pedra, porém, já
fora batizada como o Olho Azul de Hórus por aqueles que a criaram. Um deus
pagão nascido no interior das pirâmides do Egito.
_Interessante história, meu caro conde. E como termina.
_Se é que termina, meu caro bispo. A campanha foi um fracasso. Muitos dos
nossos bravos soldados morreram em batalha e os infantes foram presos em
Tanger. Mais tarde soltaram Dom Henrique para que mediasse junto a El-Rei a
troca de Dom Fernando pela cidade de Ceuta, em posse de Portugal desde
1415. Mas o extraordinário está por vir. Ao se despedir de Dom Henrique, Dom
Fernando lhe entrega a joia que ganhara embrulhada num alforje de couro e
lhe teria dito as seguintes palavras: “Rogai por mim a El-Rei, pois esta é a
última vez que nos vemos meu irmão”.
_Que relato impressionante Senhor Conde! –exclamou o clérigo.
_Sem dúvida Eminência! –continuou o Conde de Vila Pouca de Aguiar- El-Rei
recebeu Dom Henrique e a joia bem como as exigências para a troca de seu
irmão pela cidade de Ceuta. As negociações, no entanto, esbarravam nos
interesses de fidalgos poderosos que tinham negócios inescrupulosos em
terras de África e, seja por uma epidemia de peste negra que assolou Portugal,
seja por desgosto no fracasso da campanha a Tanger, Dom Duarte I o
Eloquente faleceu em 1438 e seu irmão Dom Fernando o Infante Santo
permaneceu em cativeiro até a sua morte em 1443. Desta data até os dias de
hoje a joia passou por uma grande quantidade de nobres portugueses e
espanhóis e, com raríssimas exceções, todos morreram. E eu serei o próximo.
Mas como um cavaleiro que sou não temo a morte. Em verdade vos digo
Eminência, com o passar do tempo aprendemos a aceitar a morte.
O Conde sorriu e tirou de sua algibeira dois dobrões espanhóis de ouro:
__O dinheiro para pagar o barqueiro, Vossa Eminência bem o sabeis, este eu
já o tenho...
O mito grego do barqueiro de Caronte ainda era muito forte por toda a Europa.
Uma figura espectral que navegava um barco pelo Rio das Almas em direção
ao Mundo Inferior habitado pelo deus Hades, fazendo a travessia daqueles que
perderam suas vidas. Embora a Igreja Católica tenha tentado de todas as
formas e maneiras acabar com o que ela considerava uma heresia, o mito
sobreviveu e o jeito foi transformar o barqueiro na figura da Morte.
__Cuidado com o que dizeis senhor Conde. Por heresias mais brandas que as
vossas, homens bons foram queimados na fogueira da Santa Inquisição. Mas
2
quem sou eu para julgar tuas convicções, ainda mais depois de um relato tão
macabro?
QUATRO
O
que acordou o professor Guilherme Romanov não foi o clarão
produzido pelo raio que iluminou completamente a penumbra do quarto.
Nem tampouco o rugido feroz que o acompanhou. O que tirou
Guilherme Romanov de seu sono profundo foi o sonho que tivera com sua
falecida esposa.
Ele sentou-se na cama. O rosto e o peito
2 estavam empapados de suor, algo
incomum para uma noite de chuva com ventos e temperatura amena. Não
conseguia se lembrar do sonho todo, mas nele via claramente o rosto de
Vésper. Sentiu a mão pequenina e delicada de sua esposa a acariciar lhe o
rosto e ouviu a sua voz, como se ouvisse a música mais bela do mundo:
_Quero que saiba que estarei sempre contigo. Amo você e farei tudo o que
puder pela sua felicidade.
_Meu amor... –disse ele quase soluçando enquanto beijava-lhe a mão delicada.
_Você deve começar uma busca. E mais uma vez não irá sozinho. Preste
atenção aos sinais, pois eles o guiarão na sua jornada em busca do olho azul
que veio do Oriente. Deus iluminará o seu caminho e receberá proteção do teu
anjo da guarda. Nós te amamos.
Uma lágrima esforçou-se por escorrer pela face daquele homem rude. Ainda
amava sua esposa e sentia que, onde quer que ela estivesse, também o
amava. Em outros tempos teria chorado a noite inteira por ter sonhado com ela.
Mas não naquela noite. Nem nunca mais. Pegou papel e caneta e anotou tudo
o que pudesse se lembrar daquele sonho. Foi graças às aparições em sonho
de sua esposa que pode encontrar Gabriel Vazquez e Denise Querol e, juntos,
descobrirem o paradeiro do galeão espanhol NUESTRA SEÑORA DE LA
CONCEPCIÓN.

Permaneceu ainda mais duas horas na cama, sem conseguir pegar no sono.
Costumava levantar-se às seis da manhã, então sentiu que não compensava
mais voltar a dormir. Levantou-se da cama, tomou um relaxante banho, vestiu-
se e saiu. A rua ainda estava molhada pela chuva da noite anterior e as nuvens
no céu indicavam que viria mais chuva pela frente.
Chegou cedo ao seu local de trabalho, mais cedo que o habitual. Aproveitou o
tempo para pesquisar sobre o olho azul que veio do Oriente na internet, mas,
como previra, todos os links relacionados à sua pesquisa falavam dos olhos
azuis de celebridades. Seus colegas de trabalho começaram a chegar e nem
estranharam a sua presença. Cumprimentaram-no e se prepararam para
exercer suas tarefas.
Uma poderosa sirene tocou e os portões foram abertos. Começava mais um
dia de aulas na Escola Estadual Professor Sérgio da Costa, na periferia norte
de São Paulo. Guilherme Romanov entrou na sala de aula do terceiro e último
ano do ensino médio.
_Bom dia! –exclamou ele, quase gritando.
Ninguém respondeu.
_Eu vou tentar de novo. –disse ele- Bom dia!
_Se eu responder ganho um ponto na média? –perguntou uma aluna do fundo
da sala.
_Não. –respondeu o professor Romanov- Não ganha. Mas também não perde.
Muito bem sala, vamos organizar as carteiras nas suas respectivas fileiras
porque eu vou aplicar a avaliação bimestral.
_É prova de “xizinho”? –perguntou outro
2 aluno, referindo-se a uma avaliação
com questões de múltipla escolha.
_Não.
_É prova com consulta? –perguntou novamente a aluna do fundo da sala, com
os cabelos pintados de azul.
_Sim.
A garota sorriu satisfeita com a resposta.
_Vocês poderão consultar a memória, a consciência e, em última instância,
poderão consultar Deus. Qualquer outro tipo de consulta fica proibido.
Os alunos sentaram-se organizadamente em fileiras de carteiras e Romanov
escreveu na lousa as questões da prova.
_É para copiar as questões da lousa? –perguntou o aluno engraçadinho da
sala.
_Não. –respondeu Romanov com ar sério- Você leva a lousa até a secretaria e
tira uma cópia. Claro que é pra copiar as questões.
_Todos riram.
_Posso responder à lápis? –perguntou o aluno que sentava ao lado da garota
de cabelos azuis.
_Não. Responda utilizando caneta.
_Mas eu só tenho lápis!
_Então por que você me perguntou? Responda a lápis, mas se eu te pegar
levantando para apontar o lápis ou se eu te pegar pedindo uma borracha
emprestada eu anulo a sua prova.
_Caramba, prô! –retrucou o aluno- Acordou de mau humor hoje?
_Meu humor está ótimo. O que me aborrece de verdade é a quantidade de
perguntas sem sentido que vocês insistem em fazer todo bimestre.
Guilherme Romanov distribuiu a última folha de prova e voltou a chamar a
atenção da sala:
_Quero lembrá-los que colar na minha prova não é crime. O crime é eu pegar o
aluno colando. Eu tomo a prova e ele fica com zero na avaliação. Podem
começar e boa sorte.
_Quem não cola não sai da escola...
Ele virou-se tentando identificar o aluno que dissera aquilo, esforçando-se para
não rir.

2
CINCO
O
espelho refletia a imagem de uma mulher bonita, na casa de seus trinta
e poucos anos. Ela, porém, não concordava com esta imagem. Não
conseguia enxergar a si mesma como uma mulher bonita, por mais que
se esforçasse. Uma hora era o cabelo ou a roupa ou alguns quilos a mais ou
outros quilos a menos ou a maquiagem ou os sapatos ou tudo.
Os olhos verdes chamavam a atenção num rosto lindíssimo de pele negra que
os cabelos naturalmente cacheados ajudavam a realçar. Ela era uma mulher
bonita.
Talvez ajudasse se eu não gostasse do meu emprego...
_Aliás, emprego este para o qual eu estou atrasada de novo! –exclamou ela
em voz alta.
Havia nela um excesso de “politicamente
2 correto” incrivelmente aborrecedor.
Todo e qualquer gesto ou ação era executado seguindo-se uma lógica do “não
magoar o próximo ou os animais ou as plantas ou o planeta, ou o universo”.
Esse excesso de zelo com tudo à sua volta não impedia que ela zelasse pela
própria aparência. Tudo obedecia também a uma lógica criada por ela no que
se refere as roupas, sapatos e maquiagem. Nada de exageros. Tudo era na
medida certa: as roupas caras sempre combinando e combinando com os
sapatos que eram sempre de salto muito alto. As cores eram sóbrias e
discretas tanto nas roupas e sapatos quanto na maquiagem. Sua cor favorita
era o preto (ela ria ao pensar no preto como cor, pois aprendera na escola que
o preto era na verdade a ausência de todas as cores) que sempre lhe caía bem
em qualquer momento.
Estudou direito na UNIMESP-FIG (Antiga “Faculdades Integradas de
Guarulhos”) justamente pela necessidade que tinha de ajudar o próximo.
Formou-se com louvor e foi uma das melhores colocadas no exame da Ordem
dos Advogados do Brasil. No entanto o tempo passou e percebeu que ajudar o
próximo não era tarefa tão fácil assim, ainda mais quando o “próximo” que
precisa de ajuda é justamente aquele que não merece ser ajudado.
Estupradores, assassinos, traficantes e cafetões lhe causavam enjoo.
Com um colega de faculdade montou um escritório de advocacia em que o
primeiro nome do escritório era o seu sobrenome:
RIVETTI E PETROFF
ADVOGADOS CRIMINALISTAS
Passados dez anos o escritório ia bem “graças a Deus”. A Deus e a Paulo que
não tinha escrúpulos quanto aos clientes que atendia. Entre funcionários e
estagiários os sócios contavam com vinte pessoas e acabaram por fazer
também administração contábil e direito tributário. Cabia a ela Fernanda Rivetti
cuidar de tudo o que não fosse direito penal, ou seja, a administração contábil,
o direito tributário, Recursos Humanos da sua firma e das firmas atendidas pelo
escritório.
Passados dez anos o seu senso de justiça, a sua ética e a sua integridade
estavam ainda mais consolidadas. Dedicava um dia da sua semana a atender
pessoas carentes de graça na periferia. Nos fins de semana era voluntária no
Hospital das Clínicas, acompanhando pacientes sem família, e a cada quinze
dias, distribuía comida aos mendigos do centro de São Paulo. Chegava a
preparar e distribuir cento e cinquenta “quentinhas” que eram aplaudidas logo
na chegada.
__Bom dia, pessoal. –disse ela chegando ao escritório com um sorriso amarelo
no rosto belíssimo.
Seus funcionários responderam com polido entusiasmo. Quando entrou em sua
sala encontrou Paulo Petroff conversando animadamente com um grupo de
estagiários:
_Aí, sem querer, eu cruzei com o promotor do caso no corredor do Fórum. Ele,
depois de me medir de cima a baixo com toda a sua “bichice” me perguntou
“Paulo, meu querido, você vai viajar? ” Eu respondi que não e perguntei por
quê? Ele então disse “Gente do céu, você tá com uma mala enorrrme!!! Com
2
uma mala dessa você pode ir até pra Groenlândia que não vai fazer feio! ”
Todos riram menos Fernanda:
_Que horror Paulo! –disse ela.
_Que culpa eu tenho se o promotor do caso era uma bicha desvairada e
carente?
_Isso é discriminação, sabia? E discriminação não é ético.
_Bla, bla, bla! Você está cada vez mais chata Nanda. Precisa se soltar mais!
Precisa sair uma noite dessas e encher a cara, dirigir bêbada, atravessar um
semáforo vermelho, falar um palavrão bem cabeludo. Mijar na calçada
escondida pela porta do carro...
_Bla, bla, bla! –retrucou ela- Pode deixar que estas atrocidades eu deixo para
vocês ogros. Sou feliz assim deste jeito.
_É mesmo?
_O que? –perguntou ela- Desse jeito?
_Feliz. Você é mesmo feliz?
_Fora todo mundo!! –exclamou ela- Preciso trabalhar e vocês estão me
atrapalhando.
Paulo e os estagiários saíram, mas a pergunta ficou. Parecia a ela que as
palavras flutuavam pelo ambiente. “Feliz” e “Você” eram as palavras maiores.
Ela levantou o braço direito e o chacoalhou no ar como se quisesse apagar
aquelas palavras.
Sua secretária entrou na sala exatamente naquele momento:
_Você tá bem, Nanda?
Ela colocou sua valise ao lado de sua escrivaninha e sentou-se:
_Eu sou uma pessoa chata, Karina?
A secretária sorriu:
_Você é uma chefa maravilhosa e uma mulher muito inteligente.
_Sem evasivas, Karina! Sou ou não sou uma pessoa chata?
_Se eu for honesta posso perder meu emprego?
_Você já respondeu! E sim, você pode perder o seu emprego.
_Nossa!!! Que bicho te mordeu, chefa? A verdade é que você é “certinha”
demais...
_Defina “certinha”.
_Alguém que nunca muda a sua rotina, o seu modo de pensar. Uma pessoa
politicamente correta ao extremo. Olha, para você ter uma ideia, você sai do
escritório exatamente as dezesseis horas e trinta e cinco minutos, deixa suas
roupas na lavanderia, come um lanche natural rapidinho na lanchonete da
academia de ginástica e ainda chega no horário para as aulas de pilates.
Alguém pra lá de previsível. Já pensou em fazer algo que nunca tinha feito
antes?
_Você nem imagina o quanto... 2
_Então, Nanda, por que não fez?
_Por que eu tenho um nome a zelar que implica carreira, vida confortável,
contas pra pagar. Se fizesse tudo o que eu quero ou sonho estaria jogando
tudo para o alto. E isso não combina com o meu pragmatismo profissional.
_Tem horas que a gente deve jogar todo o nosso pragmatismo profissional pro
alto e correr atrás da felicidade porque as oportunidades são poucas e a
procura é sempre maior que a oferta.
_Sai. –disse Fernanda- Sai da minha sala você também. Preciso ficar uns cinco
minutos sozinha.
A porta de seu escritório se abriu violentamente e um estagiário entrou:
_Tem uma senhora querendo te ver.
_Eu já não falei para bater antes de entrar? Se você está acostumado a viver
numa caverna sem portas este não é o lugar certo pra você...
_Foi mal, patroa.
_E quem tem patroa é peão. Você é peão? Se você é peão aqui não é o lugar
para você. Tenta, sei lá, Barbados...
_É Barretos. –sussurrou a secretária esforçando-se para não sorrir.
O garoto fechou a porta completamente desnorteado.
Karina levantou-se e ia saindo quando Fernanda a chamou:
_Me lembre de conversar com o Paulo sobre este estagiário que ele trouxe
para o escritório. E mande a tal senhora aguardar na sala de reuniões que eu
já vou atendê-la.

SEIS
A
pequena baleeira estava munida de uma única vela e dois grandes
remos para o caso de uma calmaria. Era um barco pequeno demais
para ser percebido pelos portugueses na capital do Brasil. No entanto,
acomodava bem seus três tripulantes, dois marujos e um oficial holandês,
todos membros da tripulação do galeão UTRECHT, da frota do vice-almirante
Witte de With Corneliszoon, cuja finalidade era infligir danos materiais aos
portugueses em sua principal colônia, o Brasil, e estabelecer um entreposto da
Companhia das Índias Ocidentais no Nordeste açucareiro.
__Deze warmte is killing me!2 –disse um dos marujos.
__Pare de reclamar, Raton! –exclamou o oficial- Estamos aqui há menos de
duas horas.
Portugueses e holandeses sempre foram parceiros comerciais. No entanto, um
evento trágico pôs fim ao longo reinado da dinastia de Avis: a morte de Dom
Sebastião I na batalha de Alcácer-Qibir, no Norte da África contra os mouros
em 1578. Pela linha sucessória, deveria assumir o trono seu filho, mas ele não
tinha filhos. O parente mais próximo era o Cardeal Dom Afonso Henrique que
assume o trono no mesmo ano com o nome de Dom Henrique I o Casto. O rei
morre em 1580 aos sessenta e oito anos de idade e novamente o trono luso
fica vago. Assume provisoriamente Dom António I o Determinado até a posse
legítima do sucessor o rei da Espanha Felipe II que dá início a uma nova
dinastia, a dinastia Filipina. Felipe II torna-se Felipe I o Prudente, católico
fervoroso, passa a odiar todos os não católicos. Isso inclui ingleses
(anglicanos) e, principalmente holandeses2 (protestantes).

Os holandeses descobrem e passam a cobiçar as terras do homem mais


poderoso de sua época. Tão poderoso que se dizia na Europa que “em terras
de Felipe II o Sol jamais se põe”.
_Tenente, ouvi dizer que o sol do Brasil é tão quente quanto a fogueira da
Inquisição. Is het waar?
_Claro que não é verdade, van Holstein! Ele queima, isso é verdade. Uma pele
clara como a sua frita como se lhe jogassem óleo fervendo. E também causa
bolhas, diarréia e vômitos e a pessoa pode morrer. Mas ele não mata como a
fogueira da Inquisição.
_Got ... –disse o pensativo Ratón que ganhara este apelido de um marujo
espanhol no Caribe justamente por parecer um rato- O sol do Brasil não mata
como a fogueira da Inquisição, mata mais devagar...
_ Ora, calem a boca vocês dois! Já é muito ruim estar nesta porcaria de barco
que balança demais. E esta conversa inútil piora ainda mais a nossa situação.
_ Mas, tenente Haddacker, nós estamos apenas tentando matar o tempo com...
_Silence! Estou vendo uma movimentação na baía. Uma nau de 60 canhões e
um galeão de 34 canhões parecem estar se preparando para levantar âncoras.
O maior navio era a nau NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO e o navio
ligeiramente menor era o galeão SÃO BARTHOLOMEO. O NOSSA
SENHORA DO ROSÁRIO era magnífico. Um veleiro de velas redondas com
2
Este calor está me matando! (N.A.)
cerca de 120 pés de comprimento ou um pouco mais de 36 metros, o que
equivaleria a um edifício com 12 andares. O que lhe dava imponência e o
identificava como símbolo da supremacia portuguesa na navegação, no
entanto, não era o seu tamanho, mas a sua área vélica. A todo o pano, a
embarcação ficava ainda mais colossal. Era sem dúvida alguma o orgulho de
qualquer marinha da época. Era ainda equipado com canhões nos castelos de
prôa e popa e ao longo do casco. A maioria dos canhões eram de bronze, mas
havia poucas peças de ferro. Seu poderio de fogo era impressionante assim
como sua capacidade de carga.
CAPITANIA REAL DA BAHIA DE TODOS OS SANTOS. ATUAL ESTADO DA
BAHIA. BRASIL. 25 DE SETEMBRO DE 1648. SEXTA–FEIRA, DIA DE SÃO
FIRMINO. 09h30min.
_ Vamos, zeilers! –gritou Haddacker- Nossa Dama da Fortuna se aproxima.
Vamos preparar-lhe uma calorosa recepção.

SETE
G uilherme Romanov tivera uma noite ruim. Parte dela ele havia passado
corrigindo provas e trabalhos.

A Escola Estadual Professor Sérgio da Costa, localizada na extrema periferia


da Zona Norte de São Paulo era uma das inúmeras “escolas de lata” do
Estado. Também chamadas de escolas “padrão Nakamura” eram unidades
escolares construídas em caráter emergencial que, na teoria, depois de algum
tempo seriam substituídas por escolas de alvenaria. Mas o tempo foi passando
e as escolas de lata foram ficando. Quentes no verão, frias no inverno,
barulhentas durante o ano inteiro, assim são as escolas de lata.
Todo fim de ano é a mesma coisa. Prazo apertado e um monte de trabalho.
_Que cara de noite mal dormida! –exclamou sua coordenadora, a professora
Jaqueline.
_Nessa época o professor assume sua outra função. –resmungou Romanov- A
de mágico! Tira notas da cartola, faz aparecer alunos sumidos e por ai vai...
_Essa é boa! –disse a coordenadora sorrindo- Preparado para o Conselho de
Classe?
O Conselho de Classe é um período de um a dois dias em que os professores
se reúnem para decidir a vida acadêmica do aluno. Este Conselho se reúne
uma vez a cada bimestre e, ao contrário do que muitos pensam, nem todos os
alunos são promovidos no final do ano.
_Ai meu Deus! –gritou a professora Rute, uma idosa em vias de se aposentar-
Ai meu Deus!
_O que aconteceu, Rute? –perguntou a coordenadora assustada.
_Entrei com o carro no estacionamento da escola...
Rute estava assustada. Tentava organizar as ideias, mas faltava-lhe fôlego.
Seu rosto estava branco como mármore.
_Calma Rute. Respira.
_Um motoqueiro... Ele me apontou uma 2 arma e roubou todas as minhas
coisas! Eu pensei que ia morrer! –disse a idosa chorando.
_Meu Deus! –exclamou a coordenadora- Eles te machucaram?
Rute balançou a cabeça numa negativa.
_O Romanov vai pegar um pouco de água com açúcar pra você. –disse a
coordenadora tentando acalmá-la. Você pega água pra ela, Romanov?
Sem ouvir uma resposta ela virou-se:
__Romanov?
Guilherme Romanov já não estava mais lá.

A Honda XR 250 Tornado é uma moto veloz, talvez a mais veloz de sua
categoria. Com motor de 249 cilindradas e suspenção Pro-Link é a moto ideal
para trilhas e estradas esburacadas. Ideal para ir de uma escola a outra em
menos tempo do que com um automóvel e, ainda por cima, suportar os
buracos, lombadas e valetas das ruas da periferia. A Tornado era a moto do
professor Guilherme Romanov. E era com ela que ele estava indo atrás de um
bandido armado que havia assaltado a professora Rute.
Romanov conhecia a área como ninguém. Seguiu pela Rua Presidente
Bartolomé Mitre até cair na Estrada da Cachoeira onde virou à direita e seguiu
por ela até cruzar a Rua Kotinda. Entrou à esquerda na rua e seguiu até cair na
Avenida Coronel Sezefredo Fagundes ou Rodovia SP-008 que liga a Capital ao
município de Socorro. Ali ele entrou à direita, sentido Mairiporã. Após uns três
quilômetros viu uma moto a frente com piloto e garupa. O garupa segurava
uma bolsa feminina e ambos seguiam despreocupadamente pela estrada cheia
de curvas e buracos num asfalto extremamente irregular.
Guilherme aproximou-se deles para tentar arrancar a bolsa do garupa, mas a
sua presença foi percebida pelo piloto numa fração de segundo em que olhou
pelo espelho retrovisor.
Começou aí uma perseguição desenfreada. O piloto da moto acelerou e
ganhou velocidade distanciando-se de Romanov, que acelerou também e
emparelhou com eles:
_Encosta! –gritou Guilherme- Devolve essa bolsa.
O garupa sacou a arma que levava escondida no bolso interno da jaqueta:
_Aê pleiba!!! -exclamou o garupa- Não te mete nesta parada não! Senão te
mando hoje ainda visitá o capeta!!
Guilherme, percebendo o risco iminente de levar um tiro, chutou a carenagem
traseira da moto, que perdeu por uns instantes o equilíbrio, mas logo se
estabilizou. A arma que o garupa levava, no entanto, não teve a mesma sorte.
Caiu na rua e foi deixada pelo caminho.
A avenida chegou ao seu trecho em que havia uma bifurcação. À direita
percorreriam um viaduto que os levariam à rodovia Fernão Dias, onde eles
poderiam sumir despreocupadamente. À esquerda seguiriam por uma estrada
sinuosa que os levariam à divisa entre os municípios de São Paulo e Mairiporã,
porém com mais dificuldade de desaparecer.
2
Guilherme Romanov tentou impedir a todo custo que eles entrassem à direita.
Conseguiu.
Motoqueiro e garupa seguiram pela estrada sinuosa. Aquela perseguição
estava começando a cansar Romanov:
_Ei garotos! Entreguem a bolsa e a gente esquece todo o resto. -disse ele.
_Ai tio!! -respondeu o garupa- Tá me tirando!! Tem nada aqui procê não. Melhó
vazá, tio. Vaza enquanto ainda tá vivo. Tu num sabe nem com quem tá te
metendo.
Após uns dez minutos de perseguição pela estrada cheia de curvas e sem
acostamento, motoqueiro e garupa estavam chegando à divisa com Mairiporã.
Foi quando em frente ao restaurante DIB, se depararam com um carro de
passeio ultrapassando um caminhão. Para não colidir de frente nem com carro,
nem com caminhão, eles entraram na avenida Esmiralda, antiga entrada da
pedreira DIB, agora desativada, que virou um bairro. Guilherme os seguia de
perto.
Após cerca de quinhentos metros, a avenida se bifurcava. À direita chegava-se
ao pé do paredão rochoso e próximo ao lago artificial formado pela chuva. À
esquerda subia-se por uma estrada de terra e se chegava ao topo do paredão
rochoso, um precipício com mais de cem metros de altura.
Os garotos deveriam estar a uns sessenta quilômetros por hora naquela
estrada de terra. Foi quando viram um grupo de ciclistas parados no meio da
estrada. O motoqueiro perdeu o controle da moto e ela caiu arrastando-se pelo
cascalho da estrada. O garupa também caiu e foi se arrastando. O piloto da
moto, no entanto, prendera a perna nos pedais e caiu junto com a moto
penhasco abaixo. O garupa ia tendo o mesmo destino, quando Guilherme
tombara a moto de propósito e jogou-se para segurar a mão do garupa.
_Não me deixa morrer não, tio. Pelo amor de Deus, tio, não me deixa morrer!!!
_Segura firme a minha mão que eu vou te puxar pra cima.
_Eu tô sem apoio. Me ajuda tio.
A mão do garoto estava molhada de suor e a mão de Guilherme também.
_Me dá sua outra mão. Rápido!!
_Eu tô tentando. Não consigo...
Quando o garoto conseguiu jogar o braço que estava livre para cima para que
Guilherme o segurasse, a outra mão escapou devido ao suor e seu corpo caiu
no vazio.
_Não!!!! -gritou Guilherme- Não!!!
O corpo encontrou o chão produzindo um baque surdo. Os garotos estavam
mortos.
Guilherme se levantou e limpou a poeira e a terra de suas roupas e secou as
lágrimas:
_O senhor está bem? -perguntou um dos ciclistas.
Guilherme viu a bolsa da professora. Foi
2 até lá e a apanhou. Ao abrir percebeu
que ela tinha apenas uma nota de vinte reais, alguns documentos velhos, duas
contas vencidas e não pagas e cartões de lojas. Mais nada.
_Não. -respondeu ele para o ciclista.
Levantou sua moto com o tanque todo raspado pelo cascalho e a ligou. Em
seguida colocou o capacete e montou na moto.
_Eu não estou nada bem...
OITO
O
2
capitão-mor Pedro Carneiro estava se preparando para uma viagem
longa. Assim que protegesse a entrada na baía de Todos os Santos da
frota que voltava da Índia, partiria com os navios de El-Rei para
Portugal.
A segunda incumbência não o preocupava, afinal ele era um experimentado
homem do mar com várias viagens de carreira para as Índias. A primeira
incumbência, esta sim, era o motivo de toda a sua preocupação e lhe fora dada
pelo próprio Governador Geral o senhor conde da Vila Pouca de Aguiar:
entregar o Sacro Mare Oceanum ao Marquês de Marialva que o entregaria em
mãos a El-Rei Dom João IV, o Restaurador, para presentear sua majestade a
rainha Dona Luísa Francisca de Gusmão.
Talvez El-Rei não soubesse dos antecedentes daquela joia ou talvez
acreditasse que a benção do bispo a livraria de toda a maldição que carregava.
O fato é que ele, Pedro Carneiro, jamais presentearia sua esposa com uma joia
daquelas, por mais bonita que fosse. E ela era realmente bonita. Ele nunca
tinha visto uma pedra de um azul tão intenso e, ainda mais, lapidada no
formato de um olho. Nem o céu e nem o mar saberiam reproduzir o tom de azul
daquela gema.
_Estamos prontos, meu capitão! –gritou o contramestre.
_Muito bem, mestre Gimenez. Levantar âncora e baixar velas. Navegaremos
até o início do mar aberto.
_Sim senhor, meu capitão! –respondeu Gimenez- Vamos homens! –gritou ele-
Levantar âncora e baixar velas, bando de preguiçosos cansados! Piloto
mantenha o mastro da mezena apontado para leste!

CAPITANIA REAL DA BAHIA DE TODOS OS SANTOS. ATUAL ESTADO DA


BAHIA. BRASIL. 25 DE SETEMBRO DE 1648. SEXTA–FEIRA, DIA DE SÃO
FIRMINO. 09h30min.

Começou um intenso frenesi a bordo daquele navio, uma nau de carreira de


alto bordo, equipada com cinquenta canhões sendo trinta de bronze e os
demais em ferro. Aquela nau era orgulho da marinha real portuguesa, o
NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO.
Próximo a ela estava o galeão SÃO BARTHOLOMEO cuja agitação a bordo
era tão intensa quanto a do NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO. Ambos
partiram deixando as águas abrigadas do porto de Salvador em direção ao mar
aberto com a intenção retornar a Portugal com sua valiosa carga de porcelanas
e especiarias, que valiam praticamente seu peso em ouro. Pedro Carneiro
sabia bem disso.
Aqueles malditos hereges protestantes!

Os navios portugueses já estavam em mar aberto quando avistaram a pequena


frota holandesa de quatro navios aproximando-se
2 rápido.
_Navios inimigos à frente!!! –gritou o vigia no cesto da gávea.
Como puderam nos achar tão rápido? _Meia volta, mestre! –gritou ele.
_Meia volta no leme, piloto! –gritou o contramestre Gimenez.
O navio girou cento e oitenta graus a bombordo 3 e sua amurada quase tocou a
água do mar tamanha era a inclinação. O gesto foi repetido pelo SÃO
BARTHOLOMEO.
A única esperança seria fugir e tentar se proteger através dos canhões do forte
de Salvador.
O capitão Pedro Carneiro, comandante da nau NOSSA SENHORA DO
ROSÁRIO percebeu, naquele momento, que o imponente navio luso já não era
mais seu. Não havia como escapar dos galeões holandeses, mais ágeis e mais
velozes. Logo seu navio seria tirado de seu comando pelos “malditos hereges
holandeses que se recusavam a aceitar a Santa Igreja de Roma como a única
criada por Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Gimenez aproximou-se dele:
_Gostaria de explodi-los com toda a nossa pólvora!! -disse o mestre- Ia ser
engraçado ver os hereges voando pelos ares.
_É isso!! -exclamou Pedro Carneiro- Que ideia genial, mestre!!
_Pois não?? -perguntou Gimenez, sem entender nada.
3
Lado esquerdo do navio. (N.A.)
_Mande os homens abandonarem a nau e nadarem para a praia. Logo, logo,
isso aqui vai virar um inferno.
O SÃO BARTHOLOMEO seguiu para Oeste, com a intenção de contornar a
Ilha de Itaparica pelo Sul, enquanto o NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
seguiu na direção Noroeste na tentativa de atraí-los para os canhões da
cidade, onde seriam rechaçados.
Os galeões UTRECHT e HUYS VAN NASSAU passaram a perseguir o
NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO enquanto o SÃO BARTHOLOMEU era
perseguido pelo galeão OVERIJSSEL.
Os portugueses não tinham como fazer frente ao poderio da pequena frota
holandesa. Pedro Carneiro entrou em sua cabine e de lá retirou duas pedras
ígneas. Olhou para a mesa de cartas náuticas e viu o Olho Azul de Hórus mais
reluzente do que nunca.
_Bem me disseram que tu eras maldito. Meu Deus, como eles tinham razão!!
Pegou o colar com o Olho Azul de Hórus e o colocou no pescoço:
_Mas não te preocupes, deus pagão. Vou morrer e levarei tua joia comigo.
Os três navios emparelharam: o NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, o
UTRECHT e o HUYS VAN NASSAU. Pedro Carneiro podia sentir o bafo
quente dos holandeses em sua nuca. Era agora ou nunca. Os homens
começaram a pular do navio pela popa. Ele foi ao paiol e abriu uma das
inúmeras barricas de pólvora que lá havia. Fez uma trilha com a pólvora até a
escada que dava para o deck superior.2 Em seguida pegou as pedras ígneas e
bateu uma com a outra produzindo uma enorme faísca, acendendo a trilha de
pólvora.
Em seguida o capitão do NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO subiu para o
convés superior. A bordo do UTRECHT ele pode ver um dos marujos com um
arco e flechas apontando para seus homens que nadavam desesperadamente
tentando alcançar a praia, que estava já muito distante.
_Ei!!! -gritou Pedro- Não cometas esta covardia!!!
O marujo, então, apontou seu arco para Pedro e ia disparar quando uma
gigantesca explosão destruiu completamente o NOSSA SENHORA DO
ROSÁRIO e o UTRECHT, e parcialmente o HUYS VAN NASSAU. O arqueiro
do UTRECHT caiu no convés de seu navio, as pernas totalmente destroçadas.
Sua morte, no entanto, seria por afogamento pois o galeão holandês avançava
rapidamente em direção ao fundo do oceano. Antes de morrer afogado, no
entanto, o holandês pode ver um colar reluzente de ouro que descia ao fundo
portando uma joia de um azul tão intenso que parecia até uma miragem de um
marinheiro moribundo...
NOVE
A
sala de reuniões do escritório de advocacia Rivetti e Petroff era ampla e
confortável. Possuía uma grande mesa e cadeiras acolchoadas. De uma
espaçosa janela podia visualizar-se uma praça arborizada repleta de
crianças brincando, acompanhadas de suas mães ou babás. Embora a ideia
fosse do Paulo, a decoração era obra sua2 e ela se orgulhava disso.

A mulher que queria falar com Fernanda aparentava ter uns sessenta anos de
idade ou talvez envelhecera precocemente por não cuidar devidamente de sua
aparência. Enquanto aguardava a presença da advogada, um estagiário levou-
lhe um café e um copo com água.
Ela recusou ambos com polidez. Parecia aflita a ponto de desabar num choro.
A espera pela advogada parecia aumentar ainda mais a sua aflição.
Alguns minutos depois entrou Fernanda:
_Bom dia! Em que posso ajudá-la?
_Bom dia doutora. -respondeu a mulher levantando-se e tentando sorrir- A
senhora não imagina como fico feliz em te encontrar.
_Tento imaginar o porquê, dona...
_Maristela Borges de Medeiros.
_Então, dona Maristela, como eu não conheço a senhora e nunca a vi, não
consigo imaginar o que a traz aqui.
_Estou aqui pelo meu filho. O nome dele é Vanderson e ele está preso no CDP
de Pinheiros...
Fernanda Rivetti conhecia bem o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros.
Estivera lá por diversas vezes na qualidade de advogada de defesa.
_Ele é um bom menino, doutora. Nunca falou comigo em voz alta, nunca
discutiu comigo, sempre me ajudava, cumprimentava as pessoas na rua. A
culpa é das companhias com quem ele andava, uns moleques malcriados que
viviam bebendo e falando palavrão. Fumavam maconha e cheiravam cocaína.
_Olha dona Maristela, se ele foi pego por traficar drogas eu sinto muito, mas
não vou poder te ajudar...
_Não, doutora Fernanda, não é nada disso!!! -exclamou a mulher quase se
levantando da cadeira. É muito pior!!!
_E o que é então, dona Maristela? -perguntou Fernanda, curiosa.
_A turma da qual ele fazia parte tentou assaltar uma joalheria na zona Sul e ele
foi junto. Os moleques estavam “moiados”. É assim que se fala na gíria deles?
_Noiados. Eles estavam noiados. Significa que estavam sob o efeito das
drogas. -respondeu Fernanda.
_Isso mesmo! Noiados. Loucos. -continuou Maristela- O Vanderson concordou
em ir junto para tentar fazê-los mudar de ideia. Até tirou a arma do amigo Raul
e guardou na cintura. Ele não queria assaltar e não queria ferir ninguém. No
caminho até a joalheria, ele tentou o tempo todo fazer os colegas mudarem de
ideia. Mas não deu certo.
Maristela pegou o copo com água que estava sobre a mesa feita com grossa
madeira de lei.
_Quando chegaram à joalheria, os amigos o fizeram apontar a arma para o
gerente e o mandar abrir o cofre. O gerente obedeceu e pegou dentro do cofre
uma joia que ele nunca tinha visto tão bonita. Os amigos concluíram que ela
deveria valer uma fortuna. O gerente,2 então, segurou o braço do meu filho,
aquele que apontava a arma, e mandou que ele atirasse.
Fernanda, que até então permanecera calada, deu um pulo de sua cadeira:
_Como é??
_Isso mesmo, doutora. Ele pediu pro Vanderson atirar. Ele disse que queria
morrer. Disse que não aguentava mais.
_Não aguentava mais? -repetiu Fernanda- O que ele não aguentava mais? A
vida que levava? O trabalho? A família?
_Isso eu não sei dizer não senhora. -respondeu Maristela- Eu sei que meu filho
tentou puxar o braço porque estava apavorado e, nesse movimento, acabou
puxando o gatilho, acertando o peito do gerente. Antes de morrer, o homem
ainda conseguiu dizer obrigado.
Fernanda ficou alguns instantes em silêncio. Instantes esses que pareceram
uma eternidade para Maristela. Por fim, a advogada quebrou o silêncio:
_Qual o nome completo do seu filho?
_Vanderson. Vanderson Borges de Medeiros.
_Olha dona Maristela. Seu depoimento é tão inverossímil que poderia até ser
verdade. A questão é: será que o júri vai acreditar?
_Vários advogados me garantiram que só a senhora poderia fazer o júri
acreditar na história do meu filho. Preciso da sua ajuda, doutora. Preciso da
sua magia, do seu encanto.
_Não se trata de encanto...
_Eu sei, doutora. Mas prefiro acreditar que a senhora tem esse poder. Por
favor me ajude...
Os olhos de Maristela encheram-se de lágrimas.
_Por favor...
Fernanda Rivetti soltou um longo suspiro. Sabia que não poderia livrar o rapaz
da condenação. Talvez o levar a uma pena mais branda. Talvez...
_Está bem. -respondeu ela- Verei o que posso fazer. -Pegou o telefone e
discou um ramal- Karina, verifica pra mim quem é o promotor no caso do
garoto Vanderson Borges de Medeiros. Pega aqui comigo o número do
processo judicial.
Não demorou muito e sua assistente bateu à porta. Entrou, pegou o processo
e, tão rápida e discreta como entrou, ela saiu.
_Obrigada, doutora!!! -exclamou ela sorrindo e beijando as mãos de Fernanda.
_Mas eu não prometo nada! -retrucou Fernanda.
O telefone tocou, era Karina:
_O promotor do caso é o doutor Rogério Lobo Gallo.
Na hora passou por sua mente a lembrança das inúmeras vezes em que
Rogério a assediou nos corredores do Fórum.
_Só me faltava essa... 2
DEZ
O
professor Guilherme Romanov recebeu um convite que parecia mais
uma intimação. O documento viera em papel timbrado com o timbre da
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Quem
assinava era o promotor público Dr. Rogério Lobo Gallo.
Rogério Lobo Gallo... Este nome não é estranho.
Romanov foi checar as credenciais do promotor na internet. Gallo estava
envolvido em denúncias de corrupção e má conduta. Pesava contra ele uma
punição por incitar a violência de policiais contra manifestantes numa passeata
em que o trânsito ficou parado justamente no caminho do promotor.
_Promotor truculento... -disse Romanov pensativo- É a minha cara.
Embora o nome do promotor estivesse circulando pela mídia já há algum
tempo, não era pelos escândalos envolvendo o magistrado que Guilherme o
conhecia. Era alguém do seu passado. Só não conseguia lembrar quem...
O convite estava marcado para o dia 27 de novembro, o que lhe dava pouco
mais de uma semana. Tentaria descobrir o que o promotor poderia querer com
2
ele neste meio tempo.
Romanov não deu muita atenção no momento. Estava tão cansado que tirou os
sapatos e deitou-se na cama para, em seguida, cair nos braços de Morfeu.
Subitamente viu-se numa estrada escura, margeada por bosques de ambos os
lados. Era dia e ele pôde perceber isso pelos pífios raios de sol que teimavam
em descortinar a névoa e abrir caminho por entre as árvores. O caminho era
longo e a névoa permitia ver não mais que meia centena de metros. O ar era
úmido e frio e seu cheiro era uma mistura de carne apodrecendo com bolor. A
estrada estava coberta por uma lama fina que vazava por entre os dedos dos
pés. Olhou para o chão e percebeu que estava descalço. Da névoa surgiam
gemidos e súplicas de pessoas sofrendo, o que aumentava ainda mais a
sensação de agonia.
Ouviu gritos assustadores ao longo da estrada, que iam ficando cada vez mais
audíveis. Seu instinto de sobrevivência o obrigou a esconder-se entre as
árvores do bosque para não cruzar com os autores daqueles gritos
apavorantes. Escondido pelas árvores ele viu uma horda de seres horrendos,
meio humanos, meio bestas, que perambulavam pela estrada atrás de pessoas
incautas, desgarrados.
Percebeu que alguém estava próximo a ele. Virou-se e viu sua falecida esposa
ao seu lado, o que o fez dar um pulo para trás num ato reflexivo de susto.
_Desculpe meu amor. -disse ela com a voz mais angelical do mundo- Não quis
assustá-lo. Fez muito bem em se esconder.
_Quem ou o que são eles?
_Seres que habitam esta região. Almas condenadas à tortura e ao sofrimento
eternos, deformadas em seus ódios e rancores e que vagam por aí para se
vingar naqueles que acabaram de chegar ao Limbo. Ou ao Inferno, se este
nome lhe parecer mais condizente...
_Limbo... Inferno... então eu morri? -perguntou ele.
A pele de sua esposa era muito branca e emanava uma luz ou algum tipo de
energia.
_E por que eles não conseguem te ver? Você parece o Farol de Alexandria no
meio do Mediterrâneo!!!
_Não podem me ver porque eu estou em um plano espiritual muito diferente do
deles. E você não morreu. Sua alma veio até aqui para encontrar alguém.
_Quem?
_Saberá quando o encontrar. Eu estou aqui porque recebi uma permissão
especial para poder lhe dar instruções de como deve agir na presença deste
ser. Primeiro, não olhe nos olhos dele. Segundo, obrigue-o a ser claro e
específico. E, finalmente, não se deixe enganar por ele, pois ele irá te seduzir
com falsas promessas, ou te prometer algum dom, ou mesmo te enganar
revelando seu passado e seu futuro. Este ser é um poderoso espírito que
habita esta região praticamente desde o início da humanidade da Terra,
portanto não o subestime. Ele conhece todas as línguas e todos os
sentimentos e pensamentos do homem. -o tom de voz de sua esposa era
grave- Eu te amo meu amor e sei que irá cumprir teu destino com muito
empenho... 2

_O meu destino?!? E qual é o meu destino?


_Salvar a humanidade... -disse ela, enquanto a luz que emanava ia ficando
mais tênue até ela desaparecer no ar.
Guilherme Romanov ficou ali parado por alguns instantes, pensando em tudo o
que ouvira e vira. Por fim saiu detrás das árvores e voltou a caminhar pela
estrada lamacenta. Seus pés estavam gelados e cobertos de lama. Seu andar
ficara mais pesado com a lama que cobria a barra da calça.
Foi obrigado a esconder-se mais duas vezes das hordas de almas bestiais que
perambulavam pelo caminho.
Em determinado momento, depois do que pareciam horas caminhando,
Romanov viu a silhueta de um homem alto e magro que caminhava sozinho.
Ele parou tentando decidir se escondia-se nas árvores ou continuava
caminhando. Decidiu continuar caminhando.
Passou pelo homem que parecia bem vestido, trajando paletó e gravata, porém
também descalço, ao mesmo tempo que o homem passava por ele. Não
cruzaram olhares e Guilherme concluiu que talvez não fosse a pessoa que
deveria encontrar.
_Olá professor Romanov. -disse o homem numa voz grave e rouca.
Guilherme virou-se num ato reflexivo e viu o homem de costas.
_Quem é você??
O homem virou-se bruscamente:
_Não interessa quem sou eu!!! -sua voz parecia a de muitos homens que
falavam ao mesmo tempo- Esta é uma pergunta irrelevante.
Um arrepio gelado percorreu cada vértebra da coluna vertebral de Guilherme
Romanov. Naquele momento ele percebeu que estava diante de um demônio.
_Uma guerra é travada desde a Aurora dos Tempos. Uma guerra entre o Bem
e o Mal. Um não pode existir sem o outro. Então para que o Mal exista é
necessário que exista também o Bem. A simples existência de ambos é o que
equilibra as forças do Universo. Há muitos milhares de anos, entretanto, nosso
grande rei, Lúcifer, aquele que portava a luz, rebelou-se contra Deus. Ele
merecia sentar-se no trono do Altíssimo, uma vez que era seu sucessor. O rei,
com o coração cheio de inveja e cobiça, tentou apressar as coisas e tomar o
que era seu por direito. Juntou um exército de correligionários e tentou usurpar
o trono. Deus sempre foi Deus, Aquele que tudo vê, tudo sabe, tudo entende. E
assim Lúcifer foi expulso do Reino de Deus.
_Pensei que você fosse Lúcifer...
_Existe uma hierarquia entre nós. Lúcifer é o rei supremo. Sou apenas um dos
seus príncipes. Lúcifer foi buscar nas entranhas da Terra uma pedra preciosa e
a amaldiçoou: ela traria a cobiça, a inveja, a ira e a morte. E quanto mais
matasse, mais se tornaria forte em provocar a ira e a cobiça. A ideia de nosso
rei era que a pedra atravessasse os tempos ficando cada vez mais poderosa
em sua maldição, até que estivesse pronta para trazer aos homens o
Armageddon. 2
_O Apocalipse!!!
_E o Apocalipse está chegando, e o plano de Lúcifer está cada vez mais perto
de se realizar. Se for concretizado, deverá matar pelo menos dois bilhões de
seres humanos de imediato, através das guerras e mais dois bilhões num
prazo de dez anos pela fome e pelas doenças, que poderá subir para seis
bilhões de almas vinte anos depois em disputas pontuais pelo poder.
_Mas... como posso acreditar em tudo isso que você está me dizendo?!?!
Afinal o demônio é o rei da enganação e da mentira. Como posso saber se
você está me enganando ou se está mentindo?? Tem mais: o que você ganha
dedurando seu mestre??
_Você lê a Bíblia? Eu tentei fazer de tudo para que meu mestre visse o
desequilíbrio que isso iria trazer, mas ele não me deu ouvidos. Então eu pedi
ao seu Deus que me mandasse alguém. A pedra precisa ser encontrada e
destruída para que o equilíbrio seja retomado.
_Então o meu Deus se enganou. Não estou nem perto de ser a pessoa certa
para esta tarefa.
_Aí é que você se engana. Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os
escolhidos. Está na Bíblia que você deveria ter lido.
_Por que você mesmo não destrói a pedra??
_Não posso sequer chegar perto dela. Foi benzida por um bispo com um poder
espiritual muito grande no século dezesseis. Isso não retirou sua maldição.
Pois no século dezesseis ela já tinha mais de cinco mil anos de existência.
O rosto do demônio se desfigurou completamente. Ele se aproximou de
Guilherme exalando um forte cheiro de enxofre. Sua língua bifurcada quase
tocou a orelha de Romanov.
_Meu rei é um ser paciente. Há pelo menos cinco mil anos que este plano está
em curso. Os dados foram lançados e a joia está em jogo. E ele conta com a
mesquinhez, a ganância e a cobiça da humanidade para que o jogo continue. A
propósito, você não estará sozinho. Uma equipe se juntará a você. Procure a
pedra, que agora tem o nome de Sacro Mare Oceanum. Assim que a
encontrar, receberá instruções de como destruí-la.
A imagem do demônio foi se tornando cada vez mais etérea até desaparecer
completamente. Eram agora ele e aquelas hordas de seres bestiais que
perambulavam pela estrada gritando freneticamente como se participassem de
um sabath.
Quando o viram ali na estrada sozinho, aqueles seres apertaram o passo.
Guilherme não gostou nada daquilo e começou a correr em sentido contrário,
com os pés descalços na lama fria. Não percorreu mais que cem metros e
avistou, vindo em sentido contrário, outra horda de seres bestiais que, ao lhe
avistarem, também apertaram o passo vindo em sua direção. Ele parou de
correr, escorregando e caindo deitado na lama fria. Tentou se levantar, mas
caiu novamente. Foi o suficiente para que as duas hordas o alcançassem e
começasse aí uma verdadeira batalha pela posse de seu corpo.
Romanov sentiu que estava perdendo suas forças. Era simplesmente inútil lutar
contra aqueles seres. Além de muito fortes, faziam parte de um bando muito
2 de alguma forma, absorver a energia
numeroso e estavam ali justamente para,
vital de Guilherme.
Quando estava quase perdendo a consciência, Romanov viu um clarão muito
forte, como um relâmpago, e percebeu que as criaturas foram arremessadas a
uma distância muito grande. Alguém tinha feito aquilo. Ele viu um ser, um
homem talvez, usando uma túnica com um capuz enorme, como o hábito de
um frade. Não pôde distinguir seu rosto, porém viu que os olhos eram como
faíscas azuis. Não era um monge, nem um frade, nem ninguém de nenhuma
igreja que ele conhecesse. Guilherme achou que poderia ser um mago, e um
mago bem poderoso, que tinha os meios de entrar no Umbral e sair quando
bem quisesse. O homem pegou pela sua perna direita e o arrastou, deitado de
costas, pela lama. Romanov ainda tentou dizer alguma coisa, mas acabou
perdendo a consciência.

Guilherme Romanov acordou. Estava de volta a sua cama, no seu quarto.


Aquilo que viveu instantes atrás não passou de um pesadelo.
Ou não.
Levantou-se bruscamente. Sentia dores lancinantes nas costas, correu até o
banheiro para olhar suas costas através do espelho.
__Puta que pariu!!! -exclamou ele, que raramente soltava um palavrão.
Estava coberto de lama. Havia lama no cabelo, no rosto, nas roupas, nos pés.
Seu dorso, além da lama, estava coberto de arranhões e hematomas. Voltou
ao quarto e percebeu que a cama estava completamente suja de lama.
__Puta que pariu!!! -exclamou ele novamente.
Foi à cozinha e pegou o pacote de sal grosso que guardava no armário. Em
seguida foi ao quarto e jogou sal grosso por toda a cama. Depois foi ao
banheiro e tirou toda a roupa cobrindo-a com sal grosso. Cobriu seu próprio
corpo com sal grosso enquanto se lavava no chuveiro e gritou de dor enquanto
a água, misturada ao sal, escorria pelos arranhões.
__Como se isso pudesse realmente me proteger...
Notou uma estranha marca em seu tornozelo direito. Parecia a marca de uma
mão. Lembrou-se imediatamente do mago.

ONZE
U
m dos quatro homens sentados à frente da mesa olhou para o copo de
vidro na mesa ao lado contendo uma vespa extremamente venenosa e
grande. Era a Vespa Mandarina e deveria ter quase cinco centímetros
de comprimento. Para que a vespa não fugisse, o copo estava com a boca
para baixo. O inseto ali dentro estava estressado e picaria facilmente o primeiro
em que pudesse colocar o seu ferrão venenoso.
ARREDORES DA PEQUENA CIDADE DE CÀ MAU, PROVÍNCIA DE CÀ
MAU, DELTA DO RIO MEKONG, SUL DO VIETNAM.

_Mas que merda vocês estão dando para estas abelhas?!?! Sabia que é
proibido dar suplemento para insetos? -disse ele ao vietnamita gordo, baixinho
e suado- Alguém pode te prender por isso.
O vietnamita não entendeu uma palavra sequer daquela língua estrangeira.
Sabia apenas que se tratava de uma língua ocidental, talvez falada no Brasil,
pois já tinha visto entrevistas com jogadores de futebol brasileiro e eles falavam
do mesmo jeito. Passou uma fita larga de cetim, de cor vermelha, por baixo do
copo e, delicadamente, ergueu o copo e a vespa para depositá-lo sobre a
abertura de uma espécie de gaiola que ficava no centro da mesa, nesta gaiola
havia quatro aberturas laterais por onde só cabiam os braços dos participantes
de um terrível e, às vezes, mortal jogo que consistia em manter o braço o maior
tempo possível dentro da gaiola com a vespa voando por lá.
Antes de soltar a vespa por uma entrada no alto da gaiola, os braços dos
quatro participantes foram atados à mesa por cintas de couro. Se um dos
participantes desistisse, um fiscal soltaria a cinta de couro que prendia o braço
e era amarrada à parte de baixo do tampo da mesa. No entanto, nunca houve
um participante do jogo que pedisse para sair. Para aquela gente era uma
situação extremamente desonrosa desistir no meio do jogo que, antes de
começar, informava aos seus participantes que a vespa não era letal, mas
poderia matar. E matou mesmo. Eram mais de cinquenta os jogadores que
morreram por doses altas de veneno no 2 sangue. As autoridades sul-coreanas
bem que tentaram acabar com o jogo, mas jogo e jogadores viviam mudando-
se constantemente de local. Era muito parecido com as rinhas de galo, no
Brasil, lutas sangrentas com galos em arenas de madeira ou lona e que
existem até hoje, sobrevivendo à polícia, ao Estado e até mesmo ao tempo.
Antes de deixar a vespa entrar na gaiola, o pequeno coreano de olhos tortos
chacoalhou o copo para que o animal ficasse ainda mais estressado.
Um dos participantes do jogo parecia não pertencer àquele mundo repleto de
homens suados e morenos devido ao calor do sudeste asiático, um mundo de
apostas contra a vida, de criminosos e de gente sem escrúpulos. O homem era
magro, porém atlético com músculos dos braços e do peitoral bem definidos,
rosto afilado e olhos e cabelos negros, barba cerrada, porém recém raspada e
sobrancelhas grossas. Parecia europeu ocidental: grego, italiano, espanhol,
português ou francês. Passaria por uma destas nacionalidades tranquilamente.
A vespa gigante parecia extremamente irritada. Um movimento em falso
poderia atrai-la para o braço e sua picada, considerada uma das mais
dolorosas do mundo, assemelhava-se a um prego em brasa perfurando a
carne. Morrer de sua picada era somente uma questão de quanto veneno seria
injetado em seu corpo.
Ao lado de cada jogador havia uma minúscula mesa com dez copinhos cheios
de uma poção que, segundo os organizadores do jogo mortal, era um tipo de
feromônio que atraía o inseto. Ganhava o participante que, mesmo picado pela
vespa, tivesse permanecido o tempo necessário na mesa e tomado o maior
número possível de doses da poção.
A vespa voou e pousou sobre a grade da gaiola. Suas antenas mexiam-se
freneticamente. Um dos participantes, que parecia chinês, estava suando
demasiadamente. Sua camiseta estava encharcada e o suor saia por todos os
seus poros, indicando o quanto estava aterrorizado. Era como se tivesse
participado por pressão de alguém e agora estava arrependido e a ponto de
desistir. A vespa percebeu seu medo e pousou em seu braço. O coração do
homem estava a ponto de sair pela boca e seu tórax dilatava e contraía num
frenesi angustiante.
A vespa o picou uma, duas, três vezes. Ele soltou um grito demorado que
misturava terror e dor e seus olhos estavam esbugalhados.
Os outros três participantes perceberam que aquele chinês iria desmaiar ao
verem seus olhos virando para cima. Ele perdeu os sentidos e caiu da cadeira,
quebrando o braço que ainda se encontrava preso à cinta de couro dentro da
gaiola. O fiscal-juiz soltou a cinta de couro e retirou o braço do chinês de dentro
da gaiola. Restavam somente três participantes. E a poção nem fora bebida
ainda.
O homem de cabelos negros bebeu o primeiro copo de um só gole e a poção
desceu queimando lhe todo o trato digestivo.
__Não sei dizer o que é pior: -disse ele- a picada da vespa ou este veneno que
a gente tem que beber.
A vespa parecia ter se acalmado um pouco, mas ainda continuava muito
estressada. Pousou num outro canto da gaiola e foi então que o fiscal-juiz
bateu na grade próximo de onde ela estava
2 estressando-a ainda mais.
Nesse momento o homem de cabelos negros lembrou-se de uma cena de sua
infância. Nela via seu pai levando-o a uma farmácia para que o farmacêutico
lhe aplicasse uma injeção.
__Não tenha medo. -disse o farmacêutico- Basta relaxar.
Como uma criança poderia não ter medo de uma agulha de injeção? Ele estava
apavorado!
__Deixa o músculo molinho! -disse o pai dele já meio sem paciência.
__Se você não relaxar a agulha vai entrar com muita dificuldade. -continuou o
farmacêutico.
O peso da vespa sobre seu braço o fez voltar do passado para o presente. Ele,
então, percebeu que se retesasse os músculos do braço, criaria uma
dificuldade maior para a vespa lhe picar. Como fazia com as agulhas de injeção
na infância.
A vespa pousada em seu antebraço o ferroou, porém encontrou dificuldade
para liberar veneno tamanha a resistência imposta pelos músculos retesados,
mesmo assim ela injetou veneno nele e o fez soltar uma lágrima de dor.
__Maldita vespa filha da puta!!! -disse ele no português do Brasil- Que dor do
caralho!!
Alguns homens que assistiram a luta disseram alguma coisa em coreano e
riram. O valor das apostas havia subido. E o favorito agora era ele.
Seu antebraço inchou imediatamente. Era a reação alérgica ao veneno da
vespa. Ele, no entanto, continuava firme apesar da dor lancinante. Tomou mais
um copo daquela poção. O álcool contido nela anestesiou um pouco a sua dor.
De zero a dez ele diria que a dor estava em quinhentos. Mesmo assim
continuou. Sua estratégia havia funcionado até ali: retesar os músculos do
antebraço impediu que a vespa continuasse picando e injetando veneno em
sua corrente sanguínea.
Um dos outros dois participantes urinou nas calças tamanho era o pavor que
estava sentindo naquele momento. Ele pegou o lenço branco que estava ao
lado dos copos da poção e o levantou indicando que, para ele, o jogo havia
terminado.
__Oi Vitinho!!!
Ele olhou para os lados e não viu ninguém. Ninguém ali o conhecia. Ninguém
ali sabia quem ele era ou de onde tinha vindo. Poderia ser a sua imaginação.
Melhor não pensar nisso num momento como esse, que exige a sua total
concentração.
__Ora, padre Vitor!! -continuou a voz feminina- Não pode me ignorar desta
maneira...
Ele olhou de novo para os lados. Procurou por um rosto conhecido no meio da
plateia. Ninguém.
Não havia como saber. Ninguém que ele conhecia sabia do seu paradeiro.
Estava no sul da Coréia do Sul, num vilarejo cujo nome era impronunciável.
Não havia como saber. 2

Lembrou-se de quando recebeu o chamado para ser um “soldado de Cristo”,


um jesuíta. Lembrou-se dos estudos de teologia, da fé que emanava de todo o
seu ser. Lembrou-se de quando perdeu sua fé com a morte de sua irmã, a
quem tanto amava, e cujo câncer tirara sua vida com apenas dezesseis anos.
Deus não permitiu que ela vivesse, Deus tirou de Vitor o seu bem mais
precioso. Ali, naquele fim de mundo onde se encontrava, Deus não estava
presente. E não havia fé suficiente para que Deus pudesse entrar ali.
O último participante desmaiou. Seu corpo foi retirado da arena. Ele era agora
o único participante. O vencedor.
Seu antebraço estava enormemente inchado pela toxina do veneno. Ele
massageou o local da picada enquanto recebia o dinheiro das apostas.
__I count to you to a next fight! -disse o coreano de um metro e meio de
comprimento, num péssimo inglês e num sorriso ainda pior.
__May be... -respondeu Vitor- May be...
Ele saiu daquele lugar que era uma mistura de bar, restaurante, ringue de lutas
e local de apostas. Lá fora, o ar da madrugada estava mais fresco. A rua
estava deserta. Ele tomou cuidado para não ser seguido por ladrões ou
batedores de carteira. Enquanto andava pela rua deserta em direção à pensão
onde estava hospedado ouviu novamente aquela voz:
__Você pode me dar atenção agora, Vitinho?
__Quem está falando? -perguntou Vitor- Só uma pessoa tem o direito de me
chamar assim. E você não é essa pessoa.
__Tem certeza que eu não sou essa pessoa? -a voz feminina parecia ainda
mais suave- Lembra quando a gente roubava jabuticaba do sítio do Seu Mário.
Você tinha medo daquele cachorro enorme que latia e rosnava pra gente. Você
achava que ele ia me morder. Então ele se aproximou e me lambeu a mão e...
__E vocês viraram amigos. Maninha, como pode...
Os olhos de Vitor Guimarães encheram-se de lágrimas.
Uma luz surgiu no meio de uma névoa etérea. A luz mostrou um rosto que Vítor
conhecia muito bem. Era sua irmã, que havia falecido de câncer há um ano.
Estava com quatorze anos quando os médicos diagnosticaram um tipo de
câncer raro que matava em menos de seis meses. Viviane lutou contra a
doença por dois anos e, de repente, sem mais nem menos, parou de lutar. Foi
se tornando cada vez mais frágil e vulnerável até que numa manhã de
primavera seu delicado coração deixou de bater.
Vítor estava prestes a se ordenar padre quando soube da morte da irmã. Ficou
tão revoltado que largou o seminário e sumiu no mundo em busca de uma cura
para a sua dor e inconformismo.
Mas o que Vítor queria mesmo era ir ao encontro da Morte. Se possível vingar-
se dela. Se a encontrasse e ela o levasse, talvez acabasse ficando ao lado da
irmã. Encontrou uma infinidade de maneiras de morrer. E não morreu em
nenhuma delas. Até agora.
2
__Tive uma permissão especial para te ver e falar com você...
Ele se aproximou da irmã, que estava envolta por uma luz. A rua estava
deserta naquela madrugada.
__Estava com tanta saudade... -disse ela tocando com sua mão iluminada o
rosto de Vítor.
Ele sentiu um calor percorrer cada célula de seu rosto, que imediatamente ficou
vermelho com o toque.
__Que sensação boa... -sussurrou Vítor.
__Você já provou para si mesmo e para Deus que pode encarar a Morte sem
medo. Deus agora quer que você desafie a Morte por algo que faça sentido e
realmente valha a pena.
__O que você está me dizendo, minha irmã? -perguntou Vítor.
__Existe uma guerra travada desde que o homem aprendeu a viver em
sociedade. O ser humano desconhece o poder de sua união quando usada
para o Bem. Mas sabe bem o poder que ela tem quando usada para o Mal. E o
Mal agora tem um trunfo. Uma pedra, uma joia, que carrega uma maldição
desde tempos imemoriais e fica cada vez mais forte. Tão forte que poderá
influenciar grandes líderes a praticar o Mal em toda a sua essência. Neste
exato momento, Deus está preparando um grupo para destruir a pedra e,
dessa forma, equilibrar o jogo. Você deverá se juntar a esse grupo e ajudá-los
da melhor forma.
__Mas...
Vítor não sabia o que dizer. A imagem de sua irmã estava se desvanecendo.
__Onde eu encontro esse grupo? -perguntou ele.
Tarde demais. A imagem sumira completamente. Só restava ele ali, naquela
rua de terra, próximo do rio Mekong, na quente madrugada do Vietnã, no
Sudeste Asiático.
__Vá para casa, maninho...

DOZE
O
monge budista Halka Sano Yodha (que em nepalês deveria significar
algo como Pequeno Guerreiro da Luz) havia acabado de chegar a Siem
Reap, cidade cambojana próxima ao complexo de templos budistas
conhecido como Angkor Wat.
AVENIDA POKAMBOR, CENTRO DE SIEM REAP. CAPITAL DA
PROVÍNCIA DE MESMO NOME. NOROESTE DO CAMBOJA.

Yodha tinha um orgulho enorme de suas vestes, pois onde quer que passasse,
era respeitado pelas pessoas. Tinha caminhado mais de três mil quilômetros
desde Lhasa, no Tibet, até Siem Reap, no Camboja e, em cada vilarejo, era
saudado e venerado.
A donka, ou veste superior, tem um certo número de partes. As partes que
formam um “V” em volta do pescoço simbolizam as mandíbulas do Senhor da
Morte, e servem para lembrar aos monges que eles podem morrer a qualquer
momento e, portanto, devem tornar significativos todos os momentos de suas
vidas. Diz-se que as duas mangas lembram as trombas dos elefantes e os
buracos para os braços, os olhos dos elefantes.
No Budismo, o elefante simboliza, às vezes, ignorância. Já que há dois tipos
principais de ignorância, as duas mangas e seus buracos ensinam aos monges
que devem se esforçar, principalmente, para superar os dois tipos de
ignorância. A donka tem uma fina dobra azul em ambas as mangas, que
simboliza os ensinamentos secretos de Buda e que os lembra de praticá-los.
O chogyu, ou manto amarelo, simboliza a sabedoria. É feito de um complicado
padrão de muitas diferentes peças de um tecido cor de açafrão. As muitas
peças diferentes costuradas juntas representam os ensinamentos de Buda
sobre a relação de dependência entre todos os seres vivos.
O shamtab, ou veste inferior, simboliza2a disciplina moral. As quatro dobras da
roupa simbolizam as Quatro Nobres Verdades. As duas dobras frontais
simbolizam os Verdadeiros Caminhos e as Verdadeiras Cessações – que
devem ser alcançadas – e as duas dobras traseiras simbolizam os Verdadeiros
Sofrimentos e as Verdadeiras Origens – que devem ser abandonadas. O
shamtab tem também duas tiras adicionais de tecido, uma em torno da parte
superior e outra em torno da parte inferior, que simbolizam a
conscienciosidade, que protege a disciplina moral do monge budista.
O zen, um manto vermelho usado sob o manto amarelo, simboliza a
concentração.
Além disso, Yodha carregava o Japamala, uma espécie de rosário de contas
usada de maneira semelhante a um rosário cristão. O cordão é a união do
espiritual -Japa, a repetição dos mantras- ao material -Mala, o colar de 108
contas feito de sementes da rudraksha, a árvore sob cujas folhas Buda sentou-
se para meditar e receber a Iluminação. Depois de muitos anos o Japamala
torna-se muito poderoso e pode ser usado para curar as pessoas. Não é um
adereço, um acessório, é um instrumento que concentra muita energia. De
cura e restauração.
Yodha tinha sua cabeça raspada. Isso é um símbolo de renúncia, o desejo de
alcançar a felicidade duradoura. A ausência de cabelos leva os monges
budistas a superar qualquer vaidade e não pensar muito sobre sua aparência.
Monges e monjas raspam a cabeça.
Completava seus poucos pertences uma bolsa especial na qual carregava
seus livros. Dessa forma um monge budista poderia encontrar felicidade
profunda e duradoura com os ensinamentos contidos nos livros, sentindo que é
muito importante tratá-los com muito respeito.
Ele tinha saído do Tibet, seis meses atrás, passando por Nepal, Índia,
Bangladesh, Myanmar, Tailândia até chegar ao Camboja.
No mosteiro onde havia recebido os ensinamentos do Budismo, conheceu
Marcelo e Jhonny, o primeiro era um filósofo de uma cidadezinha portuguesa
encravada nas serras do Alentejo, chamada Endiabrada, que o ensinara a falar
e escrever em português, e o segundo era sociólogo um americano de uma
pequena cidade do estado de Michigan, chamada Hell, que o ensinara a falar e
escrever em inglês. Em troca de tais ensinamentos, Yodha os ensinara a falar
o nepalês. O pequeno monge tinha uma facilidade muito grande para aprender
idiomas, então se dedicou nas folgas dos estudos doutrinários, a aprender o
máximo de línguas possíveis. Conseguiu até agora aprender cinquenta e seis
idiomas.
Yodha visitou o suntuoso complexo de templos de Angkor Wat junto com
centenas de turistas vindos de muitas partes do mundo. Isolou-se da multidão
para recitar seus mantras de oração e meditar. Ao final do período de visitas
procurou um local que pudesse lhe dar de comer e dormir. Encontrou uma
pequena hospedaria no centro de Siem Reap cuja dona estava comemorando
seus cento e doze anos de vida com muita vitalidade e lucidez.
Ela lhe entregou um prato de sopa de legumes e lhe indicou uma cama de
armar que ficava nos fundos da hospedaria. Ele agradeceu e lhe disse que iria
orar pela felicidade, prosperidade e longevidade dela e de seu
estabelecimento. 2

No dia seguinte levantou-se e encontrou a idosa acordada já trabalhando.


__Namastê, pequeno monge. -disse ela- Preparei algumas coisas para você se
alimentar.
Ele agradeceu e preparou-se para pegar o embrulho com a comida, mas a
idosa não soltou. Seus olhos mudaram de cor e apresentaram um brilho
estranho:
__O Olho Maldito está no Oeste. É o Olho que Vê a Morte e você foi chamado
para encontrá-lo e destruí-lo. Outros se juntarão a você. Não perca tempo. Vá!
Ele pegou o embrulho com a comida que ela tinha preparado e sorriu um
sorriso amarelo:
__Posso comer antes? Estou com muita fome.
A idosa riu como quem acabara de ouvir uma piada:
__Pode sim. Mas não essa comida. Vou lhe dar comida para que você possa
iniciar a sua jornada.
__A senhora sabe em que lugar do Oeste está esse “Olho que Vê a Morte”?
__Uma grande cidade com nome de um santo cristão. Você terá que
atravessar o oceano para encontrá-la.
Enquanto Yodha comia, pensava nas inúmeras possibilidades:
“__Não consigo me lembrar de nenhuma cidade grande na Europa que tenha
nome de santo.” -pensou ele- “Atravessar o oceano... Só pode ser o Atlântico.
Isso me dá Los Angeles e San Francisco, nos Estados Unidos, Santiago no
Chile, San Salvador, acho que na Costa Rica, Santa Cruz de La Sierra na
Bolívia... Não, essa última não conta.”
O pequeno monge terminou sua refeição, agradeceu e fez uma oração para
purificar o ambiente. Em seguida saiu e caminhou ainda pensativo pelas ruas
de Siem Reap. Estava completamente sem rumo. Não tinha dinheiro e sequer
sabia qual direção tomar.
Subitamente uma caminhonete parou ao seu lado e uma cambojana abriu a
janela do veículo. Ao seu lado, no volante, estava outro cambojano com cara
de poucos amigos:
__Namastê! -cumprimentou a mulher- Meu coração me disse que você precisa
de uma carona para Phnom Penh...
__Namastê. Agradeço muito senhora. -disse Yodha olhando para a cara mal
humorada do motorista- Espero não causar nenhum transtorno...
__Não liga! -exclamou a mulher- Meu marido é assim mesmo. Parece um
cachorro bravo. Late muito, mas não morde ninguém. Ele é engenheiro e foi
chamado para trabalhar na construção de um importante centro de convenções
e turismo.
O homem resmungou alguma coisa que Yodha não ouviu. Ela gesticulou com
a mão como alguém que não se importa.
2
__Pode subir na caçamba.
Yodha fez um gesto de agradecimento com as mãos e subiu rapidamente na
caçamba. O motorista não esperou que ele se acomodasse na caçamba da
caminhonete. Arrancou com o veículo quase derrubando-o para fora. O monge
sentou-se no lugar que parecia ser o mais seguro possível e olhou para o
motorista, que parecia sorrir. Ele sorriu de volta. O destino o estava mandando
para a capital. E ele estava seguindo o destino. Iria atravessar mais de
trezentos e vinte quilômetros de estrada em direção ao sul, portanto era melhor
se acomodar o mais confortável possível.
TREZE
A
elegante senhora atravessou a sala de estar de sua mansão em
direção aos dois homens sentados, cada um em uma poltrona. Eram
irmãos, mas pareciam mais rivais. Quando a viram, os dois homens
levantaram-se:
__Boa noite, mamãe! -disse o mais velho- Desculpe-me pelo transtorno...
__Oi, mãe! -disse secamente o mais novo.
Os olhos da mulher estavam cheios de lágrimas. Ela fez um gesto para que
ambos sentassem.
__Vocês podem imaginar a dor que estou sentindo agora?!?
Os dois homens abaixaram a cabeça. A2 mulher era a dona do casarão, que os
vizinhos chamavam carinhosamente de castelinho, o Castelinho da Rua Apa, e
seu nome era Maria Cândida Guimarães dos Reis.
__Vocês dois são homens feitos mas se portam como duas crianças. Duas
crianças mimadas!!! Eu não cheguei aos meus setenta e três anos para ver
meus filhos se engalfinhando por uma joia. Ainda mais uma joia que, para mim,
é amaldiçoada. O pai de vocês, que Deus o tenha, deve estar se revirando no
túmulo.
Maria Cândida era viúva do médico Virgílio César dos Reis, que falecera três
anos atrás, mas a deixara em uma situação confortável, com vários bens,
inclusive o castelinho, a mansão da rua Apa que fora construída segundo o
projeto de arquitetos franceses e se parecia com um castelo europeu. Maria
Cândida recebeu o castelo como um presente do marido e, no primeiro dia em
que pôs os olhos na propriedade, a achou de um extremo mau gosto. Além de
feia era uma forma de ostentação. Ostentação que ela não gostava pois
chamava a atenção de gatunos e outros tipos de bandidagem.
SÃO PAULO, CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. REGIÃO CENTRAL.
CRUZAMENTO DA RUA APA COM AVENIDA SÃO JOÃO. 12 DE MAIO DE
1937, 21h35min.
Além disso, tudo naquele imóvel, lembrava o falecido marido. Assim, ela
preferiu deixar o casarão para que os “meninos” transformassem em escritório
de advocacia e mudou-se para outro imóvel, menor, mais aconchegante e mais
simpático. Os “meninos” era como ela gostava de chamar Álvaro Cézar dos
Reis, o filho mais velho, de 45 anos, e Armando Cézar dos Reis, o caçula, de
43 anos.
Álvaro, além de advogado, era um esportista. E um mulherengo. Em 1937,
porém, jurava sempre duas coisas: fidelidade e amor eterno à sua namorada
que, coincidentemente, tinha o mesmo nome da mãe, Maria Cândida. Seu
apelido “Baby” demonstrava o carinho com o qual todos se referiam a ela. Ela
era ainda mais apaixonada por Álvaro do que ele por ela. Embora fosse um
ano mais velha, Baby parecia ser bem mais nova que Álvaro. Era uma mulher
liberal, culta e à frente de seu tempo. Álvaro também era um jogador nos
negócios. Gostava de correr riscos quando valia a pena. E seu projeto de criar
um ringue de patinação, o primeiro de São Paulo, nos moldes dos ringues
europeus era algo que valia a pena arriscar.
Armando era advogado como o irmão, mas não gostava de correr riscos. Para
ele o irmão iria dilapidar a fortuna da família. Era preciso fazer alguma coisa, e
rápido.
__Você não vai vender a pedra!! -gritou Armando furioso- Nem a pedra nem
nada que o papai deixou para nós. Ser o mais velho não lhe dá o direito de nos
levar à bancarrota nestes seus projetos idiotas.

Por um brevíssimo intervalo de tempo, Álvaro lembrou-se do momento em que


seu pai adquiriu a pedra. Um árabe chamado Aziz foi procura-lo na clínica.
Estava ferido por um tiro de pistola e pediu ao pai de Álvaro, o doutor Virgílio
César dos Reis, que retirasse a bala. 2
__Preciso ligar para a polícia, senhor Aziz.
__Não! -gritou o homem apavorado- O doutor precisa ocultar
isso da polícia e de todos, para o seu próprio bem.
__Eu não estou entendendo, senhor Aziz... O senhor matou
alguém?
__Doutor Virgílio, a pessoa que eu matei é só a ponta de um
enorme e perigoso novelo de lã. Se souberem que eu me
liguei ao doutor, vão mata-lo e à sua família também. Como
pagamento pelos seus serviços vou lhe oferecer uma joia que
foi de meus antepassados.
Aziz sacou do bolso uma das mais belas joias que Virgílio já
vira na vida: O Olho Azul de Hórus. O brilho azul da pedra e o
dourado do colar fascinaram o médico.
__Precisa me prometer doutor. Me prometer que não
ostentará a joia como uma conquista pessoal.
__Que a guardará e a manterá longe dos olhares
gananciosos das pessoas.
__De que adianta ter uma joia tão formosa como esta se não
a podes mostrar aos outros?
__Prometa doutor!!!
__Está bem. Eu prometo.
Virgílio estava fascinado pela joia, que parecia tão antiga
quanto valiosa. Já não interessava mais a ética, o
profissionalismo médico e nem mesmo juramento a
Hipócrates. Tinha prometido que não mostraria a pedra e iria
cumprir a promessa. Daria a pedra a Candinha e iria vê-la
usando nos mais variados eventos sociais.

__A mamãe não quer a pedra. Será que você é capaz de entender isso?!?
-gritou Álvaro, ainda mais alto- Ela falou em alto e bom tom que não quer a
pedra!!
Álvaro virou-se para Maria Cândida:
__Não é verdade, mamãe?
Maria Cândida estava numa saia justa. Seu maior medo era que seus
“meninos” se pegassem numa luta corporal. E ela sabia que isso estava
prestes a acontecer.
__Meus filhos, meus filhos! -disse ela num tom maternal- Vocês estão muito
exaltados. É tarde. Vamos deixar esta discussão para amanhã. Nada como
uma boa noite de sono para acalmar os ânimos e pôr as ideias no lugar.
__Nós vamos resolver isso agora!!! -explodiu Álvaro furioso- Afinal, foi ele
quem me ligou pedindo que viesse para cá.
__Você só pode estar ébrio!!! -exclamou Armando- Foi você quem me ligou
pedindo que eu viesse para cá!!! O que é isso?!? O efeito da bebida?
Nesse instante Álvaro percebeu que aquilo era uma armadilha. Os irmãos
tinham sido atraídos para uma cilada, mas por quem?
2
__Mamãe, vá para o antigo escritório do papai e tranque a porta. Só saia de lá
quando eu ou o Armando chamar. Vai mãe. Vai!!
Maria Cândida obedeceu, mesmo sem entender nada do que se passava.
Subiu as escadas e se trancou no escritório de seu finado marido.
__O que está acontecendo, Álvaro? -perguntou Armando, que também não
estava entendendo nada.
Álvaro foi rapidamente até sua escrivaninha e pegou sua pistola automática
Mauser calibre nove milímetros e, enquanto verificava o pente, viu o autor da
armadilha.
__Você?!? -o rosto de Álvaro era uma mistura de assombro e perplexidade-
Esperava qualquer um, menos você.
__Eu quero o pedra. -disse o homem com sotaque árabe, portando um pistola
semiautomática Luger Parabellum calibre 7,65 milímetros- E quero o pedra
agora.
Armando estava tão perplexo quanto o irmão.
__Quem é esse homem, meu irmão?
__Meu sócio Ibrahim Mohamad Hawaiss, um egípcio que deveria ser
respeitado empresário e comerciante, mas que não passa de um ladrão.
__Você non entende! Faço parte de um mujtamae, um sociedade que jurou
encontrar e proteger o pedra.
__Proteger a pedra? -perguntou Armando- Proteger de quem? E para quem?
__Não importa, meu irmão. -exclamou Álvaro- Vá até o cofre e pegue a joia.
Não vale a pena morrer por ela.
Armando obedeceu. Girou a combinação até ouvir um clique metálico. Abriu o
cofre e pegou uma caixa retangular revestida de veludo vermelho sangue.
Abriu-a e viu a joia brilhando em todo seu resplendor azul. Seus olhos
brilharam tanto quanto a joia. Ele foi até o escritório do irmão, anexo ao seu, e
caminhou para entregar a joia ao bandido egípcio, mas foi barrado por Álvaro:
__Como você é ingênuo, Armando!! Não vê que ele está armado? Quer levar
um tiro. Jogue a pedra daí.
Armando nunca fora bom em acertar alvos e, naquele momento, estava
nervoso demais para pensar nisso, portanto jogou a joia de qualquer jeito. Ela
atravessou o ar e quase bateu no rosto do egípcio que, num ato reflexivo,
disparou. O projétil acertou o peito de Armando que caiu, os olhos fixados no
teto. Seu corpo, aos poucos deixava de viver, os olhos mexendo-se
freneticamente, como se pudessem ver todas as cenas de sua vida, até
pararem, junto com o coração e os pulmões.
Armando estava morto.
Álvaro, enfurecido, atirou. A bala acertou o abdômen do egípcio gorducho, que
atirou em seguida acertando o peito de Álvaro. O primogênito da família Cézar
dos Reis, no entanto, não caiu. Apontou novamente a arma para o egípcio:
__Vamos nos ver no inferno, egípcio maldito!!!
Ia atirar, quando um segundo homem 2surgiu das sombras e chutou sua mão
fazendo a arma cair a alguns metros de distância. As pernas de Álvaro não
puderam mais suportar o peso de seu corpo e ele caiu de costas no piso frio.
Respirava com dificuldade e estava prestes a perder os sentidos, quando ouviu
um grito. Era sua mãe que surgiu no aposento horrorizada pelos dois filhos
caídos e ensanguentados.
__Valha-me Deus! -disse ela- Valha-me Nossa Senhora!
O segundo homem pegou a arma e disparou contra Maria Cândida. A senhora
de setenta e três anos caiu, já sem vida, no chão. Uma lágrima escorreu pela
face de Álvaro enquanto esforçava-se para manter-se vivo. Queria vingança.
Queria a vida daqueles homens pelas vidas que eles tiraram dele. Não ia
conseguir seu objetivo.
Depois de matar sua mãe, o homem voltou-se até ele, apontou a arma para o
peito de Álvaro e disparou. Foi a última cena que Álvaro viu em vida.
__Waqal lakum 'annah sayakun min alssahl. la yumkin li'ahad tadaru. kunt mjrd
alhusul ealaa almajwaharat watarak.
__Eu sei. Eu sei. -respondeu Ibrahim com dificuldade- Também achei que ia
ser fácil. Não podia imaginar que Álvaro tivesse uma maldita arma.
__Walast bihajat lliakhadhak 'iilaa alttabib. -disse novamente o homem em
árabe.
__Não. Médico não. Não vai dar tempo. Só me tire desta casa. Não quero
morrer aqui.
__Rahimah Alllah ealaa ruhih.
QUATORZE
2

F ernanda parou seu carro, um Hyundai HB-20 preto com os vidros filmados
no estacionamento do Fórum Ministro Mário Guimarães.
Decidiu que, melhor que o estacionamento do fórum, era o estacionamento do
hipermercado Wallmart, do outro lado da Avenida Dr. Abraão Ribeiro. Não era
caro e, na hora de pegar o carro poderia aproveitar para tomar um café na
cafeteria do hipermercado. Estacionou o carro, pegou sua pasta de couro
recheada de documentos e processos e olhou mais uma vez para o espelho
retrovisor. A maquiagem estava perfeita. Saiu do carro se sentindo poderosa.
Ajeitou o vestido preto que realçava ainda mais suas belas curvas, trancou o
carro e caminhou até a saída do estacionamento. Enquanto caminhava em
direção à entrada do Fórum, ouviu alguém assoviar para ela de algum carro
que passava na rua. Não se permitiu ver quem era:
“__Esses malditos machistas e seus fiu-fius assediantes!” -pensou ela-
“Adoro!”
Atravessou a avenida e se dirigiu ao Fórum. Encontrou o promotor Rogério
sozinho no gabinete da sétima vara criminal:
__Ora, ora, ora!!! -disse o promotor- Gostaria de dizer que é uma surpresa ver
você novamente, mas como eu não recebo ninguém sem hora marcada, não é
uma surpresa.
Fernanda sorriu um sorriso amarelo.
__Preciso falar com você sobre um provável crime de assassinato...
__Nossa!!! Quanta mudança!!! -disse Rogério, numa mistura de sarcasmo e
ironia- A advogada das causas humanitárias resolvendo casos criminais
comuns. É muita mudança.
Ela anotou num papel o número do processo e o entregou ao promotor:
__O que você sabe sobre este caso?
__Depende.
__Como assim, depende? -perguntou ela.
__O que eu ganho gastando meu tempo com você?
“__Como você é calhorda!!!” -pensou ela.
__Depende. -respondeu Fernanda sorrindo- Depende da utilidade da sua
informação.
__Ahhh!! Bom, vamos lá. -disse o promotor visivelmente interessado no
acordo.
Ele colocou o número do processo no computador e vieram à tela todos os
dados disponíveis sobre o caso.
__O garoto Vanderson está sendo processado por latrocínio triplamente
qualificado, porte ilegal de arma, por portar uma arma de fogo de uso exclusivo
da polícia militar. É, a situação do garoto é bem ruim. Acho que ele pega de
trinta a trinta e cinco anos. Quem é ele? Amigo seu? Namorado?
__Não. Filho amoroso de uma mãe desconsolada. Quais são as evidências?
2
__Além dos relatos das testemunhas, temos a arma utilizada pelo garoto e a
joia que foi roubada da joalheria. Parece que além de rara a joia é cara. Uma
cotação recente da pedra estimou seu valor em dois milhões e meio de reais.
Não são os famosos diamantes de sangue do filme, mas são ainda mais caros.
Pois é. É o que eu sempre digo, os filhos devem chorar quando pequenos para
as mães não chorarem quando eles crescerem.
“__Que filosofia barata, Rogério.” -pensou Fernanda- “Se você soubesse o
nojo que eu tenho de você...”
__Ok. -disse o promotor- Vamos à minha parte do trato.
__Podemos sair agora e eu te pago um café. -disse Fernanda.
__Podemos sair agora e eu te pago um motel. -respondeu Rogério com a mão
na cintura dela e tentando puxá-la para perto.
__Acho que estamos indo muito rápido. -disse ela tentando se esquivar.
A mão de Rogério saiu da cintura e foi para o final do dorso, tentando alcançar
as nádegas de Fernanda.
“__Ele está tentando alisar a minha bunda?!?!” -pensou a advogada- “Que cara
asqueroso! Não vai ter jeito. Vou ter que enfiar os cinco dedos da minha mão
na cara desse cafajeste.”
A porta do gabinete se abriu bruscamente e o rosto de Guilherme Romanov
apareceu:
__Desculpe incomodar. Estou procurando o Doutor Rogério Gallo. A moça no
corredor disse que eu podia entrar sem bater. Atrapalho alguma coisa?
__Não! -gritou Fernanda- Não atrapalha. Eu já estava mesmo de saída.
Ela pegou sua pasta e caminhou em direção à porta. Guilherme viu seus olhos
cheios de lágrimas e logo percebeu que ela estava sendo assediada pelo
promotor.
__Eu tenho hora marcada com você? -perguntou Rogério visivelmente irritado.
Guilherme mostrou o convite com a assinatura do promotor- Este documento
diz que tem.
__Romanov!!! -que surpresa- Lembra de mim?
__Ainda estou tentando associar o nome à pessoa.
__Estudamos juntos o Ensino Médio. Éramos os mais nerds da sala. Lembra?
__Caramba!!! Você era o Gegê, o cara gordinho que queria ser advogado.
__Isso ai!! -exclamou Rogério- Agora sou promotor.
__E é famoso!! -continuou Guilherme- Outro dia apareceu na televisão
tentando explicar por que atropelou um punhado de manifestantes na ponte
estaiada quando tentava chegar em casa.
__Aquela cambada de pelegos filhos da puta! -exclamou Rogério- Querem tirar
o nosso direito de ir e vir. Quem eles pensam que são?
__Quem eles pensam que são, eu não2 sei. Mas quem eles pensam que você
é, isso eu sei muito bem.
__Bom, não interessa. Eu te chamei aqui por que eu quero te convidar para
uma festa de comemoração dos meus dez anos como promotor e do meu
sucesso profissional e social.
__Quando será essa comemoração? -perguntou Guilherme.
__Ainda não acertei a data. Nem o local. Mas deve ser no começo do ano que
vem.
__Está bem! -disse Guilherme- Pode contar comigo. Só não irei se tiver algum
compromisso de trabalho.
__Assim que se fala, garoto!!! Vamos tomar um uisquinho pra lembrar dos
velhos tempos. -disse Rogério tirando uma garrafa de whisky importado de
dentro de um armário.
__Eu adoraria, Gegê, mas tenho um compromisso profissional. Vou corrigir
provas e fechar médias de alunos. Fica pra próxima.
__Cara, sai dessa vida de professor. Isso não dá futuro. Estuda direito e vem
trabalhar pra mim. Do jeito que você é inteligente, sobe rapidinho. Que tal?
__Proposta interessante, mas não é pelo dinheiro ou pelo status, você sabe...
__Ah, Romanov. Parece que tu tens mesmo vocação pra pobre. Desde quando
passar o fim de semana corrigindo prova desses pentelhos semianalfabetos é
vocação?!?!
__Toda carreira tem seu lado negro. Mas o resto compensa. E muito.
__Bom, Romanov. A oferta continua de pé e vale por tempo indeterminado.
__De qualquer forma, agradeço.
Romanov despediu-se do promotor.

Fernanda Rivetti não tinha conseguido sequer sair do estacionamento de tanto


que havia chorado. Agradeceu a sua decisão de colocar filme escuro nas
janelas do carro, assim não despertava tanto a atenção dos frequentadores do
hipermercado.
__Que... sujeito... asqueroso... -dizia para si mesma, entre um soluço e outro.
Ela olhou para a sua imagem refletida no espelho retrovisor do automóvel e
não conseguiu se reconhecer. A maquiagem se desmanchara em enormes
borrões escuros sob seus olhos. Aquilo a deprimia ainda mais, aumentando os
soluços.
__Não posso deixar isso me abater. -disse ela- Levanta esse astral menina!!!
Pegou uma caixa de lenços de papel no porta-luvas do carro e limpou a
maquiagem borrada. Tarde demais. Seus olhos estavam avermelhados e
abaixo deles formaram-se bolsões de inchaço devido ao excesso de choro.
__Dane-se! -disse para si mesma- Dane-se, dane-se e dane-se!!!
Ligou o carro pela terceira vez decidida a sair dali. Engatou a marcha à ré e
arrancou. Mal saiu da vaga, sentiu o violento choque de uma batida. O
motociclista que bateu na lateral do seu2 carro foi arremessado da moto e voou
alguns metros por cima do veículo indo cair no piso do estacionamento. O
homem tentou se levantar, mas estava muito desorientado devido à pancada e
caiu novamente.
__Ai beu Deus!! -disse Fernanda com o nariz completamente entupido pelo
choro- Agabei de batar um gara! Ai beu Deus!
Ela saiu correndo do carro e foi ao encontro do motociclista. Retirou com
cuidado o capacete para ver se o homem ainda respirava e, para sua surpresa,
era o mesmo homem que a salvara de ser estuprada pelo promotor Rogério.
Era Guilherme Romanov.
__Você?!? -disseram ambos ao mesmo tempo.
__Moço, pelo amor de Deus, me diz que você não vai morrer. Meu dia foi bem
ruim hoje. Você morrendo ia acabar com o dia, o mês, o ano, minha vida...
__Acho que eu quebrei uma costela... -disse Guilherme, pouco antes de
desmaiar novamente.
2

QUINZE
M aria Orsitsch (Oršić) olhou para Portal de Brandemburgo. Não sentia
saudades de casa, da pequena Zagreb na Croácia, aconchegante, pitoresca,
pacata, provinciana e...

Preconceituosa.

A lembrança daquele pequeno mundo encravado no Leste Europeu só lhe causava


ainda mais sofrimento e tristeza. Fôra a vida inteira considerada uma aberração por
causa de seu dom mediúnico. Mesmo com a sua incontestável beleza expressada nos
cabelos louros, na pela clara e nos olhos de um azul muito claro, ela era vista como
uma esquisita pelos vizinhos e pelos colegas da pequena escola das imediações de
sua casa.
A única lembrança boa que Maria tinha da Croácia eram as férias passadas com tata
Tomi e mama Sabine em Dubrovnik. Precisavam de mais de um dia de trem para
chegar à cidade, mas compensava. Era um dos lugares mais lindos que já vira na
vida. As fortalezas medievais, a vida bucólica, as praias magníficas, o sol
aconchegante do verão no Mar Adriático. Se pudesse moraria lá para sempre. Foi lá
que tirou a única foto de sua vida, aos dezenove anos no verão de 1914, o mesmo em
que o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia pelo atentado terrorista em
Sarajevo.
Após a Grande Guerra, ela ficou noiva de Ivan, um promissor engenheiro civil que
conhecera ainda no colégio e, juntos, decidiram partir para a Europa Ocidental.
__Por que Berlim, Ivan? -perguntou ela- Por que não vamos para Paris, a Cidade Luz?
Berlim é muito fria.
__Que nada, meu amor. No verão Berlim é insuportavelmente quente. Você vai
adorar. A Alemanha vai mudar a sua vida.
Ivan estava certo: a Alemanha mudou a vida de Maria.
Assim que chegaram, entraram em contato com Dietrich Eckhart, amigo e guru de
Adolf Hitler, este um ex-soldado da Grande Guerra que começava a despontar na
carreira política. Ambos odiavam judeus e ambos adoravam o sobrenatural, a
paranormalidade. Uma adoração que chegava a assustar. Eckhart não demorou a
perceber que Maria tinha um enorme poder mediúnico de psicografia e psicofonia.
Foi o próprio Eckhart quem introduziu Maria na Sociedade Thule, a Thule Gesellschaft.
Para Maria, o que não permitia que Eckhart fosse o homem perfeito era sua total
dependência da morfina. Para ele, este opiáceo era um instrumento de conexão com o
mundo sobrenatural, algo que Maria tinha como um dom natural. Ela o vira certa vez
sob o efeito da droga e ficara aterrorizada. Quase não tinha pulso e respiração, e sua
pele branca ia ficando cada vez mais azulada. Desesperada, ela começou a esmurrar
seu peito e, praticamente, o trouxe de volta à vida.
Não adiantou.
Em dezembro de 1923, sozinho em sua casa na pequena Bechtesgaden, na Baviera,
Eckhart encontrou a morte numa overdose de morfina.
Tinha sido o próprio Eckhart, um ano antes de sua morte, o incentivador para que
Maria se unisse a outras quatro amigas médiuns,
2 Traute, Sigrun, Gudrun e Heike, e
criasse a Alldeutsche Gesellschaft für Metaphysik4, nome oficial da Sociedade Vrill. As
meninas não seguiam as tendências da moda, que sugeria carbelos curtos e franjas
ao melhor estilo Bélle Épóque. Não cortavam nunca os seus cabelos pois acreditavam
que, compridos, funcionariam melhor para “receber” sinais paranormais. Isso
funcionou como uma norma para todas as mulheres que ingressassem na Sociedade
Vrill, as Vrillinger.
O Vrill é uma substância etérea, uma energia que emana do corpo de qualquer ser
humano, sendo muito mais forte nas crianças. Na Índia, onde a crença surgiu séculos
atrás, as crianças eram vistas como uma espécie de portal entre os mundos material e
espiritual ou astral, devido às altas concentrações de Vrill que elas carregavam. Ao
nascer, os bebês recebiam o Vrill diretamente do “Sol Negro”, uma massa de energia
escura localizada no interior do planeta. Com o tempo o Vrill de cada ser humano ia se
esvanescendo, se tornando menos poderoso. Após a Primeira Guerra Mundial, muitas
crianças austríacas orfãs foram sacrificadas para que os líderes e membros mais
influentes da Sociedade Vrill tivessem acesso a estas emanações de Vrill.
Nem todos, no entanto, eram sádicos e adoravam matar criancinhas. A Sociedade
contava também com grandes mentes como o cientista Werner von Braun, criador das
bombas voadoras V-1 e V-2. Após a Segunda Guerra Mundial, vom Braun Iria para os
Estados Unidos para desenvolver o projeto Apollo da NASA e os mísseis nucleares
intercontinentais.
Maria chegou a participar de alguns rituais onde crianças eram sacrificadas, mas, para
alguém que viveu os horrores da Grande Guerra, aquilo realmente não a afetava.
PROXIMIDADES DO PORTÃO DE BRANDEMBURGO, BERLIM CENTRAL.
ALEMANHA. 15 DE JULHO DE 1937. QUINTA-FEIRA. 15h37min.
4
Sociedade Pangermânica para Metafísica (N.A.)
Em meados de novembro de 1924, um novembro particularmente mais frio que o
normal, Maria, junto com Rudolph Hess e Rudolph von Sebottendorf, realizaram uma
sessão para tentar falar com Eckhart. A sessão foi realizada no apartamento de Hess,
em Munique. Foi ali que tudo começou a mudar.
Diminuiram as luzes, acenderam velas e incensos. Tocaram na vitrola o disco
preferido de Dietrich Eckhart.
Maria, Hess, Sebottendorf e mais um membro distinto da Sociedade sentaram-se ao
redor de uma mesa circular e se deram as mãos. O membro distinto nada mais era
que Heinrich Himmler, o futuro chefe das SS nazistas e o segundo homem mais
poderoso da Alemanha, depois de Hitler.
__Nós que aqui estamos, invocamos a presença de Dietrich Eckhart, nosso amigo,
conselheiro e irmão desta irmandade para que venha à nossa presença em paz.
Pedimos encarecidamente que se manifeste entre nós, ó Grande Espírito e que
permita ao nosso irmão Eckhart que venha até nós para responder às nossas dúvidas
e anseios. Ele que nos deixou de forma repentina, se faça presente agora.
Depois das palavas de Maria, o grupo permaneceu em silêncio. Passados alguns
minutos e, sem o resultado esperado, Maria voltou a invocar o espírito de Eckhart
novamente, proferindo exatamente as mesmas palavras.
Foi na terceira tentativa que começaram a aparecer resultados. Maria soltou uma
gargalhada aterrorizante:
__Olá, meus caros. -disse ela numa voz grossa e metálica- Vejo que é uma reunião de
bacanas. Hessie, Dorfie e o pequeno Heinrich. E, é claro, você, minha Mariazinha.
Sebottendorf, o Dorfie, foi o primeiro a quebrar o silêncio:
__Onde você está? 2
__Isso não importa. Não se iludam, a morte não é sinônimo de Paraíso. Estou num
lugar sombrio. Aqui faz muito frio, é muito sujo e, ainda por cima, é infestado de
criaturas bestiais. -respondeu o espírito através de Maria- Contudo existe aqui um ser
de luz com o qual eu estabeleci algum tipo de amizade e que insiste em falar com
vocês.
Houve uma pausa. Segundos que pareciam minutos. A respiração de Maria tornou-se
mais profunda e sua voz tornou-se ainda mais masculinizada e metálica:
__Meu nome é Sumi e habitei o seu planeta durante o final de um período histórico
que vocês definiram como Período Neolítico. Seus ancestrais tinham acabado de
descobrir a agricultura e aproveitavam as cheias períodicas dos rios da região, que
hoje vocês conhecem como Tigre e Eufrates. Região esta que foi denominada
posteriormente de Mesopotâmia. Meu povo veio de um planeta que orbita a estrela
Aldebaran e que apresenta um suporte de vida semelhante, em muitos aspectos, ao
da Terra. Trouxemos novas tecnologias aos sumérios, como a invenção da escrita e
da roda. Ensinamos a construir cidades. Ensinamos a dividir e conquistar. Ensinamos
a arte da guerra...
Rudolph Hess, o Hessie, interrompeu:
__Você tem como provar?
Maria, que até então, estava com os olhos fechados, levantou suas pálpebras. A íris
de cada olho, no entanto, havia sumido. Eram somente dois globos oculares brancos.
Mesmo assim, ela pegou uma folha de papel que estava sobre a mesa e um lápis. Em
poucos segundos, rabiscou uma série de pictogramas que eram idênticos aos escritos
em escrita cuneiforme nas placas de barro utilizadas por praticamente todos os povos
da Mesopotâmia.
__Estou aqui -continuou Sumi, falando através de Maria- para oferecer a vocês a
mesma coisa que ofereci aos sumérios: novas tecnologias para fazer de seu povo o
líder de todo o planeta.
__E que tecnologias são essas?
Houve uma silenciosa e terrível pausa. Novamente os segundos se arrastavam com
lentidão, como se o tempo quisesse parar. O relógio cuco da parede do apartamento
de Hessie fazia o característico barulho do tic-tac, mas a impressão que se tinha era
de um tic-tac preguiçoso, sonolento.
__Primeiro, irei ensinar vocês a se libertarem da gravidade. Depois, aprenderão a
viajar pelas estrelas. E por último, darei a vocês armas que jamais imaginaram
possuir.
Himmler estava extasiado diante da possibilidade de possuir tecnologias que nenhuma
outra nação do planeta possuía. Seria o início de uma nova era. Uma era de
superioridade da raça ariana. De supremacia do povo alemão. O Terceiro Reich seria
o império mais poderoso da humanidade.
__Em troca -continuou Maria- do que eu ofereço, peço apenas uma coisa.
__Eu sabia. -disse Himmler com visível cara de decepção- E o que é?
__Uma joia. Uma gema de um azul nunca visto antes numa pedra preciosa. Ela
atravesssou os tempos e pertenceu a reis e grandes líderes.
__Não se preocupe. -disse Himmler- O Partido Nacional Socialista do Povo Alemão
está crescendo vertiginosamente. Logo o nosso amado Führer poderá lhe dar a joia
que quiser.
__Esta joia não é uma pedra qualquer. -continuou
2 Sumi, através de Maria- Seu nome
é o Olho Azul de Hórus mas também pode ser chamada de Sagrado Mar Oceano. É
uma pedra especial que pode dar poder e conhecimento a quem a possui. Quando a
encontrarem e a trouxerem para esta mesa, então nos reuniremos novamente e eu
lhes darei a chave para o próximo passo na evolução de vocês.
Aqueles que estavam ao redor da mesa sentiram um calafrio percorrer cada
centímetro de pele, eriçando todos os pelos do corpo. Maria levantou-se subitamente,
acordando do transe, a cadeira atrás de si caindo bruscamente no chão. Suas pernas
estavam bambas e o quarto girava descontroladamente. Chegou meio
desajeitadamente ao banheiro e abaixou-se na privada para vomitar, enquanto
chorava descontroladamente. Eles nem desconfiavam, mas ela sabia. Ela sabia quem
era aquele ser que dizia ter vindo de outro planeta.
Ela sabia quem era Sumi.

Ele era um demônio...

DEZESSEIS
O
médico legista Alfonso de Souza Madureira estava sentado na poltrona
confortável da sala de descanso do necrotério saboreando um lanche
num pequeno momento de pausa entre uma perícia e outra, naquela
que é uma das maiores cidades do planeta. Afinal, numa megalópole com mais
de dez milhões de pessoas vivendo e trabalhando juntas, mortes acontecem o
tempo todo.
O Dr. Madureira fora casado três vezes e, nos três divórcios o motivo era o
mesmo: nunca estava em casa. Suas ex-mulheres diziam que a verdadeira
esposa de Madureira era o trabalho. Ele vivia, respirava, comia e dormia seu
trabalho.
O veículo do S.V.O. – Serviço de Verificação de Óbitos estacionou ao lado da
porta do necrotério. Era um pequeno caminhão baú com várias portas
pequenas laterais das quais saiam gavetas onde eram depositados os
cadáveres. Por esse motivo, o veículo recebeu da população o apelido nada
carinhoso de “Cata Defunto”. Da cabine desceram dois homens tão rudes
quanto grandes:
__Ei doutor!! -disse o motorista- Acabamos de pegar esse “presunto” na rua.
O médico legista, visivelmente irritado, parou de comer:
__Qualé rapazes?!?! Já falei para não utilizarem este tipo de linguajar por aqui.
Devemos respeitar os mortos que aqui chegam.
O ajudante do motorista balançou negativamente a cabeça:
__Esse aqui não respeitava ninguém. -disse ele- Matou a mulher, estuprou a
enteada, era traficante e viciado. Acabou consumindo mais do que vendia e
ficou com uma dívida enorme junto ao chefe da “boca”. Amanheceu numa vala
suja com a boca cheia de formiga.
O doutor Madureira olhou para o cadáver.
2 Era um homem na casa dos
quarenta anos, magro, com as roupas cobertas de sangue e, pelo menos, seis
furos de bala no abdome. Não havia rigor mortis, o que significava que ele
havia morrido há cerca de duas a três horas:
__Vocês sabem o horário do óbito? -perguntou o médico legista.
Os dois balançaram negativamente a cabeça.
__A gente nem faz ideia. A civil tá no local periciando. Tiraram um monte de
fotos e mandaram a gente trazer urgente para cá. Querem o laudo da autópsia
para ontem.
__A tá!! -exclamou o doutor Madureira com a voz carregada de ironia- E eu sou
a esposa do Papai Noel!! É mesmo impossível saber do que o amigo aí
morreu. Com tanto furo de bala, não dá para saber.

Madureira olhou para o homem, deitado na mesa de autópsia. As roupas foram


retiradas e o corpo jazia inerte sobre a mesa. O médico legista ligou o
gravador:
__Exame necroscópico de Josecley Alves, quarenta e dois anos, filho de Maria
Rita Alves e pai desconhecido. O corpo apresenta rigidez cadavérica completa,
indicando que o óbito ocorreu há cerca de dezoito a vinte e quatro horas.
Apresenta uma tatuagem de lobo ou cachorro no ombro esquerdo e uma de lua
cheia no ombro direito. Não possui marcas de nascença ou deficiências físicas
aparentes. A região torácica apresenta quatro cavidades resultantes de lesões
perfurocortantes provavelmente provenientes de arma ou armas de fogo. A
região abdominal apresenta outras duas cavidades. Vou proceder a uma
radiografia para determinar a causa das lesões.
O legista levou o aparelho de raio-x até a mesa e tirou duas chapas da região
onde as balas entraram. Havia seis furos de projéteis que pareciam ser de um
revólver calibre 38. Ele direcionou melhor o holofote para um dos furos e, com
uma pinça, retirou um dos projéteis. Por alguns segundos ele ficou olhando
para a bala que retirara do cadáver de Josecley, à luz do refletor.
__
__Estranho... -disse ele, enquanto foi até a pia e lavou o sangue que cobria a
bala.
Ele tirou as outras cinco balas e ficou ainda mais surpreso.
__Ou eu muito me engano ou isso é prata

Os três olhavam para o cadáver quando ouviram uma pessoa se aproximando


atrás deles:
__Queiram me perdoar a intromissão. -disse o homem de uma beleza sem
igual, trajando um terno que parecia ter sido feito sob medida para o seu corpo
atlético- Esse homem morreu devido aos inúmeros ferimentos de bala. Antes,
porém, ingeriu forçadamente uma overdose de cocaína, o que levaria o seu
corpo a entrar em colapso e, consequentemente, ao óbito. Seus algozes,
2
entretanto, não quiseram esperar por sua morte e o executaram com tiros de
pistola Taurus TH 40. O corpo foi jogado em local público para servir de
exemplo para que outros não façam o mesmo.
__Quem é você? -perguntou o médico- Por acaso você é parente do morto? E
como você sabe tantos detalhes?
__Ora doutor Madureira! -disse o homem com os olhos azuis claros, quase
cinza, brilhando- O senhor nasceu com um cérebro. Use-o!! É claro que eu não
pertenço ao mesmo nível do falecido. Geralmente nem me dou ao trabalho de
aparecer para um morto. Tenho uma legião de seguidores que fazem o
trabalho de buscar estas almas imundas para leva-las. Mas, quanto a saber os
detalhes, eu sei porque eu estava lá. Aliás fui eu quem, digamos, inspirou os
traficantes a matarem este “cidadão”.
Os três homens se olharam sem entender nada. Sem se importar com sua
pequena plateia, o estranho olhou para o defunto e tocou as maçãs do rosto
com sua mão de unhas negras e compridas:
__No entanto, como precisava de um esquadrão de elite, tive que vir
pessoalmente. -colocou o seu dedo sobre o peito do cadáver no mesmo
instante em que seus olhos ficavam negros como a noite, os globos oculares
completamente enegrecidos- Ex hoc pertinent corpus et anima in me est. Ego
sum pleno domini tui, qui venerunt a profundis. Quod in vita corporis custodes
observationum mearum, et faciunt voluntatem tuam. 5

5
“De agora em diante tua alma e teu corpo me pertencem. Sou o teu completo dono, aquele que veio
das profundezas. Que a vida volte ao teu corpo para me servir e fazer a minha vontade.”
__Não importa quem o senhor seja! -exclamou o médico legista colocando sua
mão sobre o ombro do estranho- Aqui você não pode ficar.
O rosto do estranho transformou-se no rosto de um ser bestial. De um
demônio. Bastou uma olhada de canto de olho para que o médico legista
voasse pela sala até bater seu corpo com força na parede.
__Santo Deus!!! -exclamou o motorista do S.V.O.
__Seu Deus não está aqui agora, então devo sugerir que saiam
imediatamente.
Os dois homens fugiram em desabalada carreira, sem olhar para trás. Eles
sabiam quem era aquele ser de unhas e olhos negros que podia transmutar-se
em qualquer coisa ou ser. O medo que sentiram naquele momento foi tão forte
que os dois homens urinaram nas calças.
Com a sala vazia, o estranho voltou a atenção novamente para o cadáver:
__ Corpus et anima in me est amodo. Ego sum pleno domini tui, qui venerunt
de profundis, qui ambulat in tenebris. Dominus tenebrarum. Sapiens timet. Et
seducit. Unus ad rectum discordiae. Et Dominus in coemeteriis servanda
tumulos sunt redactæ. Cognitor de non visis. Fiat cor tuum, cum adhuc
verberationem et replete aer sinum tuum! Ita ut iubes, quia ego sum
Luciferius!!!6
O cadáver não se mexeu, o que não abalou nem um pouco Lúcifer. Passados
uns quatro segundos seu peito inflou e seus pulmões se encheram de ar.
Lúcifer deu dois passos para trás. O homem
2 que, segundos antes, jazia inerte
sobre a mesa de autópsia levantou-se bruscamente, sentando -se sobre a
mesa, esmurrando o ar e urrando.
Ele olhou para Lúcifer, cuja beleza era perturbadora, que o fitava de pé,
impassível em seu terno sob medida:
__Eu estou no Paraíso?
Lúcifer segurou seu queixo com a mão que logo se transformou numa pata
horrenda:
__Você acha mesmo que, depois de tudo o que você fez de mal aos outros,
seu espírito imundo iria cruzar os portões do Paraíso?!? Como você é
estúpido!!!
__Então você não é um anjo?
__Claro que não! Levante-se. Tenho trabalho para você.
__Que tipo de trabalho?
__Do tipo que se você não fizer te farei passar por torturas inimagináveis e
eternas. -respondeu Lúcifer retirando com a unha comprida do seu dedo
mindinho as balas que se encontravam no corpo do ex-cadáver- Você irá
encontrar uma joia para mim. Uma pedra azul clara. Para essa tarefa você terá,
6
A partir deste momento tua alma e teu corpo me pertencem. Sou o teu completo dono, aquele que
veio das profundezas, que caminha nas sombras. Senhor das trevas. Conhecedor dos medos. O
Enganador. Aquele que promove a discórdia. Senhor dos cemitérios e das tumbas. Conhecedor do
oculto. Que o teu coração volte a bater e teus pulmões se encham de ar! Assim eu ordeno porque eu
sou Lúcifer!!!
digamos, alguns poderes especiais. Por exemplo, não irá morrer. Até mesmo
porque já está morto. Qual o seu nome?
__Josecley Alves.
__Que nome horroroso!! Muito bem Cley. Recrute sua equipe. Vai precisar de
capangas.

DEZESSETE
O médico entrou na sala da enfermaria que estranhamente estava vazia.
Trazia nas mãos uma radiografia do tórax de Guilherme Romanov.
__Me diz que não foi nada grave, doutor. -suplicou Fernanda Rivetti.
__Você é a esposa dele? -perguntou o médico.
Fernanda olhou para Guilherme. Não conseguia ainda ver a si mesma como a
esposa de alguém. Ainda.
__Digamos que eu seja a amiga que o ajudou.
__Você me ajudou?!? -perguntou Guilherme surpreso.
Ela dirigiu um olhar para ele como se estivesse implorando para que ele
aceitasse aquela ideia.
O médico colocou a chapa de raio-x diante da luz e apontou para a menor
costela:
__Pelo raio-x você fraturou a costela XII direita.
__E a má notícia? -perguntou Romanov.
__A má notícia é que você vai passar umas três semanas com muito
desconforto. Consta aqui na sua ficha que você é professor. Professor
universitário?
__Já fui. Agora sou professor de adolescentes. Tento fazer a diferença para
garotos e garotas da periferia. É mais gratificante.
Para Fernanda todo motociclista era motoboy.
2 Não era capaz de perceber que
a motocicleta era o meio de transporte preferido de profissionais liberais que
precisavam chegar aos seus locais de trabalho com mais rapidez e agilidade,
ou que não podiam parar no trânsito se deslocando para vários locais de
trabalho diferentes. Ela achava que tinha acidentado um motoboy e sua
impressão mudou ao perceber que estava diante de uma pessoa que via na
motocicleta a liberdade de um trânsito caótico.
__Para o bem da sua saúde, professor, sugiro que se afaste por, pelo menos,
duas semanas do trabalho docente. Você consegue?
__Claro que não.
__Foi o que eu imaginei. Vou receitar um anti-inflamatório e analgésicos para
que você possa lidar com a dor e o desconforto.
Guilherme deixou o consultório do médico ortopedista acompanhado de
Fernanda:
__Quer que eu te leve em algum lugar?
__Onde estamos? -perguntou ele.
__No pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia.
Romanov pensou por alguns instantes. Tinha chegado semi-inconsciente ao
hospital, portanto tentava se localizar.
__Preciso chegar até a minha moto...
__Eu te levo! -exclamou Fernanda, tentando esboçar um sorriso.
__Não precisa. -insistiu Guilherme- Só me diz onde ela está.
__Eu faço questão de te levar lá. Vamos!
Ela o pegou pelo braço e o puxou fazendo-o soltar um gemido de dor.
__Desculpe... -sussurrou ela, ainda puxando-o.
Chegaram até o carro no estacionamento e Guilherme pôde ver o tamanho do
estrago feito na lateral traseira esquerda do automóvel, muito amassada pela
colisão. Imaginou que sua moto poderia estar muito danificada. Talvez a roda
direita estivesse amassada e o garfo dianteiro, a peça que sustentava a roda,
também estivesse danificado.
Ela abriu a porta para ele e tentou ajudá-lo a entrar, mas atrapalhou-se e ele
acabou batendo com a cabeça no teto do carro.
__Moça, presta atenção: eu gostaria de estar vivo até chegar à minha moto.
Pode ser?
__Desculpe. Eu nunca fiz isso...
Ela ligou o carro e saíram.
__Onde você mora? -perguntou Fernanda.
__Zona Norte. -respondeu ele.
__Zona Norte... -repetiu ela- Você não é muito de conversar, né?
__Moça...
2
__Fernanda. Pode me chamar de Fernanda.
__Certo. Fernanda, eu estou com muita dor, meu dia foi perdido com um idiota
que adora abusar do poder que tem e, para terminar, bati minha moto e quebrei
uma costela. Se isso não for motivo suficiente para me calar, não sei o que é.
__Olha Guilherme, eu me sinto muito responsável por isso. A culpa é toda
minha. Não deveria ter me encontrado com aquele canalha.
__Mas afinal, o que você estava fazendo lá?
__É uma história complicada. -respondeu Fernanda, enquanto dirigia.
Ela parou ao lado do estacionamento do hipermercado. Como era de se
esperar àquela hora da noite, o Wallmart estava fechado e não viram sequer
um segurança que pudesse ajudá-los. Guilherme procurou pela moto e a viu
encostada à grade do estacionamento. Parecia em bom estado, talvez o guidão
um pouco desalinhado, mas nada que pudesse significar um guincho.
__Vamos embora. -disse ele- Eu pego minha moto amanhã.
Seguiram para a Zona Norte. Uma das ruas em que entrara estava cheia de
pequenas ondulações e buracos. E ela praticamente passou por todos.
__Fernanda, você tem morfina no carro. Por que só desse jeito para andar com
você.
__Nossa! Mas você é muito ranzinza mesmo! Acha que estou entrando nos
buracos porque eu quero?
__Não. -disse ele suspirando- Tenho certeza. Mas, por que essa história de
encontrar o promotor sozinho no gabinete dele é complicada?
__Fui procurada por uma mãe desesperada que foi ou é, talvez, a única
pessoa no mundo a acreditar que o filho que matou o funcionário de uma
grande joalheria num shopping da zona sul de São Paulo seja inocente.
__Como assim?
__O garoto realmente matou o funcionário da joalheria, mas o matou por
exigência do próprio funcionário.
__Que história mais confusa, sem pé nem cabeça.
__Ele estava com uns garotos que queriam roubar a joalheria. Sabiam que ela
tinha acabado de receber umas joias raras e caras. A mais valiosa era uma
pedra azul chamada de...
__Chamada de?
__Nossa, me deu um branco. Não consigo lembrar o nome da joia. Ela
pertenceu a um monte de gente importante. Esteve no Brasil no século XVI ou
XVII, foi para a Itália, depois para a França, depois para a Inglaterra, voltou
para França, veio para o Brasil novamente, foi para o Egito, foi para a
Alemanha nazista, foi para a Rússia. Se a joia tivesse passaporte, seria a sua
quarta ou quinta via do documento. Ela tem um nome latim que significa
Sagrado Mar Oceano.
__Sacro Mare Oceanum. -disse Guilherme Romanov.
2
__O quê? -perguntou ela.
__O nome da joia deve ser Sacro Mare Oceanum.
__Sim. É verdade. Acho que é isso mesmo.
Fernanda parou o carro diante da entrada do prédio onde morava Romanov.
Um prédio antigo de apenas três andares cuja frente dava para o Horto
Florestal e o outro lado, onde ficava seu apartamento no último andar, tinha
uma vista privilegiada para a selva de arranha-céus de São Paulo. Ele tentou
descer do carro, mas não conseguiu. Ainda sentia muitas dores. Não queria,
mas teve que aceitar a ajuda de Fernanda.
__Em que andar você mora? -perguntou ela.
__No terceiro.
__E onde fica o elevador?
__Quando eu descobrir, te aviso. -respondeu ele ironicamente- Mas a escada
fica logo ali.
__Eu não acredito que você mora num prédio sem elevador. -disse ela
balançando a cabeça negativamente- Quando ele foi construído? Na Idade
Média?
Romanov esforçou-se para não rir. Em vão. Sentou-se no degrau da escada e
começou a rir. E a chorar de dor ao mesmo tempo.
__O prédio é mais antigo que eu!
__Então ele é bem antigo!
Nova gargalhada. Por fim, Romanov enxugou as lágrimas de dor e, com muito
esforço, subiu os seis lances de escada que separavam o seu apartamento da
saída.
Fernanda o ajudou a subir apoiando o braço dele por sobre seu ombro. Por ser
um edifício antigo as escadas eram mal iluminadas, o que obrigou o
condomínio, assim que a tecnologia permitiu, a substituir os interruptores de luz
por sensores de movimento que iam acendendo as luzes à medida que eles
avançavam os degraus.
Guilherme abriu a porta e ambos entraram. Ele foi até o bar da estante e
encheu uma taça com conhaque. Tirou a camisa que aumentava ainda mais o
desconforto de roçar o tecido com as bandagens que cobriam seu tórax. Pegou
a taça e deitou-se no sofá. Sentia tanta dor que havia se esquecido de
Fernanda.
Ao invés de se incomodar com isso, a advogada aproveitou para fazer um tour
pelo apartamento. A sala e o único quarto que havia eram pequenos, mas a
cozinha, a lavanderia e o banheiro eram até muito grandes para o padrão atual
de construção de apartamentos.
Havia livros por todos os cantos do apartamento, no quarto, na sala, no
banheiro e até na cozinha. Parecia que o apartamento todo era uma biblioteca.
Ela percebeu que, entre os livros, havia um exemplar do Vade Mecum, livro
que todo advogado tem, e um exemplar da Constituição Brasileira de 1988.
Havia também um mural na parede contendo inúmeras fotos, a maioria de ex-
alunos. Uma foto surrada lhe chamou 2a atenção. Mostrava uma mulher muito
bonita portando uma barriga de gravidez avançada, segurando a mão de uma
menina pequena e muito linda. Deveriam ser a esposa e a filha de Guilherme.
__“Ele deve ser divorciado...” -pensou ela- “Esse apartamento é muito pequeno
para caber casal e dois filhos.”
Ela voltou a atenção para Romanov. A taça jazia vazia de pé sobre seu peito.
Ele deu um suspiro profundo e gemeu de dor ao inflar de ar os pulmões.
Subitamente um grito extremamente alto misturando terror e dor ecoou pelo
prédio, fazendo Guilherme Romanov pular do sofá e Fernanda Rivetti dar um
salto para trás com o susto.
__Meu Deus! -exclamou ela- Mas o que foi isso?!?
Romanov fez um gesto para que ela ficasse em silêncio e, imediatamente
apagou todas as luzes do apartamento. Foi até a cozinha e pegou a maior faca
de ponta que ele possuía. Em seguida foi até a porta e pôs a mão na chave
que estava na fechadura.
__Não abre. -sussurrou Fernanda- Pelo amor de Deus, não abre essa porta.
Pela penumbra Romanov percebeu que os olhos de Fernanda estavam
lacrimejados e sua pele estava mais branca que o normal. Ela estava
apavorada.
__Eu vou sair e você tranca a porta em seguida. -disse ele- Se eu não voltar
em cinco minutos, liga pra polícia.
Ela girava a cabeça lentamente e as lágrimas lhe desciam pela face em
profusão.
__Não vai...
Ele abriu a porta lentamente e sem fazer qualquer barulho. O hall estava vazio
e escuro. E ninguém havia subido as escadas, pois a luz não acendera. A dor
havia sumido de seu peito, tamanha era a descarga de adrenalina no sangue.
Olhou por entre o vão da escada os dez metros que o separavam do solo.
Nada.
Parecia normal.
Virou-se para voltar ao apartamento quando um novo grito, ainda mais
apavorante e perturbador que o primeiro, ecoou por todo o prédio. Olhou
novamente para a escada e as luzes começaram a acender enquanto ouvia
passos de alguém subindo. Olhou para trás e viu Fernanda com a porta
entreaberta fitando-o apavorada. Fez um gesto para que fechasse a porta, mas
ela não atendeu. Continuou olhando para a escada que ia se iluminando à
medida que o barulho de passos ia aumentando. Romanov podia ver com
nitidez somente os dois últimos lances de escada. Estes acenderam e os
passos continuaram. Mas não havia ninguém.
Quando os passos pararam, Romanov estava diante da escada. Sentiu como
se fossem duas mãos tocarem o seu peito e o jogarem a uma distância de
alguns metros fazendo-o rolar pelo hall dos apartamentos.
Fernanda Rivetti fechou a porta com força produzindo um grande barulho. Em
seguida a trancou e afastou-se. Estava 2mais que apavorada, estava em pânico.
Ajoelhou-se e juntou as mãos para rezar:
__Pai nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o
vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu...
A maçaneta da porta virou-se lentamente enquanto a porta chacoalhava
freneticamente.
__O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as nossas dívidas assim
como perdoamos nossos devedores...
Quem quer que estivesse do lado de fora estava tentando desesperadamente
entrar, sem conseguir. Ela ouviu pancadas que quase destruíram a porta.
__E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos de todo e qualquer mal
agora e para todo o sempre. Que assim seja.
Um grito ainda mais alto e apavorante que os anteriores ecoou por todo o
prédio. Então, subitamente, tudo voltou ao normal. Não se ouvia mais nada.
Parecia tudo tranquilo.
__Fernanda, me deixa entrar. -sussurrou Romanov.
__Você está sozinho? -perguntou ela, tentando se refazer.
__Ora, com quem eu estaria a esta hora da madrugada?
Ela abriu a porta. Estava tremendo e gelada. Ele a tomou em seus braços e a
abraçou com carinho. Podia sentir o perfume que emanava de suas roupas, de
sua pele e de seus cabelos. Era delicioso.
__Você foi muito corajosa hoje.
__O que foi aquilo? -perguntou ela- Nunca senti tanto medo em toda a minha
vida.
__Acho que foi um aviso. Estamos começando a incomodar alguém...
Fernanda o afastou:
__Você foi jogado pelo hall como se fosse um boneco de pano!!! Então quem
está incomodando quem??
__Eu te recomendo dormir aqui e ir embora com a luz do dia. -disse Guilherme.
__Mas eu nem sonharia sair agora!!!
__Pode dormir na minha cama. Eu durmo no sofá.
Ele pegou um travesseiro, um lençol e uma coberta e deitou-se no sofá.
Fernanda deitou-se na cama ainda apavorada. Não se conformava com a
calma de Guilherme. Essa calma não poderia ser normal. Ela não parava de
tremer. Levantou-se e foi até a sala.
__Guilherme... -disse ela quase sussurrando.
Romanov abriu os olhos. Fernanda esticou o braço em sua direção.
__Você está dormindo?
__Agora não. -disse ele sorrindo.
__Preciso que deite comigo. Preciso da sua calma ou não vou conseguir
dormir... 2

Ele levantou-se e foi deitar com ela na cama. Fernanda aninhou a cabeça
sobre seu peito nu. Não conseguia se lembrar da última vez que dormira
abraçada com um homem. E, enquanto buscava essa lembrança em sua
memória, adormeceu.
DEZOITO
O
aeroporto internacional de Phnom Penn estava lotado de pessoas, o
que assustou um pouco o monge budista Halka Sano Yodha,
acostumado a locais geralmente desertos e silenciosos.
Tinha chegado até ali, mas não sabia o que fazer ou sequer para onde se
dirigir. Viu um homem andando apressado, trajando terno e uma valise de
mão. Viu quando a passagem e o cartão de embarque caíram do bolso de seu
terno no chão. Correu para pegar a passagem para devolvê-la ao dono.
Quando olhou para o saguão do aeroporto, no entanto, não viu mais o dono da
passagem.
AEROPORTO INTERNACIONAL DE PHNOM PEHN. CAMBOJA. CENTRO.
20 DE NOVEMBRO DE 2015. SEXTA-FEIRA. 14h30min.
Um funcionário do aeroporto aproximou-se dele e viu o destino e a companhia
aérea mencionados na passagem.
__Vá para aquele balcão. -disse o homem em khmer.
__Mas a passagem...
__Sim. -continuou o funcionário- A passagem é daquela companhia aérea.
Pode ir. Seu voo está marcado para daqui há uma hora.
2
__O senhor não está entendendo...
__Vai, garoto!!! -exclamou o funcionário- Vocês monges parecem viver no
século passado.
Yodha começou a caminhar meio sem jeito até o balcão, quando ouviu apitos
da polícia e latidos de cães. Instintivamente o pequeno monge budista levantou
os braços. Numa das mãos estava a passagem aérea.
Os policiais passaram por ele sem se incomodar com sua presença e
abordaram justamente o homem que havia deixado cair a passagem. Sua
valise tinha um fundo falso onde os cães treinados da polícia farejaram
cocaína.
Ele foi algemado e escoltado por policiais até a delegacia do aeroporto. Yodha
era esperto o suficiente para saber que aquela passagem de avião poderia liga-
lo ao contrabandista. Deveria livrar-se dela o mais rápido possível.
__Pode vir. -disse uma cambojana lindíssima de sorriso agradável- Meu guichê
está livre.
Yodha olhou ao redor. Tentou esboçar um sorriso, mas não conseguiu.
__É com você mesmo que eu estou falando. -continuou a cambojana meio
impaciente- Você com a passagem apontada para cima.
Ele se aproximou do guichê como quem se aproxima de um precipício. A
atendente esticou o braço pedindo a passagem.
__Seu passaporte, por favor.
Yodha entregou o documento. Pensava em como iria explicar tudo aquilo para
a polícia. Eles não iriam entender. Nunca.
Ela devolveu o passaporte com a passagem em seu interior:
__O senhor leva bagagem?
__Não...
__É só se dirigir à área de embarque. Faça uma boa viagem.
Halka Sano Yodha deixou o guichê. Ainda tentava entender o que estava se
passando, quando abriu o passaporte e pegou a passagem. O nome que
constava nela era justamente o seu. Agora tudo começava a fazer sentido: o
contrabandista usara um nome falso, que era o seu verdadeiro nome.
Observou mais atentamente os dados da passagem: número da poltrona 13D;
horário de saída 16h45min; destino Guarulhos, Brasil. Foi até uma banca de
jornais e revistas dentro do aeroporto e folheou o primeiro guia turístico do
Brasil que encontrou. Guarulhos ficava na província, ou melhor, no estado de
São Paulo, cuja capital era São Paulo. Imediatamente Yodha lembrou-se da
idosa que lhe deu comida. A cidade com nome santo era São Paulo.
Seu estômago roncou. De fome.
Aliás, a última vez que comeu foi quando aquela idosa lhe deu comida. Seu
estômago estava dando o alerta de que precisava comer de novo.

Noi Bai estava lotado. Havia um fluxo gigantesco de pessoas e, no meio deste
mar de seres humanos, estava Vítor Guimarães.

AEROPORTO INTERNACIONAL NOI BAI, HANOI, CAPITAL DO VIETNAM.


20 DE NOVEMBRO DE 2015. SEXTA-FEIRA. 7h30min.
Vítor Guimarães tentava se recordar das últimas 24 horas. Não conseguia mais
distinguir o que era real do que era fruto da sua mente. A aparição de sua irmã
em pleno interior do Vietnam parecia tão real. Pôde até sentir o calor do toque.
Mas não passava de loucura, total ensandecimento de sua parte. Ele chorou
até amanhecer o dia e, então, dormiu. Tinha viajado o mundo e desafiado a
morte de maneiras que até ele se surpreendia. Mas estava ficando louco. E
não queria terminar seus dias num manicômio encravado no meio do sudeste
asiático. Queria voltar para casa. Precisava voltar. Rever velhos conhecidos.
Velhos lugares. Matar saudades.
__Infelizmente não temos mais voos hoje para o Brasil, senhor. Sinto muito.
-disse a atendente da companhia aérea.
Ele bateu algumas vezes com o passaporte levemente no balcão, pensativo.
Não estava entre as suas opções dormir em Hanoi e, menos ainda, no
aeroporto. Embora já tenha feito isso algumas vezes.
__Senhor, -disse a atendente- posso lhe dar uma opção. Mas vai ficar um
pouco mais caro...
__E qual seria essa opção?
__Temos um voo da nossa companhia que sai de Phnom Pehn, no Camboja,
às quinze horas e trinta minutos com destino à São Paulo, no Brasil. Nele
temos somente um lugar na primeira classe. Se o senhor aceitar, podemos
colocá-lo num voo para Phnom Pehn que sai daqui há uma hora e o senhor
chegaria a tempo de pegar o voo para São Paulo.
O arranjo ficou quase o dobro do preço, mas, para Vítor Guimarães, o sudeste
asiático já não dava mais.
Embarcou no avião com destino a Phnom Pehn. Chegou no aeroporto bem a
tempo de embarcar para o Brasil. Procurou sua poltrona no voo, guardou sua
mochila que era também sua única bagagem e sentou-se. Ao seu lado estava
um garoto que deveria ter um pouco mais de dezesseis anos, não mais que
isso. E pelas roupas era um monge budista.
__Era só o que me faltava! -sussurrou Vítor.
__Oi -disse Yodha- Você é brasileiro?
Meio desconcertado por saber que o monge havia entendido o que tinha
acabado de falar, Vítor assentiu com a cabeça.
__Sou. Mas você não parece brasileiro.
__E não sou! -disse Yodha sorrindo- Aprendi sua língua, mas sou nepalês.
2
Uma pausa surgiu entre ambos. Um desconcertante silêncio de alguns
segundos que foi quebrado pelo monge budista.
__Muitas pessoas detestam conversar em aviões -continuou Yodha- e você
parece ser uma delas. Gostaria de pedir somente alguns minutos para entoar
meus mantras e depois me calo durante todo o voo.
__À vontade. -disse Vítor.
Halka Sano Yodha pegou seu Japamala, o colar feito de contas de rudraksha e
começou a sussurrar os mantras sagrados do budismo. O comandante disse
em inglês que iria começar os procedimentos de taxiamento em direção à
cabeceira da pista.
A aeronave aguardou alguns segundos e então as turbinas aceleraram
fazendo-a movimentar-se cada vez mais rápido até que o barulho dos pneus
percorrendo a pista deixasse de ser ouvido. O gigantesco pássaro de metal
ganhava os ares para atravessar continentes e oceanos.
Passada a tensão da decolagem, Vítor reclinou o encosto de sua poltrona e
fechou os olhos. As luzes do interior da aeronave desligaram e uma penumbra
suave permitiu um adormecer tranquilo.
Yodha terminou de entoar seus mantras e fez o mesmo: reclinou o encosto da
poltrona, fechou os olhos e dormiu.
DEZENOVE
2

_Nossa! -exclamou Fernanda Rivetti abrindo os olhos na penumbra do


quarto- Que sonho louco eu tive!

Ela abriu melhor os olhos e, de imediato, percebeu que não estava em seu
quarto.
___Ai meu Deus! -disse ela, quase suplicando- Ai meu Deus!
Levantou-se e percebeu que estava usando somente uma camiseta comprida,
e que não era sua.
Vestiu suas roupas e caminhou pelo apartamento. Achou Guilherme na cozinha
preparando ovos mexidos e torradas de pão de forma. Um delicioso cheiro de
café recém-coado invadiu-lhe as narinas. Como num estalo, todos os
acontecimentos das últimas vinte e quatro horas voltaram à sua memória: o
assédio do promotor público, o choro no estacionamento do hipermercado, o
acidente com Guilherme, o hospital e os momentos de pavor no prédio onde
ele mora.
__Bom dia doutora! -cumprimentou Guilherme sorridente- Dormiu bem?
__Você é normal? -perguntou ela com visível espanto- Porque para agir assim
como se nada tivesse acontecido na noite anterior, uma pessoa não pode ser
normal.
__Acha que é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece comigo,
Fernanda? Venha! Sente-se para comer a principal refeição do dia.
Ela sentou-se à mesa ainda visivelmente espantada.
__Procure se acalmar que todo esse mal-estar irá passar. Eu garanto. Café?
Ela assentiu com a cabeça.
__Ainda estou tentando entender tudo o que aconteceu. O que ou quem eram
aquelas... coisas?
__Seres. Entidades. Espíritos das sombras. Servos enviados por um chefe,
governante ou príncipe para nos assustar, nos enganar, nos dividir e nos
enfraquecer. Leite?
Ela novamente assentiu com a cabeça.
__Chefe? Governante? Príncipe? Eu não entendo uma palavra do que você
está falando.
__Existem outros mundos além do nosso. Outras dimensões que não podemos
perceber em vida. Nesse mundo existem cidades de Luz com almas ou
espíritos também de Luz e existe um lugar sombrio e sujo, com cidades
repletas de seres malignos que aprisionam e escravizam as almas daqueles
que, digamos, não foram pessoas muito boas em vida. Estas cidades são
2
governadas por entidades tão antigas quanto a humanidade e cuja forma foi se
moldando pelo sofrimento daqueles a quem escravizou e fazem parte de uma
hierarquia e, portanto, devem obediência a um ser maior.
__E por que nos dividir se nem juntos nós estamos?
__Isso também me deixa intrigado. Essas entidades, ou como são chamadas
pelos cristãos, esses demônios costumam me pegar quando estou sozinho,
geralmente na calada da noite. Se me perturbaram junto com você é porque
existe algum tipo de ligação entre nós.
__Que ligação?!?! Nunca tínhamos nos vistos até ontem!!! Nosso encontro foi
mero acaso.
__Não existe acaso, doutora. Deus não joga dados.
Houve um silêncio somente quebrado quando Guilherme mordia as fatias
torradas de pão.
__Em que casos você está trabalhando? -perguntou ele.
__Não muitos, pra ser sincera... Estou ajudando uma senhora a reaver sua
arara de estimação que foi tomada pela polícia florestal. Também tem o caso
de uma vila de pescadores que luta contra a construção de um condomínio de
luxo na praia deles. E tem o caso do garoto que eu já tinha comentado com
você. Por causa desse caso tive de me sujeitar ao assédio daquele promotor
nojento. Segundo a mãe, o garoto é um bom rapaz, mas se envolveu com uma
galera da pesada e roubaram uma joia muito valiosa, parece que é uma pedra
azul que veio do Oriente...
As últimas palavras ditas por Fernanda fizeram Guilherme engasgar com a
torrada.
__Você está bem? -perguntou ela.
Ele assentiu com a cabeça, ainda tossindo. Foi até seu computador e começou
a pesquisar sobre a pedra que viera do Oriente.
__Escuta isso, Fernanda: antes de se chamar Sacro Mare Oceannum, a gema
tinha o nome de “Olho Azul de Hórus”.
Ela levantou os ombros. -E daí?
__Você não entende?!? Essa pedra é a pedra do Apocalipse. Ela é
amaldiçoada e vai acumulando algum tipo de energia daqueles que ela mata,
até o momento em que terá tanta energia que irá provocar o caos e
simplesmente acabar com quase metade da população mundial.
__Ai meu Deus!!! -exclamou Fernanda- Não vai me dizer que você, um
professor de História, acredita nisso?!?! -ela olhou para o vazio- Professor de
História não é ateu?
__Você não entende??? Minha esposa falou que eu tinha que destruir essa
pedra e que, para isso, ia contar com a sua ajuda.
__Então você é casado!!! Eu sabia!!!
__Minha esposa morreu há quase dez anos. Escuta, Fernanda, e presta
bastante atenção: desde a Aurora dos Tempos existe uma guerra entre o Bem
e o Mal. Espíritos das Sombras combatem espíritos de Luz e esse combate
2
garante o equilíbrio do mundo. Às vezes os espíritos das sombras ganham uma
batalha e, então, temos um extermínio causado por uma guerra, por uma
pandemia, por um genocídio. Mas, geralmente, quando os espíritos de Luz
ganham uma batalha, ninguém nesse mundo percebe. Foi o caso da crise dos
misseis na Guerra Fria, em que quase foi deflagrada uma guerra nuclear.
Agora, os espíritos das sombras, ou demônios, podem contar com uma arma,
uma gema preciosa que trará o Armagedom, o fim da raça humana como a
conhecemos hoje. Isso significa que bilhões de vidas irão deixar de existir. Nós
podemos impedir isso, ou podemos esperar que esse “fim dos tempos” chegue
e torcer para que o nosso nome não esteja na lista dos que irão morrer.
Guilherme tinha se empolgado em sua explicação e passara a segurar os
braços de Fernanda com força, deixando-a assustada:
__Me solta, por favor... -disse ela, quase sussurrando.
__Você viu o que aconteceu aqui ontem! -exclamou ele visivelmente irritado,
enquanto ela vestia suas roupas- Ou você é muito cética ou muito burra!
__E você é muito grosso!!! -disse ela- Eu quero... Eu preciso ir embora. Você
vai me deixar ir? Please...
Ele abriu a porta do apartamento. -Vai.
Ela ia saindo quando ele novamente segurou-lhe pelo braço:
__Aproveita bem o teu mundo de futilidades porque ele está prestes a acabar.
Ela puxou o braço com força, livrando-se das mãos de Guilherme:
__Futilidades?!? Então, você acha que eu vivo num mundo de futilidades?!?
-perguntou ela, furiosa- Deve estar achando que eu sou uma patricinha, não é?
Eu ralei pra caramba pra chegar até aqui. Eu tinha amigos que viviam me
convidando para festas e eu não ia porque estava estudando. Meu cabelo
nunca viu uma escova, minhas unhas nunca viram um esmalte e meu rosto
nunca viu uma maquiagem. E hoje, seu professorzinho de merda, eu defendo
pessoas que não podem pagar por um bom advogado. Ah, sim!!! Porque eu
sou uma boa advogada. Aliás, sou uma excelente advogada. Então, saiba que
prefiro viver num mundo de futilidades do que num mundo de paranoia
paranormal com o qual você está acostumado a viver!
Fernanda desceu as escadas com tanta raiva que não havia lugar para o
medo. Fechou a porta do saguão no térreo com tamanha violência que
provavelmente toda a vizinhança ouviu o estrondo.
__Vai pro inferno, seu professorzinho de merda!!! -vociferou ela antes de entrar
no carro e partir.

2
VINTE
G uilherme ainda tentava digerir o estresse da conversa com Fernanda
Rivetti junto com o café da manhã.

Estivera tão perto da pedra e, ao mesmo tempo, tão longe. Mesmo que tivesse
a pedra em mãos, não saberia como destruí-la. Precisava encontrar alguém
que lhe dissesse como. O café da manhã, de repente, ficou sem gosto algum.
Foi nesse momento que a campainha do interfone tocou. Era Fernanda.
__O que você quer? -perguntou ele, com uma voz desprovida de emoção.
__Preciso entrar...
Fernanda, na calçada, ouviu o clique metálico do portão de entrada
destravando.
Quando Guilherme Romanov abriu a porta, deparou-se com Fernanda, mas ela
não estava só.
__Esse é o padre Giovanni Piazzi. Ele é italiano, mas mora no Brasil há uns
quarenta anos.
__Cinquenta e dois. -corrigiu o clérigo- Estou aqui por um motivo um tanto
estranho... 2

O padre Giovanni parecia ter mais de oitenta anos. Seus cabelos eram brancos
e os olhos azuis pareciam já meio desbotados pela idade. Mas gozava de
plena saúde e vitalidade.
__Eu não consigo nem imaginar o que te traz aqui, padre. -respondeu
Guilherme- Entre.
O padre entrou acompanhado de Fernanda.
__Aceita um café, uma água?
__Não, obrigado. Eu me formei há trinta anos num curso ministrado pela nossa
Santa Sé no Vaticano. Um curso que poucos se graduam, um curso de
Exorcista.
__Se você queria a minha atenção, agora já tem. -respondeu Guilherme, nem
um pouco surpreso.
__Eu não sei se você sabe, mas o Exorcismo entra onde todas as terapias
tradicionais falharam. Coincidentemente, o paciente, ou possuído, já perdeu a
fé nos métodos tradicionais e começa a acreditar nos métodos não ortodoxos,
o que geralmente garante o resultado positivo do Exorcismo, que entre outros
objetivos visa a cura da alma.
__Eu sei de tudo isso, padre, portanto podemos ir direto ao ponto.
__O ponto é que eu tenho uma menina de quatorze anos que sofre de
depressão e ansiedade. Já tentou se suicidar várias vezes e, ainda por cima,
ouve vozes.
__Parece um quadro de esquizofrenia...
__Parece. Só que na última sessão de exorcismo, o demônio que possuía a
alma da menina pediu para buscar você e a doutora Fernanda. Me deu o
endereço de ambos e disse que só deixaria a menina em paz depois de falar
com vocês dois.
Guilherme olhou para Fernanda e ela entendeu aquele olhar. Era um olhar do
tipo “eu te disse, não disse?”.
__Resolvi procurar você primeiro, não sei por quê. Geralmente as mulheres
têm seu lado espiritual mais aflorado, o que facilita as coisas. Os homens
costumam ser mais ogros.
__Nisso o padre tem toda razão!!! -disse Fernanda rindo.
__Coincidentemente, quando ia tocar a sua campainha, sua amiga saiu do
prédio um tanto, digamos, irritada. E eu descobri que era ela porque ela gritou
“professorzinho de merda”, se referindo provavelmente a você.
__Provavelmente, não!!! Me referia a ele com toda certeza.
__E por que o senhor acreditou no demônio que está possuindo a menina?
-perguntou Guilherme- O demônio não é o enganador, o rei da mentira?
__Filho, eu luto contra esse demônio há meses. Já fui parar no hospital pelo
menos uma dúzia de vezes porque essa menina tentou tirar a vida. Eu não
estou nem perto de descobrir o nome desse maldito. Então tenho que tentar de
tudo. E a sua amiga me disse o que aconteceu aqui ontem. Então acho que
estou no caminho certo. 2
__Está certo, padre. Então chega de papo furado e vamos ver essa garota.
O três entraram no carro de Fernanda e partiram em direção à Zona Leste de
São Paulo, uma das regiões mais populosas da capital paulista. Pararam numa
rua cheia de prédios antigos e comerciais. Muitos cortiços. Muitos mendigos e
moradores de rua, além de viciados em crack. A rua fedia esgoto e não havia
uma árvore sequer que pudesse mudar o tom de desesperança que reinava no
lugar.
“__Se eu fosse um demônio, aqui seria o lugar certo para morar.” -pensou
Guilherme- “Um lugar que deixou de ter esperança há muito tempo.”
Entraram por um portão de metal num corredor estreito que ligava várias
casinhas minúsculas, geralmente de um quarto, cozinha e banheiro, habitadas,
na maioria por bolivianos, haitianos e senegaleses. O padre Giovanni bateu
numa das portas e uma mulher atendeu:
__Buenos dias Dolores. -cumprimentou o clérigo- Estas son las personas que
yo havia hablado com usted. Creo que ellas poderón aiudar nosotros a mandar
este demônio para el inferno de onde saliu.
__Oh, padre. Gracias a Diós usted conseguiu allar los dos. Mi hija teve fiebre la
noche entera.
__Acalma tu corazón. Nosotros vamos a ganar esta batalla.
Os três entraram na minúscula casa de Dolores. Estava tudo muito limpo e
arrumado. A porta que dava para o único quarto estava entreaberta e
Guilherme pôde perceber, deitada na cama de casal, a menina que estava
possuída. Ela se contorcia como uma serpente e seu corpo vestido apenas
com lingerie, estava coberto de suor. Romanov presumiu que ela deveria dividir
a cama com a mãe e que somente as duas formavam aquela família.
__O pai ficou na Bolívia. -disse o padre- Não quis saber das duas. A mãe
conheceu um cara. Esse cara estuprou a menina há seis meses e fugiu em
seguida. De lá para cá, a vida da menina virou um inferno, literalmente.
Envolveu-se com bebidas e drogas, deixou de frequentar a escola. Teve
diversas relações com meninos e meninas. Ficou grávida, abortou. Conselho
Tutelar bateu na porta duas vezes. A mãe queria ficar mais tempo com a Laura,
mas tem que acordar as quatro da manhã pra trabalhar e chega quase oito da
noite, quebrada.
__Laura?!? -perguntou Fernanda.
__A mãe é fã da Laura Pausini e daquela música que a Laura gravou em
espanhol, “Entre tu y mil mares”.
__Que vida, eim? -perguntou Guilherme- Eu lido com isso o tempo todo. Muitos
alunos meus passaram por isso que a Laura está passando.
__Eu oro o tempo todo para que estas almas sofridas encontrem a paz.
-respondeu o padre- Esperem um pouco. Vou ajudar a limpar e vestir a menina.
O padre entrou no quarto onde estavam Dolores e a filha, Laura. Guilherme e
Fernanda ficaram na minúscula cozinha. Foi então que Guilherme percebeu
que os olhos verdes de Fernanda estavam encharcados de lágrimas. Ele
2
aproximou-se dela e sentiu toda a fragilidade daquela força gigantesca que
emanava dela. Talvez por isso ela tenha sido escolhida para essa tarefa. Existe
uma força gigantesca que emana desse choro e que faz dela uma mulher tão
guerreira. Ele a envolveu em seus braços com carinho e encostou seu rosto ao
dela.
__Quanto sofrimento, meu Deus... -disse ela, quase sussurrando.
__É verdade. Dói em mim também.
Um grito de pavor ecoou pelo quarto assustando Guilherme e Fernanda. O
padre abriu a porta e disse, acenando com a mão:
__Venham! Vamos começar.
Guilherme e Fernanda entraram no quarto. Embora o recinto estivesse
aparentemente limpo, havia um cheiro de podre no ar, como se o esgoto
estivesse passando exatamente embaixo da cama.
A menina Laura se contorcia deitada na cama como se fosse uma serpente.
Seus braços e pernas estavam amarrados, talvez para evitar que ela ferisse a
si mesma.
__Olha quem está ai? -perguntou a menina, com uma voz metálica- Se não é o
professorzinho de merda e a advogadazinha de porta de cadeia.
__Ora seu...
__Fala, advogada, solta esse palavrão engasgado na garganta. Quero ouvir.
__Mas não vai. Quero saber por que estamos aqui. O que você quer da gente?
Os pulsos da menina estavam amarrados à cama, mas isso não impediu que
ela gesticulasse um não com o dedo indicador.
__Que modo mais grosseiro de começar uma conversa. -disse o demônio- A
tão certinha advogada! A mulher politicamente correta. Aquela que nunca fez
nada de errado, não é mesmo?
A menina Laura riu uma gargalhada insana tão alto que até o padre Giovanni,
com seus anos de experiência em exorcismo, ficou assustado.
__Conta pra eles, Nanda! Conta como você conseguiu sua carteirinha da OAB.
Conta, sua vagabunda! Conta!!! -gritou o demônio.
Com as costas da mão, Fernanda Rivetti deferiu uma bofetada no rosto da
adolescente. Seus olhos estavam encharcados de lágrimas.
__Não dê ouvidos ao demônio! -gritou o padre- É isso o que ele quer, que você
extravase seus instintos. Assim fica mais fácil ele te subjugar. -o sotaque
italiano do clérigo ficava mais evidente em momentos de nervosismo.
Um filete de sangue escorreu pelo canto da boca de Laura. Ela passou a língua
no sangue e Fernanda pôde jurar que a língua era bifurcada.
Laura não era mais uma adolescente. Estava transfigurada. Veias escuras
saltavam de seu rosto contorcido. Seus olhos estavam saltados e eram
completamente negros, como se os globos oculares não estivessem lá. As
unhas das mãos e dos pés pareciam mais garras de um ser bestial que de uma
adolescente de quatorze anos.
__Ah como sua raiva é doce! Vai ser tão
2 fácil pra mim ter a sua alma. Não terá
a mínima graça. Não é como o professorzinho de merda. Se acha tão durão,
tão experto. Tão senhor de si. Mas, no fundo, é um incompetente. A mulher
morreu porque ele foi incompetente. A filha morreu porque ele foi
incompetente. Ele é a cara da incompetência.
A palavra incompetente era o gatilho que tirava Guilherme de seu foco. Odiava
quando lhe chamavam de incompetente e o demônio sabia disso. Sabia como
manipular o ego de cada um. Mas Guilherme não se abalou. Teria o momento
certo para revidar.
__Vou repetir a pergunta: -disse Romanov, com toda a frieza que lhe era
possível- O quer você quer da gente?
__Pra começar, quero as almas de vocês. Mas isso ainda demora um
tempinho. Agora, nesse momento, o que eu quero é que a pedra seja destruída
e o equilíbrio seja restaurado. E só vocês dois podem fazer isso.
__E como faremos isso?
__Primeiro, vocês têm que evitar que o resto da sua equipe seja morta pelos
capangas do meu Mestre. Eles estão prestes a desembarcar no aeroporto de
Guarulhos. Sem eles, não só o moral de vocês ficará abalado como também
ficará mais difícil destruir a pedra. Segundo, após salvarem seu pessoal,
partam rumo a Grécia. Na região de Meteóra encontrarão a pessoa que lhes
dirá como destruir a pedra.
__E por que deveríamos acreditar em você?? É da sua natureza mentir e
enganar.
__Em quarenta e cinco minutos um avião vindo do Oriente vai pousar em
Cumbica. Nele estão um monge budista e um ex-padre. Não os subestime,
pois são extremamente poderosos e habilidosos. Eles serão mortos se vocês
não estiverem lá para impedir. Então vão.
__Vão!!!
Guilherme olhou para Fernanda. Para ele o demônio parecia estar sendo
sincero desta vez. Para ela era uma história tão surreal que poderia até ser
verdadeira.
__Vão!!! -gritou o demônio e seu grito parecia mais um rugido.
__Agora é com você, padre! -exclamou Guilherme.
Os dois saíram correndo. Quando chegaram ao carro, Guilherme pediu a
chave.
__Eu dirijo. Conheço aqui e sei o melhor caminho para chegar ao aeroporto.
Ela jogou a chave para ele que destravou o carro. Entraram e, em seguida,
Guilherme ligou o motor, mas não saiu.
__O que foi? -perguntou Fernanda- Por que não estamos andando?
__Não posso deixar aquela menina assim. Tenho que ajudá-la.
__Não é melhor deixar com o padre Giovanni? Afinal ele entende mais disso
que você.
__Mas ele não sabe o nome do demônio, e eu sei.
2
__E o que isso tem a ver?
__Tudo, Fernanda! -disse ele saindo do carro e correndo para a casa de Laura-
Tudo!
Ao entrar no quarto viu o padre jogando água benta na menina que se
contorcia de dor. Levantou a camiseta e mostrou o dorso nu para o demônio.
__Olhe isso, demônio! Você sabe o que é isso?
O demônio no corpo da adolescente olhou para as cicatrizes nas costas de
Guilherme e riu uma gargalhada ainda mais alta que a anterior.
__Claro que eu sei! Eu estava lá quando as feras o atacaram. Eu adorei.
__Eu sei que você estava lá, Asmodeus.
O demônio soltou um berro tão apavorante que os vidros da janela do quarto
se estilhaçaram. Descobrir o nome de um demônio era meio caminho andado
para o exorcismo. Por isso os demônios jamais diziam seu nome, mesmo com
as mais dolorosas (para eles) torturas.
__Eu também sei que você é o braço direito de seu mestre Lúcifer. E eu me
pergunto o que ele faria com você se soubesse da sua traição?
__O que você quer, seu maldito? O que você quer de mim?
__Deixe a menina em paz e nunca mais volte.
__Não! -gritou Asmodeus- A alma da menina é minha! Quero me saciar da dor
que ela sente!
__Bom, então só me resta voltar ao carro e pegar o meu livro que ensina como
invocar seu mestre.
A menina se contorceu e seus olhos voltaram ao normal:
__Você está blefando! -disse Laura com a voz mais angelical possível- Acha
que é assim que funciona? Chama e ele vem? Pessoas mais esclarecidas que
você já tentaram e não conseguiram. Por que você acha que conseguiria?
__Porque eu tenho você!
__Ahhh!! -gritou Asmodeus- Você é um maldito! Maldito! Mil vezes maldito! Eu
voltar, assim que a dor dela for insuportável, eu vou voltar.
__Se eu souber que você importunou essa menina de novo, eu juro por Deus
que vou fazer da sua vida um inferno ainda maior do que já é. Guarde essas
palavras!
Uma sombra abandonou o corpo da menina e rodopiou pelo quarto, quebrando
o espelho da cômoda, jogando tudo o quer havia sobre o móvel no chão,
explodindo a lâmpada do teto e desaparecendo pela janela fechada. As feições
da menina voltaram ao normal. A atmosfera pesada do quarto foi se dissipando
aos poucos.
__Boa sorte padre! -disse Guilherme estendendo a mão- Preciso ir.
__Como você sabia o nome do demônio? -perguntou Giovanni- Eu tentava
descobrir fazia meses.
__Asmodeus é o demônio da Luxúria. Só achei que ele tinha um ego muito
2
inflado.
VINTE E UM
O
Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro, mais
conhecido como Aeroporto de Cumbica, fica na cidade de Guarulhos,
uma das cidades satélites que compõem a chamada Grande São
Paulo. Como São Paulo é uma das dez maiores cidades do planeta, assim
também é o aeroporto: o maior da América Latina e um dos maiores do mundo.
O avião da Cathay Pacific Airways tocou suavemente a pista e taxiou até um
dos novos terminais. Lá um ônibus aguardava para transportar os passageiros
até a área de desembarque e retirada de bagagens. Entre os passageiros
estavam Halka Sano Yodha e Víctor Guimarães. Eles levavam vantagem sobre
os demais passageiros por transportarem apenas bagagem de mão, o que
significava que não iriam perder tempo esperando que as bagagens
chegassem até a área de desembarque. Quando eles entraram no saguão do
aeroporto, um calafrio percorreu a espinha de ambos e os cabelos da nuca
ficaram eriçados. Era um sinal de perigo e eles sabiam disso.
No outro extremo do saguão, um utilitário Engesa utilizado pelo Exército
Brasileiro parou e quatro militares fortemente armados desceram do veículo. O
que parecia ser o líder deles retirou os óculos escuros e olhou ao seu redor.
Era Josecley Alves.
Um policial federal aproximou-se do grupo
2 e se dirigiu a Josecley:
__Bom dia, tenente. É alguma operação especial?
__Sim! -respondeu Josecley- Estamos procurando dois traficantes de armas
que acabaram de chegar do Oriente. Estão disfarçados, mas são
extremamente perigosos.
__Posso colocar meu pessoal no apoio. Tem as fotos deles?
__Não tenho. Sei apenas que um é brasileiro e o outro é oriental e está vestido
com trajes de monge budista.
__Copiei. -respondeu o policial federal- Vou passar um rádio e o meu pessoal
pode localizá-los através das câmeras.
__Faça isso, oficial.
Josecley era extremamente inteligente. Não frequentou a escola porque desde
cedo queria ser bandido. Desafiar as instituições. Foi morto numa emboscada
por confiar demais nos companheiros. Como ele mesmo diz, os parças
cresceram os olhos pro seu negócio. Cley possuía todas as características de
um vilão: além da inteligência, não tinha medo de morrer, nem de matar; não
sentia remorso, pena, dó, compaixão. Não se apegava a amizades, nem a
mulheres. Seu único defeito era o seu enorme ego, que fazia parte do pacote
de inteligência que ele carregava.
O oficial da polícia federal estava ajudando e isso era bom. Iria poupar um
bocado de trabalho. Depois do serviço feito, ele seria eliminado como os
outros.
__Qual o seu nome, oficial? -perguntou Cley.
__Anderson.
__Positivo, Anderson. Me informe assim que os suspeitos forem localizados.
__Copiado.
Demorou apenas alguns minutos para que Yodha e Guimarães fossem
avistados caminhando pelo corredor que interliga os terminais.
Os homens de Josecley eram tão desajustados quanto ele. Com um quase
imperceptível sinal, eles começaram a correr em direção à dupla, armas em
punho.
__Anderson, obrigado pela sua ajuda. -disse Josecley.
Em seguida apontou sua arma para o rosto do policial federal e disparou. O
homem caiu sem vida no chão. Um leve sorriso apareceu no rosto de Josecley.
Isso era o que ele mais gostava de fazer.
O som do tiro e a cena de um homem sendo morto em pleno terminal
aeroviário causou pânico entre os passageiros. As pessoas começaram a
correr para fugir de um possível ataque e abandonaram malas e outros
pertences pelo caminho. Uma tremenda confusão acabava de se instalar no
Aeroporto de Cumbica.
Os três capangas de Josecley correram pelo corredor que interliga os terminais
atirando em tudo que tentasse barrar o caminho deles. Corriam na direção de
Yodha e Vítor, enquanto Guilherme e Fernanda andavam apressadamente
2
vindos do outro extremo do terminal. Não perceberam que, a poucos metros
dali, sentado nas cadeiras, estava um homem vestindo um hábito marrom
semelhante ao que os monges franciscanos usam.
Os capangas pararam ao avistar Yodha e Victor. Apontaram as armas e iam
disparam, quando o homem sentado, aparentando ser um monge, levantou-se,
já vestindo o capuz do hábito que cobria todo o seu rosto, e colocou-se entre
os capangas de Josecley e a dupla que acabara de desembarcar. No lugar dos
olhos, o suposto monge tinha faíscas azuis saindo das órbitas. Retirou do
hábito uma espécie de varinha feita de osso e madeira e apontou para o teto
fazendo movimentos circulares enquanto dizia palavras incompreensíveis.
Todas as lâmpadas do terminal e arredores explodiram enquanto uma imensa
esfera de energia se formava entre ele e os capangas de Josecley. A esfera
culminou numa explosão de luz que cegou momentaneamente todos nas
proximidades e dela saíram três animais enormes que pareciam ser uma
mistura de cão da raça Rottweiller com tigre, porém do tamanho de um cavalo.
As feras eram ameaçadoras e soltavam saliva enquanto rosnavam e olhavam
para os assassinos. Os homens de Josecley começaram a atirar, porém as
balas não surtiam efeito contra aqueles animais, que avançaram contra o grupo
e, em segundos, destroçaram os homens.
O monge mago virou-se para Yodha e Victor e apontou a direção que ambos
deveriam seguir. Não precisou dizer uma palavra sequer. Os dois correram o
mais que podiam. Antes de abandonar o terminal, no entanto, os dois viraram-
se para ver o que havia acontecido ao misterioso homem. Ele já não estava
mais lá.
__Vocês dois, venham com a gente se quiserem viver!
Eram Guilherme Romanov e Fernanda Rivetti.
__Quem são vocês? -perguntou Victor Guimarães- E por que aqueles homens
queriam nos matar?
__Vamos responder a todas as perguntas, mas antes temos que dar o fora
daqui. Esses caras não vão parar enquanto não terminarem o que começaram.
Os quatro entraram no carro de Fernanda e partiram.

VINTE E DOIS
_M as que merda era aquela?!?!?! -perguntou Victor Guimarães,
quebrando um silêncio de vários minutos- Por que os militares
querem apagar a gente? E quem era aquele doido com olhos de
faísca. Parece personagem de história em quadrinhos. E quem são vocês,
afinal?
Os quatro estavam no apartamento de Guilherme Romanov e o próprio
Guilherme esperou que a adrenalina de todos baixasse para, então, começar a
explicar tudo.
__Calma ai, colega! -disse Fernanda- A parada é mais sinistra do que você
pode imaginar. Há quarenta e oito horas ninguém aqui se conhecia e agora
estamos juntos. Pode apostar que isso tudo não é obra do acaso.
__E você, quem é?
__Meu nome é Fernanda e eu sou advogada. Tinha uma vida normal até
ontem, mas aí tudo mudou. Conheci o Guilherme, que é professor, e agora nós
estamos numa espécie de gincana para impedir o Apocalipse, o fim do mundo
como a gente conhece hoje.
__Moça -disse Victor- Isso é tudo baboseira!!! Não existe Apocalipse. E se
existe um Deus, ele tá pouco se lixando pra nós. E o mundo como a gente
conhece não vai acabar porque já acabou faz tempo. Acabou por causa da
poluição, da ganância, da soberba, da luxúria e da maldade do ser humano. E
Deus não tem nada a ver com isso.
__Você acredita no Diabo, amigo? -perguntou Romanov.
__Victor. Meu nome é Victor. Não sou seu amigo. E também não acredito no
diabo.
__Pois devia, Victor. Porque ele acredita tanto em você que mandou te matar
lá no aeroporto.
Victor Guimarães voltou a ficar em silêncio.
__Existe uma pedra preciosa. Uma gema azul chamada de Sacro Mare
Oceanum. Antes desse nome em latim, que quer dizer...
__Sagrado Mar Oceano. Eu estudei latim.
__Ótimo! -continuou Guilherme- Antes desse nome a pedra tinha o nome de
Olho Azul de Hórus. Foi presumivelmente encontrada no Egito há milhares de
anos atrás e foi amaldiçoada pelo próprio Lúcifer.
__Com qual propósito??
__Levar à extinção metade da população2 mundial; usurpar o trono de Deus;
abarrotar o Umbral de almas perdidas. Entre outras coisas. Ao longo dos
séculos essa pedra foi ganhando mais e mais poder até chegar nesse século
pronta pra causar um grande estrago. Nas mãos certas, ou erradas, pode levar
a uma guerra nuclear ou algo ainda pior.
__E quanto ao “olhos de faísca”? -perguntou Victor- Que apito ele toca nessa
parada toda? Ele joga no seu time?
__Eu ainda não sei. Nem sei quem é esse cara. Mas ele não me é estranho.
__Uma coisa eu sei: -respondeu Victor- seja quem for o cara, ele tem muito
poder. Muito mesmo.
__E o chinesinho? -perguntou Guilherme, apontando para Yodha que
examinava o notebook de Guilherme ligado sobre o rack, no canto do
apartamento- Ele fala a nossa língua?
__Fala melhor que eu e você juntos. Eu vim com ele do Camboja pra cá. Só sei
que é um monge budista. Ele não é de falar muito.
__Qual o seu nome, garoto? -perguntou Guilherme
__Halka Sano Yodha, que significa, na sua língua, mais ou menos “Pequeno
Guerreiro da Luz”. Nasci num Nepal subjugado, torturado e humilhado por um
gigante chamado China, que acha que tem poder sobre todos. Mas o Nepal é o
teto do mundo e um dia vai cair na cabeça dos chineses.
Victor e Guilherme se olharam:
__Entendeu? -perguntou Victor.
__Yodha, posso te chamar de Yodha, não é? -perguntou Guilherme- O negócio
é o seguinte, você não pode usar suas vestes de monge enquanto estiver
conosco. Você quase caiu duas vezes enquanto corria pelo terminal do
aeroporto, porque tropeçou na sua roupa. Vamos sair e comprar calças e
camisetas pra você.
__Eu ainda não decidi me juntar ao grupo de vocês. O Diabo é uma invenção
do Ocidente que simplesmente não existe no Budismo. Existe o Inferno, que é
um dos seis Reinos da Consciência, mas ele é um lugar para onde vão as
pessoas de má índole, aquelas que desenvolveram um apego muito forte ao
mundo material e também aquelas que desejam demais continuar vivas e
encontram no inexorável destino da morte a fonte de todas as suas angústias.
__Caramba!! -exclamou Vítor- Com quem você aprendeu nosso idioma?
__Com um filósofo português.
__Agora está explicado! -continuou Guilherme.
__Deixem o garoto em paz! -exclamou Fernanda- ele teve uma semana
intensa, pelo que a gente viu. Precisa descansar.
__Está bem! -ponderou Guilherme- Só tenho mais uma pergunta pra ele.
Olhou para o pequeno monge, que mais parecia um nerd de origem asiática
que acabara de passar no vestibular de uma grande universidade:
__O que mais você sabe?
__Que a pessoa que estava no aeroporto não era um fantasma, porque foi
2
filmada pelas câmeras de vigilância do terminal.
__E como você sabe isso? Você hackeou o sistema de vigilância do aeroporto?
__Calma, professor. -respondeu Yodha- Eles nunca saberão. E tem mais: essa
pessoa consegue manipular tempo e espaço, invocar seres de outras
dimensões e desaparecer sem deixar vestígios.
__Ele é um mago. -explicou Victor- E um mago bem poderoso.
Guilherme olhou para a tela do computador e fitou aquele rosto com olhos que
emitiam faíscas azuis. Um rosto que jamais seria encontrado por qualquer
inteligência de qualquer país. Mesmo assim, um rosto que lhe era familiar.
Familiar demais.
__Outra coisa importante: -continuou Yodha- Os homens que queriam nos
matar não eram do exército. A Polícia Federal comparou os rostos filmados
com os arquivos policiais dos estados e descobriu que os homens mortos eram
na verdade bandidos procurados em vários estados. O que parecia ser o líder
deles deu confirmação positiva para um assassino, estuprador e traficante
chamado Josecley Alves. E agora vem a parte bizarra: -disse o pequeno
monge- O tal Josecley está morto, no necrotério do centro de São Paulo.
__Espera. -disse Fernanda- Tem uma parte que eu não entendi. Você disse
que a polícia comparou os rostos filmados com os arquivos policiais. Por que
ela fez isso se os homens morreram no local? Eles morreram, não morreram?
__Nós não ficamos lá para ver. -respondeu Guilherme- Mas acho que
morreram.
__Os corpos, ou o que sobraram deles, foram removidos pelo próprio Josecley.
-continuou Yodha- Parece que o nosso misterioso amigo mago cria uma
espécie de Pulso Eletromagnético ao invocar esses seres. Esse PEM desliga
câmeras, alarmes e até eletricidade momentaneamente. É por isso que as
filmagens terminam antes que a gente possa ver como eram essas criaturas.
Não tem nada na rede, nem mesmo filmagens de celular.
__Anota o endereço do necrotério. Vou até lá conferir essa história do tal
Josecley.
__Eu vou com você! -prontificou-se Fernanda.
__Tem certeza? Não é um lugar bom para se visitar.
Fernanda assentiu com a cabeça.
__Tenho.
__Quanto a vocês dois, preciso saber onde está essa pedra. Precisamos dela.
Descubram como podemos fazer para roubá-la.
__Roubar?!?!? -perguntou Victor- Não me parece uma boa ideia...
__Se você tiver uma ideia melhor. Ou trinta milhões de euros pra comprar,
sinta-se a vontade.
__Não tenho nem trinta euros.
__Foi o que pensei. Não abram a porta pra ninguém. Não tenho amigos que
me visitem, portanto ninguém virá aqui. Tem o que comer na geladeira e no
freezer. Podem pegar o que quiserem.2No gabinete do banheiro tem toalhas e
sabonetes. Podem usar o chuveiro. Podem usar o computador e a tevê. Mas
não saiam do apartamento.
__Você manda, papi. -respondeu Victor.
VINTE E TRÊS
_S e liga no que eu vou te falar. -disse Josecley- Um cara super sinistro
surgiu do nada. Criou uma bola de luz e dela saíram uns bichos muito
mais sinistros que o cara. Esses bichos fizeram picadinho dos parças
que eu arrumei. Tive que recolher o que sobrou dos meus parças com uma pá.
Você tem um problema. E um problema dos grandes.
__VOCÊ é que tem um problema!!! -exclamou Lúcifer furioso- Aquele cara,
como você o chama, é um Mago. Um ser humano que aprendeu a Arte da
Magia, a Ars Goetia, a Alquimia, extremamente graduado em todas as Escolas
de Mistérios do Oriente e do Ocidente. Ele tem séculos de existência e
provavelmente viverá mais alguns séculos. Transita entre os mundos espiritual
e material e se mistura com os locais nos dois mundos sendo impossível
detectá-lo. Eu sou mais poderoso que ele -havia uma pontada de ciúme na fala
do rei do inferno- só não posso fazer o que ele faz porque estou preso a regras
arcaicas ditadas por um Deus que se acha todo-poderoso. Mas isso está
prestes a acabar.
__Tá bom. Tá bom. Mas e o que a gente faz agora?
Lúcifer fez surgir do nada dois dados em sua mão e os jogou sobre a mesa.
Antes que os dados rolassem sobre a mesa, um tabuleiro surgiu embaixo
deles. Havia um nome no tabuleiro: O 2 JOGO DO APOCALIPSE. Os dados
rolaram e ambos deram seis. Ele fez correr um peão por doze casas.
__Ops -disse ele- o jogo continua e parece que é a minha vez de tirar uma
carta.
Uma carta do jogo materializou-se na sua mão:
__”Pegue a pedra de Romanov.” -disse ele lendo a carta- “Seu oponente irá
roubar a pedra. Espere que ele o faça e, em seguida, roube a pedra dele. Não
poupe recursos.”
Josecley assistiu atônito a toda aquela teatralidade. Depois balançou a cabeça:
__Meu, tu é muito sinistro. Não entendi patavina.
Lúcifer assumiu a sua forma demoníaca, fazendo com que Josecley
encolhesse na cadeira.
__Mas que inferno!!! Você vai seguir Romanov e quando ele puser as mãos na
pedra, você vai tirá-la dele. Entendeu?!?!?
__Ahhhh tá!!! Agora entendi.
__Junte alguns homens. Vou te dar o endereço de onde pegar mais dinheiro.
Use a grana para comprar armas, munições e explosivos. Faça o maior estrago
possível e destrua tudo o que estiver no seu caminho. Vamos avançar umas
casas no Jogo do Apocalipse.
__E se aquele mago aparecer? O que eu faço?
__Vou te dar o poder de repelir aquelas criaturas já que elas não poderão ser
mortas pelas armas da Terra. Mas, para isso, é preciso que seu grupo
permaneça próximo a você.
A imagem de Lúcifer ia se desvanecendo. Antes de desaparecer de vez, ele
ainda disse:
__Tente matar todos os membros do grupo de Romanov.
__Pode deixar. Vou fazer um estrago como nunca se viu por aqui.
__Mas não esqueça: eu quero Romanov e a garota vivos!! Que graça teria um
jogo sem oponentes.

VINTE E QUATRO
F
ernanda Rivetti e Guilherme Romanov chegaram ao Instituto Médico
Legal central de São Paulo. Embora fosse o central ele não ficava
exatamente no centro. Era um edifício que fazia parte do complexo
hospitalar do Hospital das Clínicas de São Paulo, um conjunto de edifícios
hospitalares praticamente interligados que ocupavam quase toda a extensão
da avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, no bairro de Cerqueira César. A
avenida era curta, com uma extensão de aproximadamente dois mil metros,
ligando outras duas importantes avenidas de São Paulo, a Rebouças e a
Teodoro Sampaio.
Guilherme queria ter certeza de quem era seu oponente. Uma pessoa viva
poderia ser morta num confronto. Já uma pessoa morta não poderia morrer de
novo. Se a pessoa que liderava o grupo era um bandido morto e tão mau como
noticiavam os jornais, o cuidado deveria ser dobrado.
O necrotério central parecia uma repartição pública, pelo menos na entrada.
Divisórias de vidro e Eucatex separavam as muitas salas. Médicos legistas
caminhavam pelos corredores com toucas e aventais verdes. Obviamente
havia uma entrada para os cadáveres separada da entrada para os vivos. Um
entra e sai de pessoas, a maioria parentes de vítimas de crimes violentos ou
acidentes. Mulheres idosas costumavam sair dali aos prantos, algumas
desmaiavam.
Era um local de dor e sofrimento. Guilherme já havia experimentado essa
sensação quando estava no Umbral. Lembrou das cicatrizes nas costas e,
instintivamente, levou a mão até elas, procurando senti-las.
__Última chance, Fernanda. -disse ele, sem um pingo de certeza se queria
realmente fazer aquilo.
Ela segurou seu braço com firmeza:
__Estou com você.
O necrotério também não era novidade para Fernanda Rivetti. Estivera ali
quando criança. Seus pais morreram 2num violento acidente de carro. Uma
viagem em que decidiram não leva-la e até hoje ela nunca soube o motivo. Não
pôde entrar porque não tinha idade e ficou aguardando com o tio enquanto a tia
entrava e reconhecia os corpos. A segunda vez foi durante o curso de Direito,
uma visita técnica para reforçar o aprendizado em estudos forenses. Ela
detestava o lugar que só lhe trazia dor e tristeza, como para a maioria das
pessoas que para lá vão.
__Bom dia. -disse Guilherme dirigindo-se ao atendente com cara de poucos
amigos- Procuro um parente. Um primo de segundo grau chamado Josecley
Alves. Soube que ele foi levado para cá. Posso ver o corpo?
__Vocês jornalistas vêm sempre com a mesma conversa fiada!!! -resmungou o
atendente em cujo crachá se lia Rui- Tudo por uma matéria, um furo de
reportagem. Me dá licença que eu tenho mais o que fazer.
Guilherme agarrou o braço do atendente com muita força:
__Escuta Rui. Seu nome é Rui, não é? -perguntou Guilherme com a voz tão
baixa que parecia um sussurro. O atendente confirmou com a cabeça- Eu sou
professor e a moça é advogada. Se o corpo sumiu, não foi culpa sua nem de
ninguém, mas alguém tem que ser responsabilizado. Vamos fazer o seguinte,
eu te dou “três peixinhos azuis” e você me leva na surdina lá para dentro. Cinco
minutos depois a gente sai e você nunca mais ouvirá falar de nós. Tá certo,
Rui?
__Venham comigo. -respondeu o atendente.
Os três entraram por uma porta que dava num corredor extenso, interligado por
várias outras portas. Rui abriu uma das portas e os três entraram. Parecia ser
uma área de descanso de funcionários. Havia uma cafeteira elétrica ligada com
café no interior da jarra. Uma geladeira e um micro-ondas. Completava o
ambiente uma mesa simples e quatro cadeiras.
__Cinco peixinhos. -disse Rui, referindo-se às notas de cem reais na cor azul,
com a estampa de um peixe dourado nelas- Eu quero cinco peixinhos.
Guilherme Romanov olhou para Fernanda Rivetti que assentiu com a cabeça.
Um gesto tão imperceptível que o próprio Guilherme demorou para entender.
Ele tirou um maço de notas de cem reais do bolso e contou cinco. Ia entregá-
las, porém esquivou-se:
__Primeiro o cadáver.
__Lá não poderá me entregar isso. -disse Rui se referindo ao dinheiro- Tem
câmeras de vigilância. Terá que confiar em mim.
__Se você aprontar comigo eu volto aqui e a conversa não será tão amigável.
__Já disse: você vai ter que confiar em mim.
Os três abandonaram a saleta de descanso e se dirigiram para o “morgue”, a
área onde ficavam as gavetas que guardavam os corpos até o momento do
sepultamento. Era uma área enorme, com as paredes cobertas de gavetas
refrigeradas onde ficavam os cadáveres. No centro da enorme sala havia duas
mesas de autópsia. Ambas estavam vazias.
__Gaveta B-12. Copiou? -perguntou Rui.
Guilherme sorriu. Imaginou que talvez o sonho de vida do atendente fosse ser
2
policial. Pelo menos estômago para ver cadáveres ele tinha.
__Copiei. -respondeu Romanov.
__Vocês têm cinco minutos. Então sejam rápidos. -continuou Rui, enquanto
caminhava em direção à saída.
Ali, naquela ampla sala, estavam somente Guilherme e Fernanda. Rui abriu a
porta com tanta força que a maçaneta foi chocar-se com a parede. Guilherme
subitamente sentiu um forte arrepio enquanto uma sensação, um insight,
dominava seu cérebro. A porta do morgue foi se fechando lentamente, como se
caçoasse de ambos.
__A porta!!! -gritou ele, enquanto corria em direção a saída- Não pode fechar!!!
Por mais rápido que fosse, Guilherme não conseguiu evitar que a porta
fechasse. Ambos ouviram um clique e, imediatamente, entenderam o que
estava acontecendo. Guilherme tentou, em vão, abrir a porta, mas ela estava
trancada.
__Ai meu Deus! -exclamou Fernanda- Ai meu Deus! Meu Deus! Vai começar
tudo de novo, não vai?
__Infelizmente...-respondeu Guilherme.
Esperaram por cinco minutos e nada. Nenhuma gaveta se abriu. A energia
elétrica não acabou. Nenhum cadáver apareceu no caminho deles. Guilherme
procurou a gaveta B-12 e, quando a encontrou, abriu-a. Não havia nenhum
cadáver lá dentro. Olhou a ficha onde constava o nome de Josecley Alves.
Assassinado com doze tiros de arma automática, calibre nove milímetros.
__Isso está ficando interessante. -disse Romanov.
__Se “interessante” pra você significa apavorante, então tá!
A porta se abriu e Rui entrou.
__Você nos trancou aqui dentro! -exclamou Fernanda, visivelmente irritada.
__Ah, me desculpe. Esqueci de avisar. Essa maçaneta tem um macete: você
tem que puxar e, em seguida girar e empurrar. Ai ela abre.
__E por que você não disse antes?
__Justamente porque esqueci.
__Obrigado Rui. -continuou Guilherme- Já tenho o que preciso.
Fernanda e Guilherme deixaram o necrotério e entraram no carro, que se
encontrava no estacionamento subterrâneo abaixo da avenida Doutor Enéas
de Carvalho Aguiar. Fernanda manobrou o automóvel e ia deixar o
estacionamento quando sentiu um odor extremamente desagradável.
__Nossa! Que cheiro é esse?
__Acho que é algum cachorro morto. -respondeu Guilherme.
__Não é lá fora. É aqui dentro. Acho que você pisou em alguma coisa. Olhe a
sola dos seus sapatos.
__Que besteira, Fernanda! É lógico que não sou eu.
Guilherme Romanov ia verificar a sola do seu sapato quando uma mão pútrida,
meio esverdeada. Segurou a sua 2testa, enquanto outra mão, também
esverdeada segurada uma pistola automática com o cano apontado para sua
têmpora esquerda.
Fernanda Rivetti não conseguiu impedir o grito de pavor e o descontrole do
veículo, quase batendo nos automóveis estacionados.
__Eu vou estourar os seus miolos aqui no vidro do carro e depois vou comer
bem devagarinho o seu cérebro ainda quente.
Fernanda fez um gesto de tentar tirar a arma que estava apontada para a
cabeça de Guilherme, para que ele pudesse reagir e se defender, mas
Guilherme segurou o seu braço.
Ela o olhou com um espanto quase sobrenatural. Não estava entendendo
nada.
__Eu acho que não. O seu chefe não vai ficar nada contente se você fizer isso.
__Você não conhece o meu chefe.
__Ah, eu conheço sim. Ele te trouxe do mundo dos mortos e te prometeu um
monte de coisas, não foi? Você acha mesmo que seu chefe, conhecido como o
Enganador, o Rei das Mentiras, vai te dar o que prometeu?
__Já está me dando. Olha aqui, eu estou vivo.
__Está mesmo?!?!? Olha pra você. Nem os urubus querem a tua carniça de
tanto que está podre.
__Isso vai mudar. Eu estou aqui para te dar um recado. Presta atenção, seu
filho da puta!
__E qual é o recado, imbecil?
__Nem tenta pôr suas mãos de merda naquela pedra. Se você encostar na
pedra, vou arrancar as suas bolas e enfiar na sua goela.
__Pedra?!? Que pedra? Você sabe de alguma pedra, Fernanda?
__Não... Não sei nada sobre pedras...
A mão de Josecley segurou com mais força a testa de Guilherme:
__Não banca o engraçadinho comigo, seu puto do caralho!!! Você entendeu o
recado, mas eu vou repetir mesmo assim: se você colocar as mãos naquela
pedra, acabo com a tua raça, seu professorzinho de merda!
Aquele insulto foi demais para Guilherme Romanov. Seu sangue, que até então
permanecera gelado, ferveu em segundos. Ele apertou a alavanca ao lado do
banco e o encosto foi com tudo para trás. Ele conseguiu se desvencilhar de
Josecley, virou-se rapidamente e foi para o banco de trás. Fernanda assistiu a
cena atônita, enquanto tentava dirigir seu carro pela Avenida Rebouças.
Guilherme desferiu um potente soco no rosto de Josecley e conseguiu arrancar
boa parte da pele que estava se deteriorando. O morto-vivo riu uma gargalhada
insana:
__Imbecil!!! Você não pode me matar!!!
Guilherme puxou a maçaneta da porta 2 traseira e conseguiu chutar Josecley
para fora do veículo, que saiu rolando pelo asfalto da Avenida Rebouças.
__Não posso te matar, mas posso te jogar para fora do carro, imbecil!!!
Guilherme voltou para o banco dianteiro do passageiro, sob o olhar ainda
atônito de Fernanda.
__O que foi? -perguntou ele.
__Algumas horas atrás eu te chamei de professorzinho de merda. Você teria
agido assim comigo?
Guilherme Romanov demorou pra responder.
__Não precisa dizer nada. Já entendi.
Ele sorriu:
__Jamais faria qualquer mal a você. Jamais machucaria você. E jamais
permitiria que alguém machucasse você.
__E, no entanto, nós estamos numa espécie de gincana do Apocalipse com o
próprio demônio. Claro que nada vai acontecer comigo!!
__Eu sei como se sente. -respondeu Romanov- Gostaria que isso não
estivesse acontecendo e que não tivessem escolhido a gente. Eu mesmo
questionei a minha escolha várias vezes. Não acredito ainda ser capaz de
salvar o mundo. Mas, agora, não tem mais volta. Eles virão atrás de nós com
tudo. E digo mais: eles sabem que vamos roubar a pedra.
__E como você sabe disso?
__Porque eles não querem que roubemos.
__Isso tá parecendo uma armadilha...
__Parecendo não. É uma armadilha. Assim que a gente roubar a pedra, eles
nos matam.
__Nossa!!! -exclamou Fernanda Rivetti- Isso é muito animador.
__Não é??? -havia ironia na voz de Guilherme.

Josecley levantou-se do asfalto. Estava todo ralado. Ouviu uma buzina e,


quando virou-se, foi atropelado por um ônibus que o jogou a dezenas de
metros. O motorista freou bruscamente, enquanto olhava para o cadáver de
Josecley estirado no asfalto. O morto-vivo levantou-se novamente, sacou sua
pistola do coldre e foi em direção ao ônibus atirando. Todos os tiros foram
certeiros. Dois no rosto e o restante no peito. O motorista estava morto.
O caos se instalara na Avenida Rebouças. Os carros que desciam, pararam e
tentaram dar marcha a ré, sem sucesso, causando vários acidentes de trânsito.
Pessoas corriam e gritavam. Josecley aproveitou o caos e sumiu no meio da
multidão.

VINTE E CINCO
S
subitamente Guilherme se viu num lugar parecido com um deserto.
Estava no meio de absolutamente nada. O vento insistia em soprar o
topo das dunas de areia e levantar a poeira fina. Uma figura surgiu no
horizonte. Parecia vestida como um beduíno, porem suas vestes eram de uma
brancura surpreendente, mesmo para um deserto que estendia suas dunas de
areia fustigadas pelo vento até onde a vista podia alcançar. A pessoa
caminhava rápido e logo estava bem próxima, a ponto de Guilherme perceber
que se tratava de uma mulher.
Quando se aproximou, ela tirou o lenço que protegia sua cabeça e o rosto da
areia fustigante e os olhos de Guilherme encheram-se de lágrimas.
__Que bom te ver de novo, meu amor! -exclamou ela, com uma voz tão doce
que fez Guilherme desabar num choro profundo.
__Eu... eu... -Guilherme queria dizer tanta coisa, mas as palavras encontravam
dificuldade para ser articuladas. Ele jamais conseguiu superar a perda de sua
esposa e filhos.
__Eu sei o que quer dizer, meu amor. -disse ela com a voz tão doce que
parecia música aos ouvidos de Guilherme- Também senti a sua falta, não da
mesma maneira que você, mas senti. Venha! Pegue a minha mão. Quero te
mostrar uma coisa.
Assim que Guilherme segurou a mão de Vésper a paisagem se modificou.
Estavam em um lugar lindo, cercado de montanhas e escarpas. Vésper
apontou para o alto de um monte escarpado com encostas verticais,
praticamente inacessível. No alto, havia2 uma construção. Um mosteiro.
__Lá em cima existe o Monastério da Sagrada Trindade. Naquele mosteiro vive
um monge. O nome dele é Andreas Alexandropoulos. Seu caminho deve
cruzar com o dele. Ele revelará a você como destruir a pedra.
Guilherme Romanov olhou para o mosteiro encravado na pedra. Os mosteiros
gregos remontavam a Idade Média. Seus monges dedicavam-se a uma vida de
meditação, oração e reclusão. Isolados do mundo e mais conectados com
Deus.
__Outra coisa, -disse a esposa de Guilherme- agora que sua equipe está
formada, não deixe que nada os separe. Juntos vocês são mais fortes. Não se
esqueça disso.
A imagem de Vésper foi se desvanecendo até desaparecer por completo. Lá no
alto, um falcão voava displicentemente em busca de uma presa, um rato ou
esquilo, ou outra ave. Emitia o som característico das aves de rapina, o que
deveria gelar o sangue de qualquer presa. Uma leve brisa soprava, o que
contribuía para tornar o dia ainda mais frio.

Romanov abriu os olhos e notou que estava de volta ao seu quarto. Pelo
menos, aquela era a sua cama e aquele era o teto sob o qual dormia
praticamente todas as noites.
Dois nomes não lhe saíam da cabeça: Meteora e Andreas Alexandropoulos.
Levantou-se e se vestiu.
Na sala dormiam Yodha e Guimarães. Percebeu pela fresta da cortina da
janela que o dia começava a clarear. Onde estava Fernanda?
Lembrou. Foi pra casa dela na noite anterior. Precisava de roupas e de um
pouco de paz. Ficou preocupado e pensou em ligar, mas ainda era muito cedo.
Foi pra cozinha preparar seu café da manhã.
Enquanto a cafeteira coava o café, buscou informações no celular sobre
Meteora. Pacotes de viagens, hotéis, voos. Examinou o saldo de suas
aplicações bancárias através do aplicativo do banco. Dinheiro, ainda, não era o
problema. Ainda.
__”Deus proverá.” -o pensamento vinha constantemente a sua mente.-“Deus
proverá.”
__Deus proverá, é??? -disse ele em voz alta- Se eu não correr atrás, Deus não
proverá é nada.
__Falar sozinho é um hábito no Brasil? -perguntou o jovem monge budista
Yodha esfregando os olhos.
__Não. -respondeu Vítor Guimarães- É um hábito de pessoas preocupadas. O
que te preocupa, Romanov??
__Por enquanto, só a iminência do fim do mundo. Venham. Vamos tomar café
e pensar nos próximos passos.

2
Fernanda Rivetti acordou subitamente. Tinha sonhado a noite inteira com seus
pais, o que para ela não era um bom sinal. Seus pais tinham morrido num
acidente de carro quando ela tinha doze anos. Eles a deixaram com a tia e
viajaram para curtir uma segunda “lua de mel” e tentar salvar um casamento
que estava à beira da falência devido as brigas, discussões e falta de
compreensão de ambas as partes.
Todas as vezes que sonhava com seus pais, alguma coisa ruim acontecia em
seguida. Foi assim aos dezenove anos, quando viajou com a galera da
faculdade para curtir o Carnaval no litoral e o motorista do carro em que estava
perdeu o controle da direção. O carro saiu da estrada e despencou numa
ribanceira. Quebrou a perna e ficou três meses de “molho”. Duas amigas suas
não tiveram a mesma sorte. Morreram no local do acidente. Depois, aos vinte e
dois, quando esquiava em Las Leñas, no Chile, uma avalanche de neve pegou
ela e mais quatro esquiadores. Conseguiu sobreviver porque uma árvore ficou
no caminho da avalanche e lhe salvou a vida. Três dos esquiadores não
tiveram a mesma sorte. O último aviso foi aos trinta anos, quando visitou os
Estados Unidos em 2013. No quarto do hotel, sonhou com seus pais, que
pareciam tristes. Aquilo a incomodou profundamente. De manhã, quando
assistia a Maratona de Boston, em Massachusetts, sentiu uma angústia muito
grande e uma vontade incompreensível de ir embora. Poucos minutos depois
de ter deixado o local, ocorreu um atentado terrorista que matou muitas
pessoas e feriu outras tantas. Desde então, nunca deixa de dar ouvidos a
essas “mensagens subliminares” como ela mesma chama.
E agora, um novo sonho. Estava apavorada. E nem sabia pelo quê. Ou sabia.
Estava lidando com forças que iam além da sua compreensão. O demônio,
qualquer que fosse o nome dele, não fazia o trabalho sujo. Ele tinha capangas
para sujar as mãos de sangue. Ou morrer por ele. Ou morrer de novo por ele.
Se sentia desprotegida, frágil diante de um Mal tão grande. Guilherme estava
certo: o Mal quer a pedra para causar o Armagedon, o fim do mundo. O caos.
Se nós conseguirmos destruir a pedra, o mundo sobreviverá e os bilhões de
almas que nele habitam sequer saberão da nossa existência ou do que fizemos
para impedir que tudo virasse pó.
__”O que me preocupa é o que virá depois.” -pensou ela- “Não ficaremos
impunes por destruir uma pedra preciosa que vale milhões de reais.”
__Quer saber?? -disse ela em voz alta- Foda-se!!!
Fez uma pequena mala com as roupas e os acessórios que achava necessário,
vestiu-se confortavelmente com um jeans e uma camiseta, e saiu.
Entrou no seu carro, no estacionamento do prédio onde morava, deu a partida
e manobrou para sair. Não chegou sequer a tirar o carro da vaga. Uma van
parou bloqueando a saída do veículo e dela saíram quatro homens fortemente
armados com metralhadoras e rifles de assalto AK-47. Um deles baixou o lenço
com desenho de caveira que cobria parte de seu rosto. Era Josecley.
__Sai do carro!!!! -gritou ele- Sai da porra do carro agora!!!
Fernanda estava tão apavorada que não conseguia se mexer. O medo
paralisara e enrijecera toda a sua musculação. Na hora ela se lembrou do
sonho que tivera com seus pais. 2

Um dos homens disparou uma rajada de metralhadora no para brisa do carro e,


por pouco não a atingiu. Ele soltou um grito de pavor.
__Idiota!!! -exclamou Josecley- Podia ter matado ela. Quero essa mulher viva
para negociar pela pedra.
O homem foi até o carro e abriu a porta do motorista com violência. Em
seguida, puxou Fernanda pelo braço arrancando-a de trás do volante. Ela saiu
cambaleante e foi jogada no interior da van. Os quatro homens entraram em
seguida e a van arrancou em direção à saída.

Guilherme Romanov sentiu uma pontada forte na têmpora direita. Virou-se e


teve a impressão de ver o mago que aparecera no aeroporto de Cumbica ali na
sua sala de estar.
__Fernanda!!! -gritou ele.
Pegou o celular e ligou para o número de Fernanda. Uma voz masculina
atendeu:
__Alô.
Ele conhecia aquela voz. Era o capanga de Lúcifer. Josecley.
__O que você fez com a Fernanda, seu maldito???
__Nada ainda, mas você vai me trazer a pedra ou ela vai virar churrasco. E vai
ser um churrasco bem gostoso.
__Se você encostar num fio de cabelo dela...
__Você vai fazer o quê, seu professorzinho de merda?? Tu não tá em posição
de exigir nada, tio. Se liga no que eu vou te falar. Você vai me trazer a pedra e
eu liberto sua amiga. Te dou quarenta e oito horas pra conseguir roubar a
pedra. Se vira. E corre que os ponteiros do relógio não vão parar.
__Filho da puta!!!! Não importa quantas vidas o teu chefe vai te dar. Vou
acabar com todas elas!!! E pode esquecer. Não vou fazer nada até ouvir a voz
da Fernanda.
Ele ouviu um resmungo ao fundo.
__Fala pra esse palhaço que ele tem quarenta e oito horas.
__Guilherme, me desculpe...
__Tic, tac, tic, tac. -a voz de Josecley era carregada de cinismo e ironia.
O telefone foi desligado. Ele rediscou o número e uma voz avisou que o
aparelho estava fora de área ou desligado. Olhou para Yodha e Guimarães, os
olhos arregalados.
__O safado pegou a Fernanda. -disse Vítor Guimarães.
__Em troca da pedra. -completou Yodha.
__Quanto tempo? -perguntou Guimarães, perplexo.
__Quarenta e oito horas. Precisamos roubar a pedra e entregá-la pra esse
safado em dois dias, se não eles acabam com a Fernanda.
2
__Mas eu não entendo uma coisa: -disse intrigado Victor Guimarães- os caras
estão organizados, têm armas de grosso calibre e o chefe deles não pode
morrer. Então por que eles mesmos não vão atrás da pedra?
__Lúcifer pode ter dado uma nova vida para esse Josecley, mas faltou dar
inteligência. Assim, nós somos a melhor chance que ele tem de pôr as mãos na
pedra.
__E o que vamos fazer? -perguntou Yodha.
__Não temos escolha. Vamos dar a pedra a eles.

VINTE E SEIS
U m pensamento não conseguia sair da cabeça de Guilherme Romanov. Um
pensamento que tinha nome. E esse nome era Fernanda Rivetti.
Ele se sentia culpado por não ter lhe dado a devida proteção. Sabia que
Fernanda era forte, mas temia pela vida dela nas mãos de pessoas como
Josecley.
__”Se eles tocarem num único fio de cabelo da Fernanda, vão se ver feio
comigo!!!” -pensou ele.
__Então, Yodha, consegue descobrir onde está essa maldita pedra?
__Onde a pedra está não é o problema, Guillermo.
Yodha poderia falar fluentemente o português do Brasil e de Portugal, mas não
conseguia pronunciar Guilherme nem com reza brava.
__O problema são os inúmeros sistemas de alarmes que teremos de desativar.
Eu posso fazer isso, mas não com esse equipamento. -disse ele, apontando
para o notebook de Guilherme.
Yodha, sem seus trajes de monge budista, parecia mais um nerd de origem
asiática. Romanov não conseguia entender como um talento desse poderia se
ocultar atrás de uma vestimenta de monge. Para ele, era um desperdício. O
menino tinha memória fotográfica e um conhecimento profundo de computação
a um nível que ele jamais vira antes.
__E onde está a pedra?
__No cofre forte da Caixa Econômica Federal, na agência da Avenida Paulista.
__Cara, isso é impossível!!! -exclamou Victor Guimarães- Não temos a mínima
chance. Deve ser um dos cofres mais bem guardados de São Paulo.
2
__Nunca diga que é impossível, sem tentar. -respondeu Guilherme Romanov,
com os dentes cerrados.
__Então tá, professor!!! -continuou Victor- Me diz como vamos entrar na
agência e roubar a pedra de um cofre que deve ter uma porta de algumas
toneladas.
__Primeiro, precisamos conhecer a rotina do banco. Quando o cofre abre e
quando fecha. Quem é o gerente, quem são os funcionários, quem é a menina
da limpeza e quem é a menina que serve o café. Quais são as câmeras e quais
são os sistemas de alarme. Depois que a gente estiver entediado de saber,
podemos trabalhar num plano.
__Tá certo, professor. -disse Victor com a voz carregada de sarcasmo- Você só
esqueceu que conhecer a rotina do banco leva dias, às vezes meses, e temos
menos de quarenta e oito horas para tirar a pedra de lá e entregar para esses
canalhas.
__Victor... -disse Yodha, quase num sussurro- Você não está ajudando.
Victor Guimarães deu um profundo suspiro e com os dedos indicadores,
massageou as têmporas:
__Me desculpem. Estou nervoso. Minha irmã apareceu pra mim me dizendo
que eu ia salvar o mundo, mas esqueceu de avisar que uma parte do plano
consistia em roubar um banco.
__Nenhum de nós quer apodrecer na cadeia, Victor. Posso te garantir isso. E
estou aberto a sugestões. Se tiver alguma melhor...
Guilherme Romanov esperou alguns segundos e, então, virou-se para Yodha:
__Me passa a lista do que você precisa.
O jovem nepalês anotou numa folha de caderno os equipamentos que
precisava. Guilherme pegou o papel, dobrou-o e guardou no bolso da camisa.
__Volto em uma hora. Vou até a Santa Efigênia. Lá eu conheço um cara que
conhece um cara que conhece outro cara.

Fernanda estava apavorada. Tinha certeza absoluta de que aqueles homens a


matariam quando estivessem com a pedra. Sua sentença de morte estava
decretada. Ela tinha que pensar em uma saída. Tinha quarenta e sete horas
para se livrar daquela gente e o tempo estava correndo. Precisava, em primeiro
lugar, saber o que cada um deles pensava, conhecer suas rotinas. Descobrir
que esqueletos eles guardavam no armário. A primeira coisa que verificou era
que somente Josecley parecia um morto-vivo.
O restante do grupo era formado por bandidos beeeeem vivos.
Eles seguiam Josecley, ou porque era compensatório financeiramente, ou
porque o temiam devido a sua condição um tanto peculiar, ou por ambos os
motivos. Usavam fardas como se fossem soldados e portavam armas de
grosso calibre. Rifles de assalto AK-47 e pistolas automáticas calibre nove
milímetros faziam parte do arsenal deles. Fernanda conhecia bem essas
armas. Ela as estudara durante seu curso de direito e sabia que eram armas
usadas pelos traficantes de drogas. 2Observou atentamente o quarto onde
estava. Havia uma pequena mesinha de metal dobrável num canto com uma
única cadeira de metal, também dobrável, dessas que se usam em bares
vagabundos, e um colchão de solteiro feito de espuma, onde ela se encontrava
sentada.
Um colchão imundo, por sinal.
As paredes do quarto não tinham qualquer tipo de acabamento além de um
reboco de cimento e havia uma janela de metal que estava fechada com um
pequeno cadeado.
Fácil de arrombar.
Ninguém ficava no quarto com ela. Seus olhos verdes fitavam os olhos de
qualquer um que entrasse no quarto de forma tão profunda que chegavam a
intimidar. Por esse motivo, os homens a vigiavam de outros cômodos. Um
deles parou em frente à porta do quarto, pegou seu maço de cigarros e
acendeu um cigarro.
__Qual o seu nome? -perguntou Fernanda.
O homem virou-se e olhou para ela com desdém.
__Por que você quer saber?
__Para te pedir um cigarro. Não gosto de pedir para estranhos.
O homem retirou um cigarro do maço e o entregou para Fernanda.
__Meu nome é Robson. -respondeu o homem fazendo menção de riscar o
palito de fósforo para acender o cigarro.
Fernanda balançou a cabeça:
__Se importa que eu mesma acenda? Uma vez um cara foi acender o cigarro
pra mim e queimou minha sobrancelha.
Sem dizer nada, Robson jogou a caixa de fósforos para Fernanda que pegou,
sem que ele visse, três palitos de fósforo. Guardou dois e com um acendeu o
cigarro.
__Obrigada, Robson.
Fernanda deu uma tragada no cigarro e se engasgou, tossindo sem parar. Ela
nunca tinha fumado na vida.
__Desculpa. -disse ela, com o cigarro no canto da boca- Faz dez anos que não
dou uma tragada dessas. Perdi o costume. Me diz uma coisa, Robson, não tem
como afrouxar esse enforcador de plástico. Tá doendo pra cacete.
__Ahh tá!!! -exclamou o capanga de Josecley- E eu sou a Branca de Neve!! Se
liga garota, o enforcador é o menor dos seus problemas!
A penumbra do quarto estava aumentando e Fernanda deduziu que estava
escurecendo. Tinha perdido a noção do tempo naquele lugar imundo.
Josecley apareceu na porta do quarto. Na penumbra sua aparência era ainda
mais medonha.
__Escuta aqui garota, é bom seus amigos me trazerem a pedra rapidinho. Meu
dedo está coçando demais para apertar o gatilho. E é bom você saber que sem
a pedra tua vida não vale um saco de merda.
2
__Tomara que eles não consigam pegar a pedra. E o único saco de merda que
eu vejo aqui está parado, de pé, na porta do quarto.
Josecley soltou uma gargalhada que arrepiou cada centímetro da pele de
Fernanda.
__Veremos.

A noite avançou e o cansaço começava a tomar conta de Fernanda. Sua


situação parecia estar caminhando para um abismo. Estava apavorada. Queria
chorar, mas as lágrimas simplesmente não saíam. Percebeu que todos
dormiam, menos um dos capangas de Josecley, que estava de vigia. No
entanto, o homem que a vigiava já estava abrindo sua sexta lata de cerveja e o
sono começava a se apoderar de seu corpo. Ela percebeu que, a cada vez que
ele piscava, seus olhos demoravam-se mais para abrir. Até que fecharam e
não abriram mais.
Aquele era o momento.
Acendeu o primeiro palito de fósforo e o colocou num pequeno buraco que
havia no reboco da parede. Em seguida colocou o enforcador que atava suas
mãos acima do fogo e viu o plástico amolecer até se romper, não sem antes
causar uma queimadura dolorosa em seus pulsos. Levantou-se e, como uma
felina, puxou o colchão vagabundo até a entrada do quarto, acendeu o
segundo palito de fósforo e o jogou sobre o colchão que, logo começou a fazer
muita fumaça. Mas o fogo não aparecia. Ela olhava ao seu redor apavorada.
Deveria haver alguma coisa no quarto que ela pudesse usar. Uns jornais
velhos espalhados pelo chão poderiam servir. Juntou-os e os jogou sobre o
colchão.
Nada.
Olhou novamente e, nesse momento, percebeu uma garrafa pequena e bojuda
de plástico, contendo aguardente. O conteúdo estava pela metade.
Sorrateiramente, ela pegou a garrafa, abriu e lançou sobre o colchão e os
jornais velhos o líquido. Esperou, mas nenhuma chama apareceu. Ela quase
gritou de desespero, quando uma enorme labareda subiu do colchão.
Quando o capanga de Josecley acordou de seu cochilo, viu a entrada do
quarto em chamas e percebeu que tinha vacilado na sua vigia.
__Mas que porra é essa?!?!?
Ele sacou a arma, mas não conseguia ver onde estava Fernanda. A fumaça
extremamente tóxica da espuma não deixava. Ela tinha alguns segundos até
que ele despertasse de vez e corresse para apagar o fogo. Pegou uma presilha
que usava para prender o cabelo e tentou abrir o cadeado da janela que dava
para a rua. Desperdiçou seus preciosos segundos numa tentativa vã. A fumaça
estava tirando-lhe os sentidos. Iria desmaiar em breve. Sentiu seu corpo
enfraquecer e as pernas já não conseguiam mais suportar seu peso.
Nesse momento uma esfera de luz surgiu no quarto e dela saiu um homem de
barba grisalha e olhos brancos que brilhavam como duas lanternas. Usava um
manto preto com um capuz que não deixava ver mais detalhes da sua
fisionomia. Ele a segurou e passou o2 manto em volta de ambos, girando e
desaparecendo no ar, tão rápido quanto apareceu.
Quando Fernanda Rivetti deu por si, estava dentro do túnel do Anhangabaú,
sentada na calçada, completamente atordoada. Os carros passavam em
profusão por aquela via que era uma importante artéria viária do centro de São
Paulo. Nesse momento uma moto parou e o piloto retirou o capacete. Era
Guilherme Romanov.
__Como você me encontrou? -perguntou ela, cada vez mais sem entender
nada.
__Você não vai acreditar, mas eu estava na rua Santa Efigênia quando senti
alguém enfiar alguma coisa no meu bolso. Era um celular e eu só senti quando
ligaram e ele começou a vibrar. Olhei e tinha uma mensagem para pegar você
exatamente aqui e exatamente nesse horário.
__Mas... mas...
__Sobe logo!!! Vamos cair fora daqui antes que alguém nos assalte.
VINTE E SETE
L
úcifer andava de um lado para outro. Josecley e seus capangas podiam
ouvir os dentes do príncipe dos infernos rangerem. Ele não poderia
acreditar na incompetência de seus comandados.
__Eu me pergunto como vocês podem ser tão idiotas a ponto de deixar uma
garota de uns sessenta quilos escaparem pelos seus dedos?
__Pera lá!!! -exclamou Josecley- Ela teve ajuda. E não foi qualquer ajuda...
__Aquele mago? -perguntou Lúcifer.
__Ele mesmo. Surgiu do nada, pegou ela e desapareceu com a mesma rapidez
que surgiu.
2
Aquela figura misteriosa estava começando a aborrecer Lúcifer. Quem era
aquele mago e o que ele exatamente queria? Que poderes ele tinha? Quem foi
seu mestre?
__Vai ver, ele é o mago Merlim. -disse Robson.
__Deixa de ser besta, rapaz!!! -exclamou Josecley- Merlim é lenda. Não existe.
__Não. -disse Lúcifer, coçando o queixo- Talvez o seu garoto não esteja tão
errado assim...
__O quê?!?!? Você acha mesmo que o cara é o mago Merlim?? Você só pode
estar brincando!!!
__Não acho. Mas ele pode muito bem ser uma figura lendária. Alguém que
realmente existiu, mas acabou sumindo e teve a vida envolta em lendas.
Os homens ficaram se olhando sem entender muita coisa.
__Bom, não importa. Ninguém é imortal. E, com certeza, esse cara também
não é. Quanto mais ele se expõe, mais acabamos sabendo sobre ele. Uma
hora vamos conseguir nos livrar desse empecilho.
VINTE E OITO
C om a Fernanda Rivetti em segurança, a pedra poderia esperar.

__Não Yodha. Nós ainda vamos roubar a pedra. Só que, por enquanto, ela
está mais segura no cofre do banco.
__O Guimarães tem razão. -refletiu Romanov- A pedra não vai a lugar nenhum,
mas nós vamos. Precisamos descobrir como destruí-la e só vamos saber indo
até Meteora, na Grécia.
Victor Guimarães demonstrou visivelmente não ter gostado da ideia.
2
__O que foi Guimarães. -perguntou Guilherme- Parece que eu falei bobagem.
__Não é isso. -respondeu Victor- Eu conheço boa parte da Grécia. E,
sinceramente, pensei em ficar por aqui. Tenho contas a acertar com meu
passado...
__Entendi. Todos nós temos contas a certar com o passado. Tá bom. Como eu
não tive tempo de comprar os equipamentos e materiais pra gente pegar a
pedra...
__Roubar a pedra! -interrompeu Victor- Roubar a pedra!
__Como preferir. Peço que compre os materiais depois de zerar suas contas.
Pode ser?
__Claro.
__Certo. Vou deixar o dinheiro aqui. Use o que precisar.
__Posso te fazer uma pergunta, Romanov?
__Pode, claro. Mas acho que já sei o que vai perguntar.
__Por que você confia em nós? Em mim e no pequeno mestre Jedi? -Ele
apontou para Yodha- Eu nunca vi você na minha vida até aquele dia no
aeroporto. E o monge-nerd, eu o conheci dentro do avião vindo pra cá.
__Digamos que eu já sabia que minha equipe estaria completa com vocês dois.
Ele virou-se para Fernanda:
__E quanto a você, é muito mais forte do que imagina. Sei que passou por
maus momentos enquanto estava nas mãos do Josecley e, mesmo assim,
encontrou forças para superar tudo isso. Só posso te agradecer por fazer parte
dessa nossa equipe. Quatro destrambelhados que vão salvar o mundo e nem
sabem como.
__Olha Gui, eu mesma iria achar que não passam de um bando de lunáticos,
se não fossem as coisas que vi e vivi. E não precisa me agradecer, encontrei
um propósito muito maior para a minha vida. Estar com você. Com vocês.
Portanto, quem tem que agradecer sou eu.
A empresa escolhida foi a KLM. O voo tinha uma série de escalas, saindo do
Aeroporto Internacional de São Paulo em Guarulhos com destino final em
Atenas, na Grécia e duraria pelo menos dezesseis horas, descontando a
escala. Era mais que suficiente para ambos colocarem o sono e o descanso
em dia.
O Boeing 737 decolou da pista do aeroporto de Guarulhos. Era o voo KL 1572
e sua escala de mais de duas horas seria em Amsterdam, na Holanda.
Enquanto levantava voo, a enorme aeronave despedia-se também do sol, que
teimava em permanecer no céu, mesmo todo coberto de dourado.
Hospedaram-se no hotel City Circus Hotel no número 16 da Rua Sarri. Um
hotelzinho de aparência agradável e acolhedora, numa dentre as inúmeras
ruas estreitas do centro de Atenas. No dia seguinte pegariam o trem para
Kalambaka e, de lá, um taxi para o vilarejo de Kastraki, praticamente ao pé das
montanhas onde ficavam os mosteiros de Meteora.
2
RIO DE JANEIRO – BRASIL
ALEPPO – SÍRIA
PRYPYAT – UCRÂNIA
KOREIA DO NORTE
JUAREZ – MEXICO
INDIA
SUDÃO

PEDRA ESTÁ NUM COFRE DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL


Uma sociedade secreta islâmica que cuida da pedra
Vende através de leilões para ricos imperialistas ocidentais através de laranjas
e espera que a pedra acabe matando seu dono para, em seguida, roubarem
novamente e a leiloarem de novo ou algo parecido

Você também pode gostar