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Leitura em língua estrangeira: entre o ensino médio e o

vestibular

Gretel Eres Fernández


Daniela S. Kawamoto Kanashiro
Universidade de São Paulo

Resumo

O presente estudo parte de uma breve discussão sobre o papel da


compreensão leitora em língua estrangeira — espanhol — nos cur-
sos de idiomas, bem como sobre as concepções de leitura que
subjazem em alguns documentos oficiais, como no Quadro co-
mum europeu de referência para as línguas: aprendizagem, ensi-
no e avaliação e nos Parâmetros Curriculares Nacionais, tanto
para o ensino médio quanto para o ensino fundamental. Num
segundo momento, tecem-se comentários acerca de como a
compreensão leitora é avaliada em alguns exames de vestibular
em língua estrangeira. Nossa hipótese inicial centrava-se na exis-
tência de coerência entre as orientações oficiais, o que efetiva-
mente deveria ser valorizado nas aulas de idiomas do ensino
médio e o conhecimento exigido dos candidatos nas provas de
seleção para ingresso em cursos superiores.
Nossas análises revelaram, entretanto, uma discrepância significa-
tiva entre os três pontos tomados como referência: embora as
diretrizes postulem que o ensino de idiomas deva valorizar o
desenvolvimento da competência comunicativa dos aprendizes, é
freqüente a prevalência – seja nas aulas, seja nos exames seleti-
vos — de uma concepção tradicionalista do ensino de línguas
estrangeiras, que privilegia o conhecimento lingüístico pautado
no domínio da metalinguagem e de regras gramaticais, assim
como no conhecimento lexical. A ênfase nesses aspectos gera,
como uma de suas conseqüências, a restrição significativa da
função da compreensão leitora na medida em que o texto assu-
me a função de um simples pretexto para a aferição dos conhe-
cimentos lingüísticos dos candidatos, o que sugere a necessidade
de realizar pesquisas específicas destinadas a detectar as causas
das divergências constatadas e a apontar caminhos que possam
evitá-las ou, ao menos, minimizá-las.

Correspondência:
Gretel Eres Fernández Palavras-chave
Faculdade de Educação / USP
Av. da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo – SP Leitura — Língua estrangeira — Espanhol — Ensino médio — Vestibular.
e-mail: igmefern@usp.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 279-291, maio/ago. 2006 279
Reading in a foreign language: from secondary
education to university admission exams

Gretel Eres Fernández


Daniela S. Kawamoto Kanashiro
Universidade de São Paulo

Abstract

The present study starts with a brief discussion about the role of
reading comprehension in a foreign language — Spanish — in
language courses, and also about the conceptions of reading
underlying some of the official documents, such as the Common
European Framework of Reference for Languages: Learning, Teaching,
Assessment, and the Brazilian National Curriculum Parameters for
secondary education and for the fundamental school. After that, a few
comments are made with respect to how reading comprehension is
being assessed in some of the university admission exams. Our initial
hypothesis was centered on the existence of coherence between three
aspects: the official guidelines, what was supposed to be encouraged
in foreign language classes in secondary education, and the kind of
knowledge of a foreign language required from candidates in higher
education admission exams.
However, our analyses have revealed a significant discrepancy
between those three reference points: although the guidelines
stipulate that the teaching of languages must emphasize the
development of the student’s communication competence, what
often prevails – both in the classroom and in admission exams – is a
traditionalist perspective of the teaching of foreign languages that
privileges the linguistic knowledge based on the command of the
metalanguage and of grammatical rules, as well as of lexical
knowledge. The emphasis on these aspects has as one of its
consequences the significant restriction of the function of reading
comprehension, given that the text assumes the role of a mere
pretext for the evaluation of the linguistic knowledge of the
candidates. This fact suggests the need for specific scientific research
aimed at investigating the causes of the observed divergences, and at
showing ways of preventing them, or at least minimizing them.

Keywords
Contact:
Gretel Eres Fernández Reading – Foreign language – Spanish – Secondary education –
Faculdade de Educação / USP
Av. da Universidade, 308 University admission exams.
05508-040 – São Paulo – SP
e-mail: igmefern@usp.br

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Este trabalho tem por objetivo discor- Método Direto3 , por sua vez, embora enfatizasse
rer, brevemente, acerca da abordagem da com- as habilidades orais, partia muitas vezes da lei-
preensão leitora em língua estrangeira. O foco tura de textos para introduzir vocabulário e a
centra-se no Quadro comum europeu de refe- oralidade, via leitura em voz alta.
rência para as línguas: aprendizagem, ensino e Os métodos audiolinguais4 priorizavam
avaliação 1 – documento elaborado pelo Conse- a língua falada, sendo que a compreensão leitora
lho da Europa – e nos Parâmetros Curriculares só era incluída nos cursos e materiais quando os
Nacionais , tanto os destinados ao ensino fun- aprendizes possuíssem um certo grau de domí-
damental quanto os relativos ao ensino médio nio oral, pois se acreditava que a exposição dos
– elaborados por organismos brasileiros. alunos à língua escrita, precocemente, prejudi-
A partir de algumas considerações pre- caria seu desempenho na língua falada.
sentes nos textos citados sobre a concepção de Já os métodos comunicativos5 , surgi-
leitura e o papel que é conferido a essa habi- dos fundamentalmente a partir da década de
lidade lingüística nos cursos de língua estran- 1980 e tão presentes na atualidade, procuram
geira, pretendeu-se também verificar os pontos – ao menos do ponto de vista teórico – equi-
convergentes e/ou divergentes e de que forma librar a ênfase entre as habilidades lingüísticas
eles se concretizam — ou não — numa situação e valorizar o desempenho comunicativo, possi-
real em que a compreensão leitora é avaliada bilitando que o aprendiz seja capaz de agir
formalmente, como no exame de vestibular. adequadamente em diferentes situações de
Embora as orientações presentes nos três comunicação. Nesse sentido, a compreensão
textos de base sejam aplicáveis ao ensino e à leitora é apenas um dos elementos necessários
aprendizagem de qualquer língua estrangeira mo- para a comunicação e deve ser abordada a
derna, a perspectiva de análise e de exemplificação partir de contextos comunicativos reais, com
tomou como referência a língua espanhola.
Não resta dúvida de que um assunto
1. Tomou-se como base a versão em espanhol deste documento, dispo-
tão amplo exigiria pesquisas abrangentes que nível em <http://cvc.cervantes.es/obref/marco/>. (Marco Común Europeo
demandariam tempo e espaço não condizentes de Referencia para las lenguas: aprendizaje, enseñanza y evaluación –
MCER). Nas menções subseqüentes deste documento, não serão indicadas
com a delimitação deste trabalho. Assim, nes- as páginas, posto não constarem no documento eletrônico consultado.
te momento, as considerações restringem-se Acessado em 03/12/03.
2. O Método Gramática e Tradução, também denominado Tradicional,
com o propósito de elencar algumas questões
prevaleceu durante séculos no ensino de línguas estrangeiras. Ainda nos
gerais sobre a compreensão leitora em língua dias atuais é utilizado, em maior ou menor medida, por muitos docentes.
estrangeira que poderão ser ampliadas e deta- Entre seus objetivos estão o conhecimento lingüístico e metalingüístico, a
tradução e a versão de textos escritos. Para alcançá-los, apóia-se na lín-
lhadas em futuros estudos. gua materna, idioma que também funciona como veículo de comunicação
em sala de aula (Sánchez-Pérez, 1997).
3. Esse método, conseqüência de estudos e aplicações práticas inicia-
A leitura em língua estrangeira
dos no segundo quartel do século XIX, contrapõe-se ao Método Gramática
e os documentos oficiais e Tradução, seu predecessor, na medida em que privilegia a língua oral,
rejeita a tradução e o conhecimento explícito de regras gramaticais (Sánchez-
Pérez, 1997).
A compreensão leitora, uma das quatro 4. Os métodos de base audiolingual surgem na década de 40 do século
habilidades lingüísticas consagradas, sempre passado e apóiam-se em princípios estruturalistas e comportamentalistas.
Priorizam, principalmente, a língua oral sobre a escrita e o desenvolvi-
esteve presente na metodologia de ensino de mento de hábitos próprios da língua estrangeira, o que ocorre a partir da
línguas estrangeiras, ora no centro das atenções, repetição de estruturas previamente selecionadas e contextualizadas em
ora num lugar secundário. Assim, o Método diálogos (Sánchez-Pérez, 1997).
5. Os métodos centrados na abordagem comunicativa valorizam tanto o
Gramática e Tradução 2 não só se apoiava na surgimento quanto o desenvolvimento da competência comunicativa
leitura de textos para estruturar cursos, aulas e (Hymes, 1962; 1966) do aprendiz e defendem, entre outros aspectos, que
aprender uma língua é “construir no discurso (a partir de contextos sociais
materiais didáticos, mas também a incluía entre concretos e experiências prévias) ações sociais (e culturais) apropriadas”
seus objetivos de ensino e aprendizagem. O (Almeida Filho, 2005, p. 81).

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propósitos claramente definidos, sem perder de pelos princípios comunicativos que a leitura é
vista a integração dessa habilidade com as considerada nesse documento.
demais (ouvir, falar e escrever) e com a compe- Assim, a compreensão de textos escritos
tência comunicativa em sentido amplo. é encarada como parte da competência comu-
Dentro desse panorama, é possível su- nicativa e está vinculada não só às situações de
por que os documentos que subsidiam o ensi- ensino e aprendizagem, mas também — e prin-
no e a aprendizagem das línguas estrangeiras cipalmente — à função que ela desempenha nas
elaborados nas últimas décadas levem em con- atividades reais que integram as competências
sideração os princípios postulados pelos méto- gerais do indivíduo8 . Nessa perspectiva, a com-
dos comunicativos, assim como é igualmente preensão leitora pressupõe, também, a interação
possível supor que os sistemas avaliativos tam- entre sujeitos e elementos integrantes da comu-
bém os tomem como base. Entretanto, uma rá- nicação (nesse caso, leitor, autor, texto, conhe-
pida revisão dos textos legais vigentes e de al- cimentos prévios do assunto tratado, relações
gumas provas de seleção deixa entrever que, em estabelecidas com outros textos etc.).
alguns deles, esses pressupostos teóricos ficam Nas situações de ensino e aprendizagem
à margem e, em seu lugar, valorizam-se concep- de línguas estrangeiras (LEs)9 , as atividades volta-
ções anteriores, como será resumido a seguir. das para o desenvolvimento da compreensão lei-
tora podem ocorrer sob a forma de tarefas varia-
A leitura no Quadro comum das a serem realizadas pelos aprendizes e, para
europeu de referência tanto, estes podem utilizar-se de diferentes estra-
tégias disponíveis para executá-las. Assim, “ler e
O Quadro comum europeu de referên- comentar um texto, completar lacunas, preparar
cia para as línguas: aprendizagem, ensino e uma apresentação oral, [...] cozinhar seguindo as
avaliação (daqui em diante Quadro) surgiu no instruções de uma receita etc.” (MCER, capítulo 2
início dos anos 2000 como resultado de diver- — Enfoque adoptado) são estratégias passíveis de
sos estudos realizados ao longo de mais de dez serem utilizadas para obter êxito na leitura. Tam-
anos na Europa por diversos especialistas, no bém é exemplo de atividade dirigida ao desenvol-
âmbito do projeto geral de política lingüística vimento da compreensão leitora a leitura de cor-
do Conselho da Europa. Entre os objetivos respondência ou de manuais. Nesse caso, a produ-
desse órgão, encontram-se a unificação de di- ção escrita, a produção oral e a compreensão oral
retrizes para a aprendizagem e o ensino das também podem estar presentes, ao lado da
línguas no contexto europeu; daí que o Qua- interação, no sentido de que o leitor também atua,
dro seja considerado um documento de consulta em muitas ocasiões, como produtor de textos,
fundamental e, justamente por isso, sua divul- como nas situações em que o estudante é convi-
gação seja ampla6 . dado a discutir com um colega o conteúdo ou a
O Quadro não possui caráter dogmático argumentação presente num texto escrito ou na-
e entre seus objetivos figura o de incentivar a quelas atividades em que o aprendiz deve elabo-
reflexão – de professores e alunos – sobre o rar uma resposta para um anúncio de emprego
papel da comunicação e sobre a aprendizagem
e o ensino de línguas estrangeiras7 . Não é seu 6. MCER , Presentación . Essa e todas as demais citações aqui incluídas
propósito indicar o método de ensino a ser se- são traduções livres do texto original em espanhol.
guido, contudo, o que se observa ao longo da 7. MCER , Notas para el usuario.
8. Incluem-se conhecimentos, habilidades, competência existencial e
leitura do documento é um esforço constante capacidade para aprender (MCER, capítulo 2 – Enfoque adoptado).
por ater-se aos princípios teóricos mais atuais 9. Neste trabalho, entende-se língua estrangeira como aquela aprendida
em contexto formal de maneira seqüenciada e organizada didaticamente.
para o ensino de línguas estrangeiras. E é justa- Distingue-se, pois, de segunda língua, termo reservado para os idiomas
mente dentro da linha metodológica postulada adquiridos em contexto de imersão e sem manipulação didática.

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publicado num jornal, por exemplo. Dessa forma, • a identificação da mensagem (relacionada
no Quadro, estratégia adquire o sentido de “ado- às habilidades lingüísticas);
ção de uma linha específica de ação com o pro- • a compreensão da mensagem (vinculada às
pósito de maximizar a eficácia” (MCER, capítulo 4 habilidades semânticas);
— El uso de la lengua y el usuario o alumno). • a interpretação da mensagem (vinculada às
No documento em discussão, arrolam- habilidades cognitivas).
se diferentes possibilidades de atividades de
compreensão leitora (por exemplo, leitura para Daí que seja possível inferir que a con-
obter orientação geral ou específica acerca de cepção de leitura veiculada no documento não se
um assunto determinado, para seguir instruções, restrinja, de forma alguma, à simples decodi-
por prazer etc.) assim como vários objetivos que ficação do signo lingüístico ou à compreensão
podem ser alcançados a partir da leitura (como isolada de vocábulos ou sintagmas. Antes, o que
para captar a idéia geral, para obter informação se torna patente é a definição da compreensão
específica, para compreensão pormenorizada, leitora como um processo amplo, abrangente,
para inferir opiniões etc.). Dependendo da ativi- que vai muito além do reconhecimento das pa-
dade proposta e dos objetivos a serem alcança- lavras – seja na forma, seja no significado – e que
dos, poderão entrar em jogo atividades e estra- implica, necessária e obrigatoriamente, o domínio
tégias de interação oral (conversas e discussões de habilidades perceptivas, decodificação, infe-
formais e/ou informais, debates, entrevistas, rência, predição, estabelecimento de relações,
negociações, planejamentos etc.), de interação entre outros, assim como a adequada utilização
escrita (intercâmbio de anotações e correspon- de recursos auxiliares como dicionários, gramáti-
dência, realização de traduções, elaboração de cas, meios eletrônicos etc.
resumos, emprego de paráfrases, realização de Devido precisamente a essa concepção
anotações, entre outras), assim como estratégi- de compreensão leitora é que o Quadro (capítu-
as de mediação não verbal e paralingüísticas. lo 4) atribui um sentido amplo ao termo texto:
Nesses dois últimos casos, faz-se referência aos
gestos e às ações que acompanham as ativida- [...] qualquer fragmento de língua, seja um
des lingüísticas (normalmente presentes nas ati- enunciado ou uma obra escrita, que os usuários
vidades realizadas face a face), como o uso de ou alunos recebem, produzem ou dele fazem
onomatopéias, efeitos prosódicos (tom e tipo de intercâmbio. Portanto, não pode haver um ato
voz ou duração do som emitido, por exemplo) de comunicação mediado pela língua sem que
ou inclusive às características paratextuais como haja um texto; as atividades e os processos são
ilustrações, gráficos, tabelas, diagramas, figuras, analisados e classificados em função da relação
características tipográficas etc. existente entre, por um lado, o usuário ou aluno
Subjacentes à oferta de atividades va- e qualquer interlocutor ou interlocutores e, por
riadas de compreensão leitora, que pressupõe o outro lado, o texto, seja visto como um produto
estabelecimento de diferentes objetivos, encon- acabado, como um artefato, como um objetivo
tram-se os saberes que os aprendizes devem ou como um processo em elaboração.
possuir para obter êxito em sua consecução.
Entre eles, o Quadro (MCER, capítulo 4 – El uso Conseqüentemente, são classificados
de la lengua y el usuario o alumno) destaca: como texto (oral e/ou escrito):

• a percepção do texto escrito (que faz refe- [...] declarações e instruções públicas, discursos,
rência às habilidades visuais); conferências, apresentações públicas e sermões,
• o reconhecimento da escrita (referente às rituais (cerimônias, serviços religiosos formais),
habilidades ortográficas); peças de teatro, espetáculos, leituras, músicas,

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comentários esportivos, retransmissões de notíci- ação de ensino e aprendizagem. Ou seja, reforça-
as, debates e discussões públicas, diálogos, con- se o caráter não dogmático do documento.
versas telefônicas, entrevistas de trabalho, livros, Se, por um lado, esse é um aspecto
publicações literárias, revistas, jornais, manuais positivo, por outro pode levar à repetição de
de instruções, livros didáticos, histórias em qua- modelos que concebem a leitura superficial-
drinhos, charges, catálogos, folhetos, material mente, ou seja, enfatizando apenas questões
publicitário, cartazes e sinais públicos, sinais de lexicais ou gramaticais e ignorando os demais
supermercados e lojas, embalagens e etiquetas de elementos que permitem atingir a compreensão
produtos, moedas, formulários e questionários, profunda de um texto, isto é, corre-se o risco
dicionários, cartas, faxes (comerciais e profissio- de deixar à margem o desenvolvimento da
nais), cartas pessoais, redações e exercícios, me- compreensão leitora em sentido amplo e, por-
morandos, relatórios e trabalhos, anotações, bi- tanto, da competência comunicativa.
lhetes e mensagens, bases de dados etc. Contudo, apesar da liberdade dada aos
professores no que concerne à adoção de seus
Como se pode inferir facilmente, tal princípios e à sua utilização pragmática, em
amplitude e diversidade10 levam a que o traba- função das características gerais do documento
lho com a compreensão leitora também seja e do uso que dele vem sendo feito (parâmetro
variado e abrangente. É claro que, em função para elaboração de materiais didáticos ou defi-
dos objetivos perseguidos em cada momento do nição de níveis de proficiência, por exemplo),
processo de ensino e aprendizagem de uma LE, não pode ser ignorada a importância do Quadro,
pode-se dar mais ênfase a um ou outro aspec- inclusive fora da Europa.
to (competência ortográfica, sociolingüística,
pragmática etc.), mas sob nenhum pretexto es- A leitura nos Parâmetros
ses objetivos pontuais e específicos devem cons- Curriculares Nacionais
tituir-se como plenos ou únicos. É necessário
não perder de vista o fato de que os objetivos A compreensão leitora no ensino
parciais relacionam-se com os objetivos gerais, fundamental
vinculados à compreensão, à expressão e à
interação, ou seja, à competência comunicativa. Conforme a nova Lei de Diretrizes e Ba-
Contudo, o Quadro (capítulo 6 — El ses da Educação Nacional (Lei 9394/96), o estu-
aprendizaje y la enseñanza de la lengua) deixa do de uma língua estrangeira moderna torna-se
em aberto várias questões relacionadas à presença obrigatório a partir da 5ª série do ensino funda-
dos textos nas aulas de LE como, por exemplo: mental, observando que a escolha da língua (in-
glês, francês, espanhol ou outra língua estrangeira
• o papel que os textos desempenham na moderna) deve obedecer às necessidades e às
aprendizagem e no ensino; possibilidades da comunidade. Os Parâmetros
• a relevância de utilizar (ou não) textos au- Curriculares Nacionais (daqui em diante PCNs),
tênticos; bem como o Quadro, não têm caráter dogmático:
• a necessidade de que os alunos processem devem, antes de tudo, provocar reflexões e dis-
e produzam textos (orais e escritos). cussões a respeito da prática pedagógica.
No ensino fundamental, o aprendizado
Explicita-se no documento que cabe aos de uma outra língua deve promover a compre-
usuários do Quadro determinar o espaço que os ensão intercultural, no que diz respeito ao co-
textos (orais e escritos) devem ocupar nos progra-
mas curriculares assim como quais atividades 10. Vale lembrar que toda essa variedade de textos autênticos inclui,
didáticas são as mais condizentes com cada situ- ainda, o fato de terem sido ou não manipulados didaticamente.

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nhecimento de outras culturas e, conseqüente- Nas atividades de compreensão leitora,
mente, à “aceitação das diferenças nas manei- sugerem-se três fases: pré-leitura, leitura e pós-
ras de expressão e de comportamento” (PCN-EF, leitura. Na primeira fase, ocorre a sensibilização
1998, p. 37), contribuindo para superar visões do aluno a partir da ativação de seu conheci-
etnocêntricas e de xenofobia. Assume também mento de mundo (exploração da presença de
a função interdisciplinar, enfatizando a idéia de gráficos, mapas, desenhos, títulos, subtítulos
que o aprendizado de uma outra língua permite etc.), da organização textual (observação da
o acesso a um número maior de informações distribuição gráfica – uma receita culinária tem
em áreas diversas: linguagem, códigos e suas estrutura diferente de um texto jornalístico, por
tecnologias; ciências da natureza, matemática e exemplo) e da identificação do texto (autor, data
suas tecnologias; e sociedade, cultura e suas da publicação etc.). Na segunda fase, “o aluno
tecnologias 11 . tem de projetar o seu conhecimento de mundo
Ao tomar como base a visão socio- e a organização textual nos elementos sistêmicos
interacionista, a linguagem é compreendida do texto” (PCN-EF, 1998, p. 92). Nessa fase, as
como prática social. Dessa forma, a partir dela, estratégias de inferência são postas em prática a
o aluno pode “compreender e expressar opini- fim de evitar que o aluno se prenda à necessi-
ões, valores, sentimentos, informações, oral- dade de conhecer todos os itens lexicais. É
mente e por escrito” (PCN-EF, 1998, p. 54). importante que se faça distinção entre informa-
Aulas com exclusivos exercícios de cópia e tra- ções centrais e detalhes, conforme os níveis de
dução, repetição e textos descontextualizados compreensão previamente estabelecidos. Na úl-
devem dar lugar ao desenvolvimento de ativi- tima fase, a pós-leitura, os alunos avaliam de
dades que explorem diferentes recursos (TV, forma crítica as idéias do autor. Obviamente,
gravador, computador, entre outros) e fontes durante todo o processo de leitura, pensa-se e
(jornais, revistas, histórias em quadrinhos, re- reflete-se sobre o texto. Contudo, segundo os
ceitas, por exemplo), segundo as possibilidades PCNs, é nessa última fase que o aluno vai esta-
da escola, a fim de que o aluno se conscientize belecer de forma mais concentrada essa interação
da existência de vínculos entre o que é estuda- entre seu mundo e as idéias do autor.
do e seu entorno social. O foco deve estar mais A avaliação da compreensão escrita
no significado e na relevância da atividade do deve ser um processo integrado e contínuo. O
que no estudo do sistema da língua envolvida, professor precisa, portanto, “aconselhar, coor-
embora ele não esteja descartado. denar, dirigir, liderar, encorajar, animar, estimular,
Essa natureza interacional fica eviden- partilhar, aceitar, escutar, respeitar e compreen-
te no processo de compreensão leitora em que der o aluno” (PCN-EF, 1998, p. 82).
o receptor procura, a partir das marcas deixa- Quanto à compreensão leitora, segundo
das pelo emissor, entender o texto escrito. Para os PCNs (1998), espera-se que, ao final do ensi-
tanto, são ativados os conhecimentos de mun- no fundamental, o aluno seja capaz de:
do, da organização textual e do sistema da lín-
gua. O documento prevê a compreensão geral • demonstrar compreensão geral de tipos de
de um determinado texto no terceiro ciclo (cor- textos variados, apoiada em elementos icônicos
respondente às 5a e 6a séries) e geral e detalha- (gravuras, tabelas, fotografias, desenhos) e/ou
da no quarto ciclo (7 a e 8a séries). Além disso, em palavras cognatas;
deve ser privilegiado o conhecimento de mundo • selecionar informações específicas do texto;
e textual que o educando já tem de sua língua
materna e depois, de forma gradativa, é impor- 11. Embora o agrupamento das diferentes disciplinas em áreas só figure
nos PCNs para o ensino médio (EM), considera-se que tais áreas também
tante que se procure desenvolver o conheci- estão presentes – mesmo que implicitamente – no EF, daí que se julgue
mento sistêmico. possível estabelecer as mencionadas relações.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 279-291, maio/ago. 2006 285
• demonstrar conhecimento da organização rio restringir as considerações às informações ge-
textual por meio do reconhecimento de como rais sobre o tratamento atribuído à compreensão
a informação é apresentada no texto e dos leitora no ensino de língua estrangeira moderna.
conectores articuladores do discurso e de sua Nos PCN-EM, as diretrizes gerais e
função como tais; orientadoras da proposta curricular estão fun-
• demonstrar consciência de que a leitura não damentadas nas quatro premissas abordadas
é um processo linear que exige o entendi- pela UNESCO: aprender a conhecer, aprender a
mento de cada palavra; fazer, aprender a viver e aprender a ser. Nesse
• demonstrar consciência crítica em relação documento, fica patente a idéia de uma formação
aos objetivos do texto, em relação ao modo geral no lugar da formação conteudística e
como escritores e leitores estão posicionados academicista. Destacam-se duas palavras: con-
no mundo social; textualização e interdisciplinaridade. O conteúdo
• demonstrar conhecimento sistêmico necessário a ser desenvolvido no ensino médio deve estar
para o nível de conhecimento fixado para o texto. sempre contextualizado e deve-se procurar esta-
belecer relações com outras áreas do conheci-
Assim como no Quadro, pode-se con- mento. São prioridades o raciocínio e a capacida-
cluir que o processo de leitura é amplo e de para aprender e utilizar os conhecimentos para
abrangente e não se prende à decodificação a resolução de problemas do cotidiano.
lexical ou ao conhecimento de regras gramati- As competências e habilidades a se-
cais. O conhecimento sistêmico é desenvolvido rem desenvolvidas em língua estrangeira mo-
de maneira gradual e considerado no processo derna foram agrupadas, devido a fins unica-
da leitura, mas vale lembrar que não é o foco mente didáticos, uma vez que devem ser de-
exclusivo das aulas de línguas. senvolvidas como componentes inter-relacio-
nados e interligados em três eixos: represen-
A compreensão leitora no ensino tação e comunicação; investigação e compre-
médio ensão; e contextualização so-ciocultural. Fi-
guram da seguinte forma no documento
Em 1999, foi publicada a primeira versão (PCN-EM, 1999, p. 143):
dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o En-
sino Médio (daqui em diante PCN-EM). O docu- Representação e comunicação:
mento foi elaborado conforme os pressupostos da • Escolher o registro adequado à situação na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei qual se processa a comunicação e o vocábulo
n. 9294/96) e do Parecer n. 15/98 do Conselho que reflita a idéia que pretende comunicar.
Nacional da Educação/Câmara de Educação Bási- • Utilizar mecanismos de coerências e coesão
ca. Com o objetivo de complementar e adequar os na produção oral e/ou escrita.
PCN-EM, surgiram os PCN+, em 2002, cujo con- • Utilizar estratégias verbais e não verbais para
teúdo provocou discussões. Segundo informações compensar as falhas, favorecer a efetiva comu-
expressas no site do MEC, Ministério da Educação nicação e alcançar o efeito pretendido em situ-
e do Desporto12 , o Departamento de Políticas do ações de produção e leitura.
Ensino Médio realizou cinco seminários regionais, • Conhecer e usar as línguas estrangeiras mo-
entre outubro e dezembro de 2004, e deveria dernas como instrumento de acesso a informa-
apresentar um outro documento final, em maio de ções a outras culturas e grupos sociais.
200513 , para consolidar uma proposta de organi-
zação curricular para o Ensino Médio. 12. Disponível em: <http://www.mec.gov.br> Acessado em: 25 de abril
de 2005.
Como a proposta desse trabalho não é um 13. Até o momento da elaboração deste texto, não foi possível ter acesso
estudo exaustivo dos documentos, faz-se necessá- ao documento citado.

286 Gretel Eres FERNÁNDEZ e Daniela S. K. KANASHIRO. Leitura em língua estrangeira: entre...
Investigação e compreensão: médio deve ser a questão da compreensão de
• Compreender de que forma determinada ex- enunciados: “[...] o foco do aprendizado deve
pressão pode ser interpretada em razão de as- centrar-se na função comunicativa, por exce-
pectos sociais e/ou culturais. lência, visando prioritariamente a leitura e a
• Analisar os recursos expressivos da linguagem compreensão de textos verbais orais e escritos
verbal, relacionando textos/contextos mediante [...]” (PCN+, 2002, p. 94). As competências e
a natureza, função, organização, estrutura, de habilidades também estão estruturadas dentro
acordo com as condições de produção/recepção das três perspectivas: representação e comuni-
(intenção, época, local, interlocutores partici- cação; investigação e compreensão; e contex-
pantes de criação e propagação de idéias e es- tualização sociocultural. São elas:
colhas, tecnologias disponíveis).
Representação e comunicação:
Contextualização sociocultural: 1) Utilizar linguagens nos três níveis de compe-
• Saber distinguir as variantes lingüísticas. tência: interativa, gramatical e textual;
• Compreender em que medida os enunciados 2) Ler e interpretar;
refletem a forma de ser, pensar, agir e sentir de 3) Colocar-se como protagonista na produção e
quem os produz. recepção de texto.

A partir da proposta para a abordagem e Investigação e compreensão


o tratamento das habilidades e competências no 1) Analisar e interpretar no contexto de inter-
ensino de língua estrangeira moderna, segundo os locução;
PCN-EM, nota-se que se o domínio de uma ou- 2) Reconhecer recursos expressivos das lingua-
tra língua colabora para a integração do educan- gens;
do no mundo globalizado; para que isso de fato 3) Identificar manifestações culturais no eixo
possa ocorrer, as antigas aulas de repetição e temporal, reconhecendo momentos de tradição
exploração do conteúdo gramatical devem dar e de ruptura;
lugar ao desenvolvimento das quatro habilidades 4) Emitir juízo crítico sobre as manifestações
lingüísticas (ler, escrever, ouvir e falar), assim culturais;
como ao desenvolvimento da competência comu- 5) Identificar-se como usuário e interlocutor de
nicativa. Não há uma habilidade a ser priorizada. linguagens que estruturam uma identidade cul-
Segundo o documento, o princípio geral é “levar tural própria;
o aluno a comunicar-se de maneira adequada em 6) Analisar metalingüisticamente as diversas lin-
diferentes situações da vida cotidiana” (PCN-EM, guagens;
1999, p. 148). O material utilizado em sala de aula 7) Aplicar tecnologias da informação em situa-
deverá ser diversificado, constituindo-se de notí- ções relevantes.
cias, histórias em quadrinhos, letras de música,
filmes, diálogos etc. Além da competência grama- Contextualização sociocultural
tical, ao final dos três anos do ensino médio, 1) Usar as diferentes linguagens nos eixos da re-
deve-se garantir igualmente o domínio dos de- presentação simbólica: expressão, comunicação e
mais componentes da competência comunicativa, informação, nos três níveis de competência;
quais sejam: a competência sociolingüística (ou 2 e 3) Analisar as linguagens como geradoras de
sociocultural), a discursiva e a estratégica. acordo sociais e como fontes de legitimação
Nos PCN+, dentro do capítulo Lingua- desses acordos14 ;
gens, códigos e suas tecnologias, com relação
14. Embora o mencionado documento não explicite as razões da junção
ao ensino de língua estrangeira moderna, fica dos itens 2 e 3, inferimos que o fato de aparecerem unidos deve-se apenas
claro que a ênfase do aprendizado no ensino à praticidade que supõe comentar ambos os pontos simultaneamente.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 279-291, maio/ago. 2006 287
4) Identificar a motivação social dos produtos gua estrangeira moderna: estratégias para ação,
culturais na sua perspectiva sincrônica e conteúdos estruturadores e trabalho por proje-
diacrônica; tos. Especificamente sobre a exploração de texto,
5) Usufruir do patrimônio cultural nacional e destacam-se as seguintes premissas:
internacional;
6) Contextualizar e comparar esse patrimônio, • O professor deve escolher textos que propici-
respeitando as visões de mundo nele implícitas; em o desenvolvimento das quatro habilidades:
7) Entender, analisar criticamente e contextualizar ouvir, falar, ler e escrever.
a natureza, o uso e o impacto das tecnologias da • O desenvolvimento do trabalho a partir de
informação. temas favorece o aprendizado e a elaboração e
execução de projetos interdisciplinares.
Antes de detalhar as habilidades e compe- • É importante que se desenvolvam técnicas de
tências e comentá-las, explicitam-se, de maneira leitura.
não muito clara, os sentidos atribuídos a alguns • É tarefa do professor orientar o aluno quan-
termos que se relacionam ao contexto exposto. to:
Com relação à seleção de conteúdos em - à identificação das idéias principais;
Língua Estrangeira Moderna, devido ao número - ao levantamento das palavras-chave;
reduzido de aulas, geralmente duas aulas semanais, - à identificação do tema ou assunto;
e à heterogeneidade das classes – no tocante a - ao trabalho com as palavras-ferramenta e as
diferentes estágios de aprendizagem –, sugere-se chamadas ‘palavras-transparentes’. (PCN+,
o desenvolvimento do trabalho a partir de três 2002, p. 120)
frentes: leitura e interpretação de textos, aquisição
de repertório vocabular e estrutura lingüística. Embora não mais exista o monopólio
Mais especificamente sobre língua in- lingüístico, uma vez que o texto legal (Lei
glesa, há uma lista de conteúdos referentes à 9394/96) prevê a possibilidade da escolha de
estrutura lingüística, que deve desenvolver-se uma língua estrangeira moderna segundo as
“segundo o grau progressivo de dificuldades diferenças e necessidades de cada situação de
dos textos” (PCN+, 2002, p. 104). Da mesma ensino, nota-se que esse documento enfoca
forma, uma lista de temas também é proposta mais diretamente — e poderíamos dizer, de
com relação ao trabalho de aquisição de reper- maneira quase exclusiva — a língua inglesa,
tório vocabular. Para tanto, sugere-se uma pers- sobretudo ao prever e especificar determinados
pectiva interdisciplinar. No que se refere à lei- conteúdos de estrutura lingüística.
tura e interpretação de textos, espera-se que o Constata-se, a partir da rápida revisão
professor utilize em sala de aula um material das propostas contidas tanto nos PCN-EM
diversificado: “publicitário, jornalístico, narrati- como nos PCN+, a coincidência de concepção
vo, dissertativo, poético, literário, científico” — em sentido amplo — defendida para alguns
(PCN+, 2002, p. 106). Segundo o documento: aspectos, sobretudo no que se refere ao trata-
mento dado à compreensão leitora15 . Corrobo-
O trabalho com textos supõe etapas bem defi-
nidas quanto à gradação de dificuldades e à 15. Como já citado inicialmente, existe a previsão de uma nova publica-
escolha de atividades ligadas à interpretação, à ção a fim de consolidar uma proposta de organização curricular para o
aquisição e à fixação de vocabulário, bem ensino médio. Apesar de, no momento, estarem disponíveis alguns textos
preliminares a respeito dos debates sobre esse nível de ensino, não cabe
como à estrutura lingüística. (p.107) discuti-los aqui, dado o foco deste estudo e o fato de tratar-se de uma
discussão ainda não concluída no âmbito do MEC. Também em razão de
ainda não estarem disponíveis, deixa-se de tecer comentários acerca do
Os PCN+ apresentam também as compe- conteúdo presente nos novos PCN-Língua Estrangeira-EM que se encon-
tências abrangentes a serem trabalhadas em lín- tram em fase final de elaboração pelo MEC.

288 Gretel Eres FERNÁNDEZ e Daniela S. K. KANASHIRO. Leitura em língua estrangeira: entre...
rando as premissas do Quadro e dos PCNs do existe consonância entre o que é proposto para
ensino fundamental, o trabalho com textos não ser desenvolvido no ensino médio, segundo as
deve restringir-se ao estudo lexical e sistêmico concepções dos PCN-EM, e o que é avaliado
da língua. Espera-se que o professor desenvol- nos vestibulares.
va o trabalho com textos sob uma nova pers- Se partirmos dos pressupostos que:
pectiva a partir da utilização de material diver-
sificado e explore as estratégias de leitura, de 1) Segundo os PCN-EF e os PCN-EM, a habili-
forma a levar ao desenvolvimento adequado da dade de compreender os recursos expressivos da
habilidade de compreensão leitora e do papel linguagem verbal, relacionando textos/contex-
que esta exerce no âmbito da competência tos mediante a natureza, função, organização,
comunicativa. estrutura, de acordo com as condições de pro-
dução/recepção, deve ter sido desenvolvida des-
Competência leitora x de o ensino fundamental até o final do ensino
competência lingüística: os médio e que, dessa forma, é imprescindível que
exames de vestibular o indivíduo não seja concebido como um mero
decodificador de palavras;
No Brasil, ao longo dos últimos anos e 2) A língua estrangeira para os alunos de ensino
impulsionado pelo Mercosul, cresceu o número superior deve, sobretudo, servir de instrumento
de interessados em aprender a língua espanho- para que tenham acesso a pesquisas, estudos,
la e, conseqüentemente, muitas escolas passaram enfim à literatura estrangeira, necessária a
a oferecer cursos desse idioma. Em virtude do qualquer estudante de nível superior, indepen-
crescimento da difusão dessa língua em âmbito dente de sua área de conhecimento;
educacional e socioeconômico, várias institui-
ções de nível superior passaram a oferecê-la levanta-se a seguinte problemática: até que
como uma opção para o vestibular, pondo fim ao ponto a grande maioria dos testes de vestibular
monolingüismo das provas até então instaurado mede o que se propõe a medir? Seria de se
na maioria das instituições de nível superior. esperar que tais provas, que tomam por base o
Para a elaboração desses exames, as texto escrito, mantivessem coerência com os
diferentes instituições possuem autonomia, de princípios mais amplos subjacentes ao domínio
forma que é possível encontrar tipos variados da compreensão leitora e presentes nos quatro
de provas dependendo dos objetivos propostos documentos referidos ou, ao menos, nos três
e das concepções defendidas. Os modelos mais documentos nacionais. Não parece adequado
comuns apresentam questões de múltipla esco- que, em muitos dos exemplos de exames anali-
lha, ainda que existam provas pautadas no sados, o foco se restrinja ao conhecimento gra-
somatório das respostas corretas (nesse tipo de matical – normativo – da língua estrangeira.
prova, deve-se somar os números de todas as Entretanto, ao rever o processo de ava-
alternativas corretas) e provas com questões de liação e seleção, realizado por meio de provas
respostas discursivas. parceladas e ocasionais, em que um erro pode
Em quase todas as provas 16 — inde- implicar a exclusão do candidato, revela-se ain-
pendentemente do modelo de questões propos- da maior a necessidade de contar com um ins-
to —, há a inclusão de um texto (ou mais de trumento cuidadosamente preparado que vise
um) que deve ser compreendido, interpretado muito mais à compreensão que à memorização
ou simplesmente aí figura como um pretexto
para a avaliação do domínio de regras grama-
16. Tomaram-se como base provas de vestibulares realizados no perí-
ticais ou reconhecimento do vocabulário. Nes- odo de 1998 a 2004 em instituições de ensino superior públicas e priva-
se último caso, constata-se que nem sempre das de todas as regiões do país.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 279-291, maio/ago. 2006 289
de regras. Obviamente, em certos casos, torna- ra para o nível superior, embora a lei não de-
se necessário recorrer aos procedimentos gra- fenda essa separação de propósitos.
maticais e lexicais para que não se recaia numa Não bastasse isso, grande parte das
interpretação distorcida e imprecisa do texto. apostilas preparadas para serem utilizadas nos
Por outro lado, estudar o texto somente do cursos pré-universitários tem por objetivo maior
ponto de vista formal pode distanciar o leitor- treinar os estudantes para as provas de vestibu-
aprendiz da apreensão de seu sentido global. lar e, portanto, não mantém relações diretas
Ainda que se levem em consideração com as premissas norteadoras dos PCNs. Esses
questões vinculadas à transferência/interferên- materiais, em geral, propõem uma formação
cia do português sobre o espanhol, posto que conteudística e academicista, apenas. E uma
são línguas que apresentam semelhanças, e que vez mais vale insistir na afirmação de que se tais
determinadas instituições de nível superior tal- escolas existem é porque seus materiais dão
vez se interessem em avaliar esse conhecimento bons resultados, o que indica que as provas
específico, a preocupação exclusiva ou marca- para ingresso nas universidades continuam
damente prioritária com os aspectos gramaticais avaliando conhecimentos de regras lingüísticas
não garante que os alunos aprovados nesses nem sempre contextualizados. Com relação à
exames sejam capazes de compreender um tex- língua estrangeira, o que as instituições de
to na língua estrangeira. Assim, ficam à mar- ensino superior esperam de seus candidatos?
gem tanto os princípios defendidos pelos tex- Que sejam “motoristas da língua ou mecânicos
tos legais quanto os pressupostos do que seria da gramática” (Bagno, 2000, p. 120)?
conveniente que os futuros estudantes univer- Apesar de todas as tentativas em dar
sitários dominassem, uma vez que os cursos outro enfoque à compreensão leitora, nota-se
superiores, normalmente, exigem várias leituras que entre o que propõem os documentos ofi-
em outras línguas. ciais e como ela se faz presente nas aulas do
Numa espécie de círculo vicioso, devi- ensino médio e se diz avaliada em muitas pro-
do ao fato de que muitas instituições de ensi- vas de vestibular, há uma distância muito gran-
no superior continuam avaliando conhecimen- de separando os pontos envolvidos.
tos de regras gramaticais e do uso do léxico
(como se a língua pudesse ser concebida des- Algumas considerações finais
sa forma), pode-se inferir que várias escolas
assumem, de maneira explícita e geral, a missão Constata-se, pois, a discrepância exis-
de preparar os alunos para essas provas. Essas tente – mais uma vez – entre aquilo que é
instituições baseiam-se em estratégias que de- defendido nos documentos oficiais e o que
senvolvem práticas mecanicistas, de treinamen- ocorre na prática.
tos e memorização de fórmulas. Ainda que Se, por um lado, a concepção de com-
neste momento não haja a disponibilidade de preensão leitora veiculada nos quatro docu-
um estudo sobre a forma como os institutos de mentos brevemente resenhados é ampla e su-
ensino médio conduzem seus cursos de língua põe uma concepção de ensino de língua volta-
estrangeira, não é descabido afirmar que seu da para a interação e para a comunicação em
grande objetivo é preparar os alunos para as sentido abrangente, por outro, o que se verifi-
provas de vestibular, direcionando as aulas para ca em muitas escolas e em muitos exames de
o conhecimento gramatical e lexical, mais que acesso a instituições de ensino superior é a
para a competência comunicativa. aplicação de modelos tradicionalistas de ensi-
Infelizmente, ainda hoje se observa a no e reducionistas do que significa possuir um
existência da velha dualidade, a escola que bom domínio da habilidade leitora e dos conhe-
prepara para o trabalho e a escola que prepa- cimentos que implicam essa habilidade.

290 Gretel Eres FERNÁNDEZ e Daniela S. K. KANASHIRO. Leitura em língua estrangeira: entre...
Por que os postulados referentes à com- compreensão leitora, em particular. Seria de se
preensão leitora, incluídos nos textos oficiais, são esperar, portanto, que eles estivessem presentes
praticamente ignorados por muitas escolas e por nas aulas e nas provas, específicas ou não. A partir
vários exames de vestibular? Sabe-se que na ela- do momento em que essa relação de proximida-
boração de tais textos consideraram-se estudos de entre teoria e prática é quase inexistente, jus-
profundos realizados por especialistas e que re- tifica-se a indicação da necessidade de estudos
fletem, em maior ou menor medida, os princípios que procurem averiguar suas causas e, na medi-
e as teorias mais atuais e mais aceitos interna- da do possível, que apontem caminhos que le-
cionalmente no que tange ao ensino de línguas vem a uma aproximação entre os princípios teó-
estrangeiras, em geral, e ao desenvolvimento da ricos que se defendem e o que se realiza de fato.

Referências bibliográficas

ALMEIDA FILHO, J. C. P. de. Lingüística aaplicada


plicada
plicada: ensino de línguas e comunicação. Campinas: Pontes, 2005.

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BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. PCN+ Ensino Médio


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Curriculares Nacionais: Linguagens e Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002.

BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. 3° e 4°
Ciclos do Ensino Fundamental
Fundamental: língua estrangeira. Brasília, MEC/SEF, 1998.

Marco Común Europeo de Referencia para las Lenguas


Lenguas: aprendizaje, enseñanza, evaluación. Consejo de Europa. Disponível em
<http://cvc.cervantes.es/obref/marco/>.

SÁNCHEZ-PÉREZ, A. Los métodos en la enseñanza de idiomas


idiomas: evolución histórica y análisis didáctico. Madrid: SGEL, 1997.

Recebido em 19.10.05
Modificado em 07.03.06
Aprovado em 22.06.06

Gretel Eres Fernández é doutora e docente da Faculdade de Educação da USP e co-autora de vários materiais didáticos
para o ensino da língua espanhola.

Daniela Sayuri Kawamoto Kanashiro é professora de espanhol e mestranda do Programa de Pós-Graduação em


Educação da Faculdade de Educação da USP.

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