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Universidade de Alberta, Canadá

Descartes começa com dúvidas moderadas que outros argumentos cépticos tinham
tornado familiares. E observa: "os meus sentidos por vezes enganam-me, e é prudente
nunca confiar completamente naqueles que nos enganam uma vez que seja". A seguir
põe-se a pensar se não estará a sonhar de maneira que as crenças "de que abro os meus
olhos, movo a minha cabeça, estendo as minhas mãos, e todas as coisas deste género,
não passam de ilusões, e talvez as minhas mãos e na verdade todo o meu corpo, não
sejam como me parecem."

Não é difícil imaginar muitas variações da ideia de que a tua experiência possa ser um
sonho. Há a possibilidade de que estejas numa realidade virtual de maneira que quando
moves os teus membros não interages com o mundo real à tua volta mas com um
programa de computador que envia › para sensores ligados aos teus olhos em
resposta ao que fazes.

Há a possibilidade de que toda a gente à tua volta conspire para te contar uma falsa
história acerca do mundo em que vives. E existe a favorita dos filósofos, a possibilidade
de que sejas um "cérebro numa cuba": um cérebro humano desligado do teu corpo e
mantido vivo numa cuba de nutrientes químicos, mas ligado a um computador através
de nervos que recebem dados de entrada › e de nervos que produzem dados de
saída  de tal modo que tens a experiência que terias se estivesses em interacção
com o mundo externo. Mas é claro que não há nenhum mundo à volta do teu cérebro e
de modo algum um mundo igual ao da experiência fornecida pelo computador.

Algumas destas dúvidas têm um alcance profundo. Se o que elas sugerem fosse
verdadeiro, muitas das tuas crenças seriam falsas. Mas Descartes chama a atenção para
o facto de que algumas crenças resistiriam mesmo a estas dúvidas. "Esteja eu acordado
ou a dormir, dois mais três serão sempre cinco, e um quadrado terá sempre quatro
lados". Mas supõe que existe um espírito poderoso, uma espécie de génio maligno, que
pode fornecer à tua mente não apenas experiências ilusórias, como se estivesses ter
alucinações, mas também levar a tua mente a raciocinar mal. Nesse caso 2 + 3 = 5
poderia ser uma ilusão, desde que o espírito te fizesse cometer erros em aritmética. Se
existir tal espírito, Descartes não poderá estar seguro de praticamente nenhuma das suas
crenças (e já agora tu também não).

Há muitas variações da ideia de um espírito enganador. Há a possibilidade de que


estejas tão profundamente alienado que não podes sequer raciocinar. Há a possibilidade
de que a mente humana seja tão inerentemente imperfeita que mesmo os pensamentos
mais simples não correspondem a nada de real. Chamemos possibilidades cépticas a
cada uma destas possibilidades. Uma possibilidade céptica é uma situação possível que,
se estiver neste momento a acontecer, uma grande quantidade das tuas crenças habituais
não será conhecimento.

Uma possibilidade céptica "corrói" crenças habituais. Por exemplo, se estiveres neste
momento a sonhar, então a tua crença de que tens uma perna esquerda é demolida:
podes ter perdido a tua perna mas sonhar que continuas a ter uma perna (há sonhos que
valem a pena). E se és um cérebro numa cuba, então a crença de que tens um corpo
além do teu cérebro é demolida. Algumas possibilidades cépticas são mais profundas
que outras porque corroem mais crenças. A possibilidade cartesiana de um espírito que
pode levar-te a errar em aritmética é muito, mesmo muito, profunda.

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Há possibilidades cépticas, tais como a possibilidade de que possas estar a sonhar, de
que possas estar a ser enganado por um génio maligno, ou de que o teu cérebro possa
estar ligado a um computador que introduz nele informação completamente ilusória.
Para cada uma destas possibilidades há muitas crenças que lhes correspondem, as
crenças-vítima. E para a maior parte das tuas crenças podes pensar em possibilidades
cépticas que lançam a dúvida sobre elas. Logo, podes duvidar da maior parte das tuas
crenças.

Parte do conteúdo deste argumento pode ser abreviado da forma que se segue:

Se as possibilidades cépticas são verdadeiras, então deixas de saber que as crenças que
elas corroem são verdadeiras.
Logo, até poderes mostrar que as possibilidades cépticas não são verdadeiras, não podes
dizer que sabes que as crenças-vítima que elas corroem são verdadeiras.

        


Vejamos algumas fantasias que já tiveste em algum momento da tua infância (não te
preocupes, não és o único). Em muitos aspectos, são possibilidades cépticas na medida
em que, se qualquer uma for verdadeira, então deixas de saber muita coisa que julgavas
saber. Mas diferem das possibilidades cépticas ao partirem de ideias megalómanas de
que se é uma pessoa muito especial ou da ideia paranóica de que as atitudes das outras
pessoas não são o que parecem.

1.? ·oste adoptado quando eras bebé, mas os teus pais não te contaram esse facto.
Aliás, fizeram com que todas as pessoas da tua família prometessem que te
mentiriam sempre que a questão surgisse.
2.? Como resultado de uma intriga na família real do teu ou de outro país, o
verdadeiro herdeiro do trono foi roubado em bebé e educado numa família
comum. Essa criança és tu.
3.? Século vinte e três. Uma experiência psicológica está a ser realizada para se
conhecer o tipo de pessoa que resultaria do tipo de educação dos finais do século
vinte e inícios do século vinte e um. Uma criança está a ser educada por actores
que se comportam como as pessoas de há duzentos anos atrás. Toda a tecnologia
e situações habituais são recreadas a partir do passado. Essa criança és tu.
4.? Uma nave espacial viaja da terra para uma galáxia distante. Como a viagem
levará uma vida inteira, há apenas um cosmonauta, um bebé recém-nascido.
Tudo o que há na nave espacial é um robô programado para agir com esta
criança como se estivessem a viver uma vida normal na terra. Essa criança és tu.
5.? Um terrível destino espera uma criança: será sacrificada a extra-terrestres
famintos. A criança foi seleccionada, e antes que o destino se cumprisse, viveu
durante dez anos uma vida normal. Todos lhe mentem acerca dos verdadeiros
factos. Essa criança és tu.

Imagina que és uma criança educada por dois pais humanos que vive uma vida
"normal". Avalia os efeitos das fantasias referidas. Depois tem em conta as crenças que
a seguir serão enumeradas. Que fantasias corroem que crenças? (Todas as crenças são
coisas que pensas que sabes, mas se algumas fantasias forem verdadeiras, essas crenças
podem ser falsas; e nesse caso não saberias realmente como são as coisas.) Algumas
destas crenças podem não ser corroídas por nenhuma destas fantasias.

1.? A data no jornal do dia é a data de hoje.


2.? Vives no planeta Terra.
3.? 24 + 14 = 38
4.? Quase todas as coisas que os teus pais te dizem são verdadeiras.
5.? A relva é verde.
6.? Aqueles que te rodeiam têm emoções afáveis em relação a ti.
7.? A respeito de muitas coisas és igual aos que te rodeiam.
8.? Quando aqueles que te rodeiam falam contigo normalmente têm a intenção de
fazer com que partilhes as suas crenças.
9.? Os teus pais são os teus pais.
10.?acabarás por morrer como qualquer outra pessoa.
11.?A Terra orbita o Sol.
12.?Tens a idade que pensas que tens.
13.?Existiram outrora dinossauros na Terra.
14.?Se misturares tinta azul com tinta amarela obterás tinta verde.

Que fantasias corroem mais crenças? E quais o fazem menos? Que crenças são mais
facilmente corroídas? E quais são menos?

R
   
Por vezes, quando duvidas de uma coisa tornas outra mais susceptível de crença. Por
exemplo, se duvidas que estás a pé, acreditas mais facilmente que estás na cama. Se
duvidas que as doenças são causadas por vírus e microorganismos, então torna-se para ti
mais provável acreditar que são causadas por feitiços. (A ideia é que duvidar de uma
coisa não te faz acreditar efectivamente numa outra, apenas estás mais perto de acreditar
noutra coisa, que se torna mais plausível.)

Para cada uma das crenças que se seguem encontra outra possibilidade que se tornaria
mais plausível caso as submetas à dúvida.

ù? A terra é redonda.
ù? A vida evoluiu da matéria inorgânica.
ù? As outras pessoas têm mentes como a minha.

Respostas possíveis: Se duvidas que a terra é redonda, podes achar mais plausível que a
terra é plana. Se duvidas que a vida evoluiu da matéria inorgânica, podes achar mais
susceptível de crença que a vida foi criada por Deus. Se duvidas que as outras pessoas
têm mentes como a tua, podes achar mais plausível que as outras pessoas sejam robôs.
Em primeiro lugar, este exercício é relevante para o argumento céptico simples.
Presume que podes encontrar em relação a qualquer coisa em que acredites uma razão
para duvidar. Daqui não se segue que encontrarás sempre razões para duvidar de tudo
simultaneamente, porque as razões para duvidar de uma coisa podem tornar outra
menos susceptível de dúvida.

Mas há também uma conexão com o argumento céptico cartesiano. As possibilidades


cépticas corroem um grande número de crenças habituais. Mas também aumentam a
possibilidade de acreditar em algumas crenças. Se suspeitas que estás a dormir, então é
mais provável acreditares estar na cama. Se suspeitas que és um cérebro numa cuba,
então é mais provável acreditares que todos os teus pensamentos dependem de um
órgão físico, o cérebro.

A possibilidade céptica de Descartes, o génio maligno, não foi concebida com esta
característica. Mas deste modo trata-se de uma possibilidade bastante vaga; quando
descreves possibilidades cépticas mais concretas, tanto diminuis como aumentas a
plausibilidade de algumas crenças habituais.



Tradução de ·austino Vaz


Extraído de  ›  › ›
›  ›   ›  ›  de Adam
Morton (Blackwell, 1995)
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