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OBJETO E MÉTODO
DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
O roteiro histórico que acabamos de percorrer mostrou-nos uma sucessão
de modelos conceptuais com que nossa tradição filosófica exprimiu sua
reflexão sobre o homem. Esses modelos não só se sucederam ao longo da
história da filosofia, mas se interpenetraram e complementaram, de modo a
constituir uma certa ideia do homem que passou a ser um dos elementos
constitutivos da cultura ocidental. Fundamentalmente essa ideia do homem
integra traços da tradição da Antiguidade clássica (greco--romana) e da
tradição bíblico-cristã. Ela exprime o homem por meio de duas prerrogativas
essenciais: como portador de uma razão universal íanimal rationale) e como
dotado da liberdade de escolha (liberum arbitrium). Essas duas prerrogativas
dão origem às duas formas mais elevadas do saber humano: a Metafísica e
a Ética.
A Antropologia filosófica deve situar-se na intersecção desses dois saberes,
na medida em que ela irá coroar sua explicação do homem com as duas
prerrogativas da “razão teorética” e da “razão prática”. Os outros aspectos da
realidade humana irão submeter-se à judicatura dessas duas instâncias.
A partir do século XVIII, essa ideia ocidental do homem entra em crise com o
desenvolvimento das chamadas ciências do homem e com as profundas
modificações sofridas desde então pelas sociedades ocidentais. Hoje essa
ideia do homem perdeu de modo aparentemente definitivo a sua unidade.
Como recuperar então uma certa “ideia unitária” do homem, para usar a
expressão de Max Scheler? Essa é a tarefa que a Antropologia filosófica tem
diante de si e para cujo cumprimento ela deve definir primeiramente, com
suficiente rigor, seu próprio método. Ora, a filosofia contemporânea mostra-
nos diversas tentativas para traçar um roteiro metodológico que permita à
Antropologia filosófica atingir aquela ideia unitária do homem, e cada um
deles é orientado por um procedimento epistemológico fundamental
inspirado na ciência considerada a mais apta a fornecer uma explicação
global do homem. Podemos distinguir assim:
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CATEGORIA DO ESPÍRITO
Com a categoria do espírito ou com o nível estrutural aqui designado como
noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser humano. É nesse
nível que o ser do homem “abre-se para a fé‘‘, necessariamente para a
transcendência: trata-se de uma abertura propriamente transcendental, seja
no sentido clássico, seja no sentido kantiano-moderno, que faz do homem
nesse cimo de seu ser que é também, para usar outra metáfora, o âmago
mais profundo de sua unidade, um ser estruturalmente aberto para o Outro.
No horizonte do espírito, o Outro desenha necessariamente seu perfil como
outro relativo na relação intersubjectiva, e se anuncia misteriosamente como
Outro absoluto na relação que deverá ser dita propriamente relação de
transcendência.
Sabemos que o passo que nos leva da corporalidade e do psiquismo ao
espírito tem sua legitimidade veementemente contestada pelas correntes
mais poderosas e influentes da filosofia pós-hegeliana. Na verdade
assistimos, nos séculos XIX e XX, a um imenso e clamoroso protesto contra
o espírito que ecoa, ensurdecedor, em todos os espaços da reflexão
filosófica e parece elevar-se das abaladas profundezas da cultura ocidental.
Poderoso e implacável em F. Nietzsche, quase exasperado em L. Klages,
repetido em tom menor por epígono em coro uníssono, esse protesto contra
o espírito ou essa negação do espírito no homem parece surgir a essa altura
do nosso caminho como advertência sem apelo para que não ousemos
penetrar nesse território proibido.
No entanto, só o espírito dá testemunho ao espírito, e a negação, aqui se
nega a si mesma na afirmação que a torna possível. O argumento da
redarguição ou elenktikôs, usado por Aristóteles no livro “gamma” da
Metafísica, para silenciar os negadores do princípio de não-contradição, teria
lugar nesse passo. A própria exposição da categoria do espírito mostrará
que, sem ela, o discurso filosófico sobre o homem pende abruptamente,
partido e inconcluso.
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