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LUIZ ANTÔNIO MARCUSCHI


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/CNPq

FALA E ESCRITA: UMA VISÃO


NÃO DICOTÔMICA 1

Abstract rico, antropológico e cognitivo. Todos estes bem lem-


brados e discutidos por Havelock (1986) em sua obra
This analysis demonstrates that since the be- “The Muse Learns to Write”, ou então na excelente
ginnings of Western tradition the relation between análise histórica de W. Harris (1989), “Ancient
speech and writing was poorly stated as a set of bi- Literacy” e, recentemente, por Olson (1998) na obra
ased dichotomies. It argues in favor of overcoming “O Mundo no Papel”, para citar apenas alguns. Os
this dichotomous view by proposing the study of the estudos sobre a oralidade e a escrita, em especial os
relation between speech and writing in the context of antropológicos e lingüísticos, têm se desenvolvido
text genres. Speech and writing are considered as enormemente dos anos 60 até o final do século XX.
two complementary rather than competing modali- Um dos aspectos teóricos nucleares do proje-
ties of language use. to aqui em questão é o que diz respeito à visão não-
dicotômica da relação fala-escrita. Assumimos a po-
Palavras-chave: fala e escrita (speech and writing); sição de que entre fala e escrita há um contínuo que
linguagem e poder (language and power); gêneros perpassa pelos gêneros textuais. Este é, em essência,
textuais (textual genres). o ponto de apoio da presente análise. Não postula-
mos aqui a mesma posição que Chafe (1982) que,
embora evite a dicotomia, não escapa dela quando
Fala e escrita: um tema antigo analisa a questão sempre com base em pólos distin-
tos. Neste sentido, assumimos a crítica de Street
O debate sobre a relação entre oralidade e es- (1995) a Chafe.
crita é muito antigo na tradição ocidental. Como tan- Um dos desafios neste contexto ainda parece
tos outros, foi posto pelos gregos, em especial por ser o de situar a questão em seus eixos. Alguns acham
Platão. E não apenas uma vez, mas várias. O assunto que o tema central seria: O uso da escrita influenciou
mereceu discussões requintadas e complexas, tais os padrões de pensamento? Já para outros o núcleo
como as levantadas por Havelock [1963] em seu hoje do problema seria: Constituem fala e escrita dois sis-
clássico Prefácio a Platão. Embora não seja esta a temas lingüísticos independentes com características
questão a que nos dedicaremos aqui, é dela que par- próprias? Há quem julgue que o problema é: Fala e
timos para esclarecer como o tema vem sendo trata- escrita impõem relações de poder distintas? Seja como
do no interior de um projeto de pesquisa2 desenvol- for, essas questões (cognitivas, lingüísticas, ideo-
vido na Universidade Federal de Pernambuco. lógicas) estão se evidenciando como mal-postas. Sua
Uma das intenções do projeto tem sido a de origem pode ser identificada já em Platão, quando ele
refletir sobre a natureza da relação entre fala e escri- introduziu o problema na parte final do famoso diálo-
ta do ponto de vista teórico, epistemológico e go Fedro (274a-275), no século V a.C.3 A passagem
lingüístico (na perspectiva de Biber 1988 e 1995; vale um detido registro, sobretudo pela sua fortuna na
Street 1984 e 1995), sem esquecer os aspectos histó- história do pensamento ocidental.

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Versão reformulada e ampliada do trabalho intitulado “Fala e Escrita na Grade dos Gêneros Textuais” apresentado na
XVIII Jornada do GELNE, 4 a 6 de setembro de 2000, em Salvador. Revista
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Esta pesquisa, levada a efeito no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, como um Projeto do GELNE
Integrado sobre o tema “Fala e Escrita: Características e Usos”, com a participação de Luiz Antônio Marcuschi Vol. 3
(coordnador), Judith C. Hoffnagel , Dóris de A. C. da Cunha e Cazue S. M. de Barros (colaboradores), vem sendo No. 1
apoiada pelo CNPq, proc. nº 523612/96-6. 2001
3
Esta passagem do Fedro de Platão é comentada, entre outros, por W. Ong [1982]. 1998, pp.34-35 e 94-98, numa

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comparação feita pelo autor (na esteira de Havelock [1963]) em relação ao computador.
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No final do diálogo Fedro, ao analisar a arte mostra cético, ao que Sócrates adverte dizendo que
dos discursos e suas condições, Sócrates indaga de ela é digna de atenção, e Fedro admite que o rei tebano
seu discípulo sobre a conveniência ou não de escre- estava certo. Para Sócrates, é “perfeita ingenuidade”
ver os discursos, e em que caso seria oportuno ou imaginar que o escrito esteja claro e seja digno de fé
não escrevê-los. Seguindo seu método usual, Sócrates só pelo fato de se achar escrito. Pois o escrito não
expõe suas idéias ao discípulo Fedro narrando uma passa de um meio para recordar o que se acha escrito
lenda da tradição antiga sobre Theuth, o deus inven- (uma espécie de técnica), não sendo garantia da ver-
tor, e o faraó egípcio, Thamus. Esta é a narrativa com- dade do escrito. Platão levanta aqui a questão do va-
pleta (Fedro, 274): lor epistemológico não só da escrita, tida como uma
“imagem”, mas da própria linguagem. Pois a escrita
Sócrates – ouvi, pois, contar que em Naucratis seria uma mimesis, uma representação de segundo
do Egito viveu um dos antigos deuses, aquele nível, já que a língua é o primeiro momento da imita-
cuja ave sagrada é a que chamam de Ibis, e ção da verdade. Para Sócrates, no entanto, o mais ter-
que o nome do deus era Theuth. Este foi o rível da escrita é sua “verdadeira semelhança com a
primeiro que inventou os números e o cálculo, pintura”. A pintura se apresenta como um ser vivo,
a geometria e a astronomia, além do jogo de mas se lhe perguntamos algo, “ela se mantém no mais
damas e dos dados e também os caracteres da solene silêncio” (Fedro, 275), assim como a escrita.
escrita. Na época, Thamus era o rei do Egito, Em suma: a escrita fixa de uma vez por todas
cuja corte situava-se na grande cidade da re- um dado conteúdo e sempre diz o mesmo quando for
gião alta a que os gregos chamam Tebas do reiteradamente lida. Trata-se de uma “semente esté-
Egito, cujo deus é Ammom, e Theuth veio ao ril”, uma espécie de um dizer “morto e petrificado”,
rei e lhe mostrou suas artes sugerindo que fos- que não se compara com a semente plantada por quem
sem comunicadas aos demais egípcios. O rei produz discursos falados e os renova sempre, fazen-
Thamus perguntou então qual a utilidade de do que deles surjam novas sementes plantadas em
cada uma e, à medida em que seu inventor as corações que as entendem. Para o mestre Sócrates,
explicava, o rei, segundo lhe parecesse que o outro aspecto negativo na escrita é o fato de, após ter
dito estivesse bem ou mal, censurava-o ou elo- sido escrito, um texto poder circular por todos os lu-
giava-o. Assim, segundo se diz, foram muitas gares e se tornar acessível a todas as pessoas igual-
as observações em ambos os sentidos, feitas mente, tanto os sábios quanto os ignorantes e desin-
por Thamus a Theuth sobre cada uma das ar- teressados, sendo que estes não saberão a quem se
tes e seria muito longo expô-las aqui. Porém, dirigir para pedir explicações sobre o que lêem e não
quando chegou aos caracteres da escrita, dis- entendem. Daí concluir Sócrates que o melhor dis-
se Theuth: “Este conhecimento, oh, Rei!, fará curso é o que se inscreve na alma, aquele que é fala-
mais sábios os egípcios e vigorizará sua me- do e sabe se defender, falando ou guardando silêncio
mória: é o elixir da memória e da sabedoria o quando necessário.
que com ele se descobriu.” Mas o rei respon- Para Platão a escrita não passa de uma sim-
deu: “Oh! Engenhosíssimo Theuth! Uma coi- ples técnica para fins de fixação do conhecimento.
sa é ser capaz de engendrar uma arte, e outra, Platão não percebe que a escrita é uma forma de re-
ser capaz de compreender que dano ou pro- presentar a língua e não apenas de fixar idéias no
veito encerra para os que dela hão de se ser- papel. É certo que o texto escrito foge ao controle de
vir, e assim tu, que és o pai dos caracteres da seu produtor, e entra em todos os ambientes sem po-
escrita, por benevolência a eles, lhes atribuíste der exigir controle de sua interpretação. Mas isso é
faculdades contrárias às que possuem. Isto, insuportável a Platão para quem o conhecimento,
com efeito, produzirá na alma dos que os como algo vivo, não pode ser aprisionado e distribu-
apreendam o esquecimento pelo descuido da ído de forma homogênea e indiscriminada por toda a
memória, já que, fiando-se na escrita, recor- sociedade. O conhecimento é comparado, por
darão de um modo externo, valendo-se de ca- Sócrates, a uma “semente” na mão do jardineiro
racteres alheios e não desde o seu interior e (Fedro, 276), que vai plantá-la em terra boa e cultivá-
por si. Não é, pois, o elixir da memória, mas o la até surgirem os bons frutos. O bom jardineiro não
da recordação, o que encontraste. É a aparên- iria plantar a semente em jardins alheios ou em jar-
cia da sabedoria, não sua verdade, o que pro- dins em que as flores surgiriam em poucos dias, mas
curas para teus discípulos, porque uma vez que não autênticas. Com esta imagem, temos um aspecto
tenhas feito deles eruditos sem uma verdadei- importante, na medida em que o jardim da escrita não
ra instrução, parecerão juizes entendidos em é para todos, mas sim para os sábios a quem ela deve
muitas coisas não entendendo nada na maio- servir nos anos tardios, aqueles anos em que o esque-
Revista
ria dos casos e será difícil suportar sua com- cimento chega e que a recordação é necessária aos
do GELNE panhia porque ter-se-ão tornado sábios em sua que sabem ouvir aquela escrita. Pois somente o dis-
Vol. 3 própria opinião e não sábios.” curso rememorado pela alma e não pela escrita pode
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produzir “filhos legítimos”.
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Em continuidade ao diálogo, e ponderando A rigor, temos aqui um dos momentos que

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sobre a “fábula” julgada por ele engenhosa, Fedro se marcam negativamente o início de uma discussão que
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perdura até hoje e orienta boa parte da questão não peito à própria noção de língua. A introdução da es-
só sobre a escrita como fonte de conhecimento, es- crita deu origem a uma série de ditos populares ainda
tratégia de armazenamento, incrementadora da sabe- vigentes, tais como: “Palavras escritas ficam, pala-
doria etc., mas também sobre a escrita em sua função vras faladas voam”, como se a fixação por escrito
social e política. Irônica ou não, isso não vem ao caso, fosse garantia de durabilidade; “Vale o escrito”, dan-
a posição de Platão afigura-se profundamente do a entender que o testemunho verbal tem menos
exclusionista, elitista e reacionária. Mais do que uma importância; ou como no Direito: “O que não está
reação ao novo é uma defesa do conhecimento privi- nos autos não está no mundo”, sugerindo que o es-
legiado. A escrita é vista como um fator de dissemi- crito é a verdade. Dá-se mais importância à história
nação indistinta do conhecimento e isto é tido como escrita que à tradição oral: “Um povo sem escrita é
negativo. Já naquele tempo Platão sabia: conheci- um povo sem história” (Sartre). Contudo, isto não é
mento é poder. universalmente assim, como mostram estudos compa-
Vinte e cinco séculos após Platão ter escrito rativos entre as várias culturas que avaliam de forma
Fedro, a situação se inverte para continuar na mes- diferenciada a escrita. Veja-se o caso dos Nukulaelae
ma. Toma-se, agora, a escrita como um valor maior para quem a escrita é uma prática das mulheres e
que a oralidade, grande fator de estímulo ao conheci- possui caráter informal (Street 1995:109)4.
mento e um divisor da história. Na verdade, esta Perspectiva totalmente diferente dessa é a re-
mudança de uma grafofobia para um grafocentrismo lação que a escrita no caso dos Mende, em Serra Leoa,
começou já com o discípulo mais ilustre de Platão, como mostraram Bledsoe e Robey (1993:120). Es-
isto é, Aristóteles, na Política, Livro VIII.3, quando ses autores observam que no mundo árabe “a escrita
é lembrada a importância de ensinar a ler e escrever é uma prerrogativa masculina”, exercida pelos
aos jovens para que saibam lidar com o dinheiro, di- “karamokos”, isto é, “aqueles que sabem ler” e que
rigir a economia doméstica e instruir-se. Esta será com esta tarefa ganham muito dinheiro, já que a eles
também a posição em toda a Idade Média que porá a são entregues os filhos dos grandes proprietários que
gramática no Trivium, tamanha a relevância da escrita. pagam taxas altíssimas para aprender a ler. Já as fi-
Portanto, a despeito da posição platônica, leitura e lhas só aprendem se os karamokos as ensinarem na
escrita foram tidas na civilização greco-roma como casa dos pais, pois do contrário significa que elas
artes essenciais a serem incentivadas pelo Estado (v. casarão com o karamoko. Os karamokos são pro-
Harris, 1989). Esta perspectiva prosperou de tal modo fessores de leitura e escrita, mas há ainda os moriman
que o domínio da escrita é tido como índice de de- que são os comerciantes ricos que sabem ler, mas não
senvolvimento e o incentivo ao letramento tornou-se se ocupam do ensino da leitura. Karamokos e
um imperativo constitucional na maioria dos povos. moriman usam o poder que decorre de seu conheci-
Na realidade, essa inversão da situação deixa mento da escrita para se beneficiarem numa socieda-
tudo como está, pois foi construída sobre uma pro- de em que a escrita tem um poder mágico e serve
funda dicotomia na visão avaliativa das práticas da como guarda de segredos. A forma de apropriação
oralidade e da escrita. O privilégio da escrita foi da escrita entre os Mende em Serra Leoa nada tem a
construído sobre a depreciação da oralidade. É con- ver com as formas de apropriação e uso da escrita
tra essa dicotomia preconceituosa que nos voltamos entre nós, por exemplo.
nos estudos aqui apresentados. Pois a tradição inau- Em segundo lugar, torna-se importante a su-
gurada por Platão não passa de uma fonte de precon- peração da visão dicotômica e a negação da autono-
ceitos, mesmo quando invertida, não importando mia da escrita frente à oralidade. Pois já ficou clara-
quais dos dois pólos seja tido como superior. O que mente comprovado que a escrita não é autônoma, não
aqui se condena de modo geral é a dicotomia estrita é descontextualizada nem possui alguma virtude
ou a “grande divisa” entre fala e escrita. imanente pela natureza da tecnologia que representa.
A escrita não é uma espécie de representação da fala,
Algumas posições já consolidadas pois há na fala muito mais do que apenas aquilo que
os sinais gráficos (em espacial o alfabeto) podem
Nas investigações realizadas até o momento expressar. Porém, a escrita também tem seu lado es-
no contexto do Projeto Integrado “Fala e Escrita : pecífico com elementos que a fala não possui. Em
Características e Usos”, chegamos a muitos resulta- outras palavras, escrita e fala são dois modos conco-
dos dentre os quais serão aqui lembrados alguns as- mitantes de representar a mesma língua.
pectos básicos. Outro aspecto relevante aqui é observar que
Em primeiro lugar, a questão da relação fala e mesmo a escrita como a nossa (a dita escrita alfabética)
escrita não pode ser reduzida a um problema de natu- vai além da representação alfabética da língua e se
reza estritamente lingüística. Na base, ele é essencial- serve de uma enorme quantidade de outros elemen-
Revista
mente antropológico e epistemológico, já que diz res- tos representacionais o que nos conduz ao letramento
do GELNE
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Contudo, parece possível endossar a posição de R. Pattison (1982) aposta como epígrafe ao artigo de A. K. Bowmann & 2001
G. Woolf sobre ‘Cultura Escrita e Poder no Mundo Antigo’ (1998:5): “Nem todas as sociedades optaram por empregar

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a cultura escrita da mesma maneira, mas tal cultura sempre está associada ao poder.”
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(uma maneira de representar a língua pelos mais di- integração muito grande formando uma mescla ou um
versos sinais e numa variada gama de competências). contínuo. A mãe lê o livro em voz alta e o comenta
De igual modo, não se pode reduzir a oralidade ao oralmente; recebe uma carta e lê para os outros; lê o
som que constitui a fala, pois o som é apenas uma jornal em voz alta e comenta e assim por diante. Já a
condição necessária para que haja fala, mas não sufi- escola separa fala e escrita e dá a cada uma o seu
ciente. Há muito mais do que som na fala, de modo lugar. Ali surge a “grande divisão”, como fruto de
que a oralidade é mais do que a linguagem na sua um processo de “pedagogização da escrita”. A es-
forma sonora. cola põe a escrita no quadro, fixa-a em normas, dis-
Historicamente, sabemos hoje que a escrita tingue-a da fala e torna-a autônoma, objetivizada,
não foi uma invenção única, mas foi reinventada vá- naturalizada. O texto escrito se torna não-problemá-
rias vezes de forma independente, tal como mostra tico e deve ser entendido objetivamente. A ênfase se
Ong [1982] pp.93-133) lembrando vários estudos. volta para a natureza da linguagem em detrimento
Além disso, a escrita não deve ser confundida com a do seu uso (v. Street 1995:116). Esta observação de
escrita alfabética, de maneira que não se pode imagi- Street é para nós importante porque permite distin-
nar a nossa escrita como a única (aqui me refiro às guir entre as noções de letramento e escrita, bem
diversas escritas não alfabéticas e não ao problema como entre oralidade e fala. Além disso, sugere que
apontado no parágrafo anterior em que lembrava a se distinga entre eventos e práticas.
presença de elementos não alfabéticos na escrita al- Neste caso, com Barton (1991:5) e Street
fabética, tais como imagens e cores). Quanto a isto, (1995:133), podemos distinguir entre eventos de
observa-se que hoje a escrita está se tornando cada letramento como atividades particulares onde a es-
vez mais pictográfica, iconográfica ou ideogramática, crita tem um papel central (algo assim como os usos
em especial a escrita pública que aparece nos gran- específicos da escrita, identificáveis pelos intera-
des espaços urbanos ao ar livre e nas publicidades de ctantes) e práticas de letramento, onde as atividades
grande circulação. O próprio computador está popu- culturais gerais de uso da escrita se desenvolvem nos
larizando um grande número de ícones que estão sen- eventos. As práticas de letramento variam conforme
do apropriados como adequados em textos da vida os diversos domínios da vida social. Com isso, po-
diária. Há gêneros textuais, como os bate-papos pela demos referir-nos a esferas de domínio da escrita,
internet que já incorporaram até mesmo elementos ou seja, aquele âmbito da vida social em que a escrita
específicos, denominados “emoticons”, sinais que tem maior penetração e influência. Esses domínios,
indicam emoções, como riso, abraços, choro, repro- seja na vida familiar, escolar ou no trabalho, dão-se
vação e assim por diante. via de regra em eventos particulares. Por exemplo,
Do ponto de vista dos usos, a fala e a escrita na hora de levantar ou dormir, nas refeições, durante
variam, são profundamente maleáveis e não se ca- uma aula, na redação ou leitura de uma correspon-
racterizam por alguma orientação peculiar e exclusi- dência. Com isto podemos afirmar que a escrita acha-
va em relação a regras. Há uma tendência a legislar se bastante envolvida, na sua forma mais freqüente
sobre a escrita com dispositivos estatais ou não, como de surgimento, com contextos altamente institu-
a escola e as academias, fazendo com que se defina cionalizados.
uma escrita única (padrão), desqualificando todas as Vejam-se os exemplos da aula e da conferên-
demais. Na realidade, confunde-se aqui a escrita en- cia, trazidos por Street (1995:133), que enquanto
quanto modo de uso da língua com um de seus usos: eventos envolvem letramento: a audiência fica ou-
o padrão. Essa escolha já foi comprovada como não vindo e lendo no quadro (ou na projeção do power-
tendo base lingüística e sim ideológica (v. Trudgill point!), tomando notas e memorizando; o conferen-
1975). Por que os gaffitis nas paredes dos prédios e cista fala, lê notas, projeta textos e escreve. Esse even-
muros de nossas cidades não podem ser tidos como to é uma espécie de “mix” ou de mescla de oralidade
uma escrita? Afinal de contas, as inscrições rupestres e escrita, não se classificando tipicamente como uma
e as demais inscrições em cavernas desde a Idade da ou outra. Por outro lado, um Tratado de Filosofia é
Pedra seriam ou não comparáveis aos atuais graffitis uma prática típica de letramento e também um even-
em prédios publicos? Do ponto de vista da sua fun- to de letramento acentuadamente marcado pela es-
ção social e suas formas de manifestação, a escrita crita. Quando eu calculo ou lido com o dinheiro, pro-
não tem um padrão ideal natural. curo uma rua pelo nome ou peço uma informação
sobre um estabelecimento comercial, estou pratican-
Práticas de Letramento e eventos de do atividades mistas de letramento e oralidade que
escrita não podem ser distinguidas com rigor: são práticas
de letramento, mas não eventos de escrita.
Aspecto relevante na observação e sistemati- Seguramente, alguém objetará, com razão:
Revista
zação da relação fala-escrita é o que diz respeito às então não podemos mais distinguir entra fala e es-
do GELNE formas de inserção da fala e da escrita nos usos da crita? Certamente podemos distinguir, mas aí estamos
Vol. 3 vida diária. Quanto a isto, concordamos com Street num outro terreno, o das formas. E não podemos fi-
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(1995:115) ao constatar, num estudo sobre a classe car restritos a ele. Aqui iniciam outros aspectos im-
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média de uma cidade dos Estados Unidos, que no portantes, tais como a natureza dos textos produzi-

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ambiente doméstico, fala e escrita se davam numa dos empiricamente, ou seja, a questão dos gêneros
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textuais. Alguns deles serão tipicamente escritos e
outros tipicamente falados, mas todos deverão cum-
prir determinados requisitos de organização além de
seguirem o mesmo sistema lingüístico. E se obser-
varmos a fala e a escrita no contexto da prática dos
gêneros comunicativos em sociedade veremos que as
diferenças entre as duas modalidades vão se diluindo
ou pelo menos graduando num conjunto de relações
relativizadas.
Ken Morrison (1995) em detido estudo sobre
a história do estabelecimento do texto após o
surgimento da escrita alfabética, mostra que o pró-
prio aparecimento dos gêneros escritos se deu como
um processo de aculturação, ou seja, como afasta-
mento progressivo de práticas orais. Para o autor, as
funções textuais foram evoluindo na relação com
“mudanças na organização social” (p.145), o que ates-
ta uma relação forte entre o desenvolvimento da no-
ção textual e a evolução cultural. Morrison lembra
que “papiros dos séculos V, IV e III a.C. mostram
que os textos eram escritos de maneira contínua, sem
parágrafos, capítulos ou divisão entre as palavras e
frases” (p.149). Não havia uma normatização da es-
crita, seja no plano ortográfico ou na disposição grá-
fica dos sinais. Diante disso, argumenta Morrison que
“o desenvolvimento e a difusão do parágrafo como
meio de se marcar as etapas de uma argumentação
podem ser tomados como exemplo da evolução cul-
tural” (p.145). Pois esta noção inexiste na oralidade
e deve ser inventada na escrita. Separar palavras, fa-
zer parágrafos, numerar páginas, pontuar, fazer linhas,
separar temas com títulos etc. são estratégias que sur-
gem com a estabilização do sistema textual que não
se fazia presente na oralidade.

Fala e escrita na grade dos gêneros


textuais
Para tratar de maneira adequada a relação fala
e escrita no contexto dos gêneros textuais como
materializações dos textos na forma gráfica ou oral,
convém distinguir entre pelo menos três grupos de

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Vol. 3
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na comparação da fala e escrita é precisamente a re- ciais e históricas realizadas como eventos com o con-
lação vista no contínuo dos gêneros textuais. Recen- curso da língua em situações comunicativas com pro-
temente, passamos a admitir uma visão ainda mais pósitos bem definidos. Seria inclusive interessante
dinâmica que poderia ser representada não na ima- refazer esta história dos gêneros considerando sua
gem do contínuo, mas da grade ou gradiente em que própria denominação, pois as denominações são em
as imbricações se tornam maiores e as relações po- geral temáticas ou pelo menos em boa parte lembram
dem ser graduadas. aspectos temáticos do próprio gênero.
Poderíamos imaginar algo assim como uma Observando a origem da escrita e sua função
esfera no interior da qual toda a produção textual se social e cultural no panorama grego, Havelock
daria como um conjunto de práticas lingüísticas e (1986:8) defende que a escrita inicialmente era feita
discursivas, situadas em relações mútuas, não haven- no gênero poético, com Homero e Hesíodo encabe-
do dois pontos extremos como no caso da figura çando todo o conhecimento (na medida em que puse-
retangular representada abaixo. Assim, o Gráfico A ram na escrita a oralidade. Em seguida, Platão subs-
seria substituído pelo Gráfico B ali embutido: tituiu o gênero poético pelo diálogo, transformado
Gráfico A: Fala e Escrita no Contínuo dos em método “dialético”. Se por um lado a forma poé-
gêneros textuais tica favorecia o aspecto mnemônico da oralidade, por
Gráfico B: Fala e Escrita no interior da esfera outro, o diálogo era a forma mais genuína da mani-
de práticas sócio-comunicativas festação oral no dia-a-dia. Era uma maneira profun-
damente prosaica de transmitir o pensamento, mas
A natural. Outros sábios usavam os aforismas. Aristó-
teles já se serviu da exposição em tratados. Contudo,
ainda hoje vigora a tradição oral através dos mitos,
dos contos, das fábulas e assim por diante. Mas a ciên-
cia perdeu essa noção da oralidade e confinou-se ao
ensaismo, desde que a Academia Inglesa o definiu
no século XVII.

Palavras finais
B Em conclusão a estas observações podemos
dizer que as relações entre fala e escrita ou entre
Antes de tentar uma análise mais detida da oralidade e letramento, seja na perspectiva dos even-
relação entre fala e escrita com base nos gêneros tex- tos ou das práticas, dos discursos ou dos textos mate-
tuais, seria interessante que se tivesse uma visão his- rializados, não podem ser confinadas aos seus aspec-
tórica dos gêneros. Mas nós ainda não dispomos dessa tos lingüísticos, pois o uso da língua na vida diária
história que permanece um tema aberto. Essa histó- nunca será um uso autônomo, desligado da realidade
ria mostraria que no início era a oralidade prota- sócio-comunicativa. Isto implica a necessidade de
gonizada pelo gênero conversação espontânea e, logo uma noção de língua como atividade sócio-interativa,
em seguida o gênero fábula, depois o gênero poema fugindo à pura contemplação de formas. Mas tam-
e, finalmente, o gênero ensaio no qual se faz ciência. bém é certo que não podemos fazer ciência contem-
Os gêneros foram se constituindo historicamente na plando um fenômeno tão múltiplo e heterogêneo em
medida em que foi se tornando necessário realizar toda sua extensão e complexidade. Daí a paradoxal
novas atividades com a língua. Os gêneros são cris- necessidade do cientista, em especial o lingüista, de
talizações lingüísticas de práticas sociais. Ainda hoje seccionar seus objetos de análise para estudos espe-
estão surgindo novos gêneros, alguns sem nomes bem- cíficos. A questão mais importante está em como fa-
constituídos, como os motivados pelos meios zer esses recortes para não proceder a enquadres
eletrônicos, por exemplo, as mensagens e os bate- desfocados. A proposta é que se evitem recortes
papos eletrônicos. epistemológicos preconceituosos e dicotômicos e se
Quanto à questão da origem histórica dos gê- parta para a análise da língua como atividade situada.
neros textuais e sua consolidação, pode-se dizer que É nessa perspectiva que o Projeto “Fala e Escrita:
isso foi ocorrendo ao longo do tempo com base no Características e Usos” vem se conduzindo e pre-
surgimento de novas tecnologias e nas necessidades tende dar uma contribuição.
comunicativas. Considerando os suportes textuais,
em certos casos, pode-se até datar o surgimento de Fontes de referência
novos gêneros, como o telefonema, o e-mail, o edito-
Revista BAKHTIN, Michail. [1979]. 1992. Os gêneros do
rial de jornal, a aula, a conferência, o edital, a ata
do GELNE de condomínio, a ata de reunião de Pleno de Depar- discurso. In BAKHTIN, M. Estética da Criação
Vol. 3 tamento e assim por diante. Tudo isto passou a exis- Verbal. São Paulo, Martins Fontes, pp. 277-326.
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tir com a introdução de um dado suporte seja ele BARTON, David. 1991. The Social Nature of Writing.
2001
tecnológico ou institucional. Os nomes dos gêneros In: D. BARTON & R. IVANIC (Eds.). Writing in

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são instituídos para referir ou designar práticas so- the Community. London: Sage.
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Revista
do GELNE
Vol. 3
No. 1
2001

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