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A mediocrizacao academica - eu e Janer Cristaldo (com razao) https://diplomatizzando.blogspot.com/2011/05/mediocrizacao-academica...

A mediocrizacao academica - eu e Janer


Cristaldo (com razao)

Sou um acadêmico, eu sei, vocês sabem, ademais de ser também funcionário público
federal da carreira do Serviço Exterior Brasileiro, mais exatamente diplomata, como
se diz comumente.
Não sei em qual profissão eu me divirto mais, sou mais anarquista, ou ganho mais.
Não importa. Olho as duas com olhar crítico. E acho que mereço os dois salários que
ganho, pois como todos sabem, eu trabalho, produzo (supostamente coisas úteis à
sociedade), mostro o que produzo, e me submeto a avaliações (dos chefes, dos alunos,
dos pares, da sociedade, todos podem ler, ou não, o que escrevo, comprar meus livros
publicados, enfim, me julgar de modo aberto, alguns até anonimamente, aqui mesmo
neste blog até agora gratuito).
Não é de hoje que eu digo que a universidade vai para o brejo, que ela está decadente,
que o ensino é medíocre, enfim, o que constato, visualmente, diretamente.
Claro, não pretendo ofender os colegas, chamando-os de medíocres ou preguiçosos,
tanto porque escolho me relacionar com pessoas produtivas, inteligentes, dedicadas e
honestas intelectualmente. Sinto muito, mas não consigo me relacionar com "maus-
caráteres", desonestos, fraudadores. Esses eu simplesmente deixo de lado. Mas eu os
encontro, aqui e ali: numa palestra (ou numa arenga), num artigo entregue para
revisão e publicação (e quando chega para meu parecer sou apenas rigoroso), pelo
que leio por aí, nesses jornalecos medíocres, nesses blogs alimentados com o dinheiro
público.
Pois bem, o Janer Cristaldo é um provocador (como eu), embora ele seja muito mais
anarquista do que eu. Ele não tem nenhum respeito pelos poderes constituídos (nem
eu, mas preciso manter as aparências, por enquanto).
Ele não só critica as universidades (em geral, e as brasileiras em particular), no que
acho que ele faz muito bem, mas ele critica a instituição do doutoramento. Concordo
em grande medida com ele: tem muito teatro nessa coisa e muita embromação. Mas
não ouso criticar sem oferecer uma solução alternativa. Não tenho ainda um
substituto. Mas concordo em que as universidades estão defasadas e precisam se
reformar, se modernizar, se transformar completamente...
Seguem três posts do Janer sobre um dos muitos motivos da decadência acadêmica
Paulo Roberto de Almeida

A ARMADILHA DOS DOUTORADOS


Janer Cristaldo
Blog do Janer, Quarta-feira, Maio 11, 2011

Em 2005, a Capes previa investir R$ 3,26 bilhões para aumentar o número de


doutores por ano no Brasil. O Plano Nacional de Pós-Graduação apresentado ao
então ministro da Educação, Tarso Genro, propunha a aplicação nos seis anos
seguintes de R$ 1,66 bilhão a mais em bolsas e fomento de pós-graduação, o que
permitiria passar dos 8.000 doutores titulados por ano para 16 mil em 2010. O plano
“será acolhido integralmente", disse Genro na ocasião.

Se foi acolhido integralmente, não sei. Na época, falei da desmoralização do título de


Doutor que, entre nós, se deve à universidade brasileira, ao distribuir doutorados a
torto e a direito, como quem joga milho aos porcos. Não faltou quem protestasse. Que
quem jogava milho aos porcos era a universidade francesa, com seus diversos

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doutorados, o Dr. Ingénieur, o Doctorat d’Université, o Doctorat de IIIe Cycle e o


famigerado Doctorat d’État. Pode ser.

O missivista considerava que o único doutorado francês válido seria o Doctorat


d’État. “Um doutorado na França é conhecido por doctorat d’Estat (sic!) e esse sim é
equivalente o doutorado no Brasil. Lá existem vários tipos de doutorado, a maioria
pode ser realizada em no máximo dois anos, à exceção do doctorat d’Estat (resic!),
cuja duração é equivalente aos dos outros países – uns cinco anos. Quase todos os
nossos intelectuais de esquerda fizeram um curso Troisiéme Cycle na França e se
dizem doutores".

O ilustre especialista em doutorados – que escreveu sob pseudônimo – sequer sabia


redigir corretamente a designação do título. Também ignorava que o Doctorat de IIIe
Cycle se faz em quatro – eventualmente cinco – anos e que o famigerado doctorat
d’Estat, como ele grafava , era feito em dez ou mais anos. O Doctorat de IIIe Cycle
sempre foi reconhecido como doutorado em todos os países europeus. O d’État era
tido como mais uma bizarrice dos galos.

Distorção da universidade francesa, servia como placebo ao desemprego, ao mesmo


tempo que mantinha o doutorando afastado por uma boa década do mercado de
trabalho. O candidato ao título desenvolvia teses monumentais, às vezes de quatro ou
cinco volumes, que nem mesmo a banca julgadora lia na totalidade. Tais calhamaços
ficavam entregues às traças e à poeira nas bibliotecas e a universidade francesa
sequer percebia que delas poderia tirar algum lucro. Exportando para a Holanda, por
exemplo, para fazer diques. O governo Mitterrand tomou consciência desta perversão
acadêmica e a extinguiu. Agora existe apenas Doctorat, tout court.

Há horas venho afirmando que os doutorados são uma solene inutilidade. Ou melhor,
uma armadilha acadêmica. Você faz um curso universitário e desemboca no
desemprego. Para capear a adversidade, você se inscreve em mestrado. Mais quatro
anos afastado do mercado de trabalho. Conclui o mestrado e de novo vê o breu pela
frente. Seu professor, que precisa de doutorandos para cumprir sua carga horária
enquanto folga em casa ou no Exterior, o convida para um doutorado. Você aceita,
afinal está desempregado e a bolsa não é de se jogar fora. Mais quatro ou cinco anos
fora do mercado.

Quando você vai ver, tem mais de trinta anos e nunca teve carteira de trabalho
assinada. Em um país onde se tende a considerar que uma pessoa com 35 anos já é
idosa, ou você tem pistolão na guilda e entra no magistério – para que a poleia sem
fim dos doutorados continue rodando – ou vai talvez dirigir um táxi ou ser corretor
de imóveis. Afinal, comer é preciso.

Isso sem falar no que chamei de mestrandos carecas. Entre as muitas anomalias da
universidade brasileira estão os mestrandos quarentões. Aquela iniciação à pesquisa,
pela qual o candidato deveria optar tão logo terminasse o curso superior, é adiada
para uma idade em que do acadêmico já se espera obra consolidada. Pior mesmo, só
os doutorados de terceira idade. Marmanjos de cinqüenta e mais anos, em idade de
aposentar-se, postulando um título que só vai servir para pendurar junto com as
chuteiras.

Mestrado não é para carecas. Já um doutorando, este deveria defender sua tese no
máximo aos trinta e poucos, para que sua experiência em pesquisa possa ser útil ao
ensino e à sociedade. Que mais não seja, é patético ver um homem já maduro
humilhando-se, ao tentar iniciar-se em metodologias que devia desde jovem dominar.

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Isso sem falar em métodos que não passam de masturbação acadêmica, como ocorre
na área das ditas Humanas. Na universidade brasileira, o doutorado nem sempre é
visto como início de uma carreira, mas como louro a coroar a calva do acadêmico
quando este está prestes a usar pijamas. Quem paga tais vaidades senis? Como
sempre, o contribuinte.

Pelo jeito, os acadêmicos começam a se dar conta desta catástrofe. Acabo de receber
artigo de Mark C. Taylor, presidente do departamento de religião da Universidade de
Columbia em Nova York e autor de Crise no Campus: um plano arrojado para
reforma das nossas Faculdades e Universidades (Knopf, 2010). Em seu ensaio, o
professor considera que o sistema de doutorado nos Estados Unidos e em muitos
outros países é insustentável e precisa de ser remodelado. Em muitos campos, ele cria
apenas uma fantasia cruel de um futuro emprego, que promove o auto-interesse dos
membros do corpo docente, em detrimento dos estudantes. A realidade é que existem
poucos empregos para as pessoas que gastaram até doze anos em sua formação.

“A maioria dos programas de educação-doutoramento está em conformidade com um


modelo definido nas universidades européias durante a Idade Média, em que a
educação era um processo de clonagem, que treinava os estudantes para fazer o que
os seus mentores faziam. Os clones já ultrapassam o número de seus mentores. O
mercado de trabalho acadêmico entrou em colapso em 1970 e as universidades ainda
não se ajustaram as suas políticas de admissão, porque precisam de estudantes de
pós-graduação para trabalhar nos laboratórios e como assistentes de ensino. Mas
uma vez que os alunos terminam o ensino, não existem trabalhos acadêmicos para
eles.

Para o professor Taylor, só há duas saídas: reformar radicalmente os programas de


doutoramento ou fechá-los. “A especialização levou a áreas de investigação tão
estreitas que são de interesse apenas para outras pessoas que trabalham nos mesmos
domínios, subcampos ou sub-subcampos. Muitos pesquisadores lutam para
conversar com colegas do mesmo departamento, e comunicação entre departamentos
e disciplinas podem ser impossíveis".

A bicicleta precisa continuar rodando. Milhões de teses no mundo todo, que já não
cabem nas bibliotecas oficiais, precisam de anexos para serem guardadas. Guardadas
para quê? Para juntar pó. Uma tese é algo que sai caro ao Estado. É preciso subsidiar
os graduandos e os professores que os orientam. Deveria ter retorno aos
contribuintes que, no fundo, são quem as financiam. Você já viu alguma tese
publicada? Às vezes encontramos alguma, mas precisamos pagar por ela. O doutor
recebe para redigi-la e depois cobra de novo para que seja lida.

Se o Brasil eliminasse hoje seus cursos de doutorado, não me parece que perderíamos
grande coisa. (Vou mais longe: cursos de Letras, Filosofia ou Sociologia não fazem
falta alguma). Os professores americanos parecem estar despertando para o
problema. Como o Brasil adora importar modas ianques, seria salutar que esta
postura chegasse até nós.

Mas não vai chegar. O Brasil prefere importar rock, blockbusters e outras
mediocridades do Primeiro Mundo. Do melhor que acontece lá, Pindorama só quer
distância.

PS – O artigo do professor Mark Taylor pode ser lido na íntegra em


http://www.nature.com/news/2011/110420/full/472261a.html

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AINDA OS DOUTORADOS
Janer Cristaldo, 13 de maio de 2011

De uma boa amiga que está concluindo seu doutorado em Letras na USP, recebo:

Oi, Janer
Lendo seu texto, concordo com a avaliação feita. Os alunos são enviados por inércia
ao doutorado por não enxergarem muitas perspectivas (no caso das ciências
humanas) no mercado de trabalho, principalmente o acadêmico. E, para
sobreviver, aceitam passar mais quatro anos na vida de bolsista. Ocorre que desde
2007 vige uma portaria da CAPES a respeito da publicação de teses e dissertações
que obriga o ex-aluno a disponibilizar integralmente o conteúdo de seu trabalho na
internet, no banco de dados das universidades brasileiras. Portanto, qualquer
pessoa pode ter acesso em um clique. Eu só me pergunto sobre os direitos autorais
nesse caso. Existem? - na medida em que o autor é obrigado a cumprir tal medida -
embora na lei de 1998 exista um artigo a respeito de que trabalhos financiados pelo
Estado não pertencem a ele por conseqüência. Qual sua opinião?

Bom, Aninha,

essa portaria de 2007 é uma boa notícia. Mas tem gente que não vai gostar. Em
Florianópolis, nos anos 70, houve um incêndio numa sala da Reitoria, justo aquela
em que estavam depositadas as teses. Alguns professores me confessaram que
adoraram o incêndio, pois tinham vergonha do próprio trabalho. Quanto a direitos
autorais, acho que o autor deveria renunciar a eles. Afinal, foi pago pelo contribuinte.
Que devolva, então, gratuitamente, o que lhe foi financiado.

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Esta do Janer é mais forte:

SOBRE TESES E PAPEL HIGIÊNICO


Janer Cristaldo, Sexta-feira, Maio 13, 2011

Do Vanderlei Vaselesk, meu fiel leitor, recebo uma resposta a meu artigo sobre os
doutorados, postada em algum fórum da Internet.

Gente,
Esse cara é ultraconservador no pior dos sentidos. O cara propõe praticamente o
fechamento dos doutorados e a extinção de determinados saberes tais como Letras,
Filosofia e Sociologia. Acho que ele deve ter nascido de chocadeira últra-moderna
com a idade que ele tem, pois creio que não deve ter tido um(a) professor(a) de
língua portuguesa ou, então, deve ter sido reprovado em Estudos Sociais e OSPB. É
possível que a capacidade intelectual dele de raciocinar tenha sido comprometida
pela falta de abstração filosófica. De qualquer forma, nem de longe entende que a
universidade abre portas e cria possibilidades de se romper com determinadas
restrições socio-culturais e econômicas, viabilizando a construção da cidadania e de
pessoas efetivamente críticas.

O cara alega que os doutorados são inúteis e custosos. É claro que são custosos e
ainda falta investimento! A universidade precisa ser democratizada (algo que não
depende só dela para que isso ocorra), mas, agora, associar à inutilidade foi

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demais! A gente sabe que as universidades têm problemas mil, que ultrapassam
questões estritamente pedagógicas ou administrativas, mas a miopia ultra-
neoliberal-conservadora do cara é de enojar. Tese e papel higiênico para ele é a
mesma coisa. Para ele, as pessoas mais velhas que entram na universidade são
praticamente um desperdício de dinheiro público, porque, fica subtendido, são
figuras pateticamente anacrônicas. Não vê os professores mais velhos como pessoas
que tem algo a contribuir com seu conhecimento e experiencia.

Fico só lembrando também dos meus alunos e alunas com mais de 45 anos que estão
fazendo a faculdade pela primeira vez, buscando não somente melhorar de vida ou
simplesmente conhecer e explicar o mundo em vivemos a fim de ajudar a mudá-lo.
O cara nem está a par do mercado editorial virtual ou não! Para mim, o que está em
jogo é um discurso ou uma atitude perigosamente conservadora de um recalcado
que só justifica os investimentos válidos se forem direcionados para os cursos da
moda, especialmente os relacionados à economia capitalista e à alta tecnologia. Ah,
ele diz que é jornalista, escritor e ensaista! Outra coisa: acho que ele não fez o
mestrado e doutorado! Ah, entendi!

(Retoma o Janer:)
Vamos por partes. Tese e papel higiênico não são para mim a mesma coisa. Jamais
afirmaria tal heresia. Papel higiênico é um dos grandes avanços da humanidade.
Tanto que sempre faltou nos países mais atrasados do mundo, os socialistas. Tese
nem como papel higiênico serve. Não vou negar que cá e lá – falo da área humanística
- encontramos alguma tese que constitui uma contribuição à cultura. Mas são
raríssimas. Tanto que a maioria quase absoluta delas fica relegada ao pó das
bibliotecas. Tese, no fundo, só serve para manter as mordomias dos PhDeuses
orientadores e aumentar salários dos acadêmicos. Também é muito conveniente para
fazer turismo às margens do Sena, Tâmisa ou Spree.

Que velhos façam a universidade pela primeira vez, nada contra. Mas estas pessoas já
avançadas em idade nunca procuram os cursos realmente úteis à sociedade, como
enfermagem, odonto, medicina ou engenharia. Geralmente buscam aqueles cursos de
vestibular fácil, isto é, as tais de Humanas. Como lazer de terceira idade é uma opção
interessante. Melhor que ficar espichado no sofá vendo novelas. Daí que isto traga
alguma contribuição ao país vai uma longa distância. Mas minha restrição não é a
quem busca universidade em idade provecta. E sim aos mestrandos e doutorandos
carecas. Terceira idade não é idade para se fazer mestrado, muito menos doutorado.

Se um ancião quiser fazer doutorado, para seu prazer espiritual, pagando de seu
próprio bolso, que esteja a gosto. O que é obsceno é ver macróbios subsidiados pelo
contribuinte para satisfazer uma vaidade. Ou para aumentar a aposentadoria. Tanto o
mestre como o doutor devem formar-se ainda jovens, para que possam prestar bom
tempo de serviço ao ensino. Tenho visto gente que começa doutorado lá pelos
cinqüenta. Quando obtém o título, está em idade de aposentar-se. Isto é uma
perversão típica da universidade brasileira.

Professor mais velho é outra coisa. Nada a ver com mestrandos carecas. Um professor
mais velho acumulou experiência e saber durante todo seu magistério. Desde que não
tenha começado a aprender quando já era velho. Neste caso, é muito curto seu
período de aprendizado.

Em seu arrazoado precário, o missivista apela ao argumento ad hominem: “acho que


ele não fez o mestrado e doutorado”. De fato, mestrado não fiz. Quando ia inscrever-
me em curso de mestrado na Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III –

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encontrei numa fila M. Raymond Cantel, doyen da antiga Sorbonne, que não mais
existe. Considerou que era uma perda de tempo matricular-me em mestrado. Eu
tinha publicações suficientes para postular um doutorado. Naquele breve diálogo,
meu mestrado se transformou em doutorado.

Mas ninguém pense que um dia almejei tal título. Quando terminei minhas
universidades – Filosofia e Direito – prometi a mim mesmo que jamais voltaria a pôr
os pés nesses templos do saber. Enveredei pelo jornalismo. Acontece que sempre
gostei de viajar. Bolsa é uma boa chance de viajar, os acadêmicos tupiniquins que o
digam. A França oferecia bolsas. Candidatei-me a uma delas, na área de Literatura
Comparada. Certo dia, encontrei na rua o cônsul francês em Porto Alegre. “Tu és o
nosso candidato. Mas não podes trocar de área? Em literatura é difícil. Não pode ser
Direito?”

Poder, podia. Mas nada mais queria com Direito. Ao terminar meu curso, em gesto
simbólico, joguei meus códigos e tratados no Guaíba. Tive uma extraordinária
sensação de libertação. Insisti em Literatura e fui contemplado com a bolsa.

Ora, eu nem sabia o que era doutorado e muito menos Literatura Comparada. O que
eu queria, lá no fundo, era Paris, sua estética, seus cafés, seus queijos e vinhos. E
também suas mulheres. Se o preço era redigir uma tese, eu o pagava com prazer.

Paguei. Comprei vários ensaios na área, estudei a disciplina e redigi minha tese.
Menção? Très Bien. Isso após uma defesa tumultuada. Fiz um ensaio absolutamente
antiacadêmico, sem citar nenhum teórico. O que constitui heresia no universo dos
PhDeuses. Método é um freio mental que a banca impõe ao thèsard. Você não pode
pensar com seu próprio intelecto. Seria o caos.

Tant pis pour moi. Eu não buscava nenhum título e não tinha compromisso com
universidade alguma. Minha tese, fosse aprovada ou não, não mudava nada em meus
propósitos. Havia escrito um ensaio útil e, mais importante, legível. Fiquei surpreso
quando, ao final do doutorado, soube que uma tese servia para lecionar. Foi assim
que caí no magistério de Letras, os quatro anos mais inúteis de minha vida.

A defesa, peça teatral que dura em geral uma hora, se estendeu por quatro horas.
Uma doutora da banca não admitia tese sem metodologia. “Où est votre méthode?” –
questionou-me. Respondi que não havia ido à França para pensar com a cabeça de
terceiros. Pensava com a minha. “Ma méthode, c’est la cristaldesque”.

Após longos e tensos debates entre os membros do júri, a tese foi aceita. Atribuo um
pouco esta concessão à platéia. Na salle Bourjac, da Sorbonne, havia entre cinqüenta
e sessenta mulheres, e um único rapaz. Não só a banca, como eu e minha mulher,
estávamos perplexos. “Trabalhaste duro neste tempo todo” – me disse a Baixinha.
Bom, confesso que tinha me esforçado. No fundo, penso que devo àquelas meninas
minha aprovação. Seria uma grosseria rejeitar meu trabalho ante platéia tão florida.

Sou doutor por diletantismo, não por projeto. Me candidatei a outro doutorado na
Espanha, queria curtir Madri. Ganhei a bolsa, curti Madri, mas me recusei a redigir a
tese. Era picaretagem. Exigiam a redação de uma tese em seis meses. Ora, nenhuma
tese séria pode ser redigida em seis meses, ainda mais com uma carga horária de
cinco horas de aula por dia. Escrevi uma carta a meu orientador. Cito de memória.

“Dr! Quando se recebe uma bolsa para doutorado, os doutorados são dois. Um deles
resulta numa tese que fica mofando nas bibliotecas. O outro é aquele que defendemos

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nos bares e restaurantes, lendo a imprensa e a literatura do país, conhecendo suas


cidades. Esta eu a defendi com brilho e com ela me contento. Salud y felicidad a los
suyos”. (Esta era a fórmula burocrática com a qual se terminava um pedido de estada
à polícia).

Doutor por acaso, não tenho maior respeito por doutores. Sim, existirão os que
merecem consideração por seus trabalhos. Mas estes são muito raros. O que vejo, o
mais das vezes, são pavões que se apóiam em teorias sem pés nem cabeça e vivem da
antiga fórmula francesa, “louons-nous les uns les autres”.

Antes que me esqueça: até hoje não peguei meu diploma de doutorado. Quando fui
apanhá-lo na secretária da Sorbonne Nouvelle, uma velhota burocrata me atalhou:
“C’est pas comme ça, Monsieur!” Meu diploma estava ali, do outro lado do balcão.
Mas eu precisava enviar uma carta à universidade e esperá-lo em casa. Ora, eu já
estava de pé no estribo, entregando as chaves do apartamento. Desisti. Não fui a Paris
buscar um papelucho.

Last but not least, quem está propondo o fim dos doutorados não sou apenas eu. Mas
também o professor Mark C. Taylor, presidente do departamento de religião da
Universidade de Columbia em Nova York.

Papel higiênico, meu caro, é muito mais necessário que uma tese acadêmica. A
humanidade consegue viver sem teses. Sem papel higiênico já é mais complicado.

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Bem ficamos por aqui, e esperemos os próximos rolos de papel higiênico.... quero
dizer, teses acadêmicas...
Paulo Roberto de Almeida

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