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Cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer - séculos XII a XIV

Research · December 2015


DOI: 10.13140/RG.2.2.10877.59360

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Jônatas Ferreira de Lima Souza


Federal University of Rio de Janeiro
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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Faculdade de Letras
Disciplina: Poesia Portuguesa (LEV343)
Professor(a): Tatiana Massuno
Estudante: Jônatas Ferreira de Lima Souza (DRE: 115044769)

PROVA 1

1. Discuta a citação abaixo a partir de diferentes cantigas selecionadas a sua escolha:

“Tanto o formalismo quanto a estereotipia temática são os “defeitos” que,


ao ver de muitos, vitimaram por anos o Trovadorismo de expressão lírica.
(...) Se quanto ao formalismo, a acusação foi mais fácil de rebater- qual
movimento poético, ao longo da história literária, não se revelou
“formalista”? – e se hoje se reconhece que os trovadores ajudaram como
poucos a ensinar a pensar a polissemia da palavra e o enorme potencial
estilístico do verso, a questão “da voz” que fala no texto é mais complexa,
porque envolve quesitos como indivíduo e a subjetividade”. (MONGELLI,
2009, p. 24) (grifo meu).

Para compreendermos melhor a resposta, acreditamos que seja necessário apresentar,


de forma superficial e breve, o que seria esse formalismo e essa estereotipia. O formalismo
lida com a observância de regras, preceitos ou métodos que distinguem os textos poéticos e
literários. A estereotipia lida com um comportamento (verbal) repetitivo ou automático,
reproduzido sem relação contextual. Estereotipia temática, seria, acreditamos, a reprodução
automática dos temas recorrentes da lírica trovadoresca, nas cantigas.1
O que está sendo questionado, é se procede realmente essas afirmativas acerca da
expressão lírica do Trovadorismo. Era formalista? Havia essa estereotipia temática? Na
própria citação, a crítica sobre o formalismo já é feita, mencionando que as produções
literárias ou poéticas seguem algum formalismo, não sendo, todavia, marca apenas do
Trovadorismo – neste caso: cobras (estrofes), versos, rimas, refrãos, fiindas (estrofe de final),
etc. Já a estereotipia temática que, como vimos, tem relação com uma reprodução automática,
isto é, a criação de um estereótipo desconexo de uma situação, um contexto, como são, em
geral, os estereótipos, essa imagem/reprodução padrão criada sobre algo, indicando ser a
temática Trovadoresca em nada estática, mas, polissêmica no uso de palavras, sendo que, algo

1
Informações baseadas nos verbetes: formalismo e estereotipia do Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss
(2009).
que pode fazer pensar, como mostra a citação, não pode ser considerada totalmente
fomentadora de algum estereótipo. Logo, são temáticas engenhosas, que, muitas vezes,
variam o tema central das cantigas.
Diante dessa polissemia da palavra, os versos da lírica trovadoresca tornam o eu-lírico
mais complexo, pois envolve indivíduo e subjetividade, que são conceitos modernos. Como
veremos, esse eu-lírico será impessoal em muitas cantigas, principalmente nas mais formais,
sendo complicada a identificação de um sujeito, portanto, serão versos desprovidos de um
caráter subjetivo.
Vamos tomar exemplos comparativos para cada cantiga (amor, amigo escárnio,
maldizer), e buscar identificar nelas os elementos apresentados na citação.

Cantigas de Amor

Nuno Fernandes Torneol Fernando Esquio

Quando mi agora for e mi alongar Amor, a ti me ven[h]'ora queixar


de vós, senhor, e nom poder veer de mia senhor, que te faz enviar,
esse vosso fremoso parecer, cada u dórmio, sempre m'espertar
quero-vos ora por Deus preguntar: e faz-me de gram coita sofredor.
senhor fremosa, que farei enton? Pois m'ela nom quer veer nem falar,
Dized', ai coita do meu coraçom! que me queres, Amor?

E dizede-m': em que vos fiz pesar, Este queixume te venh'or dizer:


por que mi assi mandades ir morrer? que me nom queiras meu sono tolher
Ca me mandades ir alhur viver! pola fremosa do bom parecer
E pois m'eu for e me sem vós achar, que de matar home sempr'há sabor.
senhor fremosa, que farei entom? Pois m'ela nẽum bem quis[o] fazer,
Dized', ai coita do meu coraçom! que me queres, Amor?

E nom sei eu como possa morar Amor, castiga-te desto por en:
u nom vir vós, que me fez Deus querer que me nom tolhas meu sono por quem
bem, por meu mal; por en quero saber: me quis matar e me teve em desdém
[e] quando vos nom vir, nem vos falar, e de mia morte será pecador.
senhor fremosa, que farei entom? Pois m'ela nunca quiso fazer bem,
Dized', ai coita do meu coraçom! que me queres, Amor?

Amor, castiga-te desto por tal:


que me nom tolhas meu sono por qual
me nom faz bem [e sol me faz gram mal]
e mi o [fará], desto [som] julgador.
Poilo seu bem cedo coita mi val,
que me queres, Amor?
As cantigas de amor são as mais formais dentre as cantigas trovadorescas. Além disso,
possuem uma temática mais recorrente do que as outras: a coita, ou sofrimento, do coração.
As cantigas de amor têm expressões mais repetitivas, que marcam seu estilo (coita, senhor
fremosa, fremoso parecer, meu bem é meu mal, etc.). Muito desse estilo é uma herança
provençal aos cantadores galego-portugueses, que louvam o amor idealizado à mulher,
também idealizada, além da petição ao próprio Amor como ente (como alternativa a Deus), na
qual o eu-lírico se queixa ou implora. A mulher é o mal e o bem do eu-lírico (o paradoxo das
cantigas de amor), ela é o seu senhor, e este devia comportar-se segundo preceitos baseados
na cavalaria medieval (amor cortês – apenas imaginado, nunca concretizado, impessoal).
Podemos notar esses elementos nas duas cantigas de amor selecionadas.
Contudo, essas cantigas nem sempre seguem a mesma formalidade (notemos os
elementos sublinhados). Ao contrário do que dissemos, na cantiga de Torneol, por exemplo, o
eu-lírico, além dos elementos comuns às cantigas de amor, questiona Deus acerca desse amor
que nunca será concretizado por sua distância do seu senhor (a dama). Esse amor, que era
para ser o bem, se torna também o mal e, curiosamente, o eu-lírico é dispensado pela mulher
ideal cortejada.
Na segunda cantiga, em Esquio, vemos a petição ao Amor (e não a Deus). O eu-lírico
declara sua insatisfação quanto a esse amor que nunca será concretizado, que tira sua paz e
seu sono. O Amor (esse ente) é injusto, um mal e torna o amor (sentimento) uma maldição,
pois, a mulher não tem o mínimo interesse em sua coita, além de querer sua morte. Esses são
estilos mais contratantes comparando-os com aqueles da “pura” coita do coração, da
expressão retórica, na qual o eu-lírico quer morrer mil vezes por um amor que nunca
alcançará, por uma fremosa mulher idealizada. Nas cantigas de amor há uma maior
formalidade, mas elas não seguem sempre o mesmo estilo, como pudemos notar. Sua temática
do “amor inatingível”, da “coita do coração” por ser impessoal, também é presença marcante,
mas não há, de forma exacerbada, uma estereotipia temática, pois, como vimos, há uma
variedade que marca os temas nas cantigas, que serão gradualmente mais evidentes nas
próximas.
Cantigas de Amigo

D. Dinis D. Dinis

Chegou-m'amiga recado Coitada viv', amigo, porque vos nom vejo,


daquel que quero gram bem, e vós vivedes coitad'e com gram desejo
que pois que viu meu mandado de me veer e mi falar, e por em sejo
quanto pode viir vem;
sempr'em coita tam forte
e and'eu leda por em
e faço muit'aguisado. que nom m'é senom morte
como quem viv', amigo, em tam gram desejo.
El vem por chegar coitado
ca sofre gram mal d'amor; Por vos veer, amigo, vivo tam coitada
er anda muit'alongado e vós por me veer que oimais nom é nada
d'haver prazer nem sabor a vida que fazemos; e maravilhada
senom ali u eu for,
sõo de como vivo sofrendo tam esquivo
u é todo seu cuidado.
mal, ca mais mi valrria de nom seer nada.
Por quanto mal há levado,
amiga, razom farei Por vos veer, amigo, nom sei quem sofresse
de lhi dar end'algum grado, tal coita qual eu sofr'e vós que nom morresse;
pois vem, como lh'eu mandei, e com aquestas coitas eu, que nom nacesse,
e logu'el será, bem sei, nom sei de mim que seja
do mal guarid'e cobrado,
e da mort'hei enveja
E das coitas que lh'eu dei a tod'home ou molher que já morresse.
des que foi meu namorado

As cantigas de amigo são bem menos formais, em comparação com as cantigas de


amor. Na maioria das cantigas de amor, o trovador mimetiza nos versos um homem qualquer
que sofre esperançosamente, pela mulher ideal e inalcançável. Nas cantigas de amigo, por sua
vez, o trovador mimetiza, na maioria dos temas, uma mulher. A mulher é mimetizada em
diversas situações de envolvimento com amigas, namorados, família e com elementos da
natureza. O amor feminino terá uma acepção mais erótica e será inserido num sentido mais
real, muitas vezes cobrando do homem que corteja, que aja e não fique apenas nas expressões
retóricas da coita. Isso será possível, uma vez que a mulher será o eu-lírico presente (com seu
corpo) e não mais um objeto (simbólico) de desejo distante do eu-lírico homem.
Observando a cantiga da esquerda do rei trovador D. Dinis I de Portugal, notemos
alguns elementos comuns sublinhados, tanto às cantigas de amor, quanto às de amigo. O eu-
lírico dessa, é o senhor fremosa, que comenta com uma amiga, a sua situação de mulher
cortejada. O eu-lírico feminino descreve o homem que sofre a coita por estar distante, sendo
que ela aguarda, com esperança, o seu retorno. Nessa cantiga de amigo, vemos um outro lado
da cantiga de amor, mostrando como poderia variar as temáticas dessas cantigas.
Por sua vez, a cantiga da direita, também de D. Dinis, possui uma temática que varia
dentro dos temas gerais das cantigas de amigo, se aproximando, mais uma vez, das cantigas
de amor em uma nova perspectiva, como podemos observar nos elementos sublinhados.
Diferente da anterior, o eu-lírico é uma mulher que sofre a coita do coração. No caso anterior,
o senhor fremosa não demonstra coita pela ausência do homem, mas agora, o eu-lírico quer
morrer pela ausência desse cortejador. Como nas cantigas de amor, o homem lamenta sofrer
pela distância da dama, e esta dama (o eu-lírico) inveja os que morrem, de fato, e libertam-se
de terrível coita, que é a espera pelo amado.
Aqui vemos o elemento da morte, tanto no entendimento das cantigas de amor, quanto
aquela que permanece nas de amigo: o querer morrer do cortejador é uma intensidade
simbólica mimetizada pela retórica da impossibilidade da conquista, como em morrer mil
vezes; mas o eu-lírico feminino, tomando a morte num sentido mais realístico, vê como uma
libertação da coita, de fato sentida pela ausência e distância do amado. Vimos, então, como a
formalidade das cantigas de amigo é menor que aquela das cantigas de amor, pela
proximidade com temáticas de sofrimento em sentido mais real, ou seja, menos
simbólicas/retóricas.

Cantigas de Escárnio e Maldizer

As cantigas trovadorescas são, em certos momentos, disputas entre cancioneiros


(jogralescos). Nas cantigas de escárnio e maldizer, esses confrontos, que aqui são sátiros,
irônicos, ficam mais evidentes. O elemento cortês é exposto de uma forma descontraída e
vulgar, com detalhes de aventuras sexuais em bordéis, nos campos, na corte, etc. Os
cancioneiros, em suas disputas, zombam uns dos outros, pois, o ideal de ambos os estilos, no
geral, será provocar o riso. O formalismo desses dois estilos ainda existe, mas, fica bem mais
aberto a cobras com versos mais narrados que rimados, por exemplo. Se comparados às
cantigas de amor, o formalismo, aqui, será pouco perceptível.
Vejamos um exemplo para cada um dos estilos mencionados acima:
Martim Soares a Afonso do Cotom

Nostro Senhor, com'eu ando coitado


com estas manhas que mi quisestes dar:
som mui gram putanheir[o] aficado
e pago-me muito dos dados jogar;
des i ar hei mui gram sabor de morar
per estas ruas, vivend'apartado.

Podera-m'eu bem, se foss'avegoso,


caer em bom prez e honrado seer;
mais pago-m'eu deste foder astroso João Garcia de Guilhade
e destas tavernas e deste bever;
e, pois eu já mais nom posso valer, Ai dona fea, fostes-vos queixar
quero-m'andar per u seja viçoso. que vos nunca louv'en[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
E pois eu entendo que rem nom valho, em que vos loarei todavia;
nem hei por outra bondad[e] a catar, e vedes como vos quero loar:
nom quer'eu perder este fodestalho, dona fea, velha e sandia!
nem estas putas nem est[e] entençar,
nem quer'ir per outras fronteiras andar, Dona fea, se Deus mi pardom,
perdend'o viç'e dando-mi trabalho. pois havedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
Ainda eu outras manhas havia, vos quero já loar todavia;
per que eu nom posso já muito valer: e vedes qual será a loaçom:
nunca vos entro na tafularia dona fea, velha e sandia!
que lhi nom haja algum preit'a volver;
porque hei pois em gram coita [a] seer, Dona fea, nunca vos eu loei
é fugir [e] guarir na putaria. em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
E pois, quando me vej[o] em meu lezer, em que vos loarei todavia;
merendo logo; e pois vou mia via; e direi-vos como vos loarei:
e leix[o] i putas de mi bem dizer, dona fea, velha e sandia!
e de mias manhas e de mia folia.

Boa parte das cantigas de escárnio tornaram hilárias as situações das cantigas de amor.
O eu-lírico do escárnio é plural, podendo ser pessoal. Por esse caráter, essas cantigas, como
objetos de pesquisa dos historiadores, podem ajudar na percepção de elementos do cotidiano
medieval (em vários âmbitos e perspectivas, da corte ao bordel), no caso do Trovadorismo
galego-português, entre os séculos XII e XIV, principalmente. Em um ambiente vigiado pela
Igreja, é possível perceber as versatilidades de assuntos cantados ao público. Esses elementos
são fundamentais para se romper com os muitos estereótipos criados para o medievo.
Existem diferenças entre as cantigas ditas de escárnio e as ditas de maldizer. A cantiga
de maldizer possui um alvo conhecido para o escárnio, essa chacota, sendo o caso da cantiga
da esquerda, de Martim Soares a Afonso do Cotom. Além de satirizar elementos presentes nas
tradições, principalmente nas cantigas de amor, como vemos nos trechos sublinhados, o
trovador transfere o eu-lírico para o outro, afim de fazer escárnio dele, ou seja, um maldizer.
Na cantiga da direita, de João de Guilhade, temos apenas o escárnio, uma vez que o alvo da
chacota ou ironia é desconhecido. No caso de Guilhade, vemos uma sátira que ironiza uma
dona que pede por cortejo. Esse elemento desvirtua a mulher, tradicionalmente cobiçada, das
cantigas de amor, tanto quanto o eu-lírico feminino, que era ainda almejada pelos homens por
sua carga semântica erótica e fremosidade. A marca do seu refrão é chave para essa
compreensão, pois este é o louvor desse eu-lírico à mulher: “dona fea, velha e sandia
(louca)”. A temática do amor feminino, portanto, também é alvo do escárnio e seu amor é
carnalizado, barganhado ou mesmo desprezado pelo eu-lírico masculino, nessas cantigas.
Assim, compreendemos que as cantigas trovadorescas possuem uma formalidade
marcada por graus, pois, podem lidar com os mesmos temas por meio de diversos estilos e
linguagens. As cantigas de amor são as mais formais e lidam com a temática da coita do
coração; as cantigas de amigo, menos formais que as de amor, são marcadas pela presença
mimética do eu-lírico feminino, que observa a tradição de outro ponto de vista: o da mulher;
as cantigas de escárnio e maldizer são menos formais que as duas anteriores, com versos bem
mais narrativos e há menos preocupação com rimas ou estruturas mais tradicionais, apesar de
ainda existirem, como vimos em Guilhade, com o uso do refrão, mesmo que como um reforço
de sua sátira. As temáticas são trabalhadas de diversas formas, sendo complexa sua adequação
a algum tipo de rótulo ou estereótipo, da mesma forma que, o eu-lírico, ainda é um tanto
impessoal nas cantigas, sendo que, gradativamente, nos séculos seguintes, a subjetividade vai
se revelando entre os versos, principalmente com os poetas.

REFERÊNCIAS

MONGELLI, Lênia M. Introdução. In: ______. Fremosos Cantares: Antologia da lírica


medieval galego-portuguesa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. pp. XXI-XXX; XLV-
XLVI.

SARAIVA, A. J.; LOPES, O. 1.ª Época – Das origens a Fernão Lopes: capítulo II – A Poesia
dos Cancioneiros. In: ______. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2010.
p. 44-68.

SPINA, Segismundo. A Cultura Literária Medieval: uma introdução. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2007. pp. 20-22; 41-48; 61-64.

VIEIRA, Y.; CABANAS, M.; CABO, J. Afonso Eanes do Cotom. Sobre o trovador e suas
cantigas. In: ______. O Caminho Poético de Santiago: lírica galego-portuguesa. São Paulo:
Cosac Naify, 2015.

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