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Proposta de Didática e Metodologia

adequadas ao ensino de Língua Portuguesa

Já tivemos oportunidade de mencionar aqui mesmo em nosso curso que, até meados
do século XX, a decisão sobre o que abordar no ensino de Língua Portuguesa cabia a
filólogos e gramáticos, que tinham como preocupação maior o estabelecimento de uma
gramática normativa que respeitasse as origens históricas da nossa língua e privilegiasse o
uso do padrão culto de linguagem. A Gramática, disciplina de origem grega, sempre teve
um caráter normativo, na medida em que se preocupa em estabelecer como devem
expressar-se as pessoas “de boa educação”. Não se ensinava gramática no curso de Letras
das universidades, porque se pressupunha que os que ali chegavam eram pessoas “bem
educadas”, que tinham pleno domínio do manejo do padrão culto da língua. Tinha-se como
pressuposto que a escola existia para uns poucos privilegiados e, como decorrência, que as
variedades não prestigiadas da língua devem ser ignoradas, por serem “erradas”.

O advento da Linguística deitou nova luz sobre o tema. Para os linguistas, a língua
é fenômeno histórico, social, político e ideológico. Nossa leitura do mundo varia de acordo
com a língua que falamos. Ela é instrumento de interação com o mundo, ela dá significado
ao que vemos. Impormos nossa língua a outrem é impor-lhe nossa visão de mundo.
Considerar o padrão culto da língua como único digno de ser objeto de estudo é postura
preconceituosa. O português do Brasil abrange variedades regionais e diferentes variantes
correspondentes à estratificação socioeconômica da população brasileira.

Já na década de 1950, em artigos e ensaios, Joaquim Mattoso Câmara Jr. apontava


para a necessidade de um novo olhar para o ensino da língua materna. Ousava dizer que
muitos “erros” apontados por professores de Língua Portuguesa nos textos de seus alunos
de ensino fundamental e médio (naquele tempo, “ginasial” e “colegial”), não eram senão
inovações na forma de falar-se a língua portuguesa à época. E recomendava que, ao se
deparar com eles, nossos mestres tomassem a situação linguística então vigente no Brasil
como pano de fundo para o ensino da língua materna. Nos excertos que seguem, pode-se
perceber como o notável filólogo já se mostrava permeável às teses que nos chegavam pela
ciência linguística.
 Cada homem que fala, rege-se por um sistema de sons, de fonemas e de
significação e ordenação de formas, que ele hauriu da sociedade em que vive e que
nesta se transmite através de gerações como uma tradição de cultura, à maneira
dos processos de plantar ou de fabricar vasos. Vista desse ângulo, a língua surge-
nos com o caráter do que se chama em etnologia uma arte coletiva. O seu estudo
pode colocar-se ao lado do das grandes instituições sociais, e a linguística assume
a aparência de uma seção da etnologia. (Mattoso Câmara 1944: 29-30).

 Se estão certas até aqui as nossas considerações, é óbvio que entre a linguística e a
etnologia há um estreito ar de família; uma e outra estudam artes coletivas.
(Mattoso Câmara 1944:30)

 Trata-se, pois, [a linguagem] essencialmente de um fato cultural; é um produto do


homem na base de suas faculdades humanas, tanto como outros produtos materiais
ou mentais. Assim, Tylor colocava a linguagem entre os objetos culturais, para o
fim de pesquisa antropológica, ao lado da indústria, da organização social, da
religião, etc. (Mattoso Câmara 1972: 267)

 [...] a língua é, em última análise, uma parte da cultura e pertence teoricamente à


antropologia. O seu estudo esclarece muitos problemas antropológicos, e o mesmo
se pode dizer da antropologia para problemas linguísticos. (Mattoso Câmara
1972: 272)

 Há, entretanto, certas condições que tornam a língua como uma coisa à parte em
face dos fatos não vocais de cultura. (Mattoso Câmara 1972: 268)

 Assim, a LÍNGUA, em face do resto da cultura, é o resultado dessa cultura, ou sua


súmula, é o meio para ela operar, é a condição para ela subsistir. E mais ainda: só
existe funcionalmente para tanto: englobar a cultura, comunicá-la e transmiti-la.
Isto opõe naturalmente a língua ao resto da cultura, ou cultura stricto sensu, e cria
uma ciência independente para estudá-la – a Linguística –em face da antropologia,
que estuda todas as outras manifestações culturais. (Mattoso Câmara 1972: 269)

Das práticas escolares, a mais questionada nesse novo contexto é a do velho método
do ensino de gramática. Entre outras coisas, é válido lembrar que os objetos linguísticos
com que lidamos no dia-a-dia são sempre textos, nunca sentenças isoladas, que é o que
povoa nossos manuais de linguagem. As gramáticas descrevem uma língua sem existência
real.
O aluno pode perfeitamente estar senhor de todas as regras da gramática, e
não dizer o que pensa e o que sente. A gramática, abstrata e árida, com que se
cansa o cérebro das crianças, não ensina a escrever. Ninguém cuida de lhe negar
utilidade e valor: mas querer habituar o aluno ao manejo da língua só com o
estudo da gramática e começar esse ensino pelas regras abstratas da lexicologia e
da sintaxe é o mesmo que querer ensinar matemática só como o estudo da
geometria analítica. (Olavo Bilac)

O texto acima, de autoria do mais celebrado dos autores parnasianos, é muito


anterior aos de Mattoso Câmara e à divulgação dos estudos da linguística em nosso país,
uma vez que seu autor faleceu em 1918. No entanto continua pertinente e oportuno.

Embora seja inegável que a Linguística realizou um importante deslocamento de


foco ao mostrar que é possível olhar para a língua por outros ângulos que não o da
correção, as novas ideias encontram ainda uma forte resistência entre os professores de
Português, porque o ensino da gramática, entendido como um aprendizado de
nomenclaturas e um exercício de classificação, ocupa um espaço muito grande no ensino
de língua materna. Hoje, o quadro pode ter mudado, no sentido de que a polêmica ganhou
novos interlocutores, passando do ambiente escolar para a mídia: boa parte do
professorado parece ter assimilado, pelo menos em teoria, a ideia de que o ensinar língua
portuguesa é muito mais do que ensinar gramática, mas a defesa da posição normativista
tem sido encampada pela televisão e pelos jornais, que multiplicaram os espaços dedicados
à casuística gramatical.

Uma nova proposta de ensino de língua materna, com base no desenvolvimento de


competências e na construção de conhecimento procuraria superar a visão de língua como
um sistema estável e imutável de signos. Conceberia a língua como um fenômeno
histórico, social e ideológico, por meio do qual as significações e os sentidos são
construídos nas interações verbais. Saber uma língua envolve a capacidade de adequar os
enunciados às diferentes situações comunicativas, aos objetivos da interação verbal, às
condições de interlocução. A aprendizagem da língua materna se referiria ao
desenvolvimento das competências linguística, textual e discursiva, partindo da premissa
de que o estudo da língua não deve ser confundido com o ensino da gramática e, mais
ainda, que o conhecimento desta não garante um desempenho discursivo melhor. Ela visa
recuperar vozes, dar espaço para diferentes discursos, falar e escrever para ler o mundo e
reescrevê-lo. Optar por esse modelo significa centrar o ensino nas práticas de leitura e
produção de textos e de análise linguística, aí incluído o estudo da gramática. Tais práticas,
se tomadas de maneira estanque, não se justificam, uma vez que a gramática da língua
permeia as atividades de leitura e de produção de textos e estas, por sua vez, necessitam de
um suporte gramatical mesmo que não explicitado. Abordar a gramática deveria ser
recurso a ser tomado, para se melhorar o texto, depois de se constatarem, na sua
elaboração, deficiências que viriam a ser supridas com essa abordagem.

Se pensarmos bem, concluiremos que não é necessário estudar gênero,


número, concordância, a não ser quando os alunos efetivamente erram e naqueles
casos em que erram. Se erram em estruturas como “os livro”, que isso seja
trabalhado; mas se nunca dizem “vaca preto”, para que insistir em estudar gênero
de “vaca”? Esse tipo de sugestão só fará sentido para quem estiver convencido de
que o domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de uma
metalinguagem técnica (Possenti, 2002:37-38).

As velhas aulas de redação já deram lugar às de produção de texto, mais


abrangentes, uma vez que se multiplicaram os gêneros textuais contemplados. A
artificialidade da situação, no entanto, continua a ser um obstáculo à obtenção de bons
resultados. Por que será que pessoas capazes de construir textos tão eficazes ao argumentar
ou ao narrar um fato oralmente – ainda que não no padrão culto da língua – têm tanta
dificuldade para elaborar, em sala de aula, um texto escrito sobre um tema que lhe é
sugerido? Talvez porque lhe falte a paixão do envolvimento com o tema ou assunto.
Talvez seja a inexistência de uma fala provocativa que se queira refutar. A artificialidade
da situação tem de ser minimizada. Um debate precedendo a atividade escrita talvez fosse
o ideal. A leitura de pequenos textos de opinião variada sobre determinado tema ou
assunto, a exemplo do que já se faz em alguns exames de seleção, já pode ser um recurso
válido, uma vez que, no mundo real, quase sempre elaboramos nossos discursos em reação
ao que nos foi dito ou escrito.

Um aspecto importante a ser lembrado é que a oralidade tem sido atividade


negligenciada nas escolas. Sabemos que a fala precede a escrita e que esta só acontece a
contento se aquela estiver bem desenvolvida. Alguém que tenha facilidade de expressar-se
oralmente, argumentando ou narrando, não terá dificuldade de expressar-se escrevendo, a
não ser que se tenha deixado traumatizar pelo método de avaliar redações mais frequente
nas escolas, que consiste em corrigir e dar nota pela quantidade de erros gramaticais e de
grafia encontrados no texto.

O ensino de Língua Portuguesa no Brasil caminha para a aceitação do nosso


pluralismo cultural, uma de nossas maiores riquezas. A prática democrática assim exige.
Por isso me parece muito oportuno encerrarmos nosso trabalho citando o Professor
Evanildo Bechara: “O falante deve ser poliglota em sua própria língua.”

Bibliografia

MATTOSO CÂMARA JÚNIOR, Joaquim–Estruturada língua portuguesa–3 ed.


Petrópolis: Vozes, 1972. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1972.

POSSENTI, Sírio – Campinas, SP, – Porque não ensinar Gramática nas escolas. –
Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996.

POSSENTI, Sírio – in: uma proposta para o ensino de língua portuguesa - PUC Rio
www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0115421_03_cap_07.pdf

BAKHTIN, M. – Os gêneros do discurso. In: ____ Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, pp. 277-326.

BECHARA, E. – ModernaGramática Portuguesa: Cursos de 1º e 2º Graus. São Paulo:


Nacional, 1983.

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