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O LEGADO DE GURIATÃ:
Rio de Janeiro
2022
Daniel Walassy Rocha da Silva
O LEGADO DE GURIATÃ:
Rio de Janeiro
2022
Daniel Walassy Rocha da Silva
O LEGADO DE GURIATÃ:
Liderança e trajetória de Humberto Mendes, cantador de bumba meu boi no Maranhão
Aprovada por:
Suplentes:
Prof. Dr. Wagner Neves Diniz Chaves, PPGSA/IFCS/UFRJ (Interno)
Prof. Dr. Felipe dos Santos Lima de Barros, IFRJ (Externo)
À memória do meu avô Badeco, que de modo (in)consciente plantou
em mim sua esperança de boieiro e estilo de sambista. À minha amiga,
Dona Gina, que não conheceu o Maranhão em vida, mas espero que o
conheça em luz. E aos sete anos de voo do Guriatã!
Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Fiz esta toada p’ra ti, Maranhão
RESUMO
A dissertação tem como tema o bumba meu boi do Maranhão e enfoca as diferentes formas
pelas quais se construiu e se constrói o que chamam de legado de Humberto Mendes
(1939-2015), líder por mais de quatro décadas da Associação Recreativa, Beneficente e
Folclórica do Maracanã (popularmente chamado Boi de Maracanã). Ao focalizar no caso
emblemático deste cantador de boi, a pesquisa investiga sua inserção em um complexo e
heterogêneo sistema cultural, no qual Humberto Mendes individualiza-se e constrói sua
imagem artística influente no meio boieiro maranhense e no cenário mais amplo da cultura e
da música popular brasileira. Envolvidos nesta análise estão o contexto histórico do bumba
meu boi, a teia de relações em meio à qual o Batalhão de Ouro do Maracanã constrói sua
identidade e envolve os mais diferentes segmentos e instituições sociais, além das memórias
dos brincantes, membros comunitários e admiradores desse cantador que passou a ser
conhecido popularmente como Guriatã (pássaro raro, pequeno, de canto lindo). A trajetória
desse personagem e as rememorações por parte desse grupo de Boi são reconstruídas e
analisadas com auxílio dos dados etnográficos obtidos ao longo de 2021, de forma remota e
eventualmente presencial em meio ao contexto pandêmico. Examinam-se relatos narrados
pelo próprio Humberto Mendes presentes em fontes bibliográficas e materiais audiovisuais,
além de uma seleção de toadas que compõem o seu repertório musical que prossegue sempre
rememorado e muito valorizado pelo grupo.
Palavras–chave: Cultura Popular; Bumba meu boi do Maranhão; Música (Toada); Cantador -
Humberto Mendes; Compositor.
SILVA, Daniel Walassy Rocha da. O Legado de Guriatã: liderança e trajetória de Humberto
Mendes, cantador de bumba-meu-boi no Maranhão. Dissertação (Mestrado em Sociologia e
Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022. 147f.
ABSTRACT
This dissertation focuses on the bumba meu boi (dance my ox) of Maranhão and analyses the
different ways in which what is locally seen as the legacy of Humberto Mendes (1939-2015),
was, and still is, built. Mendes was the leader for more than four decades of the Associação
Recreativa, Beneficente e Folclórica from Maracana (popularly called Boi do Maracanã). By
focusing on the emblematic case of this singer and composer, the research investigates his
insertion in a complex and heterogeneous cultural system, in which Humberto Mendes
individualizes himself and builds his influential artistic image in Maranhão and in the broader
scenario of Brazilian popular culture and popular music. The historical context of bumba meu
boi and the web of relationships in which the “Golden Battalion of Maracanã” builds its
identity are considered. This involves different social segments and social institutions, in
addition to the memories of the players, community members and admirers of this singer who
became popularly known as Guriatã (rare, small, beautiful bird). The trajectory of Mendes
and recollections of his doings by the Boi group are reconstructed and analyzed thanks to
reports and stories narrated by Humberto Mendes himself in bibliographic sources and
audiovisual materials, that also provided a selection of tunes (toadas) that made up his
musical repertoire cherished by the group. In the midst of the pandemic context, field work
was done basically remotely, with the help of eventual full presence in São Luís.
Keywords: Popular Culture; Bumba meu boi (Dance my Ox) from Maranhão; Tunes (Toada);
Singer (Humberto Mendes); Composer.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO e AGRADECIMENTOS……………………………………………...10
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................13
1 CONTEXTOS E ALGUMAS NOÇÕES DO BUMBA MEU BOI……...………....13
2 ENTRE A FAMILIARIDADE E A PESQUISA ANTROPOLÓGICA…...…….…22
3 O BOI DE MARACANÃ E HUMBERTO MENDES…….…………...…………..25
APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS
permeadas pela rivalidade com outros grupos e cantadores de boi. Também destaco a projeção
atingida por ele e seu grupo liderado na cultura e música populares brasileiras.
O terceiro capítulo, “Repertório de vida do Mestre”, baseia-se nas noções e métodos
da antropologia musical e etnografia do som. Para isso, selecionei algumas toadas dentre as
inúmeras composições de Humberto Mendes, analisadas de acordo com o processo de escuta.
Também me preocupo em apreender o ponto de vista nativo, descrevendo as performances do
Batalhão de Ouro que se orientam pelas especificidades do sotaque de Matraca/da Ilha. As
diferentes finalidades, os diversos formatos, estilos e temáticas das toadas são lembrados em
associação aos contextos da trajetória de vida de Humberto de Maracanã e da formação e
consolidação do próprio grupo diante dos contrários num processo que reforça sua identidade
dentro do sistema cultural do bumba meu boi maranhense. As toadas ouvidas e selecionadas
foram obtidas em diferentes canais e plataformas de áudio ou vídeo da internet.
É dessa forma que proponho a divisão dessa dissertação, de modo a compreender o
sistema cultural do boi maranhense, a partir das perguntas de pesquisa feitas em torno do
exame da trajetória de vida do personagem central de Humberto Mendes e de seu grupo do
Bumba meu boi de Maracanã. Nas conclusões, retomo brevemente os principais pontos
indicados nos capítulos.
*****
comigo nas andanças pela cidade, motivadas pela pesquisa. Muito obrigado também aos
amigos Ana Angélica Menezes, Maria de Fátima Aquino, Thais Duarte, Benedita Mendes e
Paulo Gustavo que me deram um apoio moral e emocional desde a graduação!
Agradeço, profundamente, à minha orientadora profª Maria Laura Cavalcanti que foi
muito paciente na condução e construção deste trabalho. Sua mentalidade muitas vezes me
surpreendeu por compreender o que eu pensava nos momentos mais difíceis de
desenvolvimento da pesquisa e também por acreditar no meu esforço. Obrigado por participar
deste projeto de vida! Sou grato também às conversas com os amigos que integraram o
Núcleo de Estudos Ritual e Sociabilidades Urbanas (RiSU/UFRJ): Ricardo Barbieri e Mauro
Cordeiro.
Agradeço aos professores João Miguel Sautchuk e Tatiana Bacal que aceitaram de
prontidão integrar a banca deste trabalho desde a qualificação, por darem tantas dicas que me
fizeram desenvolver o raciocínio das ideias e hipóteses, sugerindo referências relevantes e
condizentes com o estudo. Reitero aqui também minha sincera gratidão pela disponibilidade e
interesse dos professores Felipe Barros e Wagner Chaves.
Agradeço ao corpo docente do PPGSA/UFRJ e aos companheiros das ciências sociais,
que com suas visões de mundo me ajudaram a entender que o trabalho acadêmico só tem a
ganhar com a interação e diversas outras leituras. Em especial, reitero minha gratidão aos
amigos Ricardo Lage e Thais Vilar que mantiveram o interesse e ânimo em acompanhar essa
pesquisa.
Agradeço aos brincantes e amantes do Bumba meu boi de Maracanã, na figura da
presidente Maria José, que dentro das possibilidades e limites impostos pela pandemia,
ajudou-me com informações a respeito de Mestre Humberto e das atividades do grupo ao
longo de um ciclo junino e ano fora do normal. Fica registrado aqui o meu agradecimento
profundo à Wilmara Figueiredo, que criou pontes quando estive em São Luís do Maranhão e
me recebeu no seio do samba, na Turma de Mangueira.
Agradeço também à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior) que financiou este trabalho nos últimos dois anos. Fazer pesquisa no período
pandêmico, no contexto de redução de investimentos em ciência, desmonte das universidades
públicas e muito negacionismo, é mais que uma vitória! Por isso, minha gratidão sincera aos
corpos e mentes que resistiram em nome da cultura e da ciência brasileiras neste momento de
dificuldades!
13
INTRODUÇÃO
“Sr. Redactor - Moro no Bacanga e poucas vezes venho à cidade. Mas tenho um compadre que me fica
visinho, que não passa festa que não venha assistir a ella. Pela de S. João veio elle, só para ver as
correrias do Bumba-meu-boi, e na volta contou-me as seguintes novidades que por duvidar um pouco
déllas, tencionei contar-lhas para me fazer o favor de dizer si são ou não verdadeiras. Disse-me o tal
meu compadre, que na noite de São João houve muitos fogos: que andavão malocas de 40 e 50 pessoas
pelas ruas armados de buscapés, todos mui alegres que a Polícia não prendeo a ninguem por quanto
nenhuma desordem acontecera. Ora Sr. redator, que dirão a isto os meus senhores das revoluções? (....)
que já não se dão passaportes para o interior da província: que já não se prende a ninguém por ler o
Farol: que o cidadão anda alegre, toca, dansa, tudo à sombra das ballas que vem da Fortaleza". (Farol
Maranhense apud Cavalcanti, 2006a, p. 18)
1
No meio social maranhense, é comum se referir ao bumba meu boi também como bumba-boi ou simplesmente
Boi, termos que serão utilizados ao longo deste trabalho.
2
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
14
Destaco também outros dois registros posteriores que ajudam a entender o panorama
do contexto inicial do bumba meu boi no Maranhão. O primeiro foi apontado por Renata
Prado (1977) e lembrado por Luciana Carvalho (2011). Foi uma crítica, divulgada pelo jornal
“O Imparcial” de 15 de julho de 1861, sugerindo a cassação da brincadeira nas ruas:
“Quando uma grande parte da população se empenha por fazer desaparecer os busca-pés, por serem
fatais, concede-se licença para estúpido e imoral folguedo de escravos denominado bumba-meu-boi,
incentivo para os busca-pés, e admira-se mais que isto aconteça, quando há anos a presidência ordenou
à polícia que não consentisse esse folguedo, por ser oposto à boa ordem, à civilização e à moral.
Quando por causa do bumba-meu-boi não aparecem cacetadas e mesmo facadas, é causa de uma
enorme algazarra que prejudica o silêncio perturbando o sossego que deve haver para o sono, sossego
que cumpre à polícia manter. Nós esperamos que a polícia reconsidere no passo irrefletido que cometeu,
para não ser ela responsável perante a opinião pública, do mal que houver por causa do
bumba-meu-boi.” (Prado, 1977 apud Carvalho, 2011, p. 160)
Esses registros mostram o panorama dos primórdios do bumba meu boi nos quais
eram praticadas disputas entre os grupos e intensas repressões das forças públicas oficiais de
segurança. As camadas médias e elites da cidade de São Luís também pouco compreenderam
e aceitaram as brincadeiras de boi: “(...) no Maranhão ainda era válido proibir as
manifestações de cultura negra, indígenas ou mestiças, pois essas sinalizavam a
impossibilidade de edificar a tão desejada França Equinocial3” (Sanches, 2003, p. 80).
Carvalho (2011, p. 161) aponta que alguns autores interpretam essa visão preconceituosa e de
rejeição por parte das camadas altas maranhenses como consequência da associação dos
negros, mestiços e pessoas pobres de um modo geral com a revolta da Balaiada (1838-1841)4,
que marcou a província no período regencial do Império do Brasil. Mas a autora entende que
esses registros também expõem como a brincadeira de boi ainda não tinha caráter civilizado,
ou seja, seguindo as normas e padrões do período.
Maria Michol de Carvalho (1995, p. 37) afirma que, no período entre 1861 e 1867,
houve uma forte campanha contra a realização do bumba meu boi, a qual resultou na
3
É o nome dado a um projeto de colonização francesa das terras portuguesas, presentes nas proximidades da
linha do Equador. Um dos resultados das expedições náuticas foi a fundação de um forte, em 1612, em terras
maranhenses onde hoje se encontra a capital São Luís (Fernandes, 2017).
4
Revolta liderada pelo vaqueiro Raimundo Gomes, artesão Manoel dos Anjos Ferreira e quilombola Cosme
Bento de Chagas. Seu nome é uma referência a uma parcela dos revoltosos que eram produtores de balaios,
cestos artesanais comuns na região. A Balaiada surgiu como um levante social por melhores condições de vida
aos vaqueiros, artesãos, escravizados e outras pessoas desfavorecidas. Apesar de boa parte de suas lutas ter se
estabelecido no interior oriental do estado, existiram reflexos em São Luís, capital maranhense. A revolta foi
desmantelada após a chegada das tropas oficiais do Império, comandadas pelo coronel Luís Alves de Lima e
Silva. Os líderes tiveram destinos diferentes: Manoel foi morto numa disputa, Raimundo expulso da província e
morto a caminho de São Paulo e o negro Cosme foi enforcado. O coronel militar tornou-se Barão de Caxias
(Bezerra, 2022).
15
(...) Que importa que nas melhores horas do somno [sic] e do socego [sic] as paredes dos aposentos
estrondeassem com os gritos do boi, se todos nós tivemos a incommensuravel [sic] fortuna de ver
renascido o folguedo com que tanto se divertiram nossos pais e nossos avós?” (...) Nesta última
quinzena, que é contada de 12 de junho até o dia do corrente mez [sic], o chronista [sic] tomou nota de
uma sábia resolução que parecia já prescrita pelos nossos costumes, para o fim de louvar ambas a
cousas [sic]. Hurrah! Pelo ato da polícia e viva o Bumba! (...). (Semanário Maranhense, 1868 apud
Iphan, 2011, p. 36 e 41)
Além de dar indícios de que a brincadeira de boi se encontrava há pelo menos duas
gerações entre os maranhenses, esse registro comemora o fato de autoridades policiais
permitirem o retorno da brincadeira. Assim se procedeu até os primeiros anos do século XX,
quando os grupos de bumba meu boi deveriam pedir autorização para ensaiar e sair nos
festejos juninos, restringidos aos bairros do João Paulo e Areal (atual Monte Castelo), Anil e
zona rural da Ilha de São Luís. Era uma época em que ocorriam com frequência disputas e
brigas entre grupos de mesmo ou diferentes estilos. A polícia punia drasticamente os grupos
de boi que brigavam nas ruas, com cassação de licenças e até proibição das apresentações
(Iphan, 2011; Sanches, 2004).
Entre os anos de 1920 e 1950, as brincadeiras de boi teriam sido liberadas
intermitentemente para se apresentar nas ruas da cidade de São Luís. Porém, de acordo com o
dossiê de registro do bumba meu boi pelo Iphan (2011, p. 56), um exemplo de mudança de
configuração nas liberações dos grupos ocorreu em 1955, quando o Boi da Maioba, de
Hilário, foi convidado a se apresentar para uma comitiva do candidato à vice-presidência do
Brasil - João Goulart - no Palácio dos Leões, sede oficial do governo do Maranhão, durante a
gestão Eugênio Barros (1952-1956). Percebe-se que nesse período ocorreu uma intensificação
na interatividade entre os grupos de boi e outras camadas sociais, instituições, órgãos públicos
e as elites ludovicenses5.
Nos meados do século XX, os intelectuais se interessaram ainda mais em acompanhar
5
Gentílico referente à naturalidade na cidade de São Luís do Maranhão.
16
6
Um dos exemplos é a experiência etnográfica de Luciana Carvalho (2011) que passou por dificuldades na
procura das encenações do auto do boi como descritas na história da literatura acadêmica brasileira. A autora
percebeu também que os membros, ligados aos grupos maranhenses de bumba meu boi do sotaque de zabumba,
preferem usar outras nomenclaturas para as inúmeras narrativas encenadas durante as apresentações, como
matanças, comédias ou palhaçadas.
18
Entre os anos de 1950 e 1960, houve uma aproximação na relação entre o estado e a
brincadeira de boi. Durante os governos de Newton Belo (1961-1966) e José Sarney
(1966-1970), teriam se introduzido as primeiras iniciativas para atrair capital gerado pelo
turismo cultural no Maranhão. O bumba meu boi, num conjunto de expressões da cultura
popular consideradas características no estado, foi o foco de novas políticas públicas. Esse
projeto de incentivo e fomento pode ser relacionado à atuação do Movimento Folclórico
Brasileiro - que utilizou estratégias de promoção do folclore em diferentes esferas do poder
público e nas escolas entre 1947 e 1964 -, constituído por algumas pessoas presentes nas
elites locais e nos espaços acadêmicos ou de discussão do folclore. No caso maranhense, os
nomes dos folcloristas Domingos Vieira Filho e Zelinda Lima teriam se destacado
(Cavalcanti, 2009).
O primeiro integrou a Subcomissão Maranhense de Folclore a partir de 1948, foi
mediador entre os estudiosos, articulador de dados culturais, criou departamentos precursores
do que viriam a ser a Func (Fundação Municipal de Cultura) e a Maratur (Empresa
Maranhense de Turismo). A segunda teve um importante papel na inserção dos grupos
folclóricos maranhenses no circuito turístico, quando liderou ambas as instituições,
organizadas pelo poder público, respectivamente em 1971 e 1976 (Martins, 2015, p. 115). No
âmbito nacional, houve também uma confluência de outros fatores indiretos que contribuíram
para essa nova etapa mais institucionalizada, como a criação da Embratur, em 1966, e da
Funarte, em 19767.
Aproveito essa etapa de mudanças significativas das relações e configuração do bumba
meu boi maranhense para lançar luz sobre as noções de cultura popular e folclore. Alguns
estudiosos dos campos das humanidades se dedicaram a discutir e compreender os aspectos
dinâmicos e heterogêneos dessas noções. Começo citando Edison Carneiro (2008), estudioso
que já liderou o Movimento Folclórico no Brasil nos anos de 1960. Ele considera o folclore
como um conjunto de modos de agir, pensar e sentir das camadas populares, integrado a um
continuum do conhecimento, cujas extremidades são o empírico popular e o científico dos
letrados8. Na sua visão, o folclore é essencialmente dinâmico e seu processo construtivo se dá
a partir das relações sociais e culturais entre o povo e outros estratos da sociedade no tempo.
Ou seja, as relações de poder e hierarquias dessas relações são tão importantes quanto a
7
Cavalcanti, op.cit.
8
Ibid, p. 3.
19
interação entre tradição e inovação. Carneiro (2008, p. 4) reconhece que, em todas elas, a
sociedade de um modo geral contribui para a criação e manutenção do folclore.
Para Stuart Hall (2013), a noção de cultura popular surgiu no contexto de mudanças e
transformações sociais durante a transição do capitalismo agrário para o industrial. Nesse
tempo, as tradições e formas de vida das classes populares teriam sido associadas a um lugar
exclusivo de luta e resistência. O sociólogo relativiza essa visão ao considerar que a cultura
popular não é “pura”, “autêntica”, “isolada” e não está fora das relações de poder e
dominações culturais. Na sua visão, portanto, ela é um terreno sobre a qual são operadas
transformações oriundas de uma tensão contínua, expressada no consentimento ou na
resistência, entre as classes subalternas e dominantes ou “bloco de poder”.
Peter Burke (1989), no entanto, chama a atenção para que os estudiosos focalizem
mais nas interações entre as culturas do povo e as das elites, e menos na divisão entre elas, já
que a cultura apresenta limites muito indefinidos de um modo geral. O historiador entende
esta como um sistema de formas simbólicas nas quais são expressos significados, valores e
atitudes compartilhados. Enfatiza o contexto inicial da noção de cultura popular que surgiu na
Modernidade a partir da interação entre as elites intelectuais e o “povo”, constituído por
artesãos e camponeses na Europa dos séculos XVIII e XIX. Estes eram vistos pelos
estudiosos da época com um olhar romântico e de modo homogêneo. Burke sugere que o
povo se apresenta de modo extremamente variado e inserido numa história.
Gilberto Velho (1994) reconhece que a noção de cultura, na antropologia, está baseada
na relação entre nós e os outros, em diferentes “construções sociais da realidade” ao longo da
história. Porém, com a preocupação de estabelecimento de preconceitos e visões
etnocêntricas, os antropólogos começaram a defender a ideia de relativismo cultural, que
enxerga a cultura como um conjunto de fenômenos socioculturais. Para o autor, nas
sociedades complexas, cujos indivíduos e suas decisões ganham relevância nos papéis sociais
desempenhados, um dos conjuntos culturais básicos é o de culturas populares, enfatizando seu
caráter heterogêneo e plural, isto é, os seus mais variados modos de expressão que se
relacionam e interagem com outras categorias e grupos sociais, inclusiva ou antagonicamente,
de acordo com os contextos históricos e regionais. É dessa forma que se dá sua complexidade
e dinamismo.
Maria Laura Cavalcanti (2001), buscando contextualizar e relativizar as noções de
folclore e cultura popular, afirma que ambas foram desenvolvidas nas raízes do Movimento
20
Romântico europeu que se difundiu nas Américas, a partir dos meados do século XVIII,
quando foi percebida uma diferenciação entre os modos de vida e saberes das elites e do povo.
No Brasil, o caráter dinâmico dessas noções teria ganhado força com o Movimento
Folclórico, a partir dos estudos dos folguedos e das festas populares. Na contemporaneidade,
a dicotomia entre cultura popular e das elites teria sido superada. Na visão da autora, a cultura
e o saber populares são processos heterogêneos, históricos, comunicativos e complexos
constituídos por significados que integram arenas socioculturais de tensões e conflitos entre as
diferentes camadas e grupos sociais.
Minha intenção com essa discussão entre os autores é ressaltar o caráter dinâmico, a
natureza interativa dos processos culturais e a complexidade presentes nas noções de folclore
ou cultura popular, interpretadas como sistemas, conjuntos ou locais de elaboração de
símbolos e relações sociais desencadeados nos mais diferentes contextos. Essas noções não
são vistas nas discussões contemporâneas como algo imutável e isolado. O bumba meu boi do
Maranhão é um exemplo claro de como seu processo de formação está ligado à diversidade de
relações e interações socioculturais, ultrapassando as barreiras sociais e simbólicas existentes
na sociedade mais ampla e que resulta num espaço interativo, onde essas noções se
reconfiguram e integram os diálogos e trocas econômicas ou socioculturais entre grupos
nativos e outras instituições, órgãos públicos ou diferentes camadas sociais.
Nos anos de 1970, os grupos de bumba meu boi teriam passado por um forte processo
de institucionalização, tornaram-se pessoas jurídicas a fim de receber recursos diretamente
das instituições turístico-culturais do Estado, além de realizar viagens nacionais e
internacionais como representantes da cultura maranhense. O boi tornou-se, assim, emblema
de uma identidade cultural do estado (Iphan, 2011; Sanches, 2003). Um grupo ilustrativo que
integrou esse contexto de diversificação das interações com a sociedade mais ampla foi o Boi
de Pindaré9, considerado como um dos exemplos pioneiros ao gravar toadas, num estúdio do
Rio de Janeiro, para um álbum lançado em LP, em 1972 (Martins, 2015, p. 110-113).
9
Caroline Martins (2015), na sua dissertação “Política e Cultura nas Histórias do Bumba meu boi”, analisa de
modo exemplar o caso do Boi de Pindaré, do sotaque da Baixada, a partir de registros na imprensa maranhense e
entrevistas com membros do grupo sobre o momento de escolha, pelo poder estadual, para representarem a
cultura local em viagens e na gravação de um LP. A autora lança luz sobre a questão de direitos autorais deste
álbum que é considerado marcante na memória oral maranhense. O cantador do grupo na época, Coxinho, não
foi registrado como autor da gravação e composição da toada “Urrou do Boi”, instituído por lei estadual em 1991
como “Hino do Folclore Maranhense”, além de outras que compuseram o citado álbum.
21
10
Categoria nativa referente ao ato de brincar boi, reforçado no meio social do boi maranhense.
11
Na tese “As mediações do Bumba meu boi do Maranhão”, Cardoso (2016) faz ao longo do trabalho uma
comparação das políticas de financiamento turístico-culturais entre os mandatos de José Sarney (1966-1970) e de
sua filha, Roseana Sarney (1995-2002), nos grupos de bumba meu boi. A autora ressalta que, no primeiro
momento, a responsabilidade era encabeçada pela Maratur; no segundo, o Centro de Cultura Popular Domingos
Vieira Filho (CCPDVF) teve um papel crucial para a formação de um banco de dados e cadastro desses grupos
como pessoas jurídicas. Na sua visão, a institucionalização do bumba-boi foi intensificada nos anos de 1990.
12
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
22
São Marçal), como o dia nacional do bumba meu boi (Iphan, 2011, p. 65). Todo esse processo
culminou com o reconhecimento, em 2011, do complexo cultural do bumba meu boi
maranhense como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Iphan. E oito anos depois, em
2019, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco, ligada à Organização
das Nações Unidas.
Na atualidade, a brincadeira de boi no Maranhão é praticada majoritariamente por
pessoas oriundas das periferias da Grande São Luís ou do interior do estado, como
lavradores, estivadores, pescadores, estudantes, aposentados, professores, funcionários
públicos, pequenos comerciantes, trabalhadores informais e afins (Iphan, 2011). O bumba
meu boi tem agregado cada vez mais membros oriundos de outras localidades, das camadas
médias e intelectuais. Em junho e julho, elas se deslocam vindas dos arredores de toda
Grande São Luís para levar alegria e devoção aos principais arraiais juninos, montados nos
bairros da capital.
Um componente importante das festas de boi são as toadas - gênero musical
característico que serve de base para as mais diversas apresentações dos grupos. De acordo
com o dossiê de registro do bumba meu boi pelo Iphan (2011), no Maranhão, algumas delas
orientam uma sequência de apresentação, porém podem receber denominações específicas
dependendo de suas finalidades ou alusão ao tema de morte e ressurreição do boi.
Foi a partir das toadas que mergulhei no sistema cultural do bumba meu boi.
13
É um bairro pertencente ao município de Paço do Lumiar, integrante da região metropolitana de São Luís do
Maranhão.
14
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=SAXjch02gOI>. Acesso em 18 fev. 2022.
23
grupos folclóricos, convidados por eles ou pela vizinhança. Cresci ouvindo e admirando o
bumba meu boi ao longo dos anos.
Na adolescência, continuei nutrindo admiração pelos bois e outras expressões da
cultura popular maranhense, assistindo aos arraiais espalhados pela Grande São Luís. No
terceiro ano do ensino médio, em 2011, tive a oportunidade de ser brincante de bumba meu
boi durante uma gincana cultural da escola. Nossa turma ficou encarregada de dançar o boi do
sotaque de Zabumba para uma atividade desse evento. Para isso, visitamos o barracão do Boi
de Leonardo, localizado no bairro da Liberdade, que nos apoiou com o empréstimo das
indumentárias a fim de nos apresentar em grande estilo. Eu desempenhei o papel do miolo do
boi, ou seja, fui responsável por ficar dentro da carcaça do animal-artefato e dar-lhe vida
durante a performance. Além de possibilitar aproximação com a dimensão prática da
brincadeira, essa experiência fortaleceu meu entendimento do significado de uma expressão
cultural na convivência social e compartilhamento de símbolos. Como consequência, minha
turma garantiu a maior nota do concurso de danças juninas e venceu a gincana cultural
naquele ano.
Até a adolescência, não tive contato muito próximo ao Boi de Maracanã - cujo
cantador era Humberto Mendes15 - que constitui o foco desta pesquisa -, certamente pelo fato
de minha família materna ser mais simpática ao boi rival, o Boi da Maioba. Porém, quando
ouvi e assisti ao vivo pela primeira vez Humberto de Maracanã e seu grupo no arraial do largo
de São Pedro, no centro de São Luís, fui surpreendido pela organização da apresentação e
exaltação da cultural local nas toadas. Comecei a pesquisar e ouvi-las, nutrindo uma
admiração pelo talento desse mestre. Após me graduar em Comunicação, no ano de 2016,
cogitei fazer um estudo focado nesse personagem que, a partir de seu trabalho artístico e
sociocultural, conseguiu projeção e reconhecimento como intérprete e compositor dentro e
fora do universo do bumba meu boi maranhense.
A intenção com esta pesquisa de mestrado é a de voltar à minha terra-natal com um
olhar antropológico sobre um tema de estudo relevante para a cultura maranhense. Nesse
aspecto, seguindo as discussões de DaMatta (1978), quando os pesquisadores mudam o olhar
para si e interagem com o que está ao seu redor, há um processo de estranhamento,
15
Humberto Barbosa Mendes (1939-2015) atuou no Bumba meu boi de Maracanã a partir de 1973 e o liderou
entre 1981 e 2015. Será chamado nesta pesquisa de diferentes formas: Humberto Mendes, Humberto de
Maracanã (nome artístico), Guriatã (alcunha/apelido) e Mestre Humberto (nome usado por algumas pessoas do
meio boieiro, pelos órgãos oficiais da imprensa e do poder público).
24
Nos últimos 20 anos e de modo mais intenso na última década, a cultura popular
maranhense perdeu personalidades importantes de seu cenário, reforçando a necessidade de
uma troca geracional entre antigos mestres e novas lideranças. Dentre os grupos de bumba
meu boi que perderam seus antigos e carismáticos líderes, é possível citar as mortes de Mestre
Leonardo do Boi da Liberdade (2004), Mestre Donato do Boi de Axixá (2014), Mestre
Apolônio do Boi da Floresta (2015) e o cantador João Chiador dos Bois da Maioba e de
Ribamar (2017).
Humberto Mendes faleceu em 2015. Mas, antes disso, foi reconhecido pelo Ministério
da Cultura como mestre popular brasileiro em 2008 (Carvalho, 2020); recebeu a Medalha de
Honra ao Mérito La Ravardière pela Câmara de Vereadores de São Luís em 1998; e
homenagens na Assembleia Legislativa do Maranhão (O Estado, 2008). Postumamente, em
2015, seu nome foi dado ao reformado Parque Folclórico da Vila Palmeira16, tradicional praça
de realização de arraiais durante o período junino na cidade de São Luís (O Imparcial, 2015).
O Bumba meu boi de Maracanã desenvolveu um álbum especial, chamado “Aldeia
Tupinambá” (2020)17, com toadas inéditas e regravadas, dedicadas ao grupo e seu antigo
cantador. Esse álbum também contou com a participação de alguns intérpretes conhecidos na
Música Popular Brasileira como Alcione, Chico César, Zeca Baleiro e Fauzi Beydoun.
Em 2020, no início da pandemia de Covid-19, produtoras de audiovisual liberaram ao
grande público, nas plataformas de vídeo Youtube e Vimeo, documentários apresentando o
universo do Boi da Ilha, do Batalhão de Ouro18 e da liderança de Mestre Humberto. Portanto,
16
Ação durante a gestão do primeiro mandato do governador Flávio Dino (2015-2022).
17
Link: <https://open.spotify.com/album/17FTZcp9EMFPDKSg3dNYhC?si=Wtc1moy9R-uuIZEMKM2C7A>.
Acesso em 27 jan. 2022.
18
Autodenominação utilizada pelos integrantes e simpatizantes do Bumba meu boi de Maracanã.
26
este personagem tem sido lembrado de inúmeras maneiras, a partir de ações e reproduções
sonoras ou imagéticas disponibilizadas pela comunidade do Maracanã em parceria com outros
grupos, instituições e camadas sociais.
Por meio dessas recentes movimentações e observações, ao longo da pesquisa comecei
a me indagar sobre a existência de uma estratégia consciente do grupo folclórico do Maracanã
elaborada para reforçar o trabalho desenvolvido por seu antigo mestre, além de cultivar sua
memória por meio de diferentes formas narrativas. Esta pesquisa busca, assim, analisar as
formas pelas quais se construiu ou se constrói o que chamam de legado de Humberto Mendes
pelo grupo do Bumba meu boi de Maracanã no cenário da cultura popular.
A partir disso, busco ao longo dos capítulos responder algumas questões mais
específicas:
● Como a liderança e o talento de Humberto Mendes se configuraram e ajudaram seu
grupo a conseguir projeção e se inserir na teia de relações sociais amplas com os
mais diferentes segmentos, grupos e instituições que perpassam a cultura popular
maranhense?
● Quais estratégias, símbolos, performances ou situações reforçaram a identidade do
grupo, comandado por Humberto Mendes, diante dos contrários19 no universo do
Boi da Ilha/de Matraca20?
● Como se deu a construção simbólica de Humberto Mendes como a voz do
Maracanã? Quem são os atuais responsáveis por suas antigas responsabilidades e
funções dentro do grupo do Boi de Maracanã? Tudo indica que esse mestre tenha
se preocupado em transmitir gradualmente suas atividades ou funções dentro do
Boi para alguns membros de sua família e amigos, antes de falecer em 2015.
● Quais etapas marcam sua trajetória de vida que culminou com o seu
reconhecimento como grande mestre e cantador de boi por todo o mundo social do
bumba-meu-boi maranhense? Esse talento foi percebido também por grandes
nomes da MPB21, políticos e estudiosos que passaram a fazer parte das relações
19
No bumba meu boi maranhense, está relacionado a algo ou alguém que não pertence ao seu grupo. É uma
construção simbólica daquilo que é outro. Tem uma conotação de rivalidade e competitividade, principalmente,
nos grupos de Boi do sotaque da Ilha/Matraca.
20
Um dos sotaques ou estilos de bumba meu boi presente no sistema cultural maranhense. Maiores explicações
no Capítulo 1 desta dissertação.
21
A cantora Alcione interpretou “Maranhão, meu tesouro, meu torrão”, no disco “Ouro e Cobre” (1988); Maria
Bethânia gravou “A Coroa”, no CD “Pirata” (2006). Outras regravações foram feitas por artistas maranhenses,
como Claudio Pinheiro, Rosa Reis e Roberto Ricci (Carvalho, 2020; Viana, 2017).
27
Uma das hipóteses que me orienta é a de que seu papel de liderança e reconhecimento
pelos trabalhos e composições musicais foi construído no contexto da rivalidade que
caracteriza os ambientes dos Bois e que contribuiu para seu processo de diferenciação
recíproca. A fama de Humberto Mendes teria, a meu ver, feito com que outros grupos de Boi
de sotaque de matraca rivalizassem com o Batalhão de Ouro e o Guriatã22. As temáticas de
exaltação às riquezas das terras maranhenses, memórias individuais ou do grupo e a influência
das religiões de matriz afro-indígena podem ter favorecido uma identificação das camadas da
população de São Luís, e mesmo do Maranhão, com a linguagem e as imagens trazidas por
suas composições.
Ao enfatizar a construção da trajetória de Humberto Mendes como Humberto de
Maracanã, percebi a relevância do conceito de projeto individual, proposto por Velho (1994,
p. 40), para “ajudar a análise de trajetórias e biografias enquanto expressão de um quadro
sócio-histórico, sem esvaziá-las de suas peculiaridades e singularidades”. Ou seja, esta
pesquisa ganha complexidade ao tratar de um indivíduo inserido em um contexto
sociocultural dentro de um grupo, com interações na diversidade do sistema do bumba meu
boi e que transitou por outras camadas sociais. É um jogo intenso entre categorias como
indivíduo e grupo, privado e público, laico e religioso, oral e escrito/registrado.
Portanto, esta dissertação se propõe a articular os dados que pude reunir sobre a
trajetória, composições e liderança de Humberto Mendes dentro do Boi de Maracanã; a
analisar seu repertório musical com projeções para além das fronteiras do Maranhão, sem
esquecer de abordar as estratégias ou discursos atuais do grupo para a defesa de um legado de
Guriatã.
22
Também conhecido como gaturamo-verdadeiro, é uma ave de pequeno porte com canto melodioso, de força
vocal e perfeitas execuções. É assim designado nos estados do Pará, Maranhão e Bahia (Wikiaves, 2021).
Segundo Humberto Mendes, é tradicional os cantadores de bumba meu boi selecionarem o nome de um pássaro
para ser sua alcunha. Na sua escolha, acabou se inspirando na folha da palmeira que normalmente recebe ou
abriga este pássaro. (Mendes, 2008, p.172-173)
28
23
“Ilha Grande” em tupi-guarani. Nome dado pelos antigos indígenas tupinambás à ilha onde se estabeleceu a
cidade de São Luís do Maranhão, que atualmente é a capital maranhense e integra uma região metropolitana.
24
As festas juninas maranhenses são protagonizadas pelos distintos grupos de bumba meu boi, mas existe
também uma variedade de expressões culturais que conquistam a população local, como tambor de crioula,
quadrilhas, cacuriá, dança do lelê, dança do coco e dança portuguesa.
29
oficiais dos distintos grupos da capital em seis sotaques. Para os órgãos do poder público e
instituições que financiam o bumba meu boi, essa categorização facilita o cadastro e a
destinação de recursos financeiros.
Na visão de Luciana Carvalho (2011), baseada em conversas com outros estudiosos
maranhenses, essa categoria de classificação pode ter se iniciado com os folcloristas que
estudaram o bumba meu boi ainda nos anos de 1970. Mesmo sem acesso ao contexto de
origem do termo sotaque, a autora sugere que:
“(...) A filiação a um sotaque determinado funciona como parâmetro de ação e representação para os
brincantes (...) Mais do que diferentes estilos musicais, cênicos e rituais de brincar, os sotaques
correspondem, sobretudo, a perspectivas e lógicas distintas de atualização do idioma boieiro, que é
comum, de certa forma a todo boi maranhense” (Carvalho, 2011, p. 189).
Ou seja, para Carvalho (2011), sotaques não são categorias nativas, mas categorias
analíticas que se “nativizaram” no meio social boieiro, associadas ao caráter dinâmico,
linguístico e comunicativo do processo de simbolização característico dessas inúmeras
expressões. Letícia Cardoso (2016) chama ainda atenção para a importância da percepção
quanto à identificação e uso dessas categorias pelos próprios brincantes de bumba meu boi.
Na atualidade, a convenção classificatória contabiliza pelo menos seis modalidades de
sotaques presentes nos festejos juninos maranhenses:
- Zabumba: originário da cidade de Guimarães, na região do litoral ocidental do
Estado. Este sotaque é considerado pioneiro no bumba meu boi. Caracteriza-se pela presença
de instrumentos como a zabumba, uma espécie de grande tambor tocado com bumbo, e
tamborinhos afinados na fogueira; das tapuias, representações de índias com indumentárias
que apresentam cabelos longos e enfeitados. O ritmo traz um andamento mais acelerado,
considerado por alguns autores como próximo ao samba (Azevedo Neto, 1997).
- Costa de Mão: originário da cidade de Cururupu, próximo ao litoral ocidental do
estado, caracteriza-se por um ritmo resultante da batida de pandeiros, com as costas das mãos
dos brincantes, num andamento mais vagaroso. Destacam-se também as indumentárias dos
caboclos com chapéus de fita em formato cônico. Dentre os sotaques da atualidade, é o que
apresenta menor quantidade de grupos, com presença mais rara nos arraiais da capital.
- Baixada: originário da região do interior ocidental do estado (Iphan, 2011),
caracteriza-se também por um andamento do ritmo mais vagaroso; pela presença de
30
25
Flora Van de Beuque (2010), na sua dissertação “Entre a Roda de Boi e o Museu”, traça um interessante
percurso etnográfico em torno da máscara ou careta do cazumbá, personagem característico do sotaque da
Baixada, no bumba meu boi maranhense. Ela busca entender desde a integração da máscara ao caráter festivo da
brincadeira de boi, passando por sua circulação social em diferentes ambientes e circuitos - da brincadeira aos
museus -, e pela agência de significados, reforçando suas funções rituais. Essa pesquisadora destaca a
importância de se estudar o trânsito das coisas para formar uma “biografia” em torno delas e entender as relações
sociais mais abrangentes. Uma das biografias analisadas neste trabalho é a de seu Abel Teixeira, artesão nascido
em 1939, na cidade de Viana, no interior ocidental maranhense, com quem a autora conviveu durante etnografia,
notando que a trajetória e circulação desse sujeito se confunde com a das caretas por ele produzidas.
26
Existe uma questão polêmica quanto à denominação deste sotaque por parte dos órgãos públicos maranhenses.
O dossiê de registro do bumba meu boi pelo Iphan (2011, p. 95) aponta que, por esse motivo, a categoria
tornou-se uma contraposição àquilo que é considerado mais tradicional no bumba meu boi. Cardoso (2016, p.
60-62) criticou a denominação desta categoria, pois na sua interpretação seria uma forma de alguns intelectuais e
agentes públicos imputar o sentido de não-folclóricos a esses novos grupos, não reconhecendo a dinâmica
cultural do bumba meu boi. O que fica claro, a meu ver nesta discussão, é como o surgimento desta categoria se
articula com o período entre a institucionalização e patrimonialização do bumba meu boi, quando ocorreu um
investimento exponencial de recursos por parte dos órgãos públicos. Ou seja, sua consolidação se deu num
processo de intensas modificações e disputas políticas e socioeconômicas, existentes no meio boieiro.
31
27
O dossiê do Iphan aponta que essa hipótese é baseada na citação do cronista Domingos Sacramento, num
artigo publicado no “Semanário Maranhense”.
28
Categoria nativa referente a dezenas ou centenas de simpatizantes que participam das apresentações como
espectadores, vistos também como apoiadores.
29
Categoria nativa referente ao conjunto de percussionistas, responsáveis por produzir o som característico do
grupo de bumba meu boi, no sotaque da Ilha. Eles seguem fielmente o seu batalhão nas apresentações, em
inúmeros arraiais espalhados por toda São Luís (MA).
32
30
Nascida em 12 de novembro de 1965, entrou no Boi de Maracanã nos anos 1980. Ingressou aos poucos nas
responsabilidades burocráticas do grupo na década de 1990. E no início dos anos 2000, tornou-se presidente com
o apoio de Humberto Mendes.
31
Distante a 3km do Centro da cidade de São Luís.
32
Um dos campus do Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão.
33
Palmeira nativa do estado do Maranhão. Utilizada por moradores rurais como fonte de renda no extrativismo
vegetal e sustentável de suas folhas, palmito e coco para a produção e venda de óleos, artesanatos, leite e outros
derivados.
34
Nome dado localmente à mesma palmeira do açaí, comum na região amazônica. Ela se desenvolve em áreas
próximas aos leitos de rio e pequenos cursos de água. Seus frutos extraídos, ao serem friccionados, dão uma
polpa de cor roxo-escuro.
33
35
Realizada entre 3 e 7 de janeiro, esta celebração abre o calendário festivo e cultural da comunidade, onde são
coroados um rei e uma rainha, resultados de pagamento de promessas. A festa tem cunho devocional, marcado
pelas ladainhas - cânticos/hinos populares (Melo, 2005, p. 36).
36
É uma tradicional festa, criada pela ambientalista Rosa Mochel nos anos 1970, celebrada ao longo dos finais
de semana do mês de outubro. Nos eventos, existem pequenos estandes de venda da polpa natural da juçara,
doces e artesanatos com materiais derivados da palmeira. (ibid, p. 34-36).
34
Figura 3 - Fachada do Barracão do Bumba meu boi de Maracanã. Fonte: Acervo pessoal
37
Para Carvalho (1995, p. 129), esta categoria nativa refere-se ao local estabelecido por cada grupo de boi “onde
uma figura especial na brincadeira reina soberana, sendo reconhecida e aclamada pelo grupo como fonte de
sabedoria e autoridade”. Simbolizado normalmente, nas toadas, como local de moradia do pássaro (cantador).
36
Maracanã. Nosso encontro presencial se deu após algumas tentativas. Mesmo diante das
dificuldades, conversamos rapidamente em frente a um colégio, no bairro da Alemanha38. Não
conversamos no Barracão do Boi, que estava fechado e com atividades paralisadas.
Acompanhada de um dos seus filhos, Maria José foi muito simpática e atenciosa comigo,
entregou-me em mãos um exemplar original do DVD “Guriatã” (2018), documentário
dirigido por Renata Amaral e dedicado ao Mestre Humberto Mendes, além de me indicar
relatos e dados disponíveis nos vídeos e toadas na internet. A partir desse encontro, decidi
acompanhar com mais afinco o Boi de Maracanã de modo remoto.
Assim que comecei a seguir os perfis oficiais do grupo nas redes sociais, verifiquei
que existiam páginas administradas por simpatizantes e fãs do Batalhão de Ouro e uma página
oficial ainda com poucas produções no Facebook. Em 2020, quando a pandemia se iniciava, o
Boi de Maracanã havia organizado pelo menos três lives de caráter solidário no Youtube. Com
arrecadação de recursos e doações para os artistas do grupo, em seu próprio barracão, uma
delas foi mais temática com a encenação do chamado auto do boi e outras duas apresentações
em dias especiais como o de Santo Antônio (13/06) e São Marçal (30/06). Outras publicações
também constam nesta plataforma de vídeo, como o episódio da série documental Visceral
Brasil, “O Mestre do Maracanã” (2014) de Márcia Paraíso, e o filme “Rio do Mirinzá” (2007)
de Olindo Estevam com relatos e toadas compostas por Humberto Mendes. No Instagram, o
perfil oficial apresentou muitas referências ao antigo cantador nos posts, nas mensagens e até
nas seleções das toadas para ilustração de suas postagens. O Boi de Maracanã se encontrava
em processo de construção da parte comunicativa nas redes sociais, com foco em plataformas
que disponibilizassem um alcance maior para veicular suas apresentações e conteúdos naquele
contexto. A fim de obter mais dados e de acompanhar o ciclo junino do grupo, apenas me
deterei nas interações, participações e lives produzidas pelo Batalhão de Ouro em 2021.
No primeiro dia do mês de junho do mesmo ano, recebi por Whatsapp um vídeo,
compartilhado por uma amiga familiar, com imagens do Boi de Maracanã em performance
pelos arraiais de São Luís em tempos normais e com fotos editadas. Ao fundo, versos de uma
toada composta por Humberto Mendes foram executados sonoramente: “Senhor São João,
venha receber/ Esta coisa linda que fizemos p’ra você” (Mendes, 2004b).
Na narração, uma jovem voz feminina exaltava o sentimento nostálgico, agradecia a
Deus por mais um período junino e reforçava a importância dos boieiros continuarem
38
Encontro realizado em frente à unidade escolar do Sesi-MA, na manhã do dia 27 jan. 2021.
37
Figura 4 - Cantadores Ribinha, Humberto Filho e Emmanuel Victor durante live da Casa Cego Aderaldo
Fonte: Reprodução/ Youtube
39
Essa instituição é uma parte vinculada ao Instituto Dragão do Mar do Estado do Ceará. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=AqWq1ZogP3o&list=LL&index=23&t=28s>. Acesso em 18 jun. 2021.
39
A paixão é coisa muito forte. Na realidade, sinto pelas três: Maria Lina, Jandira e Maria. (...) São 32
filhos, contando com os nove mortos: Marilde, Maria Gisele, Maria Domilia, José Ribamar, Gilberto,
Mauricia, Maria da Conceição, Isis Maite, Tiago, Joubert, Cândido, João Batista, Herbert, Janaice,
Itainara, Leudgeria, Açucena, Isadora, Humberto Filho, Janaína, Gilberley, Gilber, Hilberto. Porém
ressalte-se que desses trinta e dois, tem filhos de algumas mulheres que só tive um ‘caso’ e destes
resultou em alguns filhos. Como a Douglarina (mãe de Maria Gisele), Petronilha (mãe de Isis Maitê),
Maria de Fátima (mãe de Thiago). (Mendes, 2008, 189-190)
Portanto, Humberto Mendes teve 32 filhos com pelo menos 6 mulheres diferentes. A
sua forte convivência no Boi contribuiu para que seus familiares o aceitassem, entendessem e
se integrassem à rotina do grupo cultural.41
Voltando às outras duas atividades realizadas pelo grupo de forma remota, uma delas
foi a live organizada pela Rede Massa FM42, além da gravação para o especial “Nossa
Fogueira”, realizada pelo Governo do Maranhão e rede de Supermercados Mateus, com
transmissão na TV Mirante43. Em ambas, os apresentadores se preocuparam em explicar o que
era o Boi de Maracanã e quem foi seu antigo mestre Humberto Mendes. Durante as
apresentações, a maioria dos integrantes do Batalhão de Ouro utilizou máscaras, seguindo os
protocolos de saúde básicos durante a pandemia. Ambas tiveram curta duração, com uma
média de 4 ou 6 toadas interpretadas pelos cantadores Ribinha, Humberto Filho, Emannuel
Victor e Roberto Ricci (presente no especial).
Existiam diferenças entre as duas atividades com relação ao espaço: o da live foi fora
do palco principal, num local mais aberto e com menos iluminação; o do especial foi no
Teatro Arthur Azevedo (o principal da cidade de São Luís) com decoração mais elaborada,
num cenário retratando o largo de uma igreja com fogueira cenográfica, bandeirinhas e
40
Até o ano desta pesquisa, Ribinha tinha 48 anos; Humberto Filho, 42; Emannuel Victor, 18.
41
Ibid., p. 186.
42
Rede nacional de rádio comercial, com operação na região metropolitana de São Luís desde fevereiro de 2021.
Pertencente à família do apresentador Carlos Massa, conhecido em todo país pelo apelido Ratinho. Live
transmitida em 18 jun. 2021.
43
Afiliada da Rede Globo no Maranhão. Integra o Sistema Mirante de Comunicação - formado pela Rádio
Mirante FM, jornal O Estado do Maranhão e Portal Imirante -, administrado pela família Sarney. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=sI66jwNXIyE&t=5208s>. Acesso em 26 ago. 2021.
40
balões, imagens de São Benedito e São Pedro. O Boi de Maracanã aparentemente conseguiu
aproveitar melhor o espaço do Teatro na sua apresentação, já que a performance do grupo foi
mais solta. Na vinheta de abertura do especial televisivo, destaque aos traços de silhuetas dos
considerados mestres e mestras da cultura popular maranhense já falecidos, como Coxinho
(antigo cantador do Boi de Pindaré), João Chiador (antigo cantador do Boi da Maioba e São
José de Ribamar), Dona Teté (criadora da dança do cacuriá44) e Humberto de Maracanã. Ao
fundo, os versos compostos e interpretados pelo último mestre citado: “Esta herança foi
deixada por nossos avós / Hoje cultivada por nós / P’ra compor tua história, Maranhão”
(Mendes, 2007c).
Ressalto também o quanto a toada “Maranhão, meu tesouro, meu torrão” esteve
presente, não só nessas primeiras, mas em todas as apresentações do Boi de Maracanã ao
longo de 2021. Além de evocar a memória do antigo cantador do grupo, essa toada
demonstrou ter uma grande popularidade ao adequar-se em diferentes ambientes onde foi
interpretada e executada. Essa vinheta só reforçou a memória de Humberto Mendes e o
simbolismo elaborado, a partir de uma das suas mais conhecidas composições.
44
Dança sensualizada ao som do toque das caixas da Festa do Divino e flautas. Muito popular nas festas juninas
maranhenses.
41
frente. A cada ano os processos rituais concretos, dos quais as festas são a culminância,
retornam; ao fazê-lo revivem sentidos cosmológicos e ressignificam a experiência coletiva de
múltiplos grupos e segmentos sociais” (Cavalcanti & Gonçalves, 2021, p. 9).
No dia 23 de junho, véspera de São João Batista, o Boi de Maracanã organizou uma
live no Instagram do ritual de Batismo45, que ocorreu no terreiro/barracão do grupo, localizado
na zona rural de São Luís. O ritual do batismo consiste na renovação da promessa do grupo ao
santo padroeiro: ladainhas entoadas por rezadeiras precedem a revelação do novo couro do
boi artefato e no anúncio público simultâneo de novo padrinho ou madrinha. O local estava
plenamente enfeitado com bandeirinhas coloridas, paredes brancas com fotografias do grupo,
porém a parede do altar foi forrada inteiramente com tecidos em estampas de vivo colorido.
Haviam também nela banners com fotografias do antigo cantador, Humberto Mendes, quadro
de São Pedro e o próprio altar. Neste, encontrava-se uma imagem de gesso de São João e uma
foto do cantador em performance. Poucas pessoas ali estavam por conta das medidas de
prevenção da pandemia.
O terreiro do Maracanã, pelas imagens transmitidas na live, aparentou ser um espaço
grande, aproximadamente 25x50m, com duas salas de recepção ao público: uma destinada ao
uso mais social e outra, mais devocional. Todo o ritual de Batismo se deu diante do altar,
reforçando o compromisso da promessa do boi ao santo padroeiro da brincadeira. Uma hora
antes da virada para o dia 24 de junho, uma rezadeira começou a entoar ladainhas46 que
reverenciavam Deus, Nossa Senhora e algumas outras entidades cultuadas no catolicismo
popular. Quanto às ladainhas, consegui entender partes de algumas delas, devido a meu hábito
de ouvi-las a partir de experiências anteriores em outras festas do Maranhão, como a do
Divino Espírito Santo47 e da Queimação de Palhinhas48. No momento em que a rezadeira
exaltou São João nos cânticos, uma pessoa trouxe de outro cômodo a carcaça do Boi toda
coberta de inúmeros panos, que foram retirados e o novo couro revelado. Esse momento da
revelação do novo couro do boi artefato é particularmente intenso. Fogos de artifício
45
Live captada por um celular e transmitida nos stories do perfil oficial do Boi de Maracanã.
46
Cânticos religiosos em português ou latim, apropriados e ressignificados pela tradição oral local.
47
Festa tradicional da cultura popular maranhense, comumente comemorada nos dias que precedem Pentecostes,
data na qual a igreja Católica celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Cristo. Em alguns
terreiros de cultos afro-brasileiros da região, pode ser celebrada nos dias de santos e entidades sincretizados do
catolicismo popular e cultuados nas casas.
48
Festa comemorada nas proximidades do dia de Reis, marcando o encerramento do período natalino com a
queimação de palhas ornamentais dos presépios de devotos.
42
anunciaram a entrada de um novo ciclo anual do grupo e a transição para o período das
apresentações públicas do Boi.
Os padrinhos, Vinícius Rafael (motorista e enfermeiro de 37 anos) e Iraci de Deus
(dona de casa e marisqueira de 45 anos), da comunidade do Maracanã, dirigiram-se à frente
do novo couro e juntos abençoaram-no com água gotejada, a partir de ramos de arruda,
repetindo palavras ditas pela presidente do grupo. O couro do Boi trazia de um lado a imagem
do Sagrado Coração de Maria, da Santa Ceia e de uma Preta Velha. Do outro lado, Santo
Expedito, uma palmeira babaçu e São João Batista. Todas essas imagens estavam bordadas
com canutilhos, miçangas e paetês nas laterais do dorso, porém o nome do couro estava na
parte frontal com o título “Realeza de São João”. O couro do boi, para Albernaz (2004), é o
locus condensado da simbologia do grupo. No caso do couro apresentado para o ciclo de
2021, os bordados traziam implícitos como que um emblema/pedido de proteção contra as
mazelas da pandemia e desejo de fartura para o grupo. O boi-artefato é constituído por três
partes que dão vida e significado ao símbolo mais importante da brincadeira: a
carcaça/capoeira49, cuja estrutura de armação em madeira é composta por cabeça, chifres,
corpo e rabo; o miolo que é o sujeito que se coloca dentro da armação, sendo responsável pela
performance durante as apresentações; e o couro que cobre a armação, onde são bordados
sobre o veludo preto imagens com valor simbólico valorizadas no grupo, como entidades,
lugares e pessoas estimadas ou cultuadas pelos brincantes (Figueiredo et al., 2021). Após a
ladainha, Maria José, a presidente do grupo, explicou a todos que o couro anterior,
denominado “Batalha de São João”, permaneceu por dois anos consecutivos na brincadeira,
reforçando como o ciclo predecessor se prolongou ritualmente no auge da pandemia. Neste
momento, os comentários dos espectadores virtuais eram, em sua maioria, nostálgicos, com
exaltação ao Batalhão de Ouro e elogios ao terreiro, ao couro “Realeza de São João” e à
administração da Associação.
49
De acordo com Figueiredo et al. (2021), é uma categoria nativa referente à carcaça do boi, no sotaque da Ilha.
43
Ribinha, amo do boi, puxou no grupo uma toada breve após o batismo. Os brincantes
esboçaram uma dança diante do altar de São João e depois se dirigiram para a frente do
terreiro/barracão. Seguindo o estilo de seu pai, Ribinha alertou o grupo quanto aos pequenos
erros nas batidas dos instrumentos, cantou algumas toadas, dentre elas uma de exaltação ao
Guriatã como formador de cantadores. Emannuel Victor cantou toadas de reverências às
entidades e uma de provocação direta ao “mafioso disfarçado”, apelido usado por Humberto
Mendes para se referir ao cantador contrário Chagas50. Humberto Filho e Roberto Ricci
também interpretaram suas novas composições. Na tarde do dia 24 de junho, dezenas de
carros dos simpatizantes e brincantes do boi seguiram em cortejo pelas ruas do Maracanã,
demonstrando suas devoções e encerrando as celebrações do dia de São João.
Após o batismo do Boi, outras atividades marcaram a fase de apresentações juninas
do Batalhão de Ouro. As duas primeiras foram lives transmitidas pelo Sinduscon-MA51 em
parceria com o Sesi/Fiema52, e pela TV Assembleia53 na plataforma do Youtube. Ambas
50
Antigo cantador do Boi da Maioba, da Pindoba e atualmente de São José de Ribamar.
51
Sindicato das Indústrias de Construção Civil do Maranhão. Live disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=FPq3pqXlGoU>. Acesso em 25 jun. 2021.
52
Serviço Social da Indústria/Federação das Indústrias do Estado do Maranhão.
53
Emissora local, administrada pela Assembleia Legislativa do Maranhão. Live disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=CyJTRbysag0&t=13365s>. Acesso em 26 jun. 2021.
44
54
Serviço de apoio às micro e pequenas empresas do Maranhão.
55
De acordo com a agência oficial de notícias do Senado federal, “é um termo que define o conjunto de
organizações das entidades corporativas voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria,
pesquisa e assistência técnica, que além de terem seu nome iniciado com a letra S, têm raízes comuns e
características organizacionais similares. Fazem parte do sistema S: Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai); Serviço Social do Comércio (Sesc); Serviço Social da Indústria (Sesi); e Serviço Nacional de
Aprendizagem do Comércio (Senac). Existem ainda os seguintes: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
(Senar); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Social de Transporte
(Sest)”. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/sistema-s>. Acesso em 21
fev. 2022.
45
No dia de São Pedro, o amo Ribinha do Maracanã integrou uma mesa de discussões no
Youtube, com o tema “Bumba meu boi: a prática cultural mais popular do Maranhão”, durante
a XX Conferência Brasileira de Folkcomunicação56, ao lado da pesquisadora Letícia Cardoso,
do cantador Cláudio Sampaio do Boi Brilho da Ilha, da presidente Regina Avelar do Boi de
Leonardo e do mediador Adelson Fernando. Ribinha explicou que o mestre Humberto
Mendes exaltou elementos da natureza, memórias, histórias da comunidade e experiências
pessoais do entorno do Maracanã em suas composições. Destacou também a preocupação
atual do grupo em manter a linha temática e melódica nas toadas, a tradição nas indumentárias
e no respeito aos antepassados.
No dia seguinte, de São Marçal, o Boi de Maracanã disponibilizou um vídeo do
especial “Realeza de São João”57, no Youtube, com imagens editadas do evento de batizado do
Boi e cortejo ao santo padroeiro. Percebi o quanto a imagem de Humberto Mendes é
rememorada pelo grupo de diferentes formas. A começar pelo cartaz de divulgação do próprio
evento nas redes sociais, que trazia o antigo cantador com um maracá na mão. Existia também
uma fotografia dele abaixo de São João no altar, nos banners com reproduções de ícones do
mestre atrás dos apresentadores do vídeo, na porta de entrada do barracão, e também na
pele/napa dos pandeirões. Portanto, é nítida a intenção real de sempre relembrar Humberto
Mendes a partir de suas imagens ou ícones que façam alusão à sua figura. Assim como Barros
(1989), a partir de seus estudos com fotografias de família, considera essas como
imagens-modelos das memórias familiares, acredito que a imagem de Humberto de Maracanã
também se tornou um emblema, reproduzido e compartilhado com a função de transmissão
dos valores e memórias do grupo.
56
Realizada remotamente pela Rede Folkcom (grupo de estudiosos do folclore), em parceria com a UFMA
(Universidade Federal do Maranhão), no dia 29 jun. 2021.
57
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=BRCFWxS8fKI>. Acesso em 01 jul. 2021.
46
Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do
sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si
(Pollack, 1992, p. 204).
Para o autor, uma parte da memória é herdada, reforçando os aspectos identitários que
utilizam como referências o outro e a continuidade para a (re)construção da imagem de si. No
contexto do meio social boieiro, o Batalhão de Ouro aciona em grande parte das vezes
lembranças e alusões à Humberto Mendes também como uma forma de se diferenciar diante
dos outros grupos no sistema cultural do bumba meu boi. As imagens e ícones do mestre são
produtos do processo de simbolização desse personagem.
47
58
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=kwfeWwVpCTg >. Acesso em 04 jul. 2021.
59
VII Reunião aberta dos estudos do Gelmic/UFMA. Live disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=8qRWVuPtk6A&list=WL&index=9>. Acesso em 25 ago. 2021.
60
Categorias nativas com o significado de tomar a frente, liderar um grupo ou a cantoria no meio boieiro.
61
Como sugerido por Barros (2006), baseada em suas entrevistas com mulheres jovens e idosas do Rio de
Janeiro e nas análises de Alzira Abreu sobre a geração de jovens de 1964 (início do período da Ditadura militar
no Brasil), geração é o conjunto de pessoas nascidas em mesma época que interagem com outras de períodos
distintos, cujas relações expressam diferenças entre construções sociais da juventude (modelo ideal de
comportamento, emoções e representação de si, mas sem memória) e da velhice (riqueza de saberes e técnicas,
porém sem projeto de vida), além das diferenças circunstanciais no campo de possibilidades de escolhas, no
contexto das sociedades moderno-contemporâneas complexas.
48
62
Rádio comunitária, operada em São Luís do Maranhão.
49
Na noite do domingo (08/08), o couro do Boi foi revestido por um manto em amarelo
e branco, as cores do mourão, e com várias folhas sobre seus chifres. O animal-artefato estava
guardado dentro de uma igreja da comunidade. Os padrinhos do Boi foram-no buscar,
realizando um cortejo que o levaram até o barracão do grupo, próximo ao mourão. Nesse
espaço, ele foi laçado por um vaqueiro para ser “abatido” aos pés da árvore. Seu “sangue”,
vinho tinto, foi compartilhado e distribuído entre os brincantes e simpatizantes do Maracanã.
Logo depois, foi realizada a derrubada do mourão, marcando o encerramento do ritual de
morte do Boi “Realeza de São João”. A árvore foi carregada por inúmeras pessoas e colocada
nos fundos da parte externa do terreiro com velas aos seus pés e queimação de incensos, como
uma forma de abençoá-lo e protegê-lo de algo ruim.
50
Esses eventos são a prova do esforço do Boi de Maracanã em manter a realização das
etapas de um ciclo junino, iniciadas no grupo com o primeiro ensaio, Cantoria, no segundo
domingo de maio, quando são apresentadas popularmente as toadas inéditas do ano. O ensaio
redondo ocorre no primeiro final de semana de junho, finalizando a preparação. O batizado,
na virada entre 23 e 24 de junho, é o ritual no qual o grupo, além de cumprir suas obrigações
devocionais, faz a passagem simbólica da casa (representada pelo terreiro/barracão no bumba
meu boi), local de harmonia e controle das regras, para a rua, local de disputas e imprevistos
como discutidos por DaMatta (1997). As apresentações se deram de meados de junho ao
segundo domingo de agosto, quando foi realizado o ritual de morte, simbolizando o retorno
do grupo para casa, ao reforçar os elos criados em torno dos brincantes com o boi, num misto
de sentimentos de saudades e esperança. No contexto das lives, o grupo optou por transmitir
ou divulgar os rituais de modos distintos, mas sem deixar de compartilhar pelas redes sociais.
Essa estratégia adotada foi percebida também nas lives dos Bois de Parintins (AM), por
51
Com a passagem do ritual de morte do Boi, o grupo do Maracanã não paralisou suas
atividades, realizadas até o fim de 2021 e focalizadas em participações nas lives produzidas
por grupos culturais parceiros e pelas universidades. Uma delas foi realizada no mês de
setembro em homenagem ao cantador Humberto de Maracanã, no projeto Vozes de Mestre63,
no dia 11 de setembro, com captação via plataforma zoom, mas transmitida no Youtube, as
apresentações se intercalaram entre o Batalhão de Ouro e o grupo mineiro, sob a mediação de
Marcos Rhossard. Foi uma conexão intensa entre São Luís do Maranhão e Belo Horizonte, na
qual os cantadores do grupo maranhense interpretaram inúmeras toadas, compostas por
Humberto Mendes, num esquema de pot-pourri que reforçou a ideia de continuidade do grupo
e cultivo da memória do mestre, presente no discurso da presidente Maria José, e na ideia de
um legado formado pelas escolhas diretas de Humberto de Maracanã nos mais diferentes
segmentos do Boi, de acordo com o amo Ribinha.
Em 29 de setembro de 2021, a toada “Maranhão, meu tesouro, meu torrão” se tornou
Patrimônio Imaterial do Maranhão, como consequência de um projeto de lei estadual64. A
comemoração desse fato foi realizada numa publicação, no Instagram65 oficial do grupo, na
qual existe a imagem de Humberto Mendes com versos estilizados da toada em questão. O
texto da publicação e os comentários se resumiram ao sentimento nostálgico, parabenizações
e muitos emojis66 de palmas ou corações. Entendo que a aprovação desse projeto de lei, além
de ser mais um reconhecimento da obra musical de Humberto Mendes, referendado pelo
63
Projeto de 2008 com objetivos de valorizar a divulgação e o fomento da cultura popular a partir de eventos
promovidos em diferentes formatos no meio digital. Aprovado pela Lei Aldir Blanc, no estado de Minas Gerais,
a edição online de 2021 se dedicou a homenagear mestres que marcaram expressões do congado, do candomblé
e do bumba meu boi: Dona Maria Casimira das Dores (Rainha Conga de Minas), Pai Euclides Talabyan da Casa
Fanti Ashanti (Maranhão) e Humberto de Maracanã (Maranhão). Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=7lcpgizPZro&t=1380s>. Acesso em 17 jan. 2022
64
Projeto de lei 390/2021, de autoria do deputado estadual Luís Henrique Lula da Silva (PT).
<https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2021/09/29/meu-tesouro-meu-torrao-projeto-de-lei-declara-toada-pa
trimonio-imaterial-do-maranhao.ghtml>. Acesso em 15 fev. 2022.
65
Disponível em < https://www.instagram.com/p/CUbIwWIpt_X/ >. Acesso em 29 set. 2021.
66
Representações gráficas ou desenhos comuns na linguagem informal da internet.
52
67
"Brasil Terreiro" é um projeto itinerante que pretende visitar 22 comunidades de São Paulo, interior paulista e
do Maranhão. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=kZuQ1EU9o7I>. Acesso em 12 jan. 2022.
68
Encontro Nacional de Diálogos Freirianos na UFMA. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=oCT4rP-_cJQ>. Acesso em 11 jan. 2022
69
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=qT1Ximklfgw>. Acesso em 11 jan. 2022.
53
Luís por meio de sua secretaria de cultura, financiada pela lei Aldir Blanc70. Outro projeto que
conquistou financiamento pela mesma lei, mas com apoio da Secretaria de Cultura do
Governo do Estado, foi o “Urrou no Maracanã”71. Realizado há sete anos pelo Boi de
Maracanã, cujo ícone gráfico era o mestre Humberto Mendes, a última edição foi publicada
em 6 de dezembro, no Youtube. O terreiro do Maracanã, onde os grupos da região rural se
apresentaram na parte interna, serviu como cenário. Foram convidados o folguedo natalino
“Reis do Alecrim”, a dança portuguesa “Império de Bragança”, a companhia teatral “Juçara
com Farinha”, o tambor de crioula “Orgulho de São Benedito” do bairro de Itapera, cantoras
locais Tati Mendes e Gisele Padilha, o Boi Itapera de Maracanã (sotaque de Matraca) e o
próprio Boi de Maracanã. Esse evento foi uma forma do Batalhão de Ouro valorizar e manter
relações próximas com as expressões culturais do seu reduto e das vizinhanças da região.
Em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, o Boi de
Maracanã foi convidado a integrar o Projeto Biodiversidade72 que resultou numa websérie,
chamada “Na toada do Maracanã” (2021), dividida em 10 episódios e compartilhada na
página oficial do grupo no Facebook. No formato que intercala apresentações musicais,
mini-oficinas, relatos e entrevistas com membros da diretoria, cantadores e pessoas da nova
geração, foi possível perceber muitos aprendizados obtidos pelo grupo a partir do convívio
com Humberto Mendes. Por exemplo, os relatos de Rossana Cruz73, Jhonatan Oliveira74 e
Lavínia Assunção75 - responsáveis pelos caboclos de fita, de pena e índias - concordam que o
diferencial do Maracanã para os outros grupos é a padronização das cores (amarelo, verde e
vermelho) nas indumentárias, iniciadas e orientadas pelo Mestre do Maracanã. Outro relato
importante é o da atual presidente, Maria José76, que afirma ter dividido responsabilidades
quanto à parte burocrática da administração com dona Neide e Josely ao longo dos anos de
1990. Quando Humberto Mendes decidiu focalizar sua rotina apenas nas responsabilidades
artístico-musicais, no início dos anos 2000, indicou Maria José para a presidência, sob o
70
Promulgada em 2020, essa lei visou financiar projetos artísticos e culturais de diferentes formatos como um
auxílio no contexto de pandemia.
71
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=vrQzlWC-NUU>. Acesso em 12 jan. 2022.
72
Elaborado pelo Sistema Municipal de Bibliotecas da Cidade de São Paulo.
73
Disponível em: <https://www.facebook.com/boidemaracana/videos/1048422972614447>. Acesso em 13 jan.
2022.
74
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=444188434039191>. Acesso em 13 jan. 2022.
75
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=599778001232452>. Acesso em 13 jan. 2022.
76
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=609579067019478>.
Acesso em 14 jan. 2022.
54
argumento de que ela tinha “jogo de cintura” para resolver as dificuldades. O grupo
concordou e, em sua maioria, apoiou a sugestão.
Dessa forma, Humberto Mendes foi o líder obedecido pelo grupo durante mais de
quatro décadas no Boi de Maracanã. Luciana Carvalho (2011, p. 257), a partir de observações
e convivência no meio boieiro, entendeu a configuração social dos bumba-bois caracterizada
pela “mínima diferenciação entre diversos componentes do grupo, que independentemente de
suas posições na brincadeira, guardam obediência a um indivíduo acima de qualquer outro”.
Houve uma preparação gradual de algumas pessoas próximas ou familiares a Humberto
Mendes para que o grupo pudesse seguir a divisão das responsabilidades artísticas e
administrativas. Atualmente, José Ribamar (Ribinha) é o filho sucessor no posto de amo do
Boi - desejo relatado por seu pai (Mendes, 2008, p. 191); e Maria José, uma das viúvas, é a
responsável pela parte administrativa e religiosa do grupo. Como pontuou Cardoso (2016) nas
observações do Boi de Maracanã, após a morte do mestre, a passagem de liderança dentro do
grupo enfrentou conflitos internos relativamente superados com a busca de legitimidade da
atual diretoria, baseada na familiaridade e hereditariedade diante do grupo e de seu bairro e
comunidades de referência.
No dia 19 de janeiro de 2022, o Boi de Maracanã fez uma postagem no Instagram em
homenagem aos sete anos de falecimento de Humberto Mendes77. No texto, são ressaltados o
sentimento de saudade da sua presença física e das lembranças de sua performance, a
continuação de seus ensinamentos e as recordações quanto à sua obra. Na imagem, o ícone de
seu perfil, estilizado em diferentes cores, usando um chapéu na cabeça, ornado com algumas
penas. Nos comentários, muitos simpatizantes e brincantes do grupo saudaram o mestre e lhe
deram vivas.
A partir desses dados obtidos ao longo do acompanhamento de um ano (2021) das
atividades do Boi de Maracanã, percebo que o sentido nativo que parece emergir em torno da
categoria legado remete ao conjunto de práticas, ideias, valores e conhecimentos construídos,
rememorados e transmitidos entre a geração de Humberto Mendes e a de seus filhos.
Associa-se de modo geral atualmente no meio boieiro a ideia de legado a um indivíduo com
trajetória marcante e reconhecido dentro de um grupo sociocultural. Essa noção configurou-se
coletivamente, a partir do intenso contato entre o Batalhão de Ouro e toda uma rede de
pessoas e projetos culturais envolvidos com as mais diferentes camadas sociais, instituições,
77
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CY6aWokAoBt/>. Acesso em 19 jan. 2021.
55
empresas, universidades, órgãos públicos, ou seja, com a sociedade mais ampla que se
intensifica em novas bases desde os anos 2000. A finalidade da construção do que é
denominado atualmente como o legado de Humberto de Maracanã é dar continuidade à vida
do grupo e integrar o processo de valorização de suas características identitárias imersas nas
interações cheias de rivalidades do meio boieiro, e fortalecido no contexto das políticas
públicas do patrimônio cultural imaterial, iniciado nos anos 2000, que engloba inúmeros
processos da cultura popular brasileira, entre eles o chamado complexo cultural do bumba
meu boi maranhense.
Com isso, surgem as perguntas: quem foi Humberto Mendes? Quais momentos
marcantes de sua trajetória se relacionam com o Boi de Maracanã? Em quais contextos se deu
o processo de construção da sua imagem e projeção no meio boieiro e na sociedade?
56
78
Com essa afirmação de Humberto Mendes (ibid., p. 136), pesquisei nos mapas maranhenses e encontrei duas
hipóteses em torno de Mato Grosso: ser um povoado do município de Loreto, no sul do Maranhão; ou de Vitória
do Mearim, na região central do estado.
79
O entrevistado não deixou claro se esses exemplos de avós ou bisavós eram do lado paterno ou materno (ibid.,
p. 136).
80
Ibid., p. 135.
57
Minha primeira participação em Bumba-meu-boi, eu tinha 12 anos, foi no Boi de criança na Maioba. A
ideia do grupo partiu de mim e um garoto chamado Ciríaco. Nós morávamos em um lugar bonito, cheio
de areia limpa, dava gosto até deitar na areia, as pessoas mais velhas ficavam ali perto de um comércio
jogando dominó, baralho e as crianças ficavam sentadas brincando, contando histórias e a partir daí
surgiu a ideia de fazermos um Boi porque acompanhávamos o Boi Lírio da Noite, do senhor Davi, que
havia nessa época, e resolvemos fazer um (...) Nós tínhamos em torno de 12, 14, 15 anos usávamos
calças curtas, tocávamos pandeiros, mas não tínhamos cantador. Então eu disse: eu vou ser o cantador,
peguei uma latinha de leite, chapei a lata, enchi de pedras e fiz o maracá (...) A princípio não compunha
toadas, cantávamos as toadas do Paulino, cantador do Boi da Pindoba e predileto do povo de
Mocajituba-São Pedro, onde eu morava, e de Boa Vista, e o de Januário, considerado rei dos cantadores.
O Boi nós fizemos de cofo82 e cobrimos com um pano, a cabeça do boi foi confeccionada por seu
Catarino, um senhor que fazia tamancos, assim o Boi ficou pronto e passamos a ganhar dinheiro.
Quando contratavam, a gente se apresentava, depois repartíamos o dinheiro com todos ou então nós
comprávamos amendoim ou bolachinhas e dividíamos. (Mendes, 2008, p. 143-144)
81
Segundo Mendes, a Maioba seria um antigo reduto com descendentes de indígenas, pois antes era considerado
uma aldeia. Também conhecido pelos mais antigos como Sítio de São Pedro, atualmente se situa no município de
Paço do Lumiar, na grande região metropolitana (op. cit., p. 136; 139; 171).
82
Um tipo de cesto, forrado normalmente com palha entrelaçada. Muito utilizada por pescadores e coletores da
região para guardar peixes e outras coisas.
58
O contrato do boi era feito assim... com 2 cruzeiros, 5 cruzeiros, 1 cruzeiro, 5 tostões. Aquilo, nós
pegava aquela grana e ia comprar amendoim, ou comprova bolachinha e dividia entre a rapaziada. Uma
senhora, chamada Mercês, contratou o boi. 5 cruzeiros pro boi, mas com uma condição: “se vocês
trouxerem uma burrinha e se vocês tiverem o cantador de vocês, cantando a toada dele mesmo”. “Cinco
cruzeiros, rapaz, é dinheiro pra caramba! Já pensou?! O tanto de amendoim que nós vamos comprar?”
Eu disse: “pode fazer o contrato que a toada já tá pronta”! (Guriatã, 2018)
83
Apolônio Melônio (1918-2015), quando tinha apenas 8 anos, formou com seus amigos de São João Batista
(MA) um bumba meu boi chamado “Ramalhete”. Depois de dois anos, mudaram o nome para “Boi pra Lindo
Fama”. (Silva, 2008, p. 73)
84
Isso parece ter ocorrido também mais tarde, nos anos de 1970, como exemplifica o cantador José Ribamar,
filho de Humberto Mendes e atual amo do Boi de Maracanã, que brincava no “Boi de Ribinha”, relatado por ele
em entrevista, no 9º episódio da websérie “Na Toada do Maracanã”. Episódio transmitido ao vivo, no perfil
oficial do Bumba meu boi de Maracanã, na plataforma do Facebook em 17 dez. 2021.
85
Personagem característico da manifestação do bumba meu boi, cuja função é proteger o cordão da brincadeira
contra invasores que possam atrapalhar o bailado dos brincantes. A indumentária é um boneco que contém o
centro aberto e dois suspensórios, cuja base é normalmente a representação de um cavalo/boi enfeitado. (Iphan,
2011, p. 153)
59
A partir da memória de Humberto – conhecedor de cada detalhe da tradição que guardava -, a história
do bumba meu boi na ilha de São Luís pode ser reconstruída de forma luminosa, além das
transformações de suas brincadeiras populares e a geografia particular da cidade ao longo de sua
ocupação desde a década de 1940. (Viana, 2017)
Estabeleceu-se na casa de outra irmã mais velha, Lindalva, casada com Valter Nogueira
Castro, pelos quais nutriu um sentimento de muito respeito (Mendes, 2008, p. 141). Ao trocar
o pai pela irmã, Humberto Mendes deu seu primeiro passo para conquistar a independência
financeira, trabalhando na roça, como lavrador. Desde a Maioba, hábil dançarino, ele também
foi desenvolvendo as habilidades de um sedutor, conquistando namoradas nas antigas festas e
bailes de salão (p. 140). Boa parte de sua vida particular e sentimental foi vivida com
diferentes mulheres, e esse aspecto de suas lembranças parece lhe trazer um certo orgulho de
si, indicando um referencial de masculinidade em que a figura do conquistador e do
reprodutor emerge muito valorizada.
Na juventude, Humberto Mendes, apesar de gostar de muitos ambientes de festas,
afastou-se aos poucos do bumba meu boi como cantador, preferindo apenas acompanhar as
brincadas tocando pandeiro86. Nos documentários Rio do Mirinzá (2007) e Guriatã (2018),
estão registrados sua performance e seu gosto por este instrumento de percussão:
O meu instrumento era pandeiro. Batia pandeiro mesmo direto. Botava uma garrafa de cachaça aqui
assim no bolso. Se todo mundo toma consciência, assim, cada um que vai pegando o pandeiro... vai
chegando e vai batendo diferente... aí é que fica bonito. Com poucos pandeiros, você faz uma trupiada
muito bonita. (Rio do Mirinzá, 2007)
Depois de servir ao Exército, entre 1958 e 1960, ele retornaria à rotina, cursando o
supletivo para concluir o 2º grau e trabalhando como lavrador para garantir sustento às suas
primeiras mulheres e muitos filhos. Continuou participando das festas e investindo em seu
talento para a composição de canções, experimentando muitos gêneros musicais87 como
samba, baião, marchinhas e fandango88, inclusive bolero e carimbó (Guriatã, 2018)89.
Começou compondo e cantando sambas, com ritmo de pagode, para seus amigos e parentes
do próprio bairro do Maracanã.
86
Também chamado de pandeirão, é um instrumento de percussão com formato circular, produzido em arco de
madeira e revestido com pele de couro animal (afinado no fogo) ou em arco de metal e pele de nylon. Utilizado
nos grupos de bumba meu boi do sotaque da Ilha e da Baixada, é segurado por uma das mãos e percutido com a
outra apoiada na altura do peito ou sobre os ombros (Iphan, 2011, p. 158).
87
Op. cit., p. 141; p. 173.
88
Humberto Mendes o descreveu como uma brincadeira carnavalesca na qual era retratada a época dos reinados
e das realezas com a presença de personagens, como rei, príncipes, condes, barões e vassalos. Existiam diálogos
e cânticos ensaiados sob o ritmo de valsa, baião e marchinhas (op. cit., p. 173-174).
89
Informação obtida a partir do relato de Murilo Pereira, compadre e amigo de Humberto de Maracanã,
concedido a este documentário.
61
Ah, pronto: Humberto é sambista, havia uma senhora de nome Socorro Macedo Torres que era dona de
um comércio próximo onde passava trem, esta senhora contratava as pessoas que trabalhavam com
máquinas de filmes para passar nos finais de semana. Havia também a parte musical. Naquela ocasião
ela perguntou quem gostava de cantar lá no Maracanã e o meu amigo João Meireles disse: olha vou
cantar um samba que não é de minha autoria é de um amigo nosso do Maracanã, que está fazendo uns
sambas muito bonitos. Eu sei que no sábado seguinte ela pediu que eu estivesse lá. Eu era muito
envergonhado, quando via o carro dela me escondia e os meus primos diziam pra mim: rapaz, vai lá,
Socorro quer pra ti cantar. E eu respondia: eu não vou cantar. Mas um dia resolveram me pegar, fui todo
me tremendo, quando cheguei deram-me o microfone, não sabia nem pegar, mas aí assumi, só sei que
desse dia em diante o cinema dela enchia, não era mais nem pelos filmes e sim pra me ouvir cantar (...)
(Mendes, 2008, p. 142)
Inicia-se, então, sua fase adulta que vai consolidando sua fama entre a vizinhança
como compositor e cantor. Inicialmente, ele acreditava que seguiria o caminho do samba,
depois que voltou da Maioba: “Vim pro Maracanã. Mas a minha vocação era samba, eu fazia
era samba, muitas outras músicas sem ser toadas” (Guriatã, 2018). Entendo que o sentido da
palavra vocação, nesta afirmação, está mais próximo ao chamado para uma atividade ou
ofício, perpassado por um reconhecimento coletivo. Isso acabaria influenciando também sua
vivência dentro do mundo social do bumba meu boi, já que ele costumava tirar toadas de boi
nas mesas de bar.
A partir dos anos de 1970 - marcados por ser um período de intensas mudanças
sócio-históricas, institucionais e culturais, com a implementação de políticas públicas para o
fomento de expressões da cultura popular no Maranhão -, ele parece ter se direcionado ao Boi,
em um processo de definição pessoal e de aceitação por parte do grupo do Boi de Maracanã,
com o projeto de se tornar também um cantador:
Em 1972, sob o comando do senhor José Martins, fui assistir o Boi e não gostei do comportamento dos
cantadores Ângelo Reis e Antonio Maconha, a partir daí comecei a pensar que estava na hora de me
pronunciar, dar a minha colaboração, então falei ao grupo que estava chateado, pois os cantadores
estavam escondendo-se, quando eram procurados nunca estavam. Decidi que no ano seguinte, se o Boi
fosse continuar, eu estava candidatando-me a cantar no Boi e acabar com esta molecagem.
Em 1973, houve a primeira reunião, eles me chamaram e eu pedi que eles ouvissem primeiro as minhas
toadas, pois nessa época era compositor de Escola de Samba. As primeiras toadas ainda eram parecidas
com o ritmo do samba, mas com o tempo foi ajeitando-se, melhorando e o negócio encaixou melhor.
(Mendes, 2008, p. 147)
integrantes mais velhos do Boi de Maracanã haviam resistido a sua entrada, até que ele se viu
envolvido de outro modo com o Boi:
Mas aí eu fui me encaixando mesmo. Mas, ao mesmo tempo eu queria largar, até que enfim eu resolvi.
Como se alguém dissesse: “olha, não larga, não!” E me comprometendo mais. Fazer mais isso, mais
isso, mais isso... Até que eu entendi que eu não estava entrando pela minha própria conta. Eu estava
sendo chamado. E esse alguém foi São João. “Você vai tomar conta desse boi, tomar conta” (Guriatã,
2018).
A partir desse relato, creio que o processo de aceitação pessoal desse novo caminho
como cantador de Boi foi sendo gradativamente entendido por ele como correspondendo ao
chamado de São João Batista. Cardoso (2016) observou que, no reduto do Boi de Maracanã, é
comum seus integrantes utilizarem a palavra compromisso para justificarem religiosa e
tradicionalmente a realização da festa de bumba meu boi, enquadrando-a, assim, como uma
categoria nativa. Outro caso similar é o de Seu Betinho (Carvalho, 2011) que, ao se tornar Pai
Francisco, correspondeu a assumir um compromisso com São João, oriundo de herança e
devoção familiares.
O que vejo como aceitação para si mesmo desse novo caminho como compositor e
cantador é elaborado por Humberto Mendes como um compromisso com São João: ele devia
ser cantador no Bumba meu boi de Maracanã. Dessa forma a vocação se tornou também
compromisso. Logo após o reconhecimento de seu talento pelo antigo cantador do grupo,
Ângelo Reis, ele se dedicou integralmente ao universo boieiro:
No ano que assumi, o Ângelo Reis não cantou, pois o grupo neste ano estava muito pequeno, ele se
achava um cantador de renome. Eu e Basílio Reis, irmão dele, tínhamos que começar do pequeno, do
zero. No ano seguinte Ângelo voltou com toda força, inclusive com outros cantadores, e afastou-me, só
que eu já havia conquistado uma grande liderança e continuei com a minha participação, pois o grupo
gostava das minhas toadas, rapidamente tive fãs e todas queriam que eu fizesse um Boi e eu não queria
arrumar confusão. Quando chegou a hora do ensaio, eu disse: “olha já dei minha colaboração, gostaria
de continuar, mas vocês não querem aceitar”. No segundo ensaio eu larguei o grupo, começaram então
os recados das pessoas, queriam crucificar o José Martins que me chamou e disse: “olha Humberto, tu
não podes sair do Boi, Ângelo não vai fazer o que tu fizeste”. O Ângelo não aceitava a minha volta.
Resultado, nos dias de São João e São Pedro, retornei impressionado com a força do povo, o Ângelo
que era meu primo reconheceu e disse pra mim:
- Olha, parente a sua corrente é muito forte, mais forte que a minha. Eu estou perdendo lugar, você vai
assumir porque o povo lhe quer no Boi.
Eu respondi:
- Não vou, foi tu que me tirastes, como é que tu me queres no Boi?
Ângelo:
- Não, parente, aconteceram muitas coisas deselegantes. A questão foi a seguinte também: as pessoas
contratavam o Boi e a notícia era que Humberto já estava cantando, quando o Boi chegava
perguntavam: “cadê o cantador que tem aí por nome Humberto? O Boi só brinca se Humberto cantar”.
A partir daquele momento começou aquela humilhação com o Ângelo. Em 1975, ele não apareceu. Em
63
1976, éramos três cantadores: eu, Ângelo e o João Pisica, este não foi até o final do Boi porque eles
brigaram e a diretoria resolveu tirá-lo, ficando só eu e o Ângelo. (Mendes, 2008, p. 148)
grupos produz tomadas de decisões que auxiliam o processo de formação de sua identidade.
Hughes (2005) considera que os pontos de inflexão de uma carreira individual indicariam
mudanças a partir de processos transitórios na vida do sujeito, cujo ciclo biológico é
constituído por fases entrelaçadas em eventos singulares, ordenados socialmente e
relacionados com o mundo do trabalho. Orientado por essas noções, creio que o nome
artístico e a alcunha de Humberto Mendes marcam um ponto de virada em sua trajetória de
vida e o início de sua carreira como cantador.
Aliás, a escolha do pássaro de cores amarelo e azul-marinho e da palmeira, como seu
viveiro, inspirou-se na própria vivência de Humberto Mendes dentro do sotaque da Ilha e no
ambiente rural do bairro do Maracanã. Segundo ele, os antigos cantadores selecionavam o
nome de pássaros como alcunha e um viveiro, normalmente planta (Mendes, 2008, p. 173).
Por exemplo, a alcunha do cantador anterior no Maracanã, Ângelo Reis, era sabiá e o seu
viveiro, o galho da mangueira. O atual cantador Ribinha, filho de Humberto, afirmou durante
a VII Reunião Aberta de Estudos do Gelmic90 que a escolha de seu pai quanto à alcunha foi
motivada pelas cores do pássaro, pela facilidade em relação às rimas com o nome Maracanã e
pelo lindo cântico. Essas escolhas, além de espelhar parte da personalidade de um cantador,
formam sinais diacríticos que o ajudam a ser identificado dentro do sistema cultural do bumba
meu boi e a se diferenciar mutuamente entre tantos outros no sotaque da Ilha. Fredrik Barth
(2000) também percebeu sinais diacríticos entre diferentes grupos étnicos das regiões do
Oriente Médio e Ásia. Neles, o antropólogo norueguês apontou a existência de variáveis entre
subgrupos de uma mesma cultura, estabelecidas a partir das diferentes condições ecológicas,
contextos socioeconômicos e na interação entre indivíduos de mesmo ou distintos subgrupos.
A noção de sinais diacríticos perpassaria por estas variáveis compartilhadas dentro de um
sistema cultural e percebidas como significativas pelos próprios sujeitos, no processo de
individualização e na diferenciação de suas identidades.
90
Transmitida ao vivo na plataforma do Youtube, no dia 21 de julho de 2021.
91
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=b2Xs4Y8bJtI>. Acesso em 6 jul. 2021.
65
essas festas são tidas como mais do que centenárias. Até meados dos anos de 1950, os
moradores se organizavam com donativos e recursos para ajudar a “botar o boi na rua”. O
contexto da brincadeira era de bois de promessa, devoção de fiéis a São João Batista que
tomavam a frente do grupo pelo menos por um ano. Os bois de promessa no Maracanã, além
de apresentarem uma troca constante de donos, foram muito intermitentes e com diferentes
nomes. A configuração do Boi de Maracanã ganhou outro panorama, quando José Martins
passou a liderar a organização fazendo a transição de bois de promessa como “Flor do Brasil”
(1955) e “Flor do Nascente” (1956), após hiato de três anos, para o chamado “União do Povo”
em 196092 em parceria com Ursulino Barbosa e Coriolano Barbosa, baseado no sistema de
cooperação e doação de alimentos ou recursos (Mendes, 2008, p. 146-147; 170). Porém, nem
todo ano era possível realizar a festa devido às dificuldades financeiras que as famílias da
região enfrentavam. Quando isso acontecia, muitos dos boieiros, incluindo Humberto
Mendes, deslocavam-se para outros bairros e redutos a fim de brincar boi:
Não tinha Boi todos os anos no Maracanã como existia na Maioba, Mata, Tirirical, Sítio do Apicum e
Iguaíba. (...) Quando não tinha Boi, aqui juntava Maioba e Maracanã e vice-versa, íamos para Santana
(povoado de Juçatuba), Bom Jardim, Turu, tanto que a origem das pessoas que compõem o grupo é
bastante diversificada (...). Alguns destes grupos já haviam feito associações para poderem sobreviver e
o Maracanã oscilava muito. (Mendes, 2008, p. 145)
92
A partir de relatos orais dos antigos moradores, a pesquisadora Maria Michol de Carvalho (1995) chamou essa
nova configuração do Boi de Maracanã como “boi de sociedade”, no qual são lembrados como “cabeças da
organização”: Zé Martins, Zepé, Ezequiel, Sulico, Celestino, Geraldo, Coló, Agripino e Honorato. A autora
também traça um pequeno trajeto histórico da brincadeira. Ela afirma que não teria havido a realização de boi no
Maracanã entre os anos de 1961 e 1964. Em 1965 e 1966, os brincantes de Maracanã e Maioba se organizaram
em conjunto devido ao luto do antigo cantador Luís Dá na Vó, da Maioba. Em 1967 e 1968, João de Léia
organizou o boi e ensaiou um retorno à configuração coletiva, mas sem sucesso. Em 1969, Zé Martins, Zé Costa,
Juarez, Benedito Fala Besteira e João da Léia organizaram em conjunto. Em 1970, não houve boi no Maracanã.
Em 1971, o senhor Guilherme fez um boi de promessa. A retomada ao “boi de sociedade” só se daria em 1972.
(Carvalho, 1995, p. 78-79)
66
período, durante interação de Humberto Mendes com as comunidades eclesiais de base, que o
motivaram a desenvolver seu lado social de trabalhador rural:
Na década de 1960, o Florêncio, zelador da igreja do Maracanã não quis continuar, dizendo que deixaria
as chaves na porta da igreja caso não tivesse quem tomasse conta, então falei que tomaria conta; a partir
daí, comecei a organizar trabalhos com as pessoas, refletindo sobre a comunidade. Neste período, foi
fundada a igreja de São Cristóvão, com uns padres Redentoristas americanos, o padre Mateus (...). Estes
padres eram seguidores de uma linha social. Com eles vieram umas freiras da congregação Notre-Dame,
que se dividiam em dois grupos, umas trabalhavam o lado religioso no caso a irmã Lorette e as irmãs
Bárbara, Marlene e Carolina trabalhavam o lado social, este grupo passou a entrar nas comunidades,
fazendo reuniões, mostrando aquela nova experiência de trabalhos religiosos. Interessei-me. A partir daí
o Maracanã passou a ser modelo da paróquia e Humberto foi a pessoa que se destacou, fui eleito duas
vezes Coordenador Geral da paróquia. A partir daí ficamos conhecidos. Foram realizados projetos,
éramos visitados por agentes das instituições financiadoras para saber da viabilidade, ampliação das
metas dos projetos, enfim, foi muito bom esta época. Com esta experiência desenvolvi uma política
voltada para os trabalhadores do campo, lutando para que tivéssemos melhores condições de vida e
trabalho, isto era uma forma de brigar pelo trabalhador rural, e o ponto de partida seria os próprios
trabalhadores da capital. (Mendes, 2008, p. 175)
Naquela época eu estava com 34 anos, daí pra frente continuei no grupo e com a experiência que já
tinha na comunidade eclesial de base, que trabalhavam com dinâmica de grupo e com o povo, comecei a
trazer esta experiência para o Boi, mostrando a eles como conseguir desenvolver um trabalho em
comunidade. No início foi difícil porque sofreram o impacto, a aceitação foi complicada, mas depois
descobriram que era bom. Os que não aceitaram saíram, algumas dessas pessoas até já faleceram. A
partir daí o Boi passou a sair todos os anos sempre sob a liderança de José Martins com algumas
diferenças, em 1979 o grupo passou a existir juridicamente, eu organizei tudo, pois com a experiência
de outra entidade que tinha fundado, organizei toda a documentação e na primeira eleição José Martins
foi eleito presidente, fiquei apenas como voluntário. (Mendes, 2008, p. 147)
93
Esse contexto político-cultural do Maranhão é bem explicado pelas autoras Albernaz (2004), Cavalcanti
(2009), Carvalho (2011) e Cardoso (2016). É possível encontrar mais informações também no dossiê de registro
do Bumba meu boi, no livro Celebrações, pelo Iphan (2011).
67
De acordo com a pesquisadora Letícia Cardoso (2016, p. 168), que teve acesso aos
documentos do Boi de Maracanã, a ata de fundação da Associação Folclórica e Beneficente
foi lavrada em 19 de setembro de 1979. Mendes entendia a tradição como a continuidade dos
valores na brincadeira dos antepassados do grupo e dos moradores do bairro. Logo, essas
mudanças pontuais se impunham para a continuidade do Bumba meu boi de Maracanã. O
processo bem demonstra o dinamismo na cultura popular:
“A cultura popular interpreta as noções de tradicional e moderno dentro de seu próprio universo de
relações. Estabelece assim distinções internas, nunca absolutas ou imutáveis, que buscam controlar e
refletir sobre mudanças sociais em curso com as quais inevitavelmente se depara” (Cavalcanti, 2001, p.
8).
Humberto Mendes começou a enfrentar resistências dos membros mais antigos do Boi
de Maracanã, pois sugeriu ações e metas que modificavam a maneira de ser do grupo até
então, como a construção de uma sede:
Quando iniciei os ensaios do Boi era na casa de José Martins, depois foi para casa de Ezequiel, onde se
fazia a Festa de Reis, pois tinha os equipamentos (...), mas à proporção que foram beneficiando a
estrada a casa dele foi ficando pequena, e nós achamos que deveríamos ter um lugar, apesar de ser uma
vez por ano, não deixava de ser incômodo para ele. Comecei então a passar a ideia para o grupo de
termos uma sede e eles foram aceitando. Nessa ocasião houve até um problema comigo, entrei em
choque com alguns pela minha vontade de querer transformar as coisas muito rápido (...). Em 1974 com
esta maneira de revolucionar entrei em choque com os mais velhos (...). Nesta época a Maioba já tinha
sua sede. (Mendes, 2008, p. 168-169)
A primeira sede do Boi de Maracanã foi construída em palha e taipa, em 1975, após a
doação de parte do terreno de Rosa Mochel, engenheira agrônoma, criadora da tradicional
Festa da Juçara. Maria José, atual presidente do grupo, relatou como era a construção da
antiga sede:
Antes era uma casa de taipa de palha e depois eles foram conseguindo o recurso pra fazer. Ela não era
nesse formato aqui, ela era um barracão de palha, onde eles se encontravam. Depois eles resolveram se
juntar e fazer um prediozinho… A fachada era a mesma de quando começaram a construir. (Maria José
apud Sousa, 2020, p. 150)
94
Ibid., p. 169.
69
muito para que ele conseguisse a presidência do Boi de Maracanã e assumisse também o
posto simbólico de Amo do Boi, em 1981.
Todas as habilidades e qualidades de Humberto Mendes foram percebidas também por
pessoas do meio político, no qual não obteve, entretanto, o mesmo sucesso do meio boieiro.
Entrou para o Partido dos Trabalhadores em 1982, devido ao seu trabalho desenvolvido com
as comunidades de base e pela identificação com o programa do partido, que viu como
representativo da classe trabalhadora. Mas, não conseguiu votos suficientes para se tornar
vereador e perdeu para o candidato Miguel Assis. Com um misto de decepção e mágoa,
resolveu então não aceitar outros convites e largou de mão a política partidária (Mendes,
2008, p. 176).
95
Radio Corporation of America foi uma empresa norte-americana de eletrônicos e gravadora dos discos do Boi
de Maracanã em 1984 e 1986.
96
Op. cit., p. 150-151.
70
de São Pedro, realizado nos anos 1950, quando surgiu a rivalidade entres os Bois de Maracanã
e Maioba – que passaram anos alternando-se como vitoriosos. “A Voz do Arco-íris” era outro
festival, com comissão julgadora, no qual eram analisados itens, como brincantes e toadas,
dos mais distintos grupos de sotaques. O Maracanã foi campeão apenas uma vez.
Houve ainda, em 1986, o I Festival Maranhense de Toadas de Bumba meu boi do
Maranhão97, produzido pelo jornalista José Raimundo Rodrigues em parceria com o Sistema
Difusora de Comunicação98 e realizado na praça Deodoro, reunindo mais de 10 mil pessoas no
centro de São Luís. Humberto de Maracanã, além de ter interpretado a toada “Maranhão, meu
tesouro, meu torrão”, concorreu e venceu com ela na categoria “sotaque de matraca”
(Gondim, 2014; Santos 2011). Uma das consequências dessa composição foi ter sido
posteriormente interpretada por Alcione99 no disco “Ouro e Cobre” (1988)100, promovendo a
cultura local e o grupo do Maracanã para além do Estado. Em 1992, a vencedora do II
Festival Maranhense de Toadas, organizado pelo mesmo jornalista cultural, foi a composição
“Reis na Encantaria”101 também de Humberto de Maracanã. (Mendes, 2008, p. 156)
Os festivais tiveram um papel importante na construção de uma rede de
inter-relacionamento entre os distintos grupos de Boi e acirraram rivalidades entre os do
sotaque da Ilha, garantindo que fossem expressas simbolicamente nos elementos integrantes
dos batalhões e nas toadas. Esses eventos contribuíram também para maior amplitude do
trabalho e das performances de Humberto de Maracanã e seu Batalhão de Ouro agora
apresentados à sociedade mais ampla do Estado.
O prestígio e a popularidade dos festivais foram perdendo força concomitantemente à
consolidação de um novo contexto político-cultural pelo qual o Maranhão passou durante os
anos de 1990: o aumento exponencial de recursos destinados, como “cachês”, para as
brincadeiras e expressões da cultura popular nos dois primeiros mandatos do governo
97
Existe uma grande matéria do programa Maranhão TV, disponível no Youtube, que resume o contexto desse
evento, adicionada de algumas imagens da performance de Humberto de Maracanã, interpretando a toada
“Maranhão, meu tesouro, meu torrão”, em 2004, na praça Maria Aragão. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=QZfcSHkjBuE>. Acesso em 02 set. 2021.
98
Conglomerado de empresas da área de comunicação, no Maranhão, sob posses da família Lobão.
99
Nascida em 21 de novembro de 1947, em São Luís (MA), é uma cantora, compositora e multi-instrumentista
com mais de 50 anos de carreira e 39 discos gravados. Também conhecida no meio da música popular brasileira
pela alcunha de Marrom. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Alcione_(cantora)>. Acesso em 10 fev.
2022.
100
A toada “Maranhão, meu tesouro, meu torrão” é a 12ª faixa integrante deste álbum. Disponível em
<https://open.spotify.com/track/6qIwA6UGoyStO73Oj1c8P9?si=7a972b6d1a2742dc>. (Mendes, 1988a)
101
Faixa disponível na plataforma Soundcloud: <https://soundcloud.com/daniel-walassy/reis-na-encantaria>.
(Mendes, 2003a)
71
Roseana Sarney102 (Cardoso, 2016). Essa mudança pontual da relação entre cultura popular e
poder público ocorreu nos anos de 1960, mas se complexificou e intensificou a partir do
reconhecimento a nível internacional da cidade de São Luís ao receber o título de Patrimônio
Histórico da Humanidade, em 1997, pela Unesco. O Boi de Maracanã, ainda sob o comando
de Humberto Mendes, conseguiu se adaptar a este novo contexto focalizando suas atividades
nas gravações de faixas ou discos e na reforma de sua sede em conjunto com a construção de
um Viva103, iniciada em 1999, com o apoio do governo estadual (Cardoso, 2016). No mesmo
ano, o amo e cantador do Maracanã recebeu homenagens da escola de samba ludovicense
Acadêmicos do Túnel do Sacavém104, com o enredo “Viva Maracanã e o Canto do Guriatã”.
(Guriatã, 2018)
Participando e interagindo com grupos de outros sotaques ou cantadores contrários,
Humberto de Maracanã se individualizou no sistema cultural do bumba meu boi maranhense,
a partir de sua atuação em gravações musicais, apresentação em arraiais e cortejos. Em 1996,
ao lado de João Chiador (cantador do Boi de Ribamar) e José Alberto (cantador do Boi de
Iguaíba), participou da gravação da toada “Boi Feliz”105, composta pelo cantador Lobato do
Boi de Morros, do sotaque de orquestra. Esteve presente também com o cantador Chagas, os
bois de Nina Rodrigues e da Madre Deus em outras gravações (Mendes, 2008, p. 150). Outro
momento especial, no qual rivalidades e cooperação entre os grupos de sotaque da Ilha se
complementam em um cortejo, é a Festa de São Marçal - na movimentada e atual Avenida
homônima ao santo, no bairro do João Paulo.
Realizada anualmente no dia 30 de junho, essa festa consiste num cortejo dos bois de
matraca – sotaque da Ilha - que se prolonga por todo o dia e reúne em torno de 200 mil
pessoas, que seguem seus batalhões preferidos num percurso de 400m de comprimento
(Sanches, 2004). Esse cortejo ritual mobiliza a população local. É um marco na temporalidade
junina ao encerrar o período de apresentações oficiais dos grupos de bumba meu boi pelos
102
Filha do ex-presidente do Brasil e ex-governador do Maranhão, José Sarney. Ela foi eleita governadora do
estado em quatro eleições (1995-2002) e (2009-2014), sendo a de 2009 conquistada após a cassação do TSE à
chapa de seu opositor, ex-governador Jackson Lago (2007-2009).
103
É o nome dado às praças de inúmeros bairros de São Luís do Maranhão, consequente de um projeto
homônimo dos primeiros anos de governo Roseana Sarney (1995-2002), que têm a finalidade de receber
atividades culturais de médio ou grande porte, oferecendo uma estrutura de lazer e diversão aos moradores.
104
Fundada em novembro de 1997, está sediada no Sacavém, São Luís, Maranhão. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Acad%C3%AAmicos_do_T%C3%BAnel_do_Sacav%C3%A9m>. Acesso em 27
jan. 2022
105
Disponível em: <https://open.spotify.com/track/0lW02d5fr6VPwxNh5BE2tm?si=83f0ad1d991145dc>.
Acesso em 27 jan. 2022
72
arraiais espalhados da cidade. Existem diferentes versões sobre o início dessa festa,
provavelmente datada do final dos anos de 1920. Mas os estudiosos concordam que a avenida
São Marçal, já se chamou João Pessoa e, antes disso, estrada do Caminho Grande, tendo sido
por décadas o único acesso que ligava o centro urbano de São Luís à zona rural (Iphan, 2011).
Essa festa ganhou um significado histórico e simbólico como o local em que se expressam as
disputas entre contrários, como define Sanches (2004).
No depoimento a que recorro, Humberto de Maracanã (2008) relatou seu
desentendimento com José Alberto (na época, cantador do Boi da Madre Deus) motivado por
um episódio ocorrido no dia da Festa de São Marçal:
Depois nos encontramos numa programação na Praia Grande e eu disse a ele (José Alberto): olha,
comecei a te tirar da linha, porque tu eras uma pessoa que eu acreditava, ouvia, pensava que tu eras na
realidade outra pessoa, mas não és o que eu pensava, não posso compartilhar contigo, tu não és obrigado
a subir naquele palanque.
- José Alberto: não rapaz, tu sabes que sou mandado.
- Humberto: então tu perdeste a tua identidade, tua autonomia de artista para atender estas exigências
bestas que tem lá, tu podias bem dizer para estas pessoas que te obrigam a fazer essas coisas, quanto
vocês querem para descontar do meu salário, para não subir ali? (...) Tu tens que pensar em quem vem
atrás, vi tu subires, ficaste fazendo um discurso enorme e anunciando: lá vem o Boi da Madre Deus,
cantavas uma toada e mandavas Ronaldinho cantar outra, teu Boi vinha a uns cem metros e tu sem
desceres do palanque.
- José Alberto: Oh, rapaz!
- Humberto: Não me chame de amigo, tu saíste da minha lista, não quero mais saber de amizade
contigo, fiquei com nojo de ti, sabias que o Boi do Maracanã estava ali e ficaste junto com as
autoridades fazendo discurso mostrando o Boi da Madre Deus anunciando o povão que vinha. Vocês
estavam sendo vistos desde a hora que vocês estavam guarnecendo. No João Paulo todos os Bois
crescem, porque no sábado vi teu Boi passando no Sacavém com quatro ônibus vazios e nós estávamos
com nove carros completamente cheios. (...) Quem vem atrás está com fome, com crianças, mulheres e
homens cansados, com mais de 48 horas de brincadeira. Os organizadores sabem que não temos
nenhuma obrigação de aceitar aquilo, não devemos satisfação a ninguém para ficar tolerando; por isso
às vezes o grupo decide ir embora ou então passamos pelo outro lado da avenida (Mendes, 2008, p.
153-154).
106
Canclini (1995) define identidade, sob o contexto da globalização e suas características transnacionais e
híbridas. Para o autor, a identidade é uma construção narrativa ritualizada, constituída por relato artístico,
folclórico e comunicacional, estabelecido, reconstruído e transformado de acordo com as condições
sócio-históricas e nas relações entre diferentes indivíduos.
107
Naquela ocasião, esses filhos de Mestre Humberto tinham, respectivamente, 28 e 22 anos. Não obtive
informações sobre a idade de Teteco.
108
Nascida em Santo Amaro (BA), em 18 de junho de 1946, é uma cantora, compositora e poetisa com mais de
50 anos de carreira e 36 álbuns gravados. Também conhecida pela alcunha Abelha Rainha. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Beth%C3%A2nia>. Acesso em 10 fev. 2022.
109
Presente a partir dos 4min da 12ª faixa deste álbum. Disponível em
<https://open.spotify.com/track/05fW3b24Q7eefvxFRzdSd6?si=79ca0a444ef54513>. (Mendes; Vieira, 2006)
74
110
Link: <https://open.spotify.com/album/5d4UPNYcKfzgfvUqxr7JpI?si=Qcd8dm6nQwSaAQyginXVHg>.
Acesso em 27 jan. 2022.
75
As toadas são como qualquer composição, você pega um lápis faz uma poesia. A questão é a melodia,
há pessoas que fazem a poesia e outras a melodia, por isso existem as parcerias. As melodias saem da
mente, às vezes estou aqui sozinho, calado, olho para ali, vem o vento, a lua, daí para a frente já começa
a moça ali... Isso significa que não sigo uma linha determinada.
A poesia torna-se mais forte quando nasce do homem que está ligado à natureza, a inspiração vem das
belezas naturais, não canto política (...). Procuro ver o que me faz bem cantar, que tipo de informações
vou dar, quais histórias que vou trazer para o povo, de modo que se alguém pedir para explicar as razões
daquilo eu possa dar uma resposta, não faço nada vago, todas as minhas toadas tenho condições de falar
em que me inspirei do guarnicê a despedida tudo tem sentido, fundamento. (Mendes, 2008, p. 154-155)
Para ele, as toadas inspiram-se no ambiente, nos fatos, pessoas e histórias que
integram o dia-a-dia dos cantadores e compositores. No Maracanã, o ato de fazer uma toada
de bumba meu boi passa pela junção de dois talentos: criar poesia e melodia. No caso de
Mestre Humberto, na grande maioria das vezes, ele compunha sozinho suas toadas,
cantarolando numa caixa de fósforo ou em cima de uma mesa onde se inspirava e assobiava,
como nos revelou a atual presidente do grupo, Maria José (uma de suas viúvas), durante
111
Observei nos relatos dos atuais cantadores do Maracanã, durante as inúmeras atividades do Boi em 2021, a
utilização da categoria nativa poesia como referente às letras das toadas.
76
“As pessoas dizem Humberto canta pela letra, pelo livro, pesquisa. Não vou dar informações erradas,
sem ter conhecimento das coisas. As toadas que falam da Ilha de Upaon-Açu e os Reis da Encantaria
procurei pesquisar. (...) A toada que fala dos sítios seculares das margens do Rio Bacanga113 procurei
uma pessoa que conhecesse todos os sítios. Independente disso busco a natureza, a lua, falo de mim e
dos meus antepassados, do Maracanã.” (Mendes, 2008, p. 156)
112
Informações obtidas na visita feita à sede do Boi de Maracanã, no dia 01 de fevereiro de 2022.
113
Um dos principais rios que cortam São Luís (MA), assim como os rios Anil e Paciência. Sua foz se dá
próximo da região central da cidade, na baía de São Marcos.
114
Ibid., p. 155.
115
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=637847097570018>. Acesso em 14 jan. 2022.
116
Transmitida ao vivo, na plataforma do Youtube, em 31 out. 2021, no canal oficial do Boi de Maracanã.
117
Disponível em: <https://www.facebook.com/boidemaracana/videos/458779079052813>. Acesso em 29 jan.
2022.
77
nativo a função de cantador requer a composição das toadas a serem cantadas. Essa junção de
talentos qualifica o reconhecimento coletivo do cantador-compositor de boi no Maracanã.
Na fala dos três cantadores atuais do Boi de Maracanã, ressalta-se a preocupação de
dar continuidade ao que foi estabelecido como parâmetro por Humberto Mendes, compositor
e cantador. No oitavo episódio de “Na toada do Maracanã” (2021)118, Humberto Filho afirmou
que entende seu trabalho de cantador como uma arte que pôde ser aprimorada desde a escola
quando criava a poesia, mas a melodia foi desenvolvida e baseada no estilo elaborado por
Mestre Humberto. Segundo ele também, todos os cantadores têm o seu tom, mas o estilo
melódico tem como referência maior Humberto. Ribinha também confirma, no nono episódio
da websérie, que foi uma decisão do grupo manter essa conjugação e o estilo melódico criado
por Humberto de Maracanã como um projeto do Batalhão de Ouro, após a morte de seu
antigo mestre.
Decidi iniciar este capítulo trazendo o ponto de vista nativo, devido à aproximação
entre a ideia de toada, ligada ao ambiente de vivência no meio boieiro, e música conectada ao
seu contexto no conceito proposto por Anthony Seeger119. Este antropólogo norte-americano
conviveu e pesquisou os Kisêdjê do Mato Grosso, no Parque Nacional do Xingu, nos anos de
1970, propondo compreender a música como formada não apenas por uma estrutura de sons,
mas por um desempenho, definido como uma interação entre tradição (repetição) e mudança
(novas formas), constituído de símbolos, códigos, conteúdos e mensagens que têm a função
de criar uma comunicação entre os membros de um mesmo grupo ou comunidade e inseridos
num contexto social e cultural (Seeger, 1977; 2008). Como bem observado por Sautchuk
(2018), quando analisou o livro “Por que cantam os Kisêdjê: uma antropologia musical de um
povo amazônico” (Seeger, 2015), a música pode ser compreendida como um processo
interativo e de conhecimento que leva ao entendimento de como um grupo ou sociedade se
organiza e se estrutura, nos mais diferentes âmbitos. Seeger entende que a música é um dos
possíveis pontos de partida para se compreender as características sociais de um grupo. A
etnografia da música “(...) é a escrita sobre as maneiras que as pessoas fazem música. (...)
Ligada à transcrição analítica dos eventos, mais do que à transcrição analítica dos sons”
118
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=637847097570018>. Acesso em 14 jan. 2022.
119
Existem duas entrevistas muito interessantes que dão uma dimensão da carreira e do trabalho antropológico
deste pesquisador: Cavalcanti, Gonçalves & Gordon (2018); Cohn et. al. (2007). Nelas, Seeger conta como se
individualizou numa família cheia de músicos, quais foram as principais referências de suas leituras acerca da
antropologia e etnomusicologia, sua formação nos Estados Unidos, suas experiências entre os Kisêdjê, no Brasil,
e o entendimento da dualidade na musicalidade deles.
78
(Seeger, 2008, p. 239); e a antropologia musical “(...) propõe entender a vida social a partir do
fazer musical, captando o modo pelos quais as performances criam e recriam diversos
aspectos da cultura e sociedade.” (Sautchuk, 2018, p. 706)
Esse é um bom caminho teórico-metodológico para compreender o processo de
criação, interação e divulgação das toadas dentro do sistema cultural do bumba meu boi
maranhense, especificamente no caso dos grupos do sotaque da Ilha ou de matraca. Assim
como Seeger se preocupa em inserir as análises musicais nas relações sociais, compreendendo
uma sociedade a partir de sua musicalidade, buscarei neste capítulo seguir caminho similar,
pois as toadas são os primeiros elementos de vinculação popular com os grupos de bumba
meu boi e com as especificidades de seus contextos. Entender o fazer musical ajuda a
compreender a música como processo de construção comunicacional, simbólico, dinâmico e
relacional.
Procurei discutir até aqui a relação entre desempenho musical e seu contexto. Quanto à
estrutura de sons? Como se dá a formação das sonoridades no Bumba meu boi de Maracanã?
Durante a live do “Espetáculo Brasil Terreiro” (2021), o atual amo Ribinha explicou que a
trupiada é o conjunto de instrumentistas responsáveis por produzir os sons que dão forma aos
sotaques. No caso do sotaque da Ilha, a sonoridade é baseada inteiramente em instrumentos de
percussão, ritmados por pessoas envolvidas com a brincadeira de boi. Existem pelo menos
quatro instrumentos que formam a base do som característico do sotaque ao qual pertence o
Boi de Maracanã. Mestre Humberto Mendes explicou no documentário “Rio do Mirinzá”
(2007) a ordem e função de cada um deles dentro do conjunto:
O maracá é o instrumento do cantador. Então pra ele dá o sinal, como se fosse o maestro que dá o sinal.
Ele pega uma varinha e dá aquele sinal para orquestra entrar, né?! Então, no bumba meu boi, o
instrumento dele é o maracá. Quando ele canta a toada, a primeira coisa que ele faz é entregar pro
batalhão, pro batalhão entrar, é sacudir o maracá. Então, ele é a parte assim que rege, né?! Bem, agora
vem... ou as matracas podem entrar logo, ou as onças. Mas o que é certo é as onças. Elas é que dão o
controle e a harmonia, o tempero da trupiada. Podem ter cinco pandeiros batendo, mas se não tiver as
onças, fica aquela coisa assim... seca né?! Na hora que as onças entram é que dá aquela, aquela
gostosura, aquele tempero. Então, taí, a função da onça é dar esse apoio aos pandeiros. E à trupiada no
contexto. Agora, as matracas formam como se fossem o recheio, elas são responsáveis pelo recheio da
trupiada. Aí o pandeiro é o cara que dá o peso, o murro, a estrutura que você dá vontade de ficar doido.
Tá todo mundo. Se só escuta a trupiada e a onça, você já prestou atenção que o pessoal lá da
indumentária fica todo mundo assim esperando a entrada dos pandeiros. Pandeiro, quero dançar. Na
hora que entram os pandeiros é que a coisa pega. Aí é que fica bonito mesmo. (Rio do Mirinzá, 2007)
meu boi no livro de Celebrações do Iphan (2011), o maracá lembra um bojo, cujo interior é
cheio de objetos que produzem sons ao tocarem nas partes internas do revestimento metálico;
o tambor-onça é percutido a partir da fricção de uma vareta interna, lembrando a cuíca com
um som mais grave, próximo a um “urro”; os pandeirões são circulares, cobertos por
membrana em um de seus lados, tocados com uma das mãos e segurados pela outra na altura
do peito, ou sobre os ombros; as matracas são pedaços de madeira retangulares percutidas
umas nas outras, produzindo um som agudo. A partir do relato de Mestre Humberto, o maracá
emerge como responsável por comandar a trupiada para começar ou encerrar a produção dos
sons; o tambor-onça, como capaz de sustentar todo o ritmo; os pandeirões dão o swing; e as
matracas seriam o "molho", o som de moldura do conjunto.
No quinto episódio da websérie “Na toada do Maracanã” (2021)120, Cândido e
Humberto, dois membros da trupiada do Batalhão de Ouro, explicaram que suas funções estão
relacionadas com o ritmo e andamento musical nas apresentações do grupo. Ambos relataram
que participam do boi desde a infância. Atualmente, curtem tocar os pandeirões, que no
Maracanã são feitos de couro de cabra e arco de madeira de jenipapo – considerados os mais
tradicionais; ou de napa/pele, o tipo preferido das novas gerações, que não precisa ser afinado
com o aquecimento na fogueira antes de seu uso, como o pandeiro de couro. Cândido e
Humberto também explicaram e demonstraram a diferença entre as batidas dos pandeirões,
denominadas como murro, marcação e repinicado (uma mistura das duas anteriores).
Esses elementos e características ajudam a diferenciar a sonoridade e a musicalidade
produzidas pelos membros do grupo do Boi de Maracanã dentro do sistema cultural de bumba
meu boi maranhense, normalmente dividido ou categorizado em sotaques. Maria Michol de
Carvalho (1995), a partir da observação participante no trabalho de campo, assim diferenciou
a sonoridade produzida pelo Boi de Maracanã, que afirma pertencer ao sotaque da Ilha, e pelo
Boi de Apolônio, caracterizado como sotaque da Baixada:
Seguindo o “sotaque de Pindaré” - próprio da “Baixada” - o boi do Apolônio tem um ritmo mais lento,
mais compassado, que se estende de modo indolente, um tanto preguiçoso. O toque dos instrumentos é
feito de forma mais devagar, acompanhando as toadas cantadas num tom mais arrastado.
Já o boi do Maracanã, pertence ao “sotaque de Matraca” - peculiar aos bois da “Ilha” - tem um ritmo
mais acelerado, mais quente, que se desenvolve de forma viva e descontraída, sob a regência absoluta
das “matracas”. Seu toque é vibrante, apressado mesmo. As “matracas” são acionadas com toda força,
beirando quase a agressividade, no acompanhamento das toadas, que são de um tom mais rápido.
(Carvalho, 1995, p. 122)
120
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=319058356888345>. Acesso em 13 jan. 2022.
80
1 1984 Boi de LP * *
Maracanã -
Características
populares do
Brasil
7 1998 25 anos CD * *
121
Há um choque de informações com relação ao ano deste álbum, pois o título encontrado no canal oficial do
Boi de Maracanã, na plataforma do Youtube, é de que ele foi lançado em 1998. Nos canais não-oficiais e na tese
de Letícia Cardoso (2016), indica-se como de 1988. Pelo fato de sua capa remeter a um LP e também, a partir
das audições que fiz de suas faixas que apresentam uma “textura” aparentemente mais antiga, considerei-o como
de 1988 para este trabalho.
82
2006 Tesouro do
13 CD * *
Maranhão
2006/2007 Estrela
14 CD Spotify Sim
Brasileira122
2007 Rio do
15 DVD Youtube Sim
Mirinzá
17 2009 Capricho de CD * *
São João - 35
anos de glórias
e sucesso
20 2012 Seleção de CD * *
Ouro: Guriatã:
40 anos de
cantoria
122
Este álbum também apresenta dupla informação em relação ao seu ano de lançamento. No perfil oficial do
Boi de Maracanã, no Spotify, consta como de 2006, e na pesquisa de Letícia Cardoso (2016), foi tabelado como
de 2007.
83
Toadas que são tradicionais tem que ser cantadas no boi. Se não tiver outras, tem que ser pelo menos
essas: guarnicê, lá vai, chegou, urro e a despedida. As outras toadas que tradicionalmente a gente se
inspira, canta... Pelo menos eu, não passo o ano sem cantar para lua, a estrela do oriente e para natureza.
(Rio do Mirinzá, 2007)
Assim como Humberto de Maracanã foi muito claro na sua afirmação, Ribinha
concordou, no nono episódio de “Na toada do Maracanã” (2021), com o fato de apresentações
de bumba meu boi, por mais curtas ou simples que sejam, tenham sempre que trazer as toadas
que marcam etapas importantes numa performance da brincadeira, denominadas guarnicê, lá
vai, chegou (chegada), urro(u) e despedida. Eles ainda acrescentaram, a essas, as toadas de
pique ou provocação aos contrários e aquelas de temáticas mais livres que dependem das
circunstâncias e contextos de cada grupo. Cardoso (2016), Sanches (2003), Albernaz (2004), e
85
o Dossiê do Bumba meu boi pelo Iphan (2011) também indicam essa sequência necessária de
toadas nas apresentações e nos CDs dos grupos, baseadas nas performances tidas como
tradicionais das brincadeiras de boi. Além da alusão recorrente ao tema de morte e
ressurreição do boi, essa sequência tradicionalmente seguida pelos grupos revela a função
chave desempenhada pelas toadas na instauração da sequência dos contextos de apresentação
do grupo.
Selecionei e dividi as toadas compostas por Mestre Humberto Mendes, que busco
analisar sua dimensão poética, tomando suas letras como foco e seguindo a classificação
nativa. No entanto, por questões de afinidades de conteúdo semântico existente entre elas, e
também para facilitar um entendimento maior, juntei algumas categorias de toadas em um
mesmo item.
Desperta, Maracanã!
E vens ouvir o teu Guriatã
123
Toada “Desperta Maracanã”. Disponível em <https://youtu.be/a_vVIqvE5vE>. Acesso em 06 jun. 2021.
86
Batalhão de Ouro
Levantou bandeira
A minha palmeira
Ninguém pode derrubar
Eu dei uma volta no tempo
Deixa Contrário saber
Tudo mudou
São João mandou
Eu cantar meu guarnecer (Mendes, 1996a)124
Nessa segunda toada, denominada “Batalhão de Ouro”, o compositor observa que seu
boi é notado aonde chega, é forte por ser obediente à devoção em São João Batista, e
diferencia-se dos outros, representados na ideia do Contrário. Distribuída também em três
estrofes, a sequência de rimas é mais irregular, porém seus versos se enquadram
majoritariamente dentro das seis ou sete sílabas poéticas. Os refrões também são a primeira e
última estrofes.
Mesmo sendo duas gravações feitas em estúdio no final dos anos de 1990, percebo
uma preocupação com a exatidão da mixagem de áudio quanto às entradas de vozes e
execução das batidas de cada instrumento de percussão. Nelas, o apito marca o início da faixa
para que o cantador, com características próximas a de um solista, possa cantar a toada sem o
acompanhamento dos instrumentos. Assim que ele começa a chacoalhar o maracá, a entrada
se dá primeiro com os tambores-onças, depois matracas e pandeirões simultaneamente. Ao
final, o apito marca a parada dos instrumentos e o encerramento da faixa. Na performance dos
integrantes, há a principal voz do grupo, Humberto Mendes – amo e cantador do Maracanã -,
e um coro marcante que só entra a partir da segunda passada das toadas, preocupado em
124
Toada “Batalhão de Ouro”. Disponível em <https://youtu.be/WyZjn0-anCU>. Acesso em 06 jun. 2021.
87
cantar fielmente a letra. Na terceira, o coro de vozes tem a dupla função de cantar os versos da
toada e expressar interjeições comuns do universo boieiro (Ê boi! Ê tchiô! Ê leô! Uô!), como
ocorreria numa execução ao vivo, ou seja, busca-se a reprodução de ações repetidas
tradicionalmente nas performances dos grupos do sotaque de matraca. Destaco aqui também a
interpretação de Humberto Mendes, cujo tom de voz valorizou as notas mais longas da toada
com uma certa força, que em alguns momentos, aproxima-se de um grito.
As toadas de guarnicê têm a função de levantar o Batalhão, convidam a assistência
para brincar e buscam atiçar os outros grupos que fazem parte de seu imaginário relacional a
rivalizar musical e simbolicamente nas apresentações. Em ambas toadas escolhidas,
Humberto Mendes preferiu enfatizar os sinais diacríticos do grupo do Maracanã no contexto
do sotaque da Ilha/de Matraca. É comum ele recorrer a estes símbolos – Guriatã, palmeiras,
Batalhão de Ouro - como uma forma de se auto afirmar diante dos outros grupos de bumba
meu boi.
Seguindo a sequência das brincadas, também transpostas para as sequências
apresentadas nos CDs do Boi de Maracanã, as toadas de lá vai, de acordo com Cardoso
(2016), têm a função de anunciar a prontidão dos grupos de bumba meu boi para a
apresentação ao público. Selecionei duas toadas desse tipo, sendo a primeira do álbum “A
Coroa é Nossa” de 1997:
A toada acima dá título ao CD, artifício muito utilizado pelo Boi de Maracanã para
designar seus álbuns do final da década de 1980 a 1990. Os versos dessa toada fazem
referência a alguns louros conquistados pelo grupo, como o tricampeonato de toadas da Rádio
Timbira entre 1978 e 1980 (Carvalho, 1995), e a força de seu Batalhão como argumentos que
reforçam o reinado simbólico do Maracanã no contexto do sotaque da Ilha. São citadas
125
Toada “A Coroa é Nossa”. Disponível em <https://youtu.be/a_vVIqvE5vE?t=205>. Acesso em 06 jun. 2021.
88
palavras que remetem a este reinado dado por São João, reforçando, assim, o caráter
devocional presente no bumba meu boi. Existem três estrofes na toada, sendo a primeira com
dois versos e as outras duas com três versos, cuja sequência de rimas é do tipo a/a/b/x/b/c/y/c.
Vale destacar, que o verso que dá nome à toada “A Coroa é nossa” tem notas muito mais
prolongadas do que todos os outros, na interpretação de Humberto Mendes, enfatizando a
posse da coroa simbólica, que de acordo com Ribinha, durante a websérie “Na toada do
Maracanã” (2021), faz parte do imaginário e das disputas entre os cantadores de bumba meu
boi de matraca.
A próxima toada integra o álbum de 2007, chamado “Estrela Brasileira”:
“Respeita meu Guriatã” é o nome dado à toada acima. O respeito se impõe graças à
fortaleza do boi, à sua beleza e força capazes de amedrontar ou surpreender os contrários. Sua
estrutura mantém três estrofes, com a primeira e última se caracterizando como refrões
repetidos em bis, além de apresentar a sequência de rimas x/a/y/a/b/z/b. A gravação dessa
faixa tem um outro desempenho sonoro, característico deste álbum, preocupado em captar os
sons de cada instrumento percussivo de um modo mais estéreo, dando-lhe naturalidade e
aspectos de ao vivo. Ou seja, a performance musical do grupo está mais integrada ao contexto
de apresentação, já que os recursos tecnológicos de gravação se tornaram mais eficientes e
presentes no Boi de Maracanã desde os anos 2000 que se caracterizaram por inúmeros
contatos com produtoras de renome nacional, como o grupo “A Barca” (Canavieira, 2012),
cujos membros ajudaram a gravar o documentário “Rio do Mirinzá” (2007) e um CD de
lançamento nacional.
É possível inferir que as toadas de lá vai, no Maracanã, comumente não têm apenas a
função de anunciar que o grupo está preparado para a apresentação ou brincada, mas também
para a disputa simbólica presente no contexto dos bois de sotaque da Ilha.
126
Toada “Respeita meu Guriatã”. Disponível em
<https://open.spotify.com/track/7JS4po7dgC8hnn6aI0EBRv?si=87f547776cb34e30>. Acesso em 27 jan. 2022.
89
Ambas toadas foram regravadas: a primeira foi gravada originalmente para o álbum de
2004, “30 anos de Glória”, e a segunda possivelmente para os primeiros álbuns dos anos
2000. Humberto Mendes, entre 2009 e 2015, vivia já bastante debilitado pelas limitações de
saúde. Logo, os álbuns desse período se destacaram por apresentar toadas inéditas de outros
cantadores (como Ribinha, Teteco e Humberto Filho), além de reutilizar gravações de antigas
toadas de sucesso do amo do Maracanã em seus mais de 40 anos de cantoria. Os versos de
ambas toadas reforçam as principais características do Batalhão de Ouro, que se diferencia
dos outros por ser um celeiro de cantadores; enfatizam e reverenciam a devoção a São João,
ao citar o nome de batismo do couro do Boi129, além de aludir à continuidade social da
comunidade na interação geracional entre os mais velhos e mais novos (simbolizados como
trincheira nova e trincheira velha) em torno da figura mediadora de Humberto Mendes.
Apesar de mais ligadas aos aspectos pessoais do Guriatã, que acabaram se expressando
nas ações e no estilo do Boi de Maracanã, as toadas de chegada do grupo têm a função de
127
Toada “Maracá de Prata”. Disponível em <https://youtu.be/S7zY1WialIQ?t=660>. Acesso em 06 jun. 2021.
128
Toada “Trincheira nova, trincheira velha”. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=iOntK8yiL2w>. Acesso em 02 set. 2021.
129
Como já mencionado e explicado no capítulo 1 desta dissertação, o couro do boi é uma parte que reveste a
carcaça do artefato, na qual são bordadas imagens e referências de entidades, lugares, plantas e animais
estimados pelo grupo. Nele também se encontra seu nome, revelado durante o ritual de batismo do boi.
90
Nas apresentações e álbuns dos grupos de bumba meu boi no Maranhão, é comum a
presença de toadas com temáticas mais livres (Iphan, 2011). Nelas, os cantadores e seus
grupos têm a oportunidade de expressarem os motivos de suas inspirações. A vivência e o
ambiente de Humberto Mendes podem ser apreendidos nos versos de muitas toadas que
integram o seu repertório. Em diferentes relatos, no documentário “Rio do Mirinzá” (2007),
“Guriatã” (2018), e na entrevista para o volume VII da coletânea de livros “Memória de
Velhos” (Mendes, 2008, p. 154), Mestre Humberto afirmava não deixar de compor
anualmente toadas. Muitas referiam-se a experiências vivenciadas por ele. Um exemplo disso
se encontra no episódio “O Mestre do Maracanã”, da série documental Visceral Brasil (2014),
quando ocorreu o reencontro entre Humberto Mendes e seus antigos amigos, no qual
cantaram os primeiros versos compostos por ele quando tinha 12 anos, após negociação entre
a vizinhança e seu boi mirim:
130
“Primeira Toada” de Humberto Mendes. Disponível em <https://youtu.be/mdJfItXfoIo?t=913>. Acesso em
24 abr. 2021.
91
Nessa toada, “Meu boi quando menino”, Humberto de Maracanã aposta na ousadia
melódica e na extensão de composição da letra com 22 versos, divididos em quatro estrofes.
131
Toada “Meu Boi quando menino”. Disponível em <https://youtu.be/WyZjn0-anCU?t=720>. Acesso em 02
set. 2021.
92
Além de ser bem maior, as rimas recorrem à citação dos nomes de seus amigos, reforçando os
aspectos coletivos e de sociabilidade da brincadeira de boi desde a infância. Noto também que
os refrões se apresentam na primeira e terceira estrofes, destacando a localidade de sua
primeira experiência como cantador.
Em seus relatos ou entrevistas, Humberto Mendes recorria comumente às toadas como
comprovações de momentos vivenciados por ele ou com as quais teve contato. Ou seja, suas
composições podem ser enquadradas como artifícios de registro, de fixação e
compartilhamento de suas memórias individuais num ambiente coletivo.
A seguir, utilizando esses recursos, ele relata sua experiência de teste de suas
habilidades como cantador no Boi de Maracanã, o que teria ocorrido por volta de 1973:
Lembro da primeira toada que serviu de teste de aprovação para entrar no Boi, estavam todos reunidos
na porta de José Martins, e cantei:
“Estou fazendo experiência
O povo quem vai julgar
Eu não sei se tenho competência de assumir o lugar
Ano passado ao povo prometi
De cantar toada este ano aqui”. (Mendes, 2008, p.154)
Maracanã, eu me lembrei
Do teu passado e até chorei
Da sombra da mangueira de Iaiá
Da festa de Mundica Pinto
Mãe Xinéia e Simbá
Da casa de forno
De meu tio Zé
Das carreiras de Antônio Ganjão
No caminho do igarapé (Mendes, 1996c)132
A segunda toada é “Velhos Guerreiros”, composta por Humberto Mendes para o álbum
“25 anos” (1998), porém regravada por seu filho e cantador Teteco ao “Guriatã - Saudade
Eterna” (2015):
132
Toada “Maracanã e o passado”. Disponível em <https://youtu.be/WyZjn0-anCU?t=256>. Acesso em 06 jun.
2021.
133
Toada “Velhos Guerreiros”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Mwyp6zTa6E0>. Acesso
em 10 fev. 2022.
94
134
Executada no documentário “Guriatã” (2018), com a voz de Mestre Humberto Mendes e sob o título
“Primeiros Guerreiros”. Na primeira versão, o nome de Geraldo é o primeiro a ser citado no segundo verso, antes
de ser deslocado para a terceira estrofe da segunda versão em 2015.
95
Parnáu-açu e Maioba
Pindaí, Ubatuba e Vinhais
Panaquatira e Igaraú
As aldeias da Ilha foram dos tupinambás
“Upaon-Açu” é mais uma toada com formato dividido em cinco estrofes, dentre eles
três refrões cujos versos ressaltam a liderança, a divisão das aldeias e a etnia formadora delas.
A gravação não demonstra preocupação quanto à sequência de entrada dos instrumentos de
percussão, a partir da segunda passada. O grave dos pandeiros, mais alto e marcantes na
mixagem, acabou ressaltando o swing e o aspecto artesanal do ritmo. Esta toada é uma
tentativa do cantador e mestre do Maracanã reconfigurar a formação da cidade de São Luís do
Maranhão, sob o ponto de vista dos indígenas nativos, com os quais uma parte significativa
dos grupos de bumba meu boi do sotaque da Ilha têm ligação direta, como os redutos citados
de Maioba, Itapera e Maracanã. Outros bairros que integram a região metropolitana da capital
maranhense também são lembrados, como Araçagi, Turu, Panaquatira e Vinhais. Humberto
Mendes admitiu que precisou recorrer à consulta ou pesquisa para conseguir informações que
seriam compartilhadas por essa composição (Mendes, 2008, p. 156). Em 1988, quando foi
gravado o álbum no qual se encontra esta toada, Mestre Humberto e o Boi de Maracanã
apresentaram composições com a finalidade de levar informações desconhecidas num período
de realização de festivais importantes, dando consequências às regravações de outros artistas
locais renomados.
Mais um exemplo de resgate de memórias a partir de interações com a cidade é a
toada, intitulada “Os Bangalores do Campo de Ourique”, gravada no álbum “Touro Negro no
Reino de Guaré” (1996):
135
Toada “Upaon-Açu”. Disponível em <https://youtu.be/f4-GSqfO7g8?t=967>. Acesso em 06 fev. 2022.
96
136
Toada “Os Bangalores do Campo de Ourique”. Disponível em <https://youtu.be/WyZjn0-anCU?t=1156>.
Acesso em 02 set. 2021.
137
Fundado em 1793, abrigou o quartel do 5º Batalhão de Infantaria a partir de 1797. No século XIX, era
referido como Campo de Ourique ou Largo do Quartel até o ano da Proclamação da República, 1889, quando
passou a se chamar Praça Deodoro da Fonseca. O Quartel foi demolido na década de 1930. (Lima, 2018)
97
artística no meio boieiro. Acompanho também a sugestão de Carvalho (2011), que tem por
base o estudo aprofundado da trajetória de vida de Herberth da Mafra Reis, Pai Francisco do
Boi da Fé em Deus, de sotaque Zabumba. Para ela, os indivíduos preocupados em narrar suas
experiências de vida desempenham o papel de mediadores socioculturais entre seu próprio
meio social e o mundo social mais amplo:
Pensar a construção e a narração de histórias de vida como projetos de individuação implica, portanto,
assumir as mediações entre indivíduos e sociedade como fontes de significação na vida social, e as
relações entre ambos (...) como fontes de explicação socioantropológica. (...) Nas narrativas de vida, o
sujeito que se dá a conhecer não é o indivíduo empírico, mas aquele que se constrói como portador de
uma memória e de uma identidade formuladas ao longo de uma trajetória, as quais, embora pensadas
como atributos individuais, são dotadas de uma natureza eminentemente social. (Carvalho, 2011, p.
316-317)
Eu me lembrei
De todas as maravilhas desta Ilha
Que eu chamo de encantada
Eu refleti bastante sobre a natureza
Vi que a Ilha é uma estrela de uma constelação febril
Essa toada, chamada “Lua, tu és linda demais”, tem estrutura e composição em duas
estrofes com apenas dois versos e rimas a/a/b/b. Isso permite, em alguns casos, uma linha
melódica com poucas variações, mas eficientes do ponto de vista de audição e memorização
para a assistência e a trupiada do Batalhão de Ouro. Os versos exaltam a natureza e
possibilitam imaginar o cenário descrito no ambiente praieiro, remetendo aos lugares e
horários nos quais Humberto de Maracanã compôs suas toadas. Abaixo, seguindo linha
melódica e de conteúdo similares, a transcrição de “Serra de Amburana”:
Salve os astros
Salve a serra de Amburana
E a passarada preludiando o seu canto
No romper da madrugada
138
Toada “Palmeira onde me inspiro”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=NqKZVo_3lqg>.
Acesso em 06 jun. 2021.
139
Toada “Lua, tu és linda demais”. Disponível em
<https://open.spotify.com/track/22ymjTJbvYYGezmISABioh?si=f53faeb493584139>. Acesso em 10 fev. 2022.
140
Toada “Serra de Amburana”. Disponível em <https://youtu.be/a_vVIqvE5vE?t=1031>. Acesso em 06 jun.
2021.
99
Essa toada, integrante do álbum “A Coroa é Nossa” (1997), com oito versos, divididos
igualmente em duas estrofes (quadras) e rimas mais variadas nas suas metades ou términos. A
primeira estrofe não contém um padrão de versos com quantidade de sílabas poéticas
similares, porém a segunda já apresenta dois versos com 11 sílabas poéticas, no início e no
final.
Por vezes, as toadas ligadas à natureza também fazem alusão às encantarias: lugares
normalmente afastados das grandes aglomerações humanas que, segundo a crença local,
servem de morada para entidades, conhecidas como encantados – pessoas que desapareceram
misteriosamente sem deixar vestígios materiais em outros tempos (M. Ferreti, 2008, p. 1).
Carvalho (1995) lembra de um exemplo que, secundariamente, é associado à expressão do
bumba meu boi maranhense, como a lenda popular de Dom Sebastião, rei de Portugal no final
do século XVI:
Conta-se que esse rei, depois de desaparecer em Alcácer-Quibir, veio, com toda a corte de Queluz,
encantar-se na Praia dos Lençóis, localizada no município de Cururupu, no estado do Maranhão. A
partir daí, justamente durante o período das festas juninas, ele se transforma em luzente touro coberto de
pedras preciosas com olhos de fogo, fulgurante estrela na testa, chifres de ouro e boca de brasa. E, assim
transfigurado, aparece em desabalado galope e apavora os pescadores incautos. Nas toadas do bumba,
essa figura legendária muitas vezes se faz presente. (Carvalho, 1995, p. 40)
Como afirmou Humberto Mendes: “Existe uma ligação do boi com a encantaria. E eu,
desde quando comecei a cantar boi, eu sempre me inspirei muito nessas coisas, assim, da
natureza onde muitas coisas das toadas que eu faço têm a ver com as coisas da Encantaria”
(Rio do Mirinzá, 2007).
O caráter de devoção junina do bumba meu boi maranhense também serve de
inspiração. Mas, para Humberto de Maracanã, São João Batista erguia-se como santo
padroeiro entre outras diferentes entidades com quem o cantador também firmara
compromisso.
141
Toada “Senhor, São João”. Disponível em <https://youtu.be/NneESbGCR9w?t=158>. Acesso em 02 set.
2021.
100
A toada acima, nomeada como “Senhor, São João” e gravada no álbum “30 anos de
glória” (2004), é geralmente interpretada após o ritual de batismo do Boi de Maracanã,
quando Humberto Mendes compunha de improviso uma toada dedicando seu boi a São João
Batista (Mendes, 2008, p. 157-158). Ele afirma que essas toadas de improviso são sempre
curtas, com dois versos em “dois pés”. Ou seja, creio que dois versos, em cada estrofe. Nessas
toadas, as rimas normalmente não fogem do esquema a/a/b/b, rimados entre si. Outras
entidades do catolicismo popular e da encantaria são lembradas nas toadas do Boi de
Maracanã:
A melodia dessa toada soa quase como uma prece e contribui para o ciclo repetitivo da
toada, que durante as gravações ou apresentações, é entoada pelo menos três vezes. Destaco
também a extensão das notas e sua característica mais dolente, assim como na toada “Senhor,
São João”, ambas gravadas no mesmo álbum “30 anos de Glória” (2004). Em cinco estrofes,
os versos exaltam Maria, mãe de Jesus, muito cultuada no catolicismo, e apresentam um certo
cuidado ou respeito para as figuras maternas e femininas, sem esquecer de agradecer e pedir
intercessão pessoal. A toada seguinte também exalta uma entidade feminina cultuada no
sistema religioso de encantaria:
142
Toada "Virgem Santa”. Disponível em <https://youtu.be/NneESbGCR9w?t=1316>. Acesso em 02 set. 2021.
101
A toada acima, conhecida como “Sereia de Cumã”144, tem versos divididos em duas
estrofes, seguindo de alguma forma o padrão das toadas curtas do Maracanã. Faz referências à
encantaria de Itacolomin, pertencente ao encantado João da Mata, ou Rei da Bandeira (M.
Ferreti, 2008, p. 3). Existe um pedido nos versos para que a Sereia não se esqueça do
Maracanã, ou seja, de acompanhar e proteger o grupo. De acordo com o amo Ribinha, no
quinto episódio da websérie “Na toada do Maracanã”, essa era uma das composições
preferidas de Humberto Mendes, que a interpretou superando as dificuldades do avanço da
idade na gravação do álbum “Lira Sagrada” (2013). Outras entidades também são lembradas
para acompanhar o grupo, como na toada “Convidei todo o povo”, transcrita das audições do
CD “30 anos de Glória” (2004):
A diferença melódica dessa toada para as outras de temáticas similares está no vigor
presente na interpretação de Humberto Mendes e das notas que compõem sua musicalidade.
Os seis versos, também divididos em duas estrofes, expressam o sincretismo da devoção do
cantador do Boi de Maracanã e do grupo por ele liderado. No mesmo documentário, o mestre
do Batalhão de Ouro relata: “O Reinado de Guaré. É o reinado da princesa Dina que a gente
sempre homenageia. Até porque ela faz parte desse boi. Ela tem a ver com o boi. O reinado
dela também” (Guriatã, 2018). De acordo com Mundicarmo Ferreti (2008, p. 3), alguns
autores identificam esse reinado ao Barão de Guaré, que comanda as águas marítimas entre a
cidade de Alcântara e o Boqueirão, na Baía de São Marcos, próximo da cidade de São Luís.
143
Toada “Sereia de Cumã”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WHZzP4KCRIg>. Acesso em
02 set. 2021.
144
No álbum Aldeia Tupinambá (2020), essa toada também foi interpretada pelo cantor e compositor paraibano
Chico César, reconhecido na música popular brasileira.
145
Toada “Convidei todo o povo”. Disponível <https://youtu.be/NneESbGCR9w?t=1825>. Acesso em 02 set.
2021.
102
Ambas entidades integrantes da mesma família de Dom Sebastião: reis, fidalgos e gentis (S.
Ferreti, 2013, p. 113).
A brincadeira do bumba meu boi maranhense é expressão cultural mediadora entre os
universos laico e religioso, e seu caráter devocional articula os valores e noções do
catolicismo popular àqueles das tradições afro-brasileiras. No dossiê do Iphan (2011), a
celebração do Boi no Maranhão é vista como resultante de contratos entre brincantes devotos
e entidades do catolicismo popular ou da encantaria, remetendo ao conceito de dádiva tal
como proposto por Mauss (2003), como trocas voluntárias em teoria, mas que se provam ser
obrigatórias na realidade social. No Maracanã, a ideia de contratos ou dádivas se exprime com
a categoria nativa compromisso. Essa relação também pode ser expressa na performance,
quando brincantes mencionam a presença ou experimentam a incorporação de entidades
espirituais nas brincadas dos bois em casas de cultos afro-brasileiros, realizadas a pedido dos
encantados. Em certas situações, como no batismo do Boi ou até mesmo em apresentações no
terreiro/barracão do Maracanã, são comuns os brincantes demonstrarem a relação entre a
encantaria e o bumba-boi, como vistas nas imagens do documentário “Guriatã” (2018). Essa
relação se exprime também no simbolismo das toadas compostas pelos amos e cantadores
(Iphan, 2011)146.
A relação entre bumba meu boi e o sincretismo religioso pode ser enfocada a partir das
teorias de ritual e performance. Como indicou Cavalcanti (2020), a partir de seus trabalhos de
campo entre os Ndembus realizados no início dos anos 1950 na antiga Rodésia do Norte, atual
Zâmbia, Victor Turner (1974, 2005) entendeu o ritual como situações sociais em que os
símbolos acionados ganham eficácia e enfatizou as características restauradoras dos inúmeros
rituais encontrados e analisados por ele entre os Ndembu. As toadas de bumba meu boi são
elementos chaves para a instauração do simbolismo acionado nos inúmeros e diversos rituais
do ciclo anual dos grupos de boi. Schechner (2003), além de concordar com Turner ao levar
em consideração a interatividade no processo ritual, afirma que a performance no ritual é
constituída de comportamentos restaurados ou de ações repetidas, capazes de contar histórias,
curvar o tempo, afirmar identidades e remodelar corpos.
146
Além da dimensão simbólica das toadas, aproveito para chamar atenção ao aspecto rítmico, baseado nas
sensações e observações de Mário de Andrade (1983, p. 37), durante o ritual de fechamento do corpo. O autor
aponta que a finalidade principal da música de feitiçaria é sua relação com o poder hipnótico, ocasionado pelas
inúmeras repetições do ritmo e a monotonia do cântico. As consequências disso, nas músicas de origem
afro-brasileira, poderiam ser a expressão desse poder através de coreografias e dança.
103
A ligação das festas do boi maranhense com o universo dos encantados é permeada
por mistérios e crenças. De acordo com as observações de Sérgio Ferreti (2013), durante sua
pesquisa de campo nos terreiros de Tambor de Mina, uma das expressões religiosas que
integram o complexo da encantaria maranhense e caracterizada por cultuar orixás, voduns e
caboclos (que podem ser de origem ameríndia ou nobres europeus encantados), é comum seus
praticantes fazerem um certo mistério quanto às informações da crença e das entidades.
Graças à proximidade de trocas simbólicas com as religiões de matriz afro-ameríndias, esse ar
de mistério também alcança o bumba meu boi. As cenas iniciais do episódio documental “O
Mestre do Maracanã” (2014)147 ilustram ações de Humberto Mendes entrando num terreiro,
orando diante do altar e recebendo orientações e bênçãos de um pai-de-santo. De acordo com
Sanches (2003), os cantadores e amos costumam se proteger de feitiços, que no caso seriam
ataques místicos praticados pelos contrários, capazes de prejudicar suas vozes ou atuações nas
apresentações. Muitos deles realizam banhos, chás e outras práticas de proteção mística.
Alguns até assumem ter uma espécie de guia, normalmente ligado às entidades da encantaria
maranhense (Sanches, 2003). Logo, em muitos casos, o bumba meu boi interage com os
segredos e sincretismos dos terreiros.
No caso do grupo do Maracanã, desenvolveu-se uma consciência da importância da
espiritualidade na celebração do Boi. O grupo se aproximou das expressões e simbolismos das
religiões de matriz afro-indígenas que integram o complexo da encantaria maranhense. Mestre
Humberto Mendes afirma nem sempre ter aceitado as responsabilidades com a espiritualidade
no grupo, mas aos poucos, orientado por pessoas envolvidas com os terreiros religiosos,
tornou-se um defensor dessa aproximação (Mendes, 2008, p. 163-166). No relato durante
entrevista com a pesquisadora Letícia Cardoso (2016), Mestre Humberto explica como se deu
sua relação com os aspectos religiosos no Boi de Maracanã:
O Bumba meu boi é uma manifestação cultural, mas também religiosa, onde envolve o Tambor de
Mina, porque tem a ver com o Boi. No começo eu não queria admitir, quando as pessoas se
pronunciavam e ofereciam ajuda no aspecto espiritual, eu dizia: 'Larga isso de mão, besteira'. Não
gostava de ir onde eles frequentavam, mas depois fui tomando consciência da realidade, da influência
forte dos 'guias' com a brincadeira de Bumba meu boi. Qualquer terreiro de Bumba-boi que você vá,
encontrará o altar de São João e a pessoa que faz o Boi tem alguém que ele se comunica nesse aspecto
de saber o que deve e o que não deve fazer para que o Boi saia bom. (Humberto Mendes apud Cardoso,
2016, p. 147)
147
Disponível em <www.youtube.com/watch?v=mdJfItXfoIo>. Acesso em 24 abr. 2021.
104
Em alguns momentos dos documentários Rio do Mirinzá (2007) e Guriatã (2018), ele
relatou como enxergava ou sentia a influência de distintos espíritos, caboclos e encantados no
bumba meu boi (Rio do Mirinzá, 2007). Esse convívio de Humberto Mendes e sua
preocupação com a religiosidade e a do grupo do Maracanã acabou resultando em toadas com
referências a essas entidades. A composição “Reis na Encantaria”, que integra um álbum do
“Maranhão Vale Festejar” (2003), produzido pela Companhia Vale do Rio Doce, cita várias
entidades ligadas ao lugar sincrético do Boi. Vencedora do II Festival Maranhense de Toadas,
em 1992:
Outro exemplo de toada que sintetiza crenças, entidades, festas e símbolos diacríticos
exaltados e compreendidos pela tradição e interação geracional é “Maranhão, meu tesouro,
meu torrão”, interpretada no álbum “Na sombra da Palmeira” (1993). Vencedora do I Festival
Maranhense de Toadas, em 1986, regravada várias vezes pelo próprio grupo e inúmeros
artistas, entre eles Alcione. Passou por um processo de simbolização no estado, culminando
no título de Patrimônio Cultural Imaterial do Maranhão, em 2022:
148
Toada “Reis na Encantaria”. Disponível em <https://soundcloud.com/daniel-walassy/reis-na-encantaria>.
Acesso em 06 jun. 2021.
105
Urrou no terreiro
Este Touro é malcriado
Um cantor e um desmamado
Sumiram da região
149
Toada “Maranhão, meu tesouro, meu torrão”. Disponível em
<https://open.spotify.com/track/3NLFwwnGHHl192imbfaF30?si=07e98157e3864d17>. Acesso em 06 jun.
2021.
150
Toada “Meu Boi gemeu na serra”. Disponível em
<https://open.spotify.com/track/0tOLOHuwasVoFmiTAVJ4Z2?si=40fe5e2b0a5648ea>. Acesso em 10 fev. 2022.
106
Esse tipo de toada se diferencia dos outros tipos tradicionais, pois são mais longas e
têm um tom jocoso e provocativo ao se referirem aos contrários. As informações acerca destes
são obtidas a partir das fofocas existentes e compartilhadas no meio boieiro. Logo, as toadas
de Urro(u) se diferenciam por exaltarem a grandeza do próprio boi e pela finalidade de caçoar
dos contrários. No caso da toada acima, Humberto Mendes se dirige ao cantador José Alberto,
por sua alcunha “Leão Devorador”, e ao grupo do Boi da Madre Deus que não conseguem
lidar com a antiga grandeza151 do grupo e com a vaidade de seu próprio cantador. Outro
exemplo dessa dimensão é a toada “Quem fala alto é o Guriatã”, presente no álbum “Lira
Sagrada” (2013):
O formato desta toada se diferencia por conter cinco estrofes, sendo quatro delas em
dois versos. Apenas a segunda estrofe não é cantada em bis. Quanto à mixagem da gravação,
o maracá entrou na metade da primeira passada, seguida pelo restante dos outros instrumentos
de modo simultâneo. Humberto Mendes, com esta composição, exige respeito dos contrários
ao chamar atenção ao urro do Boi e à imposição da voz do Guriatã que se diferencia dos
outros pela valorização da própria autoria de suas toadas, em contraposição à parceria de
cantadores com um “rapaz” de Iguaíba.
Os grupos de bumba meu boi do sotaque da Ilha inserem-se numa rede de intensa
rivalidades traçadas entre eles. As toadas de pique são uma das formas de expressar os
151
Abmalena Sanches (2003), na sua dissertação “O Universo do Boi na Ilha”, cujo objeto de estudo foi o caso
do Boi da Madre Deus, sotaque de matraca, deixa de modo claro como a memória oral do grupo e da cidade de
São Luís guarda este Boi entre um dos mais populares no início e meados do século XX. Nos anos 2000, ela
observou que seus membros questionavam a falta de prestígio de outrora, inseridos num contexto de disputas
políticas internas que julgavam prejudicar o grupo.
152
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=PekPcQvDqH0>. Acesso em 20 fev. 2022.
107
desafios aos contrários. Humberto Mendes demonstrava interesse por essa linha de inspiração,
mas era seletivo e seguia um estilo próprio ao fazê-las:
Dependem das circunstâncias, não são difíceis, elas são bonitas e motivadoras, mas tem que haver
decência, não pode ser pornográfica, agressiva e nem falar da vida particular de ninguém, alguns gostam
de fazer isso, se a pessoa praticou alguma coisa ele vai cantar, não tem nada a ver. Se um cantador canta
pra mim dou a resposta. (...) Na maioria das vezes canto quando me provocam, algumas vezes cantei
provocando também... (Mendes, 2008, p. 158)
153
Toada “Guriatã Inconsciente”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=1ke-aBGKg68>. Acesso
em 02 set. 2021.
108
Judas traiçoeiro
Tu não tens coração
Foi ele, Maioba
Quem destruiu teu Batalhão
Nessa toada, dividida em cinco estrofes, exceto a segunda que não é cantada em bis.
As outras estrofes realçam a provocação ao cantador contrário e as interpelações enfáticas de
Humberto Mendes ao grupo da Maioba. Ambos nunca citam diretamente os respectivos
nomes artísticos, mas sim suas alcunhas ou então adjetivos jocosos. As toadas de pique
(desafio), com suas provocações, contribuem para fortalecer os elos internos e exaltar as
qualidades de um grupo em detrimento dos outros. Revelam a natureza associativa da disputa
em que o contrário desafiado e confrontado integra a construção de si (Cavalcanti, 1994, p.
32; 2018).
Humberto Mendes também se dirigia aos contrários a fim de enaltecer suas qualidades
como cantador e aquelas de seu grupo no universo do sotaque da Ilha. Uma composição
conhecida, em que ele prolonga sua vida na terra, é executada nos documentários “O Mestre
do Maracanã” (2014) e “Guriatã” (2018):
154
Toada “Perdeu tua prenda Maioba”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=GJ7q7w7Glw8>.
Acesso em 06 jun. 2021.
109
Essa pequena toada, chamada “Contrário tua profecia sempre falha”, tem duas
estrofes, com versos de maioria em oito sílabas poéticas, e com pedidos a Deus e de
intercessão a São João Batista para seu ousado desejo de viver por mais de 100 anos, em uma
exaltação da própria função de cantoria. As melodias dessas toadas de desafio ou de
provocação são mais agressivas, valorizando o ritmo firme da trupiada e também as notas
mais longas no tempo melódico. A altura da voz na interpretação é mais aguda do que o
habitual como uma forma de dar destaque ou como a encenar uma discussão.
Os ciclos e recomeços também são temas comuns para expressar a superioridade do
grupo do Maracanã na disputa simbólica pelo reinado da toada na Ilha de São Luís do
Maranhão. “A Coroa ainda Existe”, presente no álbum “Touro Negro no Reino de Guaré”
(1993) e que contém inúmeras versões e regravações, expressa o contexto de formação de
Humberto Mendes, admirador do antigo cantador Januário, um dos destaques do cenário do
bumba meu boi, por volta de 1950:
155
Toada “Contrário, tua profecia sempre falha”. Disponível em <https://youtu.be/S7zY1WialIQ?t=1761>.
Acesso em 06 jun. 2021.
156
Toada “A Coroa Existe”. Disponível em <https://youtu.be/WyZjn0-anCU?t=2112>. Acesso em 06 jun. 2021.
110
Para o Boi de Maracanã, o reinado da toada continua no seu viveiro, devido à troca
geracional de cantadores, em sua maioria, filhos e netos de Humberto Mendes.
3.5 DESPEDIDA
Todos pensam que é da cantoria que vem minhas conquistas, mas independente disso, nem pensava em
ser cantador, garoto, apareciam muitas namoradas e ainda aparecem, eu é que não quero mais saber,
deixei faz muito tempo. Às vezes interesso-me por alguma. A mãe da minha filha Maria Açucena
apareceu no Boi, não que eu use o Boi para formar um harém, ser aproveitador. (Mendes, 2008, p. 184)
Essa dimensão mais ligada ao aspecto pessoal do Mestre do Maracanã também serviu
de inspiração para toadas com temáticas ligadas às mulheres, aos ciúmes e partidas. A linha
romântica normalmente domina as composições de despedida do Boi de Maracanã, como na
toada interpretada na 12ª faixa do álbum “30 anos de Glória” (2004), que reforça
simbolicamente o sentimento de falta e saudade:
Adeus, morena
Vou me retirar
Batalhão de Ouro p’ra outro terreiro eu vou levar
158
Toada de despedida disponível em <https://youtu.be/NneESbGCR9w?t=2339>. Acesso em 02 set. 2021.
159
Toada “Quando eu voltar serei dois”. Disponível em
<https://soundcloud.com/daniel-walassy/quando-eu-voltar-serei-dois>. Acesso em 11 fev. 2022.
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reconstituição biográfica de Humberto Mendes demonstra que ele não foi um gênio
de ambivalência estabelecido-outsider, que tentou desviar das normas de seu tempo, assim
como Norbert Elias (1995) compreendeu ao escrever e analisar a biografia do músico
austríaco Mozart, incompreendido pelas estruturas sociais monárquicas da Europa no século
XVIII. Na minha visão, a trajetória do Mestre do Maracanã aproxima-se da noção de
estabelecido, ou seja, uma personalidade que esteve no seu tempo adequando-se às estruturas
e contextos históricos, políticos e socioeconômicos do bumba meu boi maranhense e do
Batalhão de Ouro. Humberto Mendes cresceu, percebeu e desenvolveu seu talento no período
de popularização da brincadeira de boi no estado, ingressou no compromisso a São João como
cantador de Boi do Maracanã no período de institucionalização, estabeleceu-se como mestre
reconhecido no período de patrimonialização. Vale destacar que esses períodos não podem ser
compreendidos como algo estanque, mas como processos temporais com momentos de
liminaridade, pontos de inflexão (Hughes, 2005), para o entendimento maior da carreira de
uma personalidade no sistema cultural do bumba meu boi maranhense.
As composições de Humberto Mendes são locus simbólico e representativo não só de
sua trajetória, mas também das inúmeras paisagens, escolhas, memórias e contextos pelos
quais vivenciou em interação com o Batalhão de Ouro. No ponto de vista nativo, a função de
um cantador é dupla: cantar e compor suas toadas, assim como estas são divididas em poesia
(letra) e melodia, dando-lhes um sentido aproximado à inspiração. Quem não segue ou se
enquadra nessas características têm sua função e autoria questionadas pelos brincantes e
simpatizantes. Essas noções foram construídas de acordo com as dualidades semânticas da
brincadeira de boi e das relações sociais - rivalidade e afeição - presentes no meio social
boieiro, especialmente no sotaque da Ilha, onde se encontram potencializadas.
Mesmo preocupado em seguir a tradição da sequência de toadas (guarnicê, lá vai,
chegou, urrou e despedida) ou a organização e cadência rítmicas da trupiada, Humberto de
Maracanã nas toadas procurou quebrar paradigmas de formato e estabeleceu um estilo
melódico, desempenhando diferentes papéis: amo carismático, mestre dos desafios, cronista,
homem apaixonado, mediador devoto, brincante sincrético, porta-voz do Maracanã. O
desempenho, expresso na relação tradição e mudanças, o estilo estético (contexto) e estrutural
(funções) dessas toadas foram repassados para uma nova geração de cantadores do Boi de
Maracanã, por Mestre Humberto, provando que existe um processo de acustemologia no
grupo (Feld, 2018).
115
Após sete anos da partida de seu antigo líder e cantador, o Batalhão de Ouro no
contexto contemporâneo de patrimonialização do sistema cultural do bumba meu boi
maranhense executa práticas de rememoração de Humberto Mendes não só na reprodução,
regravações e releituras de suas toadas, mas também nas lembranças e outros modos alusivos
(ícones, fotografias, imagens) num processo de simbolização desse personagem. É dessa
forma que os membros do Boi de Maracanã procuram se diferenciar dos contrários no meio
social boeiro, reforçando a associação entre memória e identidade como um fenômeno
construído coletivamente e repassado por gerações. No período de pandemia, a memória
coletiva em torno de Humberto Mendes continuou reavivada nas atividades, apresentações e
discussões nos quais membros da diretoria e o Boi de Maracanã em conjunto puderam
participar ou produzir. Foi uma forma do grupo dar continuidade aos valores, símbolos e
práticas apreendidos pelos antepassados do grupo, escolhidos e repassados por Humberto
Mendes, personalidade e emblema maior do Batalhão de Ouro.
Portanto, a partir dos dados obtidos, analisados e descritos ao longo de todo este
trabalho, entendo que o legado é uma categoria analítica que se nativizou entre os brincantes
do Bumba meu boi de Maracanã, cuja noção é compreendida entre eles como constituída por
processos construtivos e compartilhados de memória e identidade, repassados de modo
geracional e pelas relações de parentesco no Batalhão de Ouro de Maracanã. Vale destacar
que o legado de Humberto Mendes também é visto por eles como um resultado das escolhas
que o mestre fez em vida. Logo, diante do campo de possibilidades enfrentado não só pelo
Guriatã, mas por todo o grupo do Boi de Maracanã, vejo que a noção de legado se aproxima
ao conceito de um consciente projeto individual, definido por Gilberto Velho (1981, 1994).
Essa construção, além de ser individual e apreendida coletivamente, está inserida na dinâmica
complexa e interativa da cultural popular e do meio social boieiro com a sociedade geral.
Para Velho (1994, p. 101), o projeto é a antecipação do futuro no presente de uma
trajetória e biografia, pois sua consistência depende fundamentalmente da memória. Por isso,
acredito que não foi à toa a declaração de Humberto Mendes, nos últimos anos de sua vida,
para o episódio documental “O Mestre do Maracanã”, da série Visceral Brasil (2014): “Se
alguém me criticar, ‘tu não passas de um cantador de boi, rapaz!’ Eu tenho orgulho de ser
cantador de boi. O futuro está agora no presente!” Essa semântica também se encontra nos
versos da sua toada “Maranhão, meu tesouro, meu torrão”:
116
Acredito que a compreensão de toda essa complexidade pode ser alcançada a partir do
exercício etnográfico. É um caminho eficaz para a imersão do pesquisador no sistema cultural
do bumba meu boi maranhense, com o objetivo de analisar antropologicamente elementos e
personagens que o integram. Este trabalho indicou os inúmeros trânsitos e circulações que
perpassam o sistema cultural do bumba meu boi maranhense, imbricados em diferentes
contextos históricos, políticos e socioeconômicos. Em meio a essa complexidade, emergem
artistas que se individualizam e exercem papéis culturalmente importantes. Proponho, assim,
que os estudos contemporâneos de cultura popular possam abordar cada vez mais as
trajetórias de indivíduos que são casos exemplares da heterogeneidade e da natureza dinâmica
características desse campo.
117
APÊNDICES
Abaixo outras composições transcritas a partir das audições de alguns álbuns do Boi
de Maracanã e das toadas executadas nos documentários “Rio do Mirinzá” (2007), “O Mestre
do Maracanã” (2014) e “Guriatã” (2018). Elas integram o repertório de vida do Mestre
Humberto Mendes.
_____________________________
_______________________________
_________________________________
BANZEIRO GRANDE
Autor: Humberto Mendes
Banzeiro Grande
Quebrando na croa
Eu vi uma canoa
Me deu vontade de ir pra lá
______________________________
__________________________
Navegando se destina
No navio encantado
De Dom João, rei de Mina
No balanço da maré
Visitar rainha Ina
E Barão, rei de Guaré
______________________________
LINDA DONZELA
Autor: Humberto Mendes
Princesa Dina
Linda donzela
Fica na janela
Pra me ouvir cantar
______________________________
ESTRELA D’ALVA
Autor: Humberto Mendes
____________________________
RIO DO MIRINZÁ
Autor: Humberto Mendes
____________________________
___________________________
VELEIRO GRANDE
Autor: Humberto Mendes
________________
No dia 5 de janeiro
121
Começa a animação
Chegando de todo lado
Gente com trouxa na mão
De Itapera, Anajatiua
Aracal e Formigueiro
Pé de Mistirdes, Quebra-Pote
Guarauí e Cordeiro
__________________________
__________________________
É um A, um D, um E
É um U e um S
Podem soletrar
Seguem abaixo uma seleção de doze transcrições das toadas executadas nas atividades
remotas do Bumba meu boi de Maracanã ao longo de 2021. O critério utilizado foi de
composições, inéditas ou não, dos atuais cantadores do grupo: o amo José Ribamar (Ribinha),
Humberto Filho, Roberto Ricci e Emmanuel Victor.
_________________________
GUARNICÊ
Autor: Ribinha
_________________________
LÁ VAI
Autor: Ribinha
____________________________
CELEIRO DE TOADA
Autor: Ribinha
_________________________
POESIA
Autor: Humberto Filho
Em tua companhia,
Pela noite antes muito de cantar
Poesia, pra ti eu já fazia
__________________________
DE OURO, SÓ MARACANÃ
Autor: Humberto Filho
_________________________
RAINHA DA MATA
Autor: Humberto Filho
________________________
124
_________________________
_________________________
____________________________
MINHA RAINHA
Autor: Roberto Ricci
___________________________
CABOCLA GUERREIRA
Autor: Roberto Ricci
Placas com registros de inauguração, reformas e homenagens presentes no salão principal do Barracão do Boi de
Maracanã.
127
Matérias de jornais, premiações e homenagens, expostas na sala do Ponto de Memória Mestre Humberto
Mendes.
128
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