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CONTRIBUIÇÃO DA TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ PARA A


ELABORAÇÃO TEÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS

Givaldo Mauro de Matos

CAPÍTULO I - OCIDENTE EUROPA E CRISTANDADE

1.1 - Pertinência do debate sobre Cristianismo e direitos humanos

Andrés Torres Queiruga, teólogo galego, em sua obra O Cristianismo no Mundo de


Hoje, afirma: “Desde Hegel, é um princípio geral afirmar que o valor absoluto do indivíduo –
base suprema da democracia – se forjou na experiência cristã do Deus pai de cada homem e
mulher”.1 Convergentemente à assinatura de Queiruga, Leonardo Boff, teólogo franciscano,
assinala o reconhecimento da participação do Cristianismo à elaboração teórica e prática dos
direitos humanos. Em suas palavras, “... certamente nenhuma instituição hoje existente no
mundo terá enaltecido mais a dignidade humana do que a comunidade cristã”.2

Entretanto, conforme observa o teólogo alemão Karl-Josef Kuschel, a contribuição das


religiões monoteístas para a configuração teórica dos direitos humanos não é unanimemente
concorde entre os estudiosos do tema. Em sua análise, “é um lugar comum afirmar que as
declarações sobre direitos humanos universais não são um produto direto do judaísmo,
cristianismo e islã, e sim uma conquista da modernidade que, em muitos aspectos, tem uma
postura crítica para com a religião”. 3

Embora possa se questionar a extensão da expressão ‘produto direto’ na fala do


referido teólogo, a acuidade de sua observação poderá ser verificada no silenciamento que
historiadores e comentaristas sobre os direitos humanos fazem à religião, como se verá neste

1
São Paulo: Paulus Editora, 1994, p 38.
2
BOFF, Leonardo. Igreja, Carisma e Poder. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1982, p 58.
3
Fundamentação Atual dos Direitos Humanos entre Judeus, Cristãos e Muçulmanos. Caderno de Teologia
Pública da UNISINOS – Ano IV – N. 28 – 2007, p 05.
2

trabalho. O jurista italiano Norberto Bobbio, por exemplo, em sua A Era dos Direitos, não
expressa reconhecimento do papel determinante da herança cristã para a elaboração dos
conceitos fundantes dos direitos humanos. Mesmo quanto à história da formação dos direitos,
afirmará que “sua primeira fase deverá ser buscada na filosofia” 4 moderna, em especial, no
legado de John Locke e Jean-Jacques Rousseau5, ignorando o caldo cultural greco-romano e
judaico-cristão que possibilitou a expressão filosófica destes grandes mestres do Iluminismo.

Este silenciamento e negação não são absolutos, como já observado. Vigora, na


verdade, uma não pequena relativização desta contribuição, frente, sobretudo, a fatores que
incidiram mais diretamente sobre a produção das declarações de direitos humanos dos séculos
XVIII a XX, bem como um reducionismo metodológico, que encerra o debate sobre o
surgimento destes direitos apenas à contribuição filosófica e jurídico-política das Declarações.

1.2 - Do lugar da religião na fundamentação dos direitos humanos

Em direção inversa, o jurista Fábio Konder Comparato afirma que “historicamente, a


excelência do homem no mundo foi justificada a partir de três perspectivas, complementares e
6
não excludentes: a religiosa, a filosófica e a científica”. Na mesma direção, os juristas
Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida, na obra conjunta Curso de Filosofia do
Direito, destacam a necessidade de metodologia multidisciplinar para analisar temas desta
dimensão: “Falar sobre justiça é falar sobre um fenômeno multifacetado, o que justifica
deparar-se com abordagens diversificadas, tantas quantas sejam as facetas do problema
colocado em análise - faceta metafísica, faceta ética, faceta técnica, faceta religiosa”.7

Para os autores, pensar os conceitos elementares do direito a partir da relação histórica


entre direito e religião, não representa técnica anticientífica, antes, pressuposto elementar para
captar parte necessária dos conceitos e do sentido da própria história. Nesta direção,
continuam os autores, “Quando se discute direito e justiça, é imprescindível analisar a

4
Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p 28.
5
Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, era de tradição calvinista, expressão religiosa altamente política e
antimonárquica.
6
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p 481.
7
São Paulo: Editora Atlas, 2005, p 154-155.
3

influência que as Sagradas Escrituras produziram sobre a cultura ocidental”. E isto porque no
Ocidente, “as tradições, os hábitos, os costumes, as crenças populares, a moral, as instituições,
a ética, as leis... estão profundamente marcadas pelas lições cristãs”.8

A temática dos direitos humanos, mais especificamente acerca dos fatores políticos,
religiosos e teóricos que lhes deram expressão, não poderia fugir à regra da necessidade de
tratamento multidisciplinar. O objeto deste trabalho faz desta metodologia a sua característica
principal, pois se prestará a perquirir sobre em que medida o Cristianismo colaborou para a
expressão teórica dos direitos humanos – mais precisamente, sobre as declarações de direitos
de 1776, nos Estados Unidos e, nisto, indiretamente para a declaração francesa de direitos em
1789.

1.3 - Da relação entre Direitos Humanos e Cultura Ocidental

Tornou-se consenso o reconhecimento de que os direitos humanos nasceram, enquanto


conceito positivo, na Modernidade. Assim o descreve o filósofo Heiner Bielefeldt: “(...)
devemos entender a origem ocidental dos direitos humanos como fato pura e simplesmente
histórico, pois, pelo que sabemos, foi na Europa e na América do Norte que pela primeira vez
esses direitos entraram em vigor do ponto de vista político e jurídico”.9 De igual forma, para
Norberto Bobbio, os direitos naturais são direitos históricos, que “nascem no início da era
moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade”10.

A modernidade, por sua vez, não é um período linear na história, antes um fenômeno
cultural que se inicia na Europa, e só muito lentamente vai se estendendo ao restante do
mundo. Por esta razão, crucial é a pergunta de sentido, feita por Frédéric Lenoir: “Por que
será que aquilo que chamamos de ‘modernidade’ não teve lugar em outro lugar – na China, na
Índia ou no Império Otomano, por exemplo – e num outro período da História?”11

8
BITTAR & ALMEIDA, 2005, p 145.
9
Filosofia dos Direitos Humanos. São Leopoldo: UNISINOS Editora, 2000, p 158.
10
BOBBIO, 1992, p 02.
11
A Filosofia de Cristo, p 163.
4

Na convicção do filósofo francês, “a modernidade e seus principais componentes – a


razão crítica, autonomia do sujeito, universalidade, laicidade – apenas puderam desenvolver-
se no seio de um mundo específico que reunia todos os fatores passíveis de propiciar que tais
componentes eclodissem e se ligassem entre si”. 12 E, para bem ou para mal, este mundo
específico foi o mundo cristão.

Fora da modernidade, por exemplo, a expressão ‘direitos humanos’ é relativamente


estranha, destituída de sentido, como destaca o filósofo eticista Alasdair MacIntyre. Não
existem em nenhum lugar na linguagem antiga, algo que se possa traduzir com o moderno
conceito de direito, até pelo menos fins da Idade Média. Ainda, adverte o autor, “o conceito
carece de meios de expressão em hebraico, grego, latim ou árabe, clássico ou medieval, antes
de cerca do ano 1.400, inexistente também no inglês antigo, ou mesmo no japonês até fins de
meados do século XIX”.13

Na verdade, ainda hoje o vernáculo dos direitos humanos não se faz presente, em sua
completude, em importantes nações. Neste sentido, o escritor espanhol Fernandez Garcia
Eusebio, em sua obra Dignidad Humana y Ciudadania Cosmopolita, fazendo uso de relatório
publicado pela UNESCO, revela os limites enfrentados por alguns países quanto à efetivação
dos direitos humanos.

No sânscrito, por exemplo, língua oficial da Índia, não existe nenhuma palavra
equivalente a direito. Ainda, afirma que “en la concepcion hindu los derechos sólo pueden
derivarse de los deberes que rigen la acción meritória”,14 sendo estranha, por exemplo, a ideia
de uma dignidade intrínseca ao fato de alguém ser um ser humano. A situação é de tal
gravidade que se alguém diz a um hindu, imerso na tradição hinduísta, que existem
determinados direitos em virtude de que se é um ser humano, simplesmente tal hindu irá rir.15.
Uma lista de direitos humanos desconexa de outra lista de deveres não lhe fará sentido, tal é o
condicionamento que sofre, de que direitos estão sempre associados a deveres. Também no
Japão, notifica o autor, é “inquietante que no exista (...) una palabra que corresponda a

12
LENOIR, Frédéric, p 163.
13
Depois da Virtude. Bauru: EDUSC Editora, 2001, p 126-27.
14
EUSEBIO, Fernandez Garcia. Dignidade Humana Y Ciudadania Cosmopolita. Madrid: Dykinson Editora,
2001, p 65.
15
Idem, ibidem.
5

derecho, droit, right, recht. Y mas aún, que la cultura japonesa se base fundamentalmente en
obligaciones y deberes y no en derechos”. 16

Este é um dos desafios que enfrenta o princípio da universalidade dos direitos


humanos na atualidade. À época da origem das declarações, o seu núcleo é essencialmente
ocidental, gerando, na opinião de alguns teóricos, um grave conflito. No entanto, fundado na
pesquisa da UNESCO, Eusebio insistirá em que “no todas las tradiciones culturales han
tenido ni tienen el mismo valor desde la perspectiva del reconocimiento, desarrollo y garantia
de los derechos humanos”.17 Valeria dizer, da versão liberal e individualista que marcou a
primeira geração de direitos humanos.

Importa apontar três observações aqui. Primeiro, o reconhecimento de uma dificuldade


intrínseca à cultura. Como fazer avançar o reconhecimento dos direitos humanos dentro de
uma cultura que não carrega tais valores dentro de si [ou que carrega conceitos concorrentes
destes valores]? Segundo, faz-se notar desde já o diferencial da cultura cristã que, através de
uma história milenar, possibilita a linguagem dos direitos humanos como familiar, gerando
uma associação direta entre a linguagem jurídica e filosófica e a linguagem teológica. Por fim,
ressalta-se a grande dificuldade de relacionar a defesa dos direitos humanos com a defesa do
relativismo cultural e moral dos povos, quando referida cultura viola o que no Ocidente se
considera a dignidade humana.

Existiria legitimidade, por exemplo, da intervenção da Organização das Nações


Unidas (ONU) sobre um Estado, por práticas de violência física e sexual contra menores,
negação da identidade feminina, xenofobia, colonialismo, sob o pretexto dos direitos humanos?
Quando se pensa nas práticas de algumas culturas, de proceder ao que no Ocidente se
considera violação da dignidade humana, fica clara que esta tarefa é de difícil resolução.

Este permanecerá durante muito tempo, um desafio para os teóricos do conceito de


direitos humanos, mas não poderá sê-lo para a busca genealógica das influências teóricas e
práticas das declarações de direitos do homem. Se estas nasceram na modernidade, sob
relativa influência da tradição cristã, melhor será entende-las como a versão Ocidental dos
direitos humanos do que negar as influências que marcaram seus surgimentos.

16
EUSEBIO, 2001, p 64.
17
Idem, p 66.
6

De qualquer modo, a identificação da contribuição judaico-cristã para a configuração


teórica dos direitos humanos não deverá ser compreendida como reclamação exclusivista da
paternidade dos direitos humanos, antes, a procura pelo lugar que ocupou no longo processo
de amadurecimento do conceito. Ao lado de outras influências, qual é a medida, a dimensão
daquela proporcionada pelo Cristianismo?

1.4 - A relação entre Ocidente, Europa e Cristandade

Pressupondo que os direitos humanos nasceram, enquanto conceito jurídico-político,


na modernidade ocidental, questiona-se: este surgimento se deu alheio à influência da difusa
tradição cristã? Esta é uma questão central para a resolução do problema teórico enfrentado
por este trabalho. A tese que aqui se apresente é a de que, direta ou indiretamente, o
Cristianismo esteve presente em grande parte da produção cultural ocidental. O canadense
Northrop Frye, em sua crítica literária da Bíblia, assim descreve sua influência no Ocidente:

“Não faz muito um estudante chinês perguntou-me como ele poderia explicar para
seus futuros alunos a importância cultural do Cristianismo no Ocidente, de modo
que fosse inteligível para eles quando ele lá retornasse como professor. Sugeri que
os estudantes compreenderiam algo do Marxismo, e que o pai espiritual de Marx era
Hegel; logo o avô espiritual de Marx era Lutero”.18

Obviamente que existem enormes diferenças entre os três teóricos acima referidos. No
entanto, o que ressalta-se de Frye é que as ideias filosóficas do Ocidente não nasceram do
nada, antes manifestaram desenvolvimento de ideias germinais que ali já existiam. Neste
sentido, há uma interdependência difusa entre as grandes ideias filosóficas e culturais do
Ocidente, com a singularidade teológica do Cristianismo. Por esta razão, o filósofo e
historiador marxista Milan Machovec, em sua obra Jesus para Marxistas, questiona a
pretensão dos ortodoxos de sua escola filosófica, de abandonar a contribuição da tradição
cristã para a configuração da cultura Ocidental. Em suas palavras, “os que querem
radicalmente separar-se dessa tradição devem, para seu próprio bem, tomar consciência de

18
O Código dos Códigos – a bíbia e a literatura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006. 2º Ed, p 19.
7

que não é verdadeiramente fácil abandonar tudo do que (e tudo por que) nossa cultura viveu
durante dois mil anos”.19

A cultura ocidental é indissociável da contribuição cristã, sustenta ainda o filósofo


italiano Gianni Váttimo, membro do Parlamento Europeu: “Assim como a literatura ocidental
não seria pensável sem os poemas homéricos, sem Shakespeare, sem Dante, assim também a
nossa cultura em seu conjunto mais amplo não teria sentido se quiséssemos amputar-lhe o
Cristianismo”.20

Esta é, na verdade, uma das teses fundamentais da filosofia de Váttimo. Em sua obra
Depois da Cristandade, defende que “se quisermos falar do Ocidente, da Europa, da
modernidade – termos que, para o nosso discurso, têm o valor de sinônimos – bem como de
entidades histórico-culturais reconhecíveis e caracterizadas, a única noção que podemos
utilizar é justamente aquela da secularização do patrimônio judaico-cristão”. 21 Em outras
palavras, Váttimo entende que o Ocidente é o Cristianismo elevado às consequências
máximas de sua mensagem intrínseca. Repetindo Weber, relembrará que a racionalidade
ocidental que ensejou a Modernidade não se repetiu em lugar algum [ao menos em período
concomitante], senão no seio da tradição judaico-cristã. 22 Tanto para Weber quanto para
Váttimo, o próprio secularismo é fruto de ideias intrinsecamente cristãs. Sem discutir o grau
do eurocentrismo de Váttimo, cumpre apenas destacar que, em grau maior ou menor, a
identidade ocidental está amalgamada à cultura cristã.

Esta visão, na verdade, não está ilhada, quando se fala da formação da cultura e
identidade do Continente Europeu. Da Cátedra Jean Monnet de História da Integração
Europeia, da Universidade de Salamanca - Espanha, Mercedes Samaniego, em seu artigo
¿Que Queremos Decir quando Decimos Europa?, sustenta:

“Nuestros bienes mayores (...) son la Libertad, la Paz, Dignidad Humana, Igualdad y
Justicia Social. [Valores] arraigados en la antigüedad y el cristianismo, que a lo
largo de 2000 años han evolucionado hasta lo que hoy constituyen los fundamentos
de la democracia moderna […] Conjunto de valores que tienen sus claros cimientos
morales y sus obvias raíces metafísicas al margen de que el hombre moderno lo
admita o no”.23

19
São Paulo: Loyola Editora, 1989, p 37.
20
O Futuro da Religião. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006, p 74.
21
Rio de Janeiro: Record Editora, 2004, p 94.
22
Idem. Pg. 96-7.
23
In: GÓMEZ-CHACÓN, Inés Maria. (Ed.). Identidad Europea - Individuo, grupo y sociedade.
Espanha: Universidade de Deusto, 2003, p 41-2.
8

A influência do Cristianismo sobre os valores ocidentais não se deu apenas no plano


teórico, nem a partir da grande Igreja - a Católica. Inúmeros movimentos cristãos menores
deram sua contribuição, direta ou indiretamente. Neste sentido, no trabalho Identidad
Europea – Individuo, Grupo y Sociedad, Mario López Martínez, professor na Universidade de
Granada-Espanha, aponta para o grande desafio que seria identificar a contribuição do
Cristianismo para a configuração da identidade europeia. Assim a enuncia:

“Grupos como los mennonitas, los cuáqueros, los doukhobors por el protestantismo;
o, primero, los ideales de vida benedictina y el franciscanismo; y, después el
jesuitismo (especialmente, este último, en América Latina) por el catolicismo,
crearían sus propios códigos, sus sociedades fraternales y sus nichos eco-sociales.
Resulta difícil medir en qué grado estas pequenas iglesias minoritarias o este
evangelismo humanista influyeron en el todo social o en la construcción de la idea
de Europa. Lo que es seguro es que influyeron”.24

1.5 - Da relação entre a contribuição judeu-cristã e outras correntes teóricas

Acerca da influência do texto bíblico sobre a consciência moral ocidental, mais


especificamente dos Dez Mandamentos, Norberto Bobbio reconhecerá que “foram durante
séculos, e ainda o são, o código moral por excelência do mundo cristão, a ponto de serem
identificados com a lei inscrita no coração dos homens ou com a lei conforme a natureza”.
Mas, adverte o jurista, “podem-se aduzir outros inúmeros exemplos, desde o Código de
Hamurabi até a Lei das Doze Tábuas”. 25 Em linha semelhante, Heimer Bielefeldt, com o
objetivo de confrontar a pretensão de monopólio majoritário do Cristianismo sobre a noção
ética de igualdade, destaca que também a filosofia estoica de Marcus Aurélio, defendia serem
todos os seres humanos parentes entre si, partícipes do mesmo sangue e espírito.26 Há aqui,
afirma o autor, uma defesa da igualdade entre todos os seres humanos, já antes do
Cristianismo, demonstrando sua influência sobre a consciência moral do Ocidente.

Mas, questiona-se, pode-se comparar com a influência do Cristianismo sobre o


Ocidente, a contribuição da filosofia estoica de Marcus Aurélio, ou do Código de Hamurabi e
da Lei das Doze Tábuas? Carece aqui o argumento de um recorte em sentido de profundidade.

24
El pacifismo europeu, constructor de identidades transversales y globalizadas. In: GÓMEZ-CHACÓN,
Inés Maria. (Ed.), p 293.
25
BOBBIO, p 25.
26
BIELEFEILDT, p 146.
9

Em que medida a influência de tais teóricos se assemelha à influência da tradição judaico-


cristã?

Para Milan Machovec, “a história conheceu grandes figuras, que arrastaram milhões
de homens: Confúcio, Buda, Sócrates... Passaram séculos e o nome deles não desapareceu”.
No entanto, continua o autor, “o que aconteceu ‘em seu nome’ [de Jesus de Nazaré], quando
esse homem já não percorria a Galiléia e a Judéia, não tem equivalente na história, nem em
27
extensão, nem em intensidade”. Enquanto os filósofos gregos e juristas romanos,
majoritariamente, só são conhecidos em ambiente de literatura dirigida, os valores da cultura
cristã são implantados nas consciências individuais desde a infância, sob o cimento religioso.

Se se concordar que a Reforma de Lutero e Calvino, bem como dos movimentos


radicais que a eles sucederam, foram primordiais para o reconhecimento da ‘liberdade de
consciência’, a profundidade da contribuição cristã se tornará ainda mais evidente. Ao menos
na Idade Média, reconhece o historiador francês da Escola dos Anais, Lucien Febvre, “o
Cristianismo era o próprio ar que se respirava (em todos os aspectos da vida, intelectual, vida
privada, profissional, diversas ocupações, etc.), naquilo que chamamos a Europa e que era a
Cristandade”. 28

1.6 - O divórcio entre teoria e prática no Cristianismo

Não raras vezes, um debate temático sobre este assunto é interrompido pela tese de
que, mais que afirmar os direitos humanos na história, o Cristianismo os emperrou, fazendo o
papel de inimigo da dignidade humana. Sem exaurir o tema, pois há uma parcial legitimidade
envolvida nesta acusação, cumpre assinalar algumas notas sobre sua pertinência. Quanto a
isto, se pronunciou a teóloga e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Maria Clara Lucchetti
Bingemer:

“Não se pode confundir esses dois conceitos, Cristandade e Cristianismo. Aquele se


restringe a um sistema religioso, o conteúdo da fé cristã; este gira em torno do poder,

27
Jesus para Marxistas. São Paulo: Loyola Editora, 1989, p. 36.
28
O Problema da Descrença no Século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p 374.
10

ou seja, um sistema único de poder e de legitimação da Igreja e do Estado, como


também um sistema de relações da Igreja e do Estado na sociedade”.29

Enquanto Cristandade, ao longo da história, esta tradição pôde avançar com sua
mensagem libertadora, mas também fez recuar suas próprias conquistas. No entanto, enquanto
conteúdo de fé, o Cristianismo atuou como depósito de valores humanizadores, fomentando
em todas as épocas o avanço da civilização.

1.7 - A negação da negação: a cristandade segundo o filósofo ateu Michel Onfray

O amálgama em que se encontra o Ocidente, com a tradição judaico-cristã, é


reconhecido com ressentimento pelo filósofo ateísta Michel Onfray. Em sua obra Tratado de
Ateologia, assume como tarefa filosófica divulgar o ateísmo, como patamar necessário para o
avanço da civilização atual.

Deste lócus, Onfray experimenta com maior intensidade a influência da tradição cristã
no Ocidente. Para ele, ‘a época que vivemos (...) não é ateia. Também não parece ainda pós-
cristã”.30 A despeito de as instituições cristãs que encarnaram durante séculos o Cristianismo
não exercerem mais – de forma direta - o poder político de outrora, sua influência ainda é
generalizada, sobretudo, porque embebeu o Ocidente com uma episteme profundamente
enraizada. A inculturação de valores exercida pelo Cristianismo no Ocidente é tão grande que
mesmo indivíduos que se acreditam ateus, professam, sem perceber, uma ética, um
pensamento, uma visão de mundo impregnada de judeo-cristianismo:

“A caridade, a temperança, a compaixão, a misericórdia, a humildade, mas também


o amor ao próximo e o perdão das ofensas, a outra face estendida quando se é
golpeado uma vez, o desinteresse pelos bens deste mundo, a ascese ética que recusa
o poder, as honras, as riquezas como tantos outros falsos valores que desviam da
sabedoria verdadeira”.31

Para o filósofo, “A carne ocidental é cristã. Inclusive a dos ateus, dos muçulmanos,
dos deístas, dos agnósticos educados, criados ou formados na zona geográfica ou ideológica
judeu-cristã”, afirma o filósofo. Não somente o corpo, acrescenta o autor. A estética, a

29
Violência e Religião - cristianismo, islamismo e judaísmo. Rio de Janeiro: PUC-RIO Editora, 2002, p 168.
30
São Paulo: Martins Fontes Editora, 2009, p 30.
31
Idem, p 43.
11

pedagogia, a filosofia, a política, o trabalho, a família, a pátria, etc. Mas, será sobre o direito
moderno que Onfray atribuirá ao Cristianismo sua influência mais direta. Em sua visão, o
Código Civil Francês está em linha genealógica direta com a tradição judaica. Mais que isto,
os fundamentos da lógica jurídica provêm diretamente das primeiras linhas do livro bíblico de
Gênesis. Em suas palavras:

“O aparelho, a técnica, a lógica, a metafísica do direito decorrem diretamente do que


ensina a fábula do Paraíso original: um homem livre, portanto responsável, portanto
possivelmente culpado. (...) Toda ação procede pois de uma livre escolha, de uma
vontade livre, informada e manifesta”.32

Pergunta-se: em um universo em que o Cristianismo exerceu – e exerce – influência


tão generalizada sobre o próprio ateísmo e agnosticismo, qual foi a influência que exerceu
sobre a elaboração teórica dos direitos humanos?

1.8 - Considerações parciais

Quanto à contribuição histórica e teórica que a tradição cristã ofereceu à elaboração


das declarações dos direitos humanos, pode-se distinguir, desde já, pelo menos, três posições
claras:

a) a dos que ignoram a participação religiosa, ou negam seu valor, atentando-se


exclusivamente para as teorias filosóficas e movimentos sociais;
b) há os que julgam que, não fosse o Cristianismo, os direitos humanos teriam
demorado muito mais para serem expressos em declarações reivindicatórias;
c) os que apresentam a contribuição do Cristianismo ao lado de outras grandes
correntes teóricas e fatores influenciadores na produção dos direitos humanos.

A análise da relação entre Cristianismo e Ocidente torna inegável que esta tradição
tenha contribuído, para bem ou para mal, com a produção teórica dos direitos humanos. Neste
sentido, parece razoável a opinião do filósofo Leonard Swildler: “Embora apenas nos tempos
modernos se tenha desenvolvido nossa noção de direitos humanos, ela tem seus fundamentos
nos dois pilares da civilização ocidental: a religião judeu-cristã e a cultura greco-romana”. 33
Ressalta-se que, sob o termo ‘cultura greco-romana, reside um mar de contribuições outras.
De forma idêntica, sob o termo ‘religião judeu-cristã’.

32
ONFRAY, 2009, p 37.
33
Direitos Humanos: apanhado histórico. In: CONCILIUM – Revista Internacional de Teologia. Ética das
Grandes Religiões e Direitos Humanos. Petrópolis: Vozes, v. 228, n. 2, 1990, p 21.

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