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A compreensão e o uso do estudo da motricidade em dança

Paloma Bianchi1

RESUMO: Qual são os modos com que o estudo da biomecânica se insere na docência, na
pesquisa e na criação em dança? Ao apresentar uma pequena historicidade sobre as formas
com que o estudo da motricidade vem sendo abordada a partir do século XX, esse artigo
propõe uma discussão questionando se uma cisão entre corpo e subjetividade ainda persiste na
atualidade.

Palavras-chave: motricidade, biomecânica, criação em dança

A discussão que proponho nessas parcas linhas derivam de minha pesquisa de


mestrado na Universidade do Estado de Santa Catarina, realizada entre os anos 2014 e 2016.
Nela, investiguei como o trabalho com a Coordenação Motora2 pode se tornar um modo
específico de ativar a percepção e, consequentemente, um modo específico de ativar um
processo de criação. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, me deparei com algumas
questões referentes ao modo com que estudos sobre a motricidade humana possuem, ou não,
inserção no campo da dança, seja ao que tange a docência, a pesquisa ou a criação.
Em minha experiência como aluna3 de dança em aulas de diversos estilos (ballet
clássico, dança contemporânea e educação somática), notei a ausência de conhecimento
anatômico e cinesiológico de alguns professores, inclusive notei um certo desinteresse acerca
da organização anatômica e da fisiologia muscular e óssea. Dentre as minhas vivências, de
maneira geral, encontrei duas maneiras mais habituais de estudar a anatomia, a fisiologia e a
cinesiologia: ou por meio da observação desconectada da experiência em aulas tradicionais de
anatomia, em que se observam o esqueleto e os músculos, aprendendo seus nomes e
localização; ou por meio da sensação, que visa ativar a autopercepção sem aprofundar em um
conhecimento mais formalizado das estruturas do corpo. Como se o conhecimento formal e a
experiência empírica não se conectassem; como se a anatomia não estivesse imbricada na
experiência, e vice-versa. Se entendemos, como sugere o pesquisador e rolfista Hubert
Godard (1994), que todo gesto é moldado pela história inscrita no corpo, que essa história
molda também nossa percepção, e que existem coordenações inscritas na própria
materialidade de cada corpo, então, trabalhar sobre a nossa materialidade é trabalhar sobre
nosso modo de agir, de mover e de perceber.
Em seu livro Choreographing Empathy, a historiadora de dança Susan Leigh Foster
(2011) traça um panorama, desde o século XVI até os dias atuais, do desenvolvimento da
concepção de corpo e da transformação nos modos de treinamento no ocidente. Em múltiplos
exemplos4 a autora apresenta concepções que entendem o corpo como máquina, instrumento
ou veículo.
Em contra partida, no campo da dança, podem-se identificar algumas iniciativas que
criaram resistência a tais concepções. No século XVIII, o mestre de dança e pensador Jean-
Georges Noverre (1727-1810) defendia a importância da expressividade na dança, opondo-se
ao modo formal que cindia a emoção da ação (HERCOLES, 2005). A dança moderna, já no
início do século XX, resgatou as concepções do balé de ação do período barroco e também
                                                                                                                       
1
Bailarina performer, professora e pesquisadora. Participa do coletivo de pesquisa e criação Mapas e
Hipertextos. É mestre e doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina.
2
Estudo criado pelas fisioterapeutas francesas Marie-Madeleine Béziers e Suzanne Piret na década de 1950.
3
Falo a partir da minha experienciar como aluna de dança na cidade de São Paulo, onde vivi minha vida inteira
até 2012 e onde obtive formação na área.
4
Para mais informações sobre o tema, ver Choreographing Empathy (2011), de Susan Leigh Foster.
resistiu às concepções de corpo muscular e tonificado da educação física e do balé de sua
época. O crítico estadunidense John Martin (2007) afirma que a dança moderna surge na
busca de um corpo que expressa a experiência emocional e o impulso interior. Sugere também
que os modernos levaram a dança a sua essência: o movimento. O movimento então se
constituiu no próprio tema e assunto dessa linguagem artística.   O que interessava aos
criadores da dança moderna era a conexão entre movimento e sensação, é estar disponível
para a escuta do próprio corpo.
De acordo com Foster (2011), os artistas da dança contemporânea das décadas de
1960 e 19705, as abordagens somáticas e as técnicas que visam a modulação do esforço
também traçavam um caminho paralelo àquele da educação física. Suas investigações
“produziriam uma experiência que não entenderia o self como aquilo que comanda a ação,
mas como aquilo que observa o movimento se dar6” (FOSTER, 2011, p. 121, tradução nossa).
O corpo e o movimento, nesse contexto, são explorados a fim de ampliar a consciência e
ativar a percepção. Sobre isso a pesquisadora Annie Suquet afirma:

A organização da esfera perceptiva determina os lances casuais dessa geografia


flutuante, tanto imaginária como física. Assim os universos poéticos tão diferentes
que a dança do século encaminhou poderiam ser descritos como outras tantas
ficções perceptivas. Os arranjos coreográficos seriam apenas a sua extrapolação
espacial e temporal (2011, p. 538).

A afirmação de Suquet demonstra claramente uma preocupação do artista do corpo em


não estabelecer relações mecanicistas nas quais o corpo é compreendido como instrumento, a
preocupação em não sucumbir ao mecanicismo. Mas será que esse outro modo de fazer
também não cria uma outra forma de separação? Será que esse modo de pensar também não
hierarquiza, inversamente, a relação entre o conhecimento sobre a motricidade e a
cinesiologia e a experiência do próprio movimento ou gesto? Talvez possamos refletir sobre
se essa estratégia que resiste à concepção mecanicista do corpo também não resultaria ainda
numa ideia de corpo compartimentada, hierárquica e não sistêmica, na qual o que está em
jogo e em destaque é a expressão sensorial e/ou emocional.
Pensar a biomecânica não necessariamente conduz a um pensamento mecanicista.
Existe ampla diferença entre um trabalho que parte da percepção da biomecânica, da
motricidade, e um trabalho mecanicista automatizado. Vivenciar na própria carne os estudos
acerca do corpo – como a anatomia, a fisiologia e a cinesiologia –, de maneira atenta, pode
agenciar uma percepção que não se restringe ao o que emerge de experiência, mas abrange
também o como se dá a ação e o porquê ela se dá. Conhecer e agir a partir desse
conhecimento acerca da mecânica – congregando o o que ao como e ao porquê – não resulta
numa ação automatizada mas seu inverso: uma experiência perceptiva complexa
absolutamente fincada na concretude da experiência. Preterir o conhecimento da estrutura
fisiológica do corpo e do movimento em prol de uma experiência aparentemente mais
conectada às emergências sensórias pode acarretar, inconscientemente, em uma separação
entre motricidade e sensorialidade. Tal separação pode levar a uma noção do sistema motor
como aquilo que serve somente como via de acesso ao sensível e não como o próprio lugar do
sensível, fazendo surgir, de uma outra maneira, a mesma questão que nos assombra há tanto
tempo: a separação entre corpo e subjetividade. Pensar a biomecânica e a motricidade de
maneira mecanicista se evidencia como um contrassenso, já que não existe uma ação
puramente mecânica.

                                                                                                                       
5
Como Ivonne Rainer, Judith Dun, Steve Paxton, Trisha Brown, dentre outros.
6
“Yielded an alternative experience of self as no longer commanding the body to act but instead witnessing
motion as it unfolds.”
Referências

FOSTER, Susan Leigh. Choreographing empathy: kinesthesia in performance. New


York: Taylor & Francis, 2011.

GODARD, Hubert; DANIEL, Dobbles; CLAUDE, Rabant. Le geste manquant: entretien avec
Hubert Godard. IO – Revue Internationale de Psychanalyse n. 5, 1994.

HERCOLES, Rosa Maria. Formas de comunicação do corpo – Novas cartas sobre a


dança. Tese (doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2005.
 
MARTIN, John. A dança moderna. Proposições – Revista quadrimestral da Faculdade de
Educação da UNICAMP v. 18, n. 1, p. 229-259, 2007.

SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção. In: COURTINE, Jean-


Jaques; VAGARELLO, Georges; CORBIN, Alain (Org.). Histórias do corpo 3: as mutações
do olhar: o século XX. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 509-540.

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