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International Congress of Critical Applied Linguistics

Brasília, Brasil – 19-21 Outubro 2015

GUERREIRAS DO FEMEN: UMA ANÁLISE DOS EFEITOS DE SENTIDO


PRODUZIDOS PELAS IMAGENS

Fernanda PEREIRA
fpereir@gmail.com
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

RESUMO
Vivemos em uma sociedade bastante fragmentada, fruto de um mundo multi-identitário onde
estão presentes diferentes ideologias. A sociedade capitalista preserva a ideia de um sujeito
autônomo, livre, que acredita ser a fonte originária de seu discurso, reflexo de seu pensamento e
da realidade em que vive. No entanto, o confronto deste sujeito “livre” com as diversas
formações discursivas existentes, produz impactos violentos e aparentemente inexplicáveis em
nosso contexto atual. Em uma sociedade já habituada à luta histórica dos movimentos
feministas por igualdade de direitos, e onde o corpo (tanto masculino quanto feminino) é
explorado comercialmente pela mídia, diariamente, parece estranho que a exposição do corpo
feminino em manifestações de protesto, seja vista de forma tão ofensiva e negativa. O
movimento internacional feminino FEMEN, seguindo o lema “meu corpo, minha arma”, luta
contra a sociedade patriarcal em suas três manifestações (exploração sexual da mulher,
ditaduras e principais religiões) expondo seus corpos seminus. Esta estratégia rendeu ao grupo
não só uma grande exposição midiática, mas também despertou o ódio e a reprovação em outros
setores da sociedade. Mas, a polêmica em torno do grupo não fica somente restrita à forma de
protestarem. Muitos grupos feministas reprovam o discurso do FEMEN, pois os temas nos quais
interferem são heterogêneos, e não se limitam aos direitos das mulheres. Sob tais condições de
produção, as imagens que compõem o corpus analisado provocam deslizamentos de sentido. O
grupo que pretende utilizar seus corpos como armas de protesto, também é visto como um
grupo que se projeta como pop, comercial, utilizando a nudez para a autopromoção,
reproduzindo o controle midiático ao qual se opõe. Dentro deste contexto, propõem-se um
estudo utilizando-se os pressupostos teóricos da análise do discurso de linha francesa de Michel
Pêcheux, objetivando compreender os efeitos de sentido produzidos pelas imagens de protesto
deste grupo.

Palavras-Chave: FEMEN; Análise do Discurso de orientação francesa; Feminismo

ABSTRACT
We live in a very fragmented society, the result of a multi-identity world where there are
different ideologies. Capitalist society preserves the idea of an autonomous subject, free, who
believes to be the source of his/her speech, reflection of his/her thoughts and the reality in which
he/she lives. However, the confrontation of this subject "free" with the various existing
discursive formations, produces violent impacts in the current context. In a society already used
to the historical struggles of the women's movement for equal rights, and where the body (both
male and female) is commercially exploited by the media every day, it seems strange that the
female body exposure in protests is seen as offensive and negative. The international women's
movement FEMEN, following the motto "my body, my gun," fights against patriarchal society
in its three manifestations (sexual exploitation of women, dictatorships and major religions)
exposing their half-naked bodies. This strategy gave the group not only a great media exposure,
but also aroused the hatred and failure in other sectors of society. But the controversy
surrounding the group is not only restricted to the form of protest. Many feminist groups

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disapprove FEMEN’s speech, because the issues approached by their protests are heterogeneous
and not limited to women's rights cause. Under such conditions of production, the images that
make up the analyzed corpus cause slips of meaning. The group that want to use their bodies as
weapons of protest, is also seen as a group that is projected as pop, commercial, using nudity to
self-promotion, reproducing the exact media control it opposes. Within this context, we propose
a study using the theoretical assumptions of the French Discourse Analysis of Michel Pêcheux,
aiming to understand the effects of meaning produced by the protest images of this group.

Keywords: FEMEN; French Discourse Analysis; Feminism

1. EFEITOS DE SENTIDO, IMAGENS E ANÁLISE DO DISCURSO


FRANCESA

Análise do Discurso de Linha Francesa, formulada por Michel Pêcheux,


situada no entremeio da Linguística, do Materialismo Histórico de Althusser, e da
Psicanálise Lacaniana. Dentro desta disciplina, o Discurso é entendido como efeito de
sentido entre interlocutores. Estes efeitos de sentido são produzidos não somente por
materialidade linguísticas (textos escritos ou oralidade), mas também são refletidos em
imagens, vídeos, ações, corpos.
Os sentidos produzidos por uma imagem não são evidentes. São modos de
apresentação do real que admitem diferentes posicionamentos e possibilidades de
análise, de acordo com a formação discursiva na qual ela se vincula (ZANELLA, 2012).
Segundo Orlandi (2013), a noção de formação discursiva permite
compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia,
possibilitando estabelecer regularidades no funcionamento do discurso. Como definida
por Pêcheux:

“Chamaremos então formação discursiva aquilo que, em uma


formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada em
uma conjuntura dada determinada pelo histórico da luta de classes,
determina “o que pode e deve ser dito [...]” (PÊCHEUX, 2012,
p.308).

No entanto, o sentido produzido por uma materialidade discursiva (uma


imagem) não é tal qual aquele que acreditamos ter construído em nossa mente, ele é na
verdade um efeito de sentido, que se completa no receptor. Para a Análise do Discurso
Francesa, o efeito de sentido é a relação de possibilidade de substituição entre elementos
(palavras, expressões, proposições) no interior de uma formação discursiva dada

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(PÊCHEUX, 1995, p.164). Ele se constitui dentro da matriz de sentidos, nas relações
parafrásticas entre sequências discursivas. Este fenômeno é denominado efeito
metafórico:

“[...] é possível considerar sinonímias contextuais entre dois grupos de


termos ou expressões que produzem o mesmo efeito de sentido em
relação a um contexto dado. Chamaremos de efeito metafórico o
fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual para
lembrar que este “deslizamento de sentido” entre x e y é constitutivo
do “sentido” designado por x e y [...]” (PÊCHEUX, 1995).

O efeito metafórico (ou paráfrase) é um fenômeno semântico produzido por


uma substituição contextual, provocando deslizamento de sentido. Através dele pode-se
dizer a mesma coisa de formas distintas, não havendo alteração de sentido. Este efeito
portanto, não significa mudança de sentido, mas sim um mesmo sentido cristalizado que
se perpetua nos diferentes discursos produzidos.
São as formações discursivas que determinam o que pode ou não ser dito,
formando a ilusão na qual o sujeito falante se constitui. E para que possamos dizer algo,
para que se possa enunciar, é preciso estar inserido em uma formação discursiva.
Diferentes culturas, diferentes formações discursivas, fazem com que atribuamos efeitos
de sentido diferentes, interpretando-os de acordo com a ideologia na qual estamos
mergulhados. Esta perspectiva é diferente para cada um, e está relacionada à história, à
classe social, aos valores morais, religiosos e à nossa relação entre cultura e língua. A
linguagem é subjetiva, ou seja, presume a existência de um sujeito.

O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela


língua – com a história. É o gesto de interpelação que realiza essa
relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Esta
é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da
língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há
sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente
ligados. (ORLANDI, 2013, p.47).

Toda a relação que temos com o mundo que nos cerca é através da linguagem,
que é passível de equívocos, moldada por ideologias e vozes que nos precedem.
Segundo Pêcheux (1995):

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Isso equivale afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc.,


recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas:
retomando os termos que introduzimos acima e aplicando-os ao ponto
específico da materialidade do discurso e do sentido, diremos que os
indivíduos são interpelados em “sujeitos-falantes” (em sujeitos de seu
discurso) pelas formações discursivas que representam na
“linguagem” as formações ideológicas que lhes são correspondentes.”
(PÊCHEUX, 1995, p.161).

Nesta concepção, o indivíduo não é a origem do discurso, nem tem poder sobre
o sentido produzido a partir dele. Desta forma, pensar no sujeito da Análise do
Discurso francesa, é pensar em um sujeito assujeitado pelo ideológico, que não percebe
a ideologia funcionando nele mesmo. É o sujeito do inconsciente, bipartido, que
emerge apenas em atos falhos, e lapsos, e que tem a ilusão de ser a origem de seu
discurso.
A ideologia não é um mascaramento, mas evidência de sentido. Nossa
formação discursiva é materializada através de nossas palavras. Estas tem sentidos
diferentes para sujeitos diferentes, pois são interpelados de forma distinta pelas
ideologias com as quais se identificam. Para a Análise do Discurso francesa
inconsciente e ideologia são de ordens distintas, mas encontram-se materialmente
ligados na ordem significante da língua.

“Para nós, o problema filosófico, psicológico e linguístico se


concentra sobre o que designaremos como o ponto do real da língua,
ou seja, da existência de um impossível específico a esta, tomando a
forma paradoxal de um corpo de interditos, de um sistema de regras
atravessado de falhas” (PÊCHEUX, 1993).

É este sujeito real (assujeitado pelo ideológico, e dividido entre o inconsciente


e o consciente), fazendo uso do real da língua (um sistema de regras opaco e
atravessado por falhas), que a partir de uma dada formação discursiva, irá materializar
uma determinada formação ideológica através do discurso, conectando-se desta forma
com a sua realidade.
Portanto, o existir como acreditamos conhecer, é opaco, e segundo Lacan, é só
onde não penso, onde não preciso da linguagem, que existo em essência (BRUDER,
2007). Entende-se então, que o sujeito para a Análise do Discurso francesa, é o sujeito
do inconsciente, que jamais termina de se constituir. Ele não é coerente com todas as

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posições que vem a assumir, não está terminado, portanto pode ter opiniões diversas
sobre o mesmo assunto, em momentos distintos.

Devemos ainda lembrar que o sujeito discursivo é pensado como


“posição” entre outras. Não é uma forma de subjetividade, mas um
“lugar” que ocupa para ser sujeito do que diz (M. Foucault, 1969): é a
posição que deve e pode ocupar todo o indivíduo para ser sujeito do
que diz. O modo como o sujeito ocupa seu lugar, enquanto posição,
não lhe é acessível, ele não tem acesso direto à exterioridade
(interdiscurso) que o constitui. Da mesma maneira, a língua também
não é transparente nem o mundo diretamente apreensível quando se
trata da significação, pois o vivido dos sujeitos é informado,
constituído pela estrutura da ideologia (M. Pêcheux, 1975).
(ORLANDI, 2013, p.49).

Nenhum dizer acontece sempre da mesma maneira, e o sentido também nunca é


garantido, no entanto as condições de produção são sempre únicas. Segundo Possenti,
“um corpus é constituído por um conjunto de discursos concretos e de objetos
discursivos, estando essas superfícies dominadas por condições de produção estáveis e
homogêneas”. Estas condições históricas de produção nos remetem às relações de força
presentes e constituintes da prática discursiva. Para Orlandi (2013), as condições de
produção compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação, e a maneira como a
memória as aciona.
Segundo a autora, a memória tem suas características, quando pensada em
relação ao discurso. E, nessa perspectiva ela é tratada como interdiscurso. Cada ponto
onde um conhecimento se cruza com outro para produzir um novo sentido é o que se
entende por interdiscurso, a articulação de diferentes formações discursivas.

Este [o interdiscurso] é definido como aquilo que fala antes, em outro


lugar, independente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva:
o saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna sobre
a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,
sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza
dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada. (ORLANDI, 2013, p.31).

Nossa memória discursiva não é individual, ativamos uma teia de significados


e construímos nossas ideias a partir da linguagem, ativando saberes de diversos campos,
de diversas formações discursivas, perpassados por várias ideologias. A memória,

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portanto, engendra efeitos de sentidos múltiplos, os quais são mais que simples
retomadas: são deslocamentos:

[...] a memória não poderia ser concebida como uma esfera plena,
cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria
um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um
espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.
(ACHARD, 1999).

É esta memória, resgatada pelos discursos produzidos em nossa sociedade que


constituem o ambiente social em que vivemos, determinando, significando, produzindo
efeitos de sentido em tudo o que está a nossa volta. Com esta reflexão teórica, pretende-
se portanto, refletir sobre o discurso materializado nas imagens de protestos do grupo
feminista FEMEN, a fim de compreender como são produzidos os efeitos de sentido
através de suas imagens de protesto.

2. GUERREIRAS DO FEMEN E OS EFEITOS DE SENTIDO


PRODUZIDOS POR SUAS IMAGENS

Vivemos em uma sociedade bastante fragmentada, fruto de um mundo multi-


identitário de diferentes ideologias. A sociedade capitalista preserva a ideia de
autonomia, de um sujeito “livre”, que acredita que o seu discurso é instrumento do
pensamento e reflexo da realidade (ORLANDI, 2013). No entanto, o confronto deste
sujeito “livre” com outras formações discursivas produz impactos violentos e
inexplicáveis em nosso contexto atual. Em uma sociedade já habituada à luta histórica
dos movimentos feministas por igualdade de direitos, e onde o corpo é explorado
comercialmente pela mídia, diariamente, parece estranho que a exposição do corpo
feminino, como forma de protesto, seja vista tão ofensiva e negativamente.
O movimento internacional feminino FEMEN, seguindo o lema “meu corpo,
minha arma”, luta contra a sociedade patriarcal em suas três manifestações (exploração
sexual da mulher, ditaduras e religião) expondo seus corpos seminus1. Esta estratégia
rendeu ao grupo não só uma grande exposição midiática, mas também despertou o ódio

1
Fonte: femen.org/about

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e a reprovação em outros setores da sociedade. A luta pela igualdade de direitos entre


homens e mulheres vem desde o século XIX, com o início das primeiras ondas do
Movimento Feminista, e segue ainda nos dias de hoje. Mas, apesar de todas as
conquistas alcançadas, nos deparamos ainda com a reprodução de ideologias
extremamente sexistas, e visões estereotipadas das mulheres que lutam para chegar a
esta situação de equidade.
De todos os movimentos feministas existentes hoje, o FEMEN é o mais
polêmico e o que chama mais a atenção. Os corpos seminus das manifestantes, todas
muito bonitas, atraem o interesse da mídia muito mais do que o discurso que produzem
através de suas intervenções. A sedução pela imagem e o gosto por altas margens de
audiência reuni jornalistas e muitas jovens, que mesmo sem um passado militante se
dizem atraídas pelo lado guerreiro e pelo treinamento físico que é requerido para se
fazer parte do movimento. Para estas militantes, este é o único movimento feminista que
lhes permite fazer alguma coisa realmente; o único que supriria sua vontade de agir2.
Fundado na Ucrânia em 2008, inicialmente por Anna Hustol e Inna
Shevchenko – para lutar contra o turismo sexual existente no país – o grupo protestava
de forma tradicional, sem tirar a roupa, mas não conseguiam a atenção da mídia que
desejavam, eram apenas mais um grupo feminista. Foi através da estratégia de
protestarem seminuas, que o FEMEN conseguiu a atenção que pretendia, e é esta grande
cobertura midiática, que segundo as fundadoras do movimento, permite a elas realizar
os tipos de protestos que fazem, nos lugares em que fazem, sem sofrerem consequências
mais severas. É fato que as “Guerreiras do Femen”, como se auto-intitulam, são muito
corajosas. Encaram grupos extremistas islâmicos e católicos, praticamente nuas com os
símbolos sagrados destas religiões pintados em seus corpos, gritando mensagens
extremamente agressivas e ofensivas. As manifestantes normalmente são presas e
levadas à força do local, sofrendo maus tratos e abusos não só nas mãos de autoridades,
mas também por cidadãos que presenciam as intervenções.
A polêmica em torno do grupo não fica somente na forma de protestarem.
Muitos grupos feministas reprovam o discurso confuso do FEMEN, pois os temas nos
quais interferem são heterogêneos, e não se limitam aos direitos das mulheres. Alegam

2
Seins nus : les Femen, phénomène médiatique ou féministe?
http://rue89.nouvelobs.com/rue69/2012/12/23/seins-nus-les-femen-phenomene-mediatique-ou-
feministe-238004. Le Nouvel Observateur, 2012.

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que o grupo possui uma imagem totalmente pop3 e que continuam utilizando o corpo de
forma comercial, para se auto promoverem. Na opinião destes grupos, o FEMEN estaria
indo contra sua ideologia, pois utilizando a nudez como forma de protesto, a mídia
estaria controlando seus corpos.
A Análise do Discurso francesa pretende ir além da Análise Linguística e trazer
à tona o que não é dito, aquilo que é apagado, o que está em jogo (quem ganha e quem
perde), expor ao olhar opaco do leitor aquilo que está interdito, o que não se pode dizer,
o que é proibido. Através da concepção de um sujeito ideológico, interpelado a ocupar
um lugar determinado no sistema de produção; do real da língua, um corpo de interditos
de um sistema de regras atravessado por falhas; e de que a ideologia se materializa na
língua (e nas imagens), a Análise do Discurso possibilita a identificação das formações
discursivas que determinam o que pode ou não ser dito na arena do discurso e como são
provocados os efeitos de sentido.
Neste contexto, este trabalho pretende entender como ocorrem os efeitos de
deslizamentos de sentido, que permitem a reprodução de discursos de intolerância e de
depreciação da imagem da mulher em nossa sociedade, materializados nas imagens de
protesto do grupo feminista FEMEN. De que forma os efeitos de sentido produzidos por
estes protestos remetem a uma imagem comercial dos corpos das manifestantes, o que
entraria em contradição com o seu discurso. Na intenção de combater a utilização
comercial do corpo da mulher, sua inferiorização através da religião e repressão política,
a nudez surge como veículo para que formações discursivas dentro destas três formas
provoquem o efeito de sentido contrário ao pretendido pelas manifestantes.

3. ANÁLISE

A Análise do Discurso objetiva colocar a interpretação em questão, tratando a


língua em sua opacidade e historicidade, diferenciando-se assim de teorias estritamente
linguísticas ou estritamente históricas. Para Pêcheux, o instrumento científico utilizado
deve estar inserido em uma teoria e ao mesmo tempo ser capaz de conduzi-la, em uma
relação de realimentação. Esta relação produz uma ruptura epistemológica, a qual

3
Um exemplo é a capa da revista francesa Les inRockuptible de dezembro de 2012
(http://www.lesinrocks.com/inrocks.tv/les-femen-en-une-des-inrocks-la-video-du-shooting/)

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garante a cientificidade da teoria em questão (HENRY, 1993). Neste sentido, o estudo


do discurso, segundo Mussalim (2004), situa-se num outro terreno, intervindo em
questões teóricas relativas às ideologias e ao sujeito. O discurso é o lugar em que se
confrontam língua, sujeito e ideologia afetados pela história.
Na visão de Orlandi (2013), o analista do discurso trabalha no entremeio da
descrição com a interpretação. A interpretação faz parte do objeto da análise, pois ao
produzi-lo o sujeito interpreta. O analista procura descrever esse gesto de interpretação
do sujeito que constitui o sentido analisado. No entanto, não há descrição sem
interpretação, portanto o próprio analista está envolvido nela. Desta forma, o
mecanismo de análise deverá produzir um deslocamento da relação de sujeito do
analista com a interpretação, permitindo assim o trabalho no entremeio. Este
dispositivo, segundo a autora, investe na opacidade da linguagem, no deslocamento do
sujeito, e no efeito metafórico, isto é, no equívoco, na falha e na materialidade, no
trabalho da ideologia.
Em 2013, o FEMEN realizou um protesto chamado Vagina Dentata. Segundo
Chinchilla Mazariegos (2010):

[...] a vagina dentada, um tema mitológico que se repete en múltiplas


formas ao longo do continente americano, e que também se encontra
muito difundido na área circumpacífica (Berezkin, s.f.).
Essencialmente, os mitos expressam a crença em mulheres terríveis
com dentes na vagina, as quais devoram o membro genital dos
homens que tentam copular com elas e, segundo algumas versões, os
matam. (CHINCHILLA MAZARIEGOS, 2010 – tradução nossa).

O protesto4 foi dirigido à Embaixada Egípcia em Berlin contra a onda de


estupros em massa na praça Tahrir, durante as manifestações da Primavera Árabe. As
manifestantes pediam ao mundo que não considerasse os eventos no Egito como
revolução social, até que a violência contra a mulher fosse exterminada neste país.

4
Ativistas do FEMEN mostraram uma vagina com dentes para o Embaixador do Egito.
Lideradas pela ativista dissidente egípcia do FEMEN Alia El Mahdi sextremistas acusaram as
novas autoridades egípcias dos estupros de mulheres recorrentes e fizeram um chamado aos
egípcios para resistirem a tiranos cruéis. Regimes e presidentes estão mudando, mas as atitudes
selvagens islâmicas com relação às mulheres são eternas. (femen.org/gallery/page/23)

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Imagem 1: Protesto do grupo FEMEN em Berlin


Fonte: femen.org/gallery/page/23

Além da imagem da vagina dentata desenhada em suas calcinhas, a foto


apresenta também o elemento sangue, pintado no corpo das manifestantes, os corpos
nus, e as coroas de flores em suas cabeças. A visão do sangue, em especial a do sangue
menstrual é cercada de taboos e pudores em nosso sociedade. Isto se dá pela concepção
que temos de que o sangue menstrual é algo sujo e impuro, e pelos mitos religiosos que
colocam a mulher como culpada de todos os males da humanidade. Este efeito de
sentido da mulher impura, tem sua origem na formação discursiva dos povos pastoris
(origem da formação discursiva Judaico-Cristã) a partir do século VI a.C5. Dentro desta
formação discursiva Judaico-Cristã, os efeitos de sentido concebíveis para a imagem do
protesto do FEMEN, só podem ser os que colocam a menstruação como algo sujo, que
tem que ser escondido, um castigo divino, algo de que não se pode falar. Mas nem
sempre foi assim.
Nos períodos pré-históricos, Deus era representado pela figura de uma mulher,
materializada no que se chamou a Grande Mãe (a Mãe Terra, Gaia, Pachamama, Vênus
do Paleolítico). Segundo Durães (2009), os mistérios que cercavam o corpo da mulher
davam a ela um caráter mágico, a origem da vida, com calendários de tempo marcados
pelo próprio corpo. O sangue era o símbolo da fertilidade, e o homem ignorava também

5
Segundo Feldman (2006) esta mudança ocorre a partir do período conhecido como Segundo
Período que começa com o Exílio Babilônico e a construção do 2° Templo, por volta de 589
a.C.

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ser parte do processo de criação. Quando o homem se dá conta de que ele também
participava do ato de gerar uma nova vida, e quando a força física se torna essencial
para a sobrevivência (com as atividades de caça, por exemplo), as mulheres perdem o
lugar central que possuiam e se inicia a dominação. A autora afirma que esta
desigualdade entre homens e mulheres, materializada nos textos das escrituras sagradas
das sociedades pastoris, nada mais é do que uma externalização inconsciente do desejo
do homem de gerar a vida. Desta forma, a narrativa da criação da mulher a partir da
costela de Adão coloca o homem como origem da criação.

“Há todo um processo de inversão de valores... Na primeira etapa a


mulher é divinizada e cultuada como geradora da vida e seu sangue
era considerado fértil para a terra enquanto que no relato bíblico, a
mulher levou o homem a pecar e como “castigo” irá parir e o seu
sangue é visto como impuro, ou seja, parir deixa de ser um ato
sagrado para significar sinal de inferioridade. Aquilo que antes lhe
dava grandeza agora a faz impura e inferior.” (DURÃES, 2009).

De fato, a concepção do sangue menstrual como algo impuro permanece na


memória e também é evocada na forma do não dito, do silenciado. Segundo Read
(2008), na Inglaterra medieval, os escritos médicos sobre menstruação eram feitos em
latin, reforçando a ideia de que este tópico não era aberto à discussão explicita. Além
disso, a bíblia Genovesa adotada na época, fazia uso de comparações frequentes entre os
pedaços de tecido utilizados pelas mulheres como absorventes (menstrual cloths ou
menstrual rags) e atitudes pecaminosas, vergonhosas, e que deveriam ser descartadas. O
resultado destes discursos é o silenciamento do tema, e as inúmeras metáforas que
utilizamos ainda hoje para nos referir ao assunto. Apesar da menstruação ser uma
experiência comum a todas as mulheres o tema é ainda fechado à discussões:

“A noção de poluição ou de impureza está ligada àquilo que foge à


capacidade humana de classificar, causando inquietação e incerteza.
Os tabus menstruais e prescrições de separação relativos à mulher
menstruada podem ser considerados exemplos clássicos de aplicação
desse princípio. Seguindo esse raciocínio, a mulher menstruada é um
sujeito liminar, portanto impuro. Subjacente a ele encontra-se o
pressuposto de que apenas o corpo masculino é inteiro, completo,
portanto, não ambíguo.” (CORDOVIL, 2015).

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O silenciamento de temas relativos às mulheres e a concepção da mulher como


ser limiar e impuro, produz ainda efeitos sobre o comportamento da mulher, e “permite”
que crimes com os que ocorreram na praça Tahrir continuem acontecendo.
Na imagem as ativistas do FEMEN colocam flores em seus cabelos, o que
remete aos cultos pagãos que cultuavam a deusa feminina. O ato simbólico reconecta as
manifestantes com a formação discursiva do paleolítico, onde o sangue menstrual
simboliza algo mágico, criador, símbolo da feminilidade e da Grande Mãe,
consequentemente desidentificando estes sujeitos do conceito judaico-cristão de
feminino. Cordovil (2015), em seu trabalho sobre o poder feminino nas práticas da
Wicca6, relata este processo de empoderamento das participantes dos Círculos de
Mulheres, através do resgate de valores femininos (como o cuidado e a solidariedade
entre pares, trabalhos manuais e relatos de experiências), e da inversão de símbolos de
gênero consagrados pela cultura patriarcal. Segundo a autora, a mestruação possui um
papel central nas discussões dos encontros, significando o máximo do feminino. As
participantes relatam suas experiências e sensações durante seus períodos menstruais e a
partir deste ponto discorrem sobre aspectos de sua sexualidade, família, relação com
filhos e com a maternidade, trabalho, conflitos interpessoais, etc. Ao promover este
resgate do universo feminino, o Círculo realiza uma inversão dos valores patriarcais,
utilizando-se dos mesmos símbolos mobilizados pelo patriarcado para dominação da
mulher.
As manifestantes do FEMEN se empoderam destes elementos e do mito da
fêmea castradora para produzir as sequências discursivas pintadas em seus corpos:

“Nós mordemos de volta!” (We bite back!)


“A primavera das mulheres está chegando” (Women Spring is
Coming)
“Você tem que lutar pelo direito de lutar” (You got to fight for the
right to fight)
“Serão milhões de nós” (There will be millions of us)

6
Religião que surge na Inglaterra nos anos 50. Cultua o aspecto feminino da divindade que se
manifesta, entre outras coisas, nos chamados mistérios femininos, como a menarca, a gravidez e
a menopausa. A mulher é considerada fonte primordial da criação, uma vez que tudo emana
dela, inclusive a divindade masculina, que é seu filho e consorte. (CORDOVIL, 2015).

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A imagem de uma revolução movida por milhões de mulheres, que lutam para
ter seu direito de lutar, “castrando” (apagando) os efeitos desta formação discursiva que
inferioriza a mulher, é bastante forte e libertadora. Pode-se concluir que o efeito de
sentido produzido através da imagem e das sequências discursivas presentes nela é:
“Estamos lutando por nossa liberdade!”.
Todos somos sujeitos desta sociedade que privilegia o masculino. Homens ou
Mulheres nascemos, crescemos, somos inseridos na linguagem por esta sociedade, e
consequentemente reproduzimos os discursos que a compõem, repetindo, propagando
efeitos de sentido cristalizados na memória discursiva. Como indivíduos (assujeitados)
interpelados em sujeitos dentro desta formação discursiva carregada de elementos do
pensamento judaico-cristão, não é permitido que se produzam efeitos de sentidos
distintos, ou que as manifestantes exibam seus corpos nus e falem abertamente sobre
temas construídos discursivamente como taboos.

REFERÊNCIAS

ACHARD, Pierre. Papel da Memória. Campinas, SP: Pontes, 1999.


BRUDER, Maria Cristina Ricotta. A constituição do sujeito na psicanálise lacaniana: impasses
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