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OS MODOS MATEMÁTICOS DE PENSAR QUE EMERGEM DE TAREFAS

INVESTIGATIVAS EM UM CONTEXTO DE FORMAÇÃO DOCENTE

Regina Célia Grando


Adair Mendes Nacarato1
Luana Toricelli
Mirian Tomazetto2

Nossas aproximações com as tarefas investigativas

Em agosto/2003, criamos um espaço alternativo de formação docente na

universidade onde atuamos. Esse espaço – que agora já faz parte da cultura do curso de

Licenciatura em Matemática da nossa universidade – ficou conhecido como Oficina de

Geometria e congrega alunos da graduação e da pós-graduação, professores da rede

pública e privada da região de Itatiba/SP – onde se localiza o campus no qual

trabalhamos – além das duas professoras formadoras.

Desde essa época, o grupo vem se reunindo semanalmente, das 17 às 19 horas; o

dia dos encontros é fixado, a cada ano, em função dos nossos horários de aulas. A

escolha desse horário é para possibilitar um maior número de participantes, pois

corresponde ao pós-aula do curso de Pós e pré-aula da graduação, bem como ao período

em que os professores da rede estão alternando seus turnos de trabalho.

Esse espaço vem se tornando privilegiado para a formação docente. Os

graduandos sentem-se motivados a dele participarem para, principalmente, suprirem as

lacunas no aprendizado da geometria; os pós-graduandos sentem-se instigados a verem

acontecer na prática, muitas das discussões teóricas que realizam durante o curso; os

professores da rede vêm em busca de seu desenvolvimento profissional e as professoras

formadoras reconhecem nesse espaço a possibilidade de realização de pesquisas sobre a

formação e prática docentes. Para todos, esses encontros semanais representam a

possibilidade de troca de experiências e aprendizagens compartilhadas. Nesse sentido,

1
Docentes do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Universidade São Francisco,
Itatiba/SP.
2
Graduandas em Matemática e bolsistas de Iniciação Científica.

1
ganha destaque no grupo uma tarefa colaborativa, na qual professores e alunos

preparam, aplicam e analisam uma atividade em sala de aula da educação básica. Para

tanto, cada subgrupo é organizado de forma a ter um docente, que define, a partir de seu

planejamento, que conteúdo de geometria poderá ser abordado nessa atividade.

O grupo conta com, aproximadamente, 15 participantes e o ingresso nele é

voluntário, não havendo restrições para saídas e/ou novos ingressos a cada semestre. No

entanto, nesses dois anos de existência, há em torno de 7 pessoas que vêm se mantendo

fixas.

A cada início de semestre, os compromissos com o grupo são renovados, ou

seja, acordamos que esse espaço constitui, de um lado, um espaço de formação e

compartilhamento de experiências e saberes; de outro, é o espaço para as nossas

pesquisas. Assim, todo o material produzido ao longo do semestre – relatórios, registros

reflexivos, registros das atividades realizadas, gravações das reuniões e nossos diários

de campo – constituem-se na documentação para nossas pesquisas. Do ponto de vista

institucional, esse trabalho é caracterizado como de Extensão e, ao final de cada

semestre, os participantes recebem um certificado.

Uma primeira sistematização das atividades desenvolvidas de agosto a

dezembro/2003 consistiu na análise das dinâmicas estabelecidas no grupo e o quanto

estas contribuíram para a constituição de grupos de trabalho colaborativo no momento

da realização da atividade compartilhada para a sala de aula da educação básica

(NACARATO et al, 2005).

Ao elaborarmos o projeto para atuação em 2004, sentimo-nos motivadas a

trabalhar com as tarefas investigativas, visto estarmos influenciadas, naquela época,

pela recente publicação do livro “Investigações Matemáticas na Sala de Aula”, de

Ponte; Brocardo e Oliveira (2003). Para nós, formadoras/pesquisadoras, isso se

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apresentava como um desafio, visto que ainda não tínhamos explorado tais tarefas em

contextos de sala de aula e, principalmente, de formação docente. Mas sentíamo-nos

motivadas, visto que o grupo sempre se mostrou receptivo as nossas propostas e

sabíamos de antemão que o nosso papel seria apenas desencadear as primeiras

atividades, pois as discussões e reflexões que emergissem, conseqüentemente,

desencadeariam as ações futuras do grupo.

Considerando que a temática do grupo é a geometria, escolhemos o capítulo IV

do referido livro: Investigações Geométricas para iniciarmos o trabalho. Prevíamos um

mês, aproximadamente, para a realização das tarefas e selecionamos aquelas que não

envolviam o uso de recursos computacionais. No entanto, apenas as atividades

Dobragens e cortes (p.72-82) e Quadriláteros e diagonais (p. 89) consumiram três

meses de trabalho do grupo. A cada encontro eram novas descobertas, novas conjecturas

e estratégias diferenciadas de resolução. Fomos nos envolvendo com o grupo e,

principalmente, considerando o espaço alternativo que dispomos, sem necessidade de

cumprimento de programas pré-fixados, não tínhamos pressa para encerrar as

discussões e, a cada novo elemento que emergia em algum subgrupo, instigávamos os

colegas para que buscassem novas conjecturas e as validassem. Em muitos momentos

tivemos que pesquisar e buscar recursos para auxiliar os subgrupos na validação de

algumas conjecturas. Esse espaço constituiu-se em um ambiente de verdades

provisórias, com múltiplos olhares, estratégias de resolução dos problemas, provas

informais e demonstrações.

A dinâmica de trabalho coletivo no grupo foi sendo construída ao longo do

processo. Por mais que tentássemos que houvesse uma discussão inicial nos subgrupos,

isso nem sempre ocorria, visto que havia uma interação entre os subgrupos propiciada

tanto pelas formadoras que, ao formularem questões a algum subgrupo, de certa forma,

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interferia nas atividades dos outros subgrupos, quanto pelo próprio espaço físico do

ambiente no qual aconteciam os encontros – trata-se de um laboratório, com mesas

amplas ocupadas por mais de um subgrupo – o que já facilitava a interação e troca de

idéias entre os subgrupos da mesma mesa. Mesmo com todos esses momentos

interativos, privilegiávamos os momentos de socialização e sistematização dos trabalhos

dos subgrupos. Para esses momentos, os subgrupos elegiam um representante para

relatar o processo e as conclusões. Ao final, eram acordadas no grupo algumas sínteses

do conhecimento produzido a partir da tarefa.

Nesse processo começamos a perceber algumas regularidades de ‘modos de

pensar’ do grupo e isso nos deixou mais atentas. Decidimos tomá-los como objeto de

análise, relacionando-as com as trajetórias estudantis e/ou profissionais dos

participantes.

Construindo a investigação

A partir da constatação das regularidades destacadas acima, o nosso olhar para

as atividades do grupo se direcionou para os diferentes modos matemáticos de pensar,

mais especificamente, os modos geométricos de pensar.

Por se tratar de uma pesquisa de abordagem qualitativa, esta foi sendo construída

no decorrer do processo. Assim, partindo de algumas hipóteses teóricas – tanto no que

diz respeito aos processos de aprendizagem e formação docente compartilhados, quanto

às questões conceituais, epistemológicas e metodológicas da geometria em ambientes de

investigação – e da constituição da documentação, o objeto de investigação foi sendo

delimitado. Nesse sentido, Bogdan e Biklen (1994) defendem que o investigador

qualitativo, ao iniciar uma pesquisa, parte de seus conhecimentos teóricos e de sua

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própria experiência, e suas hipóteses iniciais vão sendo reformuladas e modificadas à

medida que o estudo avança.

Acrescenta-se a isso o fato de que essa pesquisa se caracteriza como um estudo

de caso, em um grupo específico de formação docente, no interior de uma instituição e,

como afirmam Bogdan e Biklen (1994, p.89,90):

O plano geral do estudo de caso pode ser representado como um funil.


Num estudo qualitativo, o tipo adequado de perguntas nunca é muito
específico. O início do estudo é representado pela extremidade mais
larga do funil [...]. À medida que vão conhecendo melhor o tema em
estudo, os planos são modificados e as estratégias seleccionadas. Com
o tempo acabarão por tomar decisões no que diz respeito aos aspectos
específicos do contexto, indivíduos ou fonte de dados que irão estudar.
A área de trabalho é delimitada.

Assim, de um contexto amplo que envolvia um grupo de formação docente

imbuído de tarefas investigativas, o nosso recorte do vasto material de que dispomos

será com ênfase nos ‘modos matemáticos de pensar’ (GOLDENBERG, 1999).

Pretendemos, no presente trabalho, analisar mais especificamente os modos

geométricos de pensar que os professores e futuros professores utilizam quando estão

diante de uma tarefa investigativa de geometria em um ambiente compartilhado.

O material que dispomos para a análise consiste de:

1) diário de campo das pesquisadoras. Para isso, contávamos com as duas auxiliares de

pesquisa que sentavam, separadamente e de forma alternada, em um dos subgrupos,

para fazer as anotações. Ao final e, sempre que possível, no mesmo dia, uma das

formadoras reunia esses registros individuais e os organizava, já incluindo as

observações e percepções do dia;

2) registro dos participantes. Cada um deles tem uma pasta na qual guardam todo o

material do semestre (e até mesmo do ano). Essa pasta fica no laboratório, à nossa

disposição para consulta quando necessária;

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3) audiogravação de algumas reuniões. Utilizávamos tal recurso em momentos de

síntese/socialização e em dias de avaliação do trabalho desenvolvido.

Optamos por realizar uma análise do tipo descritiva e interpretativa, tomando

como referência quatro momentos que caracterizamos como os modos geométricos de

pensar e que emergiram nos subgrupos.

Os modos matemáticos de pensar

Entendemos que as atividades investigativas nas aulas de Matemática

contribuem não somente para o desencadeamento de um certo conteúdo matemático, ou

mesmo, para a formulação/resolução de um determinado problema, como também

possibilitam o pensar matematicamente que, segundo Schoenfeld (1998, p. 59), significa

“(a) ver o mundo de um ponto de vista matemático (tendo predilecção por matematizar:

modelar, simbolizar, abstrair e aplicar idéias matemáticas a uma larga gama de

situações) e, (b) ter os instrumentos para tirar proveito para matematizar com sucesso.”

Assim, o pensar matematicamente permite conectar o sujeito ao mundo em uma

perspectiva mais ampla, possibilitando exercer um papel de cidadão, tendo o pensar

matematicamente como instrumento de tomada de decisões e escolhas. Goldenberg

(1999) afirma que, para a grande maioria das pessoas que provavelmente se esquecerão

de fatos matemáticos produzidos historicamente, como o teorema de Pitágoras ou o

valor de pi, os modos de pensar matematicamente permanecem como um instrumento

valioso para ver e conseguir compreender o mundo. Para esse autor é tão importante aos

alunos conhecerem uma parte dos resultados matemáticos produzidos historicamente,

quanto saber “como” se pensa matematicamente, ou seja, conhecer os ‘modos de pensar

matematicamente’ que produzem “os hábitos matemáticos de pensamento”. Portanto,

entendemos os modos matemáticos de pensar como as estratégias escolhidas pelos

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sujeitos para a realização da atividade, bem como os processos de argumentação e

validação utilizados.

Durante a realização das tarefas anteriormente citadas, procuramos identificar os

modos matemáticos de pensar dos diferentes subgrupos e, em especial, os “modos

geométricos de pensar”. Entendemos que existe uma particularidade no pensamento

geométrico que possibilita uma maior flexibilidade nos momentos de realização de uma

investigação – exploração e formulação de questões; levantamento de conjecturas; testes

e reformulação/refinamento das conjecturas e justificação e avaliação. Em tarefas

exploratório-investigativas lança-se mão de diferentes tipos de raciocínio, como:

indução, abdução e dedução, além de processos matemáticos como: formulação de

conjecturas, generalização, justificação, simbolização, especialização, predição, procura

de regularidades, dentre outros (OLIVEIRA, 2002); em se tratando de tarefas de

geometria, acrescenta-se a isso as possibilidades de experimentação empírica e o uso de

diferentes tipos de representação, além da forte presença da intuição.

Partindo desse pressuposto, o grupo dispunha de diferentes materiais

manipulativos e didáticos, os quais poderiam lançar mão na realização das tarefas.

Nossos encontros sempre acontecem no laboratório de matemática 3 que dispõe de

diversificados materiais manipulativos, a maioria deles, de geometria, além de livros

didáticos e paradidáticos para consulta.

Considerando o próprio espaço físico do laboratório, os participantes se

organizaram espontaneamente em 3 subgrupos. Percebemos que havia uma

característica marcante nessa organização: havia o subgrupo de alunos iniciantes da

graduação; o de professores da educação básica; e o de alunos concluintes da graduação

e professor do ensino superior. Havia, ainda, um professor de curso pré-vestibular que

3
Trata-se do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática – NEPEM, vinculado ao curso de
matemática e ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação.

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preferia trabalhar individualmente, mas que participava dos momentos de socialização.

Além dessa característica, observamos diferentes modos matemáticos de pensar a tarefa

proposta. Selecionamos alguns momentos no grupo em que esses diferentes modos se

evidenciaram.

Momentos no grupo

No dia 12 de maio de 2004, o grupo estava envolvido na realização da tarefa

Dobragens e Cortes, cujo item 1.B Mais dobragens e um só corte, apresenta a seguinte

proposta: “Vai agora investigar o que acontece quando faz mais do que uma dobragem

mantendo ajustados os lados da folha de papel. Com duas dobragens e um corte, que

tipo de figura obtém? De que maneira consegue obter um quadrado?” (PONTE;

BROCARDO; OLIVEIRA, 2003, p. 73).

O grupo de professoras da educação básica, constituído por Adriana, Olga, Alice e

Samantha, diante da tarefa, começa a levantar conjecturas. A Profa. Adriana diz em voz

alta: “ao cortar com duas dobragens e um corte, se se cortar com qualquer medida, a

figura obtida é losango; duas medidas iguais, resulta o quadrado”. Regina questiona

quais seriam as condições de corte para que se obtenha uma ou outra figura. Os demais

participantes estão atentos nessa conversa. Começam as discussões nos subgrupos. Os

argumentos e questões propostas giram em torno das condições para que a figura obtida

seja losango/quadrado.

Todos os subgrupos vão se envolvendo na atividade levando em consideração a

conjectura da Adriana e a intervenção posta pela Regina. Acabam por esquecer de

levantar novas conjecturas e iniciam o processo de dobragem e recorte. À medida que

vamos percorrendo os grupos, vamos identificando os modos de validação que estão

utilizando.

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Nesse processo, identificamos dois modos matemáticos de pensar:

 um subgrupo que parte das experimentações com a utilização do material e


buscam as representações gráficas, sem se preocupar com os processos de
validação formal;
 um subgrupo – no caso um único aluno – que, a partir de uma conjectura
mais geral, pensa nas propriedades da figura e, a partir delas, busca os
recortes no papel:

A seguir, analisaremos cada um desses modos de pensar e levantaremos algumas

suposições para a emergência dos mesmos.

Pensamento empírico  pensamento representacional gráfico

O primeiro tipo de pensamento geométrico – aquele que ainda se detém no

empírico – ocorreu, sobretudo, com os subgrupos nos quais havia apenas alunos do 1 o

semestre do curso de Matemática. Esses encontravam muitas dificuldades de pensar

abstratamente, aplicando as propriedades dos triângulos e quadriláteros. Nossa

expectativa, enquanto formadoras, era de que esses deveriam extrapolar o uso do

material concreto – o que raramente ocorria. As conclusões, algumas vezes, só saíam

depois que fazíamos várias interferências. Para ilustrar tal fato, retiramos de nosso

diário de campo, as discussões ocorridas com um dos subgrupos, no qual estavam

presentes cinco alunos: Paulo, Rogério, Clóvis, Claudio e Thiago. Thiago conjecturava

que seria um quadrado ou um losango, no entanto, não conseguia justificar, apesar de já

terem feitos os cortes, sem um refinamento das conjecturas. Verificavam que ora

obtinham um losango, não retângulo e ora um quadrado. Somente depois de várias

intervenções da Regina e Adair, concluiu que as diagonais eram perpendiculares. A

Adair questionou se isso já era suficiente para garantir o quadrado e Regina

complementou perguntando o que garantiria que o losango obtido fosse retângulo, ou

seja, as condições para se ter um quadrado. O grupo não conseguiu responder. A Adair

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interviu, novamente, perguntando quais eram as propriedades do retângulo. O grupo não

deu conta de responder e continuava tentando resolver empiricamente, por tentativa e

erro, fazendo cortes e mais cortes no papel. A Adair vai até a lousa e desenha o

retângulo com as diagonais traçadas. A partir disso, o grupo conclui que estas são

congruentes e se cruzam ao meio. Thiago, então, consegue concluir que se o corte for na

segunda dobra de forma a se ter um triângulo retângulo isósceles, as diagonais serão

perpendiculares e se cortarão ao meio, garantindo que a figura seja losango e retângulo.

O modo de pensar matematicamente característico desse subgrupo é a busca da

validação de suas conjecturas a partir da experimentação. Mesmo com a evidência

empírica, sentem dificuldade em generalizar. Nesse sentido, Dreyfus (1999 apud

OLIVEIRA, 2002, p.178) afirma: “o conhecimento matemático explícito dos alunos é,

em grande medida, não dedutivo mas indutivo, abdutivo ou generalizado a partir da

experiência”. Acreditamos que o tipo de experiência realizada por esses alunos,

aproxima-se de uma das variações do empirismo, denominada sensualismo que,

segundo Pais (2000, p. 10) “parece predominar no ensino da geometria quando os

recursos didáticos são simplesmente manipulados sem a vigilância de uma

intencionalidade voltada para a construção dos invariantes conceituais”.

No presente contexto alguns dos alunos desse subgrupo só tomaram consciência

dos invariantes conceituais do losango (propriedades das diagonais) após as sucessivas

intervenções das formadoras. Essa característica foi predominante ao longo do semestre

com os alunos iniciantes no curso de Matemática; constatamos as dificuldades que estes

encontravam, em processos argumentativos e lógicos, principalmente no que dizia

respeito à compreensão de que propriedades válidas para uma classe de figura são

também válidas para as subclasses.

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Esse fato pode ser decorrente da trajetória estudantil desses alunos. Esta foi

marcada pelo abandono do ensino de geometria. Em via de regra, os alunos brasileiros

têm chegado ao ensino superior sem dominar conteúdos básicos, restringindo-se a

nomear figuras e calcular perímetros e áreas com fórmulas memorizadas. Dessa forma,

esses alunos viam nesse espaço de formação também uma possibilidade de ampliar o

conhecimento geométrico trabalhado nas aulas do curso de graduação.

Pensamento representacional gráfico  pensamento empírico

O segundo modo matemático de pensar – aquele que parte das propriedades dos

quadriláteros para se pensar no corte – ocorreu no item 2 da mesma tarefa, ou seja, com

três dobragens e um corte, investigar a figura obtida. As discussões giravam em torno

das condições para que a figura obtida fosse: quadrado, octógono convexo e não

convexo. Após várias tentativas e recortes, os alunos foram concluindo que: se o corte

for num segmento perpendicular à dobra, a figura será um quadrado. Isso pode ser

facilmente demonstrado por semelhança de triângulos. Se o corte for no sentido do

vértice da dobra (portanto, num ângulo menor que 90o em relação ao corte anterior) o

octógono será não-convexo; se o corte for no sentido contrário ao vértice (portanto, num

ângulo maior que 90o), o octógono será convexo.

A maioria dos grupos se envolveu nos demais itens da tarefa e se esqueceu da

segunda parte da questão (De que maneira consegue obter um quadrado?). No entanto, o

Milton ficou no seu canto tentando resolvê-la. Seu raciocínio, bastante diferente do dos

demais, parte de uma conjectura formulada algebricamente: “a cada dobra, 2 n cópias

idênticas, com eixo de simetria na dobra”. A partir dela, buscou a representação gráfica,

ou seja, ele esboçou a figura, para depois fazer as dobragens no papel, descrevendo, ao

lado do desenho, suas conjecturas parciais. Inicialmente, afirmou que com uma dobra

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não era possível formar o quadrado com um corte; “com duas dobras – 2 eixos de

simetria e 22 cópias de triângulos retângulos isósceles”. Ao lado dessa afirmação,

esboçou um quadrado e o dividiu em quatro triângulos, fazendo a representação de

como seria a segunda dobra e o corte no papel para obter o quadrado (figura 1).

Figura 1: segunda dobra e corte

Procedeu da mesma maneira planejando como seria a terceira dobra e o corte

para obter o quadrado. Novamente anunciou: “3 dobras, 2 3 = 8 cópias, 4 eixos de

simetria”. Representou, destacando que as dobras obtidas eram os quatro eixos de

simetria do quadrado (figura 2).

Figura 2: terceira dobra

Para a quarta dobra, anunciou: “4 dobras, 24 = 16 cópias”. Ao esboçar o

quadrado dividido em 16 triângulos referente a quarta dobra, constatou que esta não

poderia ser no mesmo sentido da dobra anterior, ou seja, montando um ‘triângulo’ no

vértice, pois observou no seu desenho que o quadrado total teria 16 triângulos, sendo

esses não congruentes, apenas equivalentes (figura 3).

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Figura 3: quarta dobra

Ao constatar tal fato, Milton reformulou sua conjectura inicial de que as cópias

seriam “idênticas” (congruentes), mas sim, equivalentes.

A partir desse fato, conseguiu fazer a quarta dobra sem se sobrepor a terceira.

Ao abrir a folha constatou, juntamente com Regina e Adair – que acompanhavam o seu

trabalho - que o quadrado ficou decomposto em triângulos retângulos (8) e trapézios

retângulos (8) e que a área de cada trapézio era o triplo da área do triângulo (figura 4).

Figura 4: executando a quarta dobra

O seu raciocínio opôs-se ao empírico. Partiu, inicialmente, de uma formulação

algébrica e buscou nas representações gráficas justificativas para a verificação empírica

(os cortes). Nesse sentido, houve um movimento dialético entre o pensamento racional e

o empírico. Esse raciocínio vem ao encontro do pressuposto defendido por Pais (2000,

p. 13), de que quando se usam materiais no ensino da geometria “é preciso estar

duplamente vigilante para que toda informação proveniente de uma manipulação esteja

em sintonia com algum pressuposto racional e, ao mesmo tempo, que todo argumento

dedutivo esteja associado a alguma dimensão experimental”.

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Entendemos que um dos fatores que possibilitou esse movimento dialético no

modo matemático de pensar de Milton seja sua experiência profissional, resultante de

uma trajetória marcada por 29 anos de docência junto ao ensino médio e a cursos pré-

vestibulares. Como ele próprio manifestou no questionário inicial, sua expectativa de

participação nesse grupo era “após tantos anos ensinando no abstrato, aprender a

ensinar também no concreto”. Provavelmente o fato de trabalhar a tantos anos em uma

perspectiva conteudista de ensino que pouco contempla uma abordagem experimental

tenha possibilitado ao Milton a valorização de uma geometria racional, sendo que o

experimental passa a ser “o novo” no processo. Tal fato se evidenciou em outros

momentos quando propúnhamos materiais de apoio como o geoplano e cubos.

Validação empírica

Os outros dois modos geométricos de pensar emergiram quando o grupo estava

resolvendo a tarefa Quadriláteros e diagonais4. Identificamos durante a realização da

tarefa:

 um subgrupo que busca processos empíricos de validação;


 um subgrupo que trabalha com demonstrações formais para validação de
conjecturas.

Vamos apresentar um diálogo ocorrido entre Adriana e Samantha, do subgrupo

das professoras da educação básica que buscavam a posição da segunda diagonal com

vistas a obter o trapézio retângulo:

Adriana: Então eu fiz a dobradura. Traço a diagonal inclinada, porque senão dá errado.
Samantha: Pronto, fiz a diagonal inclinada.
Alice: dobrei ao meio

4
A tarefa consistia em, dado um segmento vertical, desenhar outro, de modo que os dois segmentos sejam
as diagonais de um quadrilátero. A idéia é de que, inicialmente, o aluno trace o segundo segmento já
partindo das hipóteses do quadrilátero a ser obtido.

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Adriana: Não, tem que partir da diagonal. Eu fiz com a diagonal e vou traçar as
paralelas, dobrando e dobro a metade no vértice da diagonal.
Samantha: Como você pensou isso?
Adriana: Não sei! Aí você vai quadriculando (fazendo as dobras). Agora eu vou fazer
uma reta, vou fazer uma reta aqui embaixo (outro vértice) e quadricular.
Alice: Mas não usa régua?
Adriana: Nada com régua. Pronto! Nosso trapézio já está pronto.
Samantha: Não estou enxergando
Adriana: Traça aqui. E une os vértices formando um trapézio retângulo.
(Desenha no quadriculado feito a partir das dobras)

Neste ponto

Até este ponto

Figura 5: trapézio retângulo no quadriculado

Adriana: Aí, agora, a gente tem que provar que é um trapézio retângulo.
Samantha: Provar que é um trapézio retângulo?
Adriana: As dobras não garantem que são perpendiculares?
Samantha: Garantem
Adriana: Vou tentar, acho que consegui! Isso daqui são dois retângulos, as bases são
iguais e esse triângulo é metade do retângulo. Então, vamos perguntar a Regina!

Metade do retângulo

a
b
Figura 6: Justificativa do trapézio retângulo

Regina: Aqui você quadriculou e está justificando que essa medida é igual a essa pelo
quadriculado, agora justifiquem sem o quadradinho.
Adriana: Bom, o mais difícil já foi.

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Na situação descrita acima notamos que as professoras buscavam a construção

do trapézio retângulo por um caminho empírico; no entanto, de uma forma diferenciada

do subgrupo dos alunos, visto que existia uma intencionalidade e planejamento: partiam

do pressuposto de que para construir o trapézio retângulo seriam necessários ângulos

retos e segmentos paralelos; daí a busca pelo quadriculado. Conseguindo uma

justificativa empírica, que garantia os ângulos retos pelo quadriculado, as professoras

recorrem à autoridade (“Então, vamos perguntar a Regina!”) para validar o raciocínio

utilizado. A intervenção da Regina sugerindo que buscassem uma outra justificativa que

não fosse pelo quadradinho, não as mobilizou.

Tal fato corrobora a afirmação de Oliveira (2002, p. 179), que apoiando-se em

Balacheff (1991) considera que a falta de “consciencialização” para a demonstração

resulta da ausência de uma maturidade lógica e que para muitos “a evidência empírica

que resulta de uns tantos exemplos com os quais se familiarizam, é satisfatória”. As

professoras se deram satisfeitas com a construção realizada.

No presente caso, faz parte da prática docente das professoras e, em especial, da

Adriana, o recurso de recortes e dobraduras em sala de aula. Nesse ano de 2004, parte

de sua carga horária era cumprida num projeto de oficina para os alunos da escola

básica, cuja temática era dobraduras. Acrescenta-se a isso o fato de ela atuar em uma

faixa etária (11 e 12 anos) em que as provas formais não fazem parte do currículo

escolar.

Validação Formal

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Vamos destacar um outro modo matemático de pensar a mesma tarefa

Quadriláteros e diagonais, quando o subgrupo formado por um professor do ensino

superior e alunos concluintes do curso de matemática, buscavam construir o trapézio

isósceles.

Registram os seguintes passos para tal construção:

Figura 7: Trapézio isósceles

1a diagonal: AB (segmento dado)


A outra diagonal cruza qualquer ponto de AB, no ponto M, sem que este seja o ponto
médio e de modo que tenhamos
AM  DM e BM  CM.
Os triângulos formados BMD e AMC são congruentes pelo caso LAL (lado-ângulo-
lado); portanto: AC  BD  CD  AB
 AMD e  CMB são isósceles, os ângulos da base são congruentes.
b + b + a = 180o
x + x + a = 180º
2x = 2b
x=b

Conclusão: Na diagonal AB, temos dois ângulos alternos internos congruentes, logo os
lados AD e CB são paralelos

No processo de validação do subgrupo notamos a ênfase na demonstração

formal. Faz parte da prática do ensino superior – tanto do docente quanto dos alunos – a

busca pela validação através de processos de demonstrações formais. A demonstração

formal se diferencia das provas informais no sentido de que esta não depende do

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pensamento empírico, muito embora tenham se apoiado em um “esboço” do trapézio

desejado.

Encaminhamentos, aprendizagens e perspectivas

Os diferentes momentos analisados acima foram possíveis de serem

identificados a partir da dinâmica existente no grupo – desde o seu início em 2003 – que

privilegia discussões nos subgrupos e espaços coletivos de socialização, com vistas ao

desenvolvimento de processos de formação docente.

Os registros de todos esses momentos contendo as falas dos professores, alunos

e formadoras só foram possíveis pelo fato da equipe contar com duas auxiliares de

pesquisa que se alternavam nos subgrupos, buscando anotar as discussões que ocorriam.

Evidentemente nesses registros já havia uma seleção prévia daquilo que se mostrava

mais significativo para o processo de formação docente. Esse fato reforça a importância

de pesquisas dessa natureza poderem contar com uma equipe que atua de forma

colaborativa. Na síntese final do encontro, os diferentes pontos de vista eram

contemplados.

Evidenciou-se nesse processo o quanto a não imposição de um programa a ser

cumprido possibilita maior flexibilidade temporal, conceitual, maior riqueza das

discussões e respeito ao ritmo e diferentes modos matemáticos de pensar. Como

explicitado anteriormente, as tarefas que previam um mês para sua realização, ocuparam

três meses dentro do semestre. Não havia a pressão de um conteúdo a ser cumprido o

que possibilitou aos participantes tanto a retomada de conteúdos relativos à geometria

quanto a ampliação de conceitos geométricos e novas aprendizagens.

Esse espaço de formação possibilitou aprendizagens compartilhadas no que diz

respeito às questões conceituais/epistemológicas da geometria e aos aspectos

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pedagógicos de seu ensino. Quanto às questões epistemológicas, conforme evidenciado

nos momentos analisados, as discussões centraram-se nos processos de provas,

argumentações e validações geométricas. As contribuições ocorridas nesse processo

foram em mão dupla: para os subgrupos que buscavam validações e provas empíricas, a

possibilidade de vivenciarem processos formais de validação, representou uma

perspectiva diferenciada de resolução da tarefa proposta; para os subgrupos que

utilizavam validações formais, o contato com licenciandos, recém saídos da educação

básica e com professoras que atuavam nesse segmento de ensino, possibilitou o

reconhecimento e a valorização de processos de validação pautados em provas

empíricas. Nesse sentido, evidenciou-se ser possível em salas de aula da educação

básica trabalhar com uma geometria mais exploratória, sem perder de vista a

importância das argumentações e provas, mesmo que informais.

Dessa forma, acreditamos que esse espaço de formação atendeu a nossa

expectativa de formadoras de que o aluno no ensino superior tenha processos formais de

validação e de que o professor da escola básica saiba reconhecer esses diferentes

processos e criar condições para uma aprendizagem que respeite o movimento dialético

e necessário entre o objeto concreto e a abstração, passando pelas diferentes

representações: desenho (desde um esboço até uma construção mais técnica envolvendo

régua, compasso e esquadro) e linguagem simbólica (processos de generalização

algébrica).

Para a equipe de pesquisa esse espaço vem possibilitando reflexões e

aprendizagens no que diz respeito às dinâmicas de formação docente e, nesse semestre

em especial, como atuar em um ambiente que privilegie as tarefas investigativas como

metodologia de formação de professores, bem como disciplinar o nosso olhar para

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captar particularidades do processo e, em especial, como no presente estudo, os

diferentes modos geométricos de pensar.

A riqueza desse trabalho realizado durante o 1º semestre de 2004 culminou com

uma atividade, prevista desde o início, que consistiu na preparação de uma temática

para a sala de aula da educação básica e de sua aplicação, análise e apresentação no

grupo. Embora não houvesse uma orientação no sentido de que a temática contemplasse

tarefas investigativas, alguns subgrupos criaram dinâmicas em suas aulas que se

aproximaram das tarefas exploratório-investigativas. O registro e análise das atividades

desenvolvidas foram tomados como objeto de estudo e sistematização no 2º semestre de

2004, com vistas à publicação.

No 1º semestre de 2005, o grupo retomou as tarefas exploratório-investigativas,

com vistas à elaboração de algumas que foram aplicadas e analisadas em diferentes

contextos. Para o próximo semestre (2º semestre de 2005) a ênfase do grupo será em

tarefas exploratório-investigativas em geometria mediadas por recursos computacionais,

contando com financiamento externo para a pesquisa. Prevê-se, ainda, a criação de um

laboratório de informática que subsidie a implementação dessa modalidade de tarefas

com alunos da educação básica no próprio espaço da universidade. Esse fato se mostra

importante, considerando que, para a realidade brasileira, não são todas as escolas

públicas que dispõem de laboratórios de informática e/ou profissionais que possam

atuar com essa tecnologia.

Referências Bibliográficas

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introdução à teoria e aos métodos. Portugal, Porto Editora, 1994, 336 p.
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