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O PARADIGMA CULTURALISTA E A QUESTÃO

RACIAL NO BRASIL
“Todo brasileiro,
mesmo alvo, de
cabelo louro traz
na alma, quando
não na alma e no
corpo a sombra ou
pelo menos a
pinta do indígena
ou do negro”
Gilberto Freyre
(1900-1987)

1933
DIFERENÇA ENTRE RAÇA E CULTURA
O professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje
maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em Colúmbia.
Creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX,
preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu
pelos do Brasil na fase em que conheci Boas [...] Foi o estudo de
orientação do professor Boas que
antropologia sob a
primeiro me revelou o negro e o mulato no seu
justo valor – separados dos traços de raça os
efeitos do ambiente ou da experiência cultural.
Aprendi a considerar fundamental a diferença
entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações
puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de
meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura
assenta todo o plano deste ensaio. (FREYRE, G. Casa grande & senzala:
formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
50.ed. revista. São Paulo: Global, 2005., p.31)
A
MISCIBILIDADE
Considerado de modo geral, a formação brasileira tem sido, na
verdade, como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio,
um processo de equilíbrio de
antagonismos. Antagonismos de economia e de
cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A
africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a
mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O
bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O
pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O
bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os
o mais geral e o mais
antagonismos,

profundo: o senhor e o escravo.


(FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. São Paulo, Global, 2013, p.
116)
BRASIL:
UM “NOVO MUNDO” NOS TRÓPICOS
O esforço de transformar o Brasil
numa sociedade branca européia
nos trópicos fracassou. Ao fazê-lo, reabriu a
questão do caminho do desenvolvimento futuro do Brasil e do caráter
racial de sua identidade nacional. Em 1933, uma resposta foi oferecida
pelo intelectual e teórico social Gilberto Freyre, que retomou o diálogo
entre o Brasil e seus interlocutores do Atlântico Norte, mas agora em
termos diferentes. Os proponentes do branqueamento tinham
buscado europeizar o Brasil e torná-lo branco; Freyre, em contraste,
aceitou que o Brasil não era nem branco nem europeu, e que nunca o
Em vez de a Europa dos
seria.
trópicos, o Brasil estaria
destinado a ser um novo mundo
nos trópicos: um experimento exclusivamente
americano no qual europeus, índios e africanos tinham se juntado
para criar uma sociedade genuinamente multirracial e multicultural.
(George Reid Andrews. Democracia racial brasileira 1900-1990: um
contraponto americano. Estud. av. vol.11 no.30 São
Paulo May/Aug. 1997)
A CONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA DA NAÇÃO HARMÔNICA PARA O PROGRESSO:
ASSOCIAÇÃO ENTRE A CONCEPÇÃO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA-
MODERNA E AS CONCEPÇÕES DEMOCRÁTICO-RACIAIS

o modelo desenvolvimentista acabou sendo forjado


(..)
utilizando como motor ideológico o próprio mito da
democracia racial. Ou seja, o ideário mítico da
mestiçagem, ou da morenidade, produto sincrético da
fusão das três raças originárias formadora do povo
brasileiro, acabou sendo utilizado instrumentalmente
pelas elites brasileiras como um instrumento
mobilizador do desenvolvimento e do progresso. (GOMES,
F. S. e DOMINGUES, F. Da nitidez e invisibilidade: legados do pós-
emancipação no Brasil. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013, p.320)

Getúlio Vargas e Gilberto Freyre, no Palácio do Catete.


Fundo Jornal Última Hora/Arquivo público do Estado de São Paulo
A “Democracia racial” ou A CONSTRUÇÃO DA
IMAGEM DE "África do Sul sem apartheid"
O Brasil (…) é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial,
quer seja no presente ou no passado humano. Eu acho que o brasileiro
pode, tranqüilamente, ufanar-se de chegar a este ponto. Mas é um país de
democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum. Quando fala em “Democracia
democracia racial, você tem que considerar [que] o problema de classe se
mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de Biológica”
educação. (…) Isolar os exemplos de democracia racial das suas
circunstâncias políticas, educacionais, culturais e sociais, é quase
impossível. (…). É muito difícil você encontrar no Brasil [negros] que
tenham atingido [uma situação igual à dos brancos em certos aspectos...].
Por quê? Porque o erro é de base. Porque depois que o Brasil fez seu festivo
e retórico 13 de maio, quem cuidou da educação do negro? Quem cuidou de
integrar esse negro liberto à sociedade brasileira? A Igreja? Era inteiramente
ausente. A República? Nada. A nova expressão de poder econômico do
Brasil, que sucedia ao poder patriarcal agrário, e que era a urbana
industrial? De modo algum. De forma que nós estamos hoje, com
descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Marginalizados
na sua condição social. [...]. Não há pura democracia no
Brasil, nem racial, nem social, nem política, mas,
repito, aqui existe muito mais aproximação a uma
democracia racial do que em qualquer outra parte
do mundo”.
Entrevista realizada com o autor em 15/3/1980. À pergunta:
“Até que ponto nós somos uma democracia racial?”

“Não é que inexista preconceito de raça ou de cor


conjugado com o preconceito de classes sociais no
Brasil. Existe. Mas ninguém pensaria em ter Igrejas
apenas para brancos. Nenhuma pessoa no Brasil
pensaria em leis contra os casamentos inter-raciais.
Ninguém pensaria em barrar pessoas de cor dos
Um
teatros ou áreas residenciais da cidade.
espírito de fraternidade humana
é mais forte entre os brasileiros
que o preconceito de raça, cor,
classe ou religião. É verdade que a
igualdade racial não se tornou absoluta com a
abolição da escravidão. (…). Houve preconceito racial
entre os brasileiros dos engenhos, houve uma
distância social entre o senhor e o escravo, entre os
brancos e os negros (…). Mas poucos aristocratas
brasileiros eram rígidos sobre a pureza racial, como
era a maioria dos aristocratas anglo-americanos do
Velho Sul”
Qual o critério do “paraíso”? ou da “democracia” racial?

Outra inversão nos termos tradicionais de comparação entre os


Estados Unidos e o Brasil é um recente estudo dos indicadores
estatísticos, o qual constata que durante a primeira metade dos anos
1900, o Brasil foi, em termos raciais, o mais igualitário dos dois
países. Desde a década de 50, contudo, tal relação se inverteu,
tornando os Estados Unidos, em termos estatísticos, "a sociedade
racialmente mais igual – ou, numa melhor colocação, a menos
desigual – entre as duas". Depois de cair durante os anos 60 e 70, os
índices de desigualdade racial aumentaram nos Estados Unidos
durante a década de 80. Não obstante, continuaram mais baixos que
os do Brasil, levando o autor a concluir que os Estados Unidos
oferecem "evidências mais convincentes de democracia racial" que o
Brasil.
George Reid Andrews, Racial inequality in Brazil and the United
States: a statistical analysis, Journal of Social History, v. 26, n. 2, p.
229-263, 1992.
EUA (preto-branco) X BRASIL preto-pardo-branco)???

Como demonstraram Silva, Hasenbalg, entre outros, as


O recente exame feito por Thomas Skidmore das categorias e taxonomia populações de negros e mulatos do Brasil não diferem
raciais nos dois países estuda as afirmativas há muito existentes sobre as muito entre si na maioria dos indicadores sociais e
diferenças fundamentais entre o sistema dicotômico negro-branco e econômicos – expectativa de vida, renda, educação –,
o continuum de cor preto-pardo-branco mais flexível do Brasil, concluindo embora ambos os grupos sejam nitidamente
que essas asserções "não resistirão à análise dos dados quantitativos"
diferenciados dos brancos. As relações raciais brasileiras
gerados por pesquisadores brasileiros.
parecem, portanto, bem mais bipolares do que
tradicionalmente se pensava;
DO PARADIGMA CULTURAL AO SOCIOLÓGICO:
A SOCIOLOGIA CIENTÍFICA DA USP E O USO DA ESTATÍSTICA

“Não existe democracia racial efetiva [no Brasil], onde o


intercâmbio entre indivíduos pertencentes a ‘raças’ distintas
começa e termina no plano da tolerância convencionalizada. Esta
pode satisfazer às exigências de ‘bom tom’, de um discutível ‘espírito cristão’ e
da necessidade prática de ‘manter cada um em seu lugar’. Contudo, ela não
aproxima realmente os homens senão na base da mera coexistência no mesmo
espaço social e, onde isso chega a acontecer, da convivência restritiva,
regulada por um código que consagra a desigualdade, disfarçando-a
acima dos princípios da ordem social democrática” (Fernandes.
“Prefácio”, in Cor e Mobilidade Social em Florianópolis. São Paulo, Nacional,
1960, p. xiv).
FLORESTAN FERNANDES E GILBERTO FREYRE, DURANTE ENCONTRO EM
UNIVERSIDADE NA ALEMANHA.

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