Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
4308
Constitucionalismo latino-americano:
direitos sociais e a “sala de máquinas” da
Constituição*
RELA, Roberto. The legal foundations of inequality: consti- do modelo Constitucional Norte- Americano. Entretanto,
tutionalism in the Americas 1776-1860. New York: Cam- como consequência de pressões conservadoras, as novas
bridge Univ. Press, 2010.) Constituições Latino- Americanas introduziram algumas
7
Deste modo, a partir da metade do século XIX, começa- mudanças significativas em relação ao inspirador exem-
mos a observar liberais e conservadores se unindo, poli- plo dos Estados Unidos. Tipicamente, eles criaram um
ticamente falando. Dentre muitos outros exemplos estão poder executivo muito forte, que desafiou a estrutura dos
a Constituição de 1853 na Argentina, a Constituição Me- equilíbrios que então caracterizou o tradicional sistema de
xicana de 1857 e a Constituição de 1886 da Colômbia, as pesos e contrapesos. (NINO, Carlos Santiago. Fundamen-
quais foram escritas por representantes de ambos os gru- tos de derecho constitucional: análisis filosófico, jurídico y
pos (liberais e conservadores). Outro caso interessante de politológico de la práctica constitucional. Buenos Aires:
convergência entre estas duas forças aparece na “fusão” Astrea, 1992.)
liberal-conservadora no Chile (1857-1873); e há outros 11
As Constituições Liberais-Conservadoras emergiram após
exemplos simulares no Peru e na Venezuela. (GARGARE- um violento período de disputas entre grupos centraliza-
LA, Roberto. The legal foundations of inequality: constitu- dores e federalistas. Este é o motivo pelo qual, na maioria
tionalism in the Americas 1776-1860. New York: Cambri- dos casos, essas Constituições não quiseram consagrar um
34
dge Univ. Press, 2010. p. 34-53.) modelo puramente centralista e nem puramente federalis-
Constitucionalismo latino-americano: direitos sociais e a “sala de máquinas” da Constituição
maneira pela qual as constituições Latino-Americanas também, foi o caso do Brasil, o qual teve que confrontar a
expressaram, através do uso da linguagem jurídica, as Constituição de 1967, promulgada durante o governo mi-
maiores mudanças sociais que tiveram lugar na região litar do General Humberto Castelo Branco. Entre outras
durante a primeira metade do século XX, nomeadamente coisas, a Constituição de 1967 (emendada em 1969) im-
a incorporação da classe trabalhadora como um decisivo pôs severas limitações na organização federal do país, as-
ator político e econômico. sim como nas liberdades civis e políticas da população23.
O final dessa época impiedosa de ditadura veio
3 Multiculturalismo e Direitos Humanos (1950- com outras reformas constitucionais baseadas em direi-
2010) tos. Essas mudanças implicaram conceder status especial,
algumas vezes constitucional, a diferentes tratados de di-
Após essa primeira onda de reformas, a região foi reitos humanos que os países assinaram durante as quatro
submetida a um segundo período de mudanças consti- ou cinco décadas anteriores. Esses tratados foram desig-
tucionais, que foi fundamentalmente concentrada entre nados para proteger os mesmos direitos humanos bási-
o final dos anos 1980 e 2000. Nessa nova época, o Brasil cos que foram sistematicamente violados pelos governos
mudou sua constituição em 1988, a Colômbia em 1991, a ditatoriais24. Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Costa
Argentina em 1994, a Venezuela em 1999, o Equador em Rica, Chile e El Salvador foram alguns dos vários países
2008, a Bolívia em 2009 e o México em 2011. que tentaram assegurar mais proteção aos direitos afeta-
A maioria desses novos documentos legais foram dos pelos recentes governos autoritários25.
impactados, de uma maneira ou de outra, por dois even- A decisão de prover status legal especial aos di-
tos sombrios. O primeiro evento foi político: a emergên- versos direitos humanos nos tratados criou resultados
cia de uma nova onda de ditaduras que afetaram a região
- notadamente em 1973 o golpe militar contra Salvador (que tornou muito difícil para a minoria participar da
Allende no Chile. O segundo evento foi econômico: a política eleitoral) e o requerimento de maiorias qualifi-
cadas em ordem a alterar os aspectos básicos do sistema
adoção de reformas neoliberais e programas de ajuste institucional (como no caso da educação, a organização
econômico no final dos anos 198021. do congresso, e a regulamentação das forças armadas).
(BARROS, Robert. Constitutionalism and dictatorship: Pi-
O período dos governos militares teve um profun-
nochet, the Junta, and the 1980 Constitution. New York:
do efeito na região, em diferentes níveis. Primeiramente, Cambridge University Press, 2002.)
obrigou alguns países, após a retomada da democracia, a
23
Grandes encontros foram submetidos a prévia autorização
governamental; houve a restrição aos partidos políticos
reconstruir substantivamente suas organizações constitu- (apenas o partido oficial, denominado de Aliança Reno-
cionais. Esse foi, por exemplo, o caso do Chile, como con- vadora Nacional [ARENA], e um partido de oposição, o
sequência de numerosos enclaves autoritários deixados Movimento Democrático Brasileiro [MDB], foram auto-
rizados a funcionar como tais); e o sufrágio direto foi di-
pelo General Pinochet na Constituição de 198022. Este, retamente suprimido nas principais cidades por razões de
segurança. Em 1969, uma junta provisória militar intro-
duziu uma profunda emenda constitucional que reforçou
21
BARROS, Robert. Constitutionalism and dictatorship: Pi- o caráter repressivo do documento anterior. Por exemplo,
nochet, the Junta, and the 1980 Constitution. New York: introduziu a instituição da pena de morte, suprimiu o ha-
Cambridge University Press, 2002; VILLA, Marco Antô- beas corpus, criou novas cortes militares e abriu as portas
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 33-41, 2016
nio. A história das constituições brasileiras: 200 anos de para novas leis repressivas – tais como a Lei de Seguran-
luta contra o arbítrio. Rio de Janeiro: Leya, 2012; SIK- ça Nacional ou a Lei de Regulação da Imprensa. (VILLA,
KINK, Kathryn. The justice cascade: how human rights Marco Antônio. A história das constituições brasileiras: 200
prosecutions are changing world politics. New York: W. anos de luta contra o arbítrio. Rio de Janeiro: Leya, 2012.)
W. Norton & Company, 2011; ACUÑA, Carlos; SMULO- 24
SIKKINK, Kathryn. The justice cascade: how human
VITZ, Catalina. Adjusting the Armed Forces to democ- rights prosecutions are changing world politics. New
racy: successes, failures and ambiguities in the Southern York: W. W. Norton & Company, 2011; ACUÑA, Carlos;
Cone. In: JELIN, Elizabeth; HERSCHBERG, Eric. Con- SMULOVITZ, Catalina. Adjusting the Armed Forces to
structing democracy: human rights, citizenship and society democracy: successes, failures and ambiguities in the
in Latin America. New York: Westview Press, 1996. Southern Cone. In: JELIN, Elizabeth; HERSCHBERG,
22
Estes enclaves incluíram a instituição de senadores vitalí- Eric. Constructing democracy: human rights, citizenship
cios (os quais permitiu a Pinochet vir a ser parte do Sena- and society in Latin America. New York: Westview Press,
do durante o período democrático), e “senadores designa- 1996.
dos” (que permitiu que membros das forças coercitivas se 25
NEGRETTO, Gabriel L. Making constitutions: presidents,
tornassem parte do Senado), um Congresso de Segurança parties & institutional choice in Latin America. New York:
36
Nacional, um sistema eleitoral extremamente exclusivo Cambridge University Press, 2013.
Constitucionalismo latino-americano: direitos sociais e a “sala de máquinas” da Constituição
interessantes. Em parte, essas iniciativas expressaram propósito presente - as mudanças econômicas do perío-
a conciliação de certas partes da esquerda política em do provocaram uma crise econômica e social que forçou
questões de direitos e de constitucionalismo, os quais a a introdução de novas reformas jurídicas. Com efeito,
esquerda frequentemente tem resistido. Adicionalmente, os programas neoliberais provocaram miséria social e
o novo status legal concedido aos direitos humanos por o crescimento dos níveis de desemprego que não foram
muitas destas constituições teve um interessante efeito compensados pela existência de uma sólida rede de se-
nos conservadores. Por exemplo, após essas mudanças gurança.
constitucionais, muitos juízes conservadores começaram Como consequência, milhões de pessoas viram-
a considerar mais seriamente os argumentos baseados no -se de repente em uma situação de completo abandono,
valor dos direitos humanos26. sem os meios de assegurar sua própria subsistência e a
A outra mudança constitucional fundamental subsistência de suas famílias29. O Estado, que nos 40 anos
produzida na região, ao final do século XX, veio como anteriores tinha garantido trabalho e proteção social para
consequência da aplicação dos denominados programas vastos setores da população, agora estava encolhendo30.
de ajuste estrutural. Por programas de ajuste estrutural eu Muitos de seus mais valiosos ativos eram vendi-
me refiro às severas políticas econômicas aplicadas na re- dos em transações rápidas e não transparentes31. Como
gião durante os anos 1980, usualmente por governos de- consequência, a América-Latina começa a experimen-
mocráticos pós-ditatoriais. Essas foram políticas monetá- tar um processo de mobilização social, demandando as
rias que usualmente implicaram uma drástica redução de proteções sociais que muitas Constituições continuam a
gastos públicos e a eliminação de programas sociais. Es- prometer.
ses programas de ajuste foram promovidos, originalmen- Protestos sociais e levantes contra-institucionais
te, na Grã-Bretanha sob a direção de Margaret Thatcher explodiram por toda a região, de norte a sul, de leste a
e nos Estados Unidos durante a administração Reagan27. oeste. Eles incluíram, por exemplo, a insurreição dos Za-
Foi enorme o impacto dessas políticas de ajuste patistas do EZLN no México (que começou em janeiro
estrutural no constitucionalismo. Mais diretamente, os de 1994, um ano após o México assinar seu acordo de
lançamentos desses programas usualmente requereram livre comércio com os Estados Unidos); mas também as
a introdução de mudanças legais e mesmo constitucio- “guerras” por “água” (2000) e “gás” (2003) na Bolívia, diri-
nais direcionadas a facilitar a aplicação de iniciativas gido contra a privatização de seções básicas da economia
econômicas28. Também - e mais significante para nosso nacional; as ocupações de terra promovidas pelo Movi-
mento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil;
26
NINO, Carlos Santiago. Radical evil on trial. London: Yale a tomada de terras em Santiago, Chile; as “invasões” de
University Press, 1996.
27
ETCHEMENDY, Sebastián. Models of economic liberaliza-
tion: business, workers and compensation in Latin Amer- largo termidor: historia y crítica del constitucionalismo
ica, Spain, and Portugal 300-315. New York: Cambridge antidemocrático. Quito: Corte Constitucional para el Pe-
University Press, 2011. Confira-se também: CAVAROZZI, ríodo de Transición, 2011.) Similarmente, alguém pode-
Marcelo; MEDINA, Juan Manuel Abal. El asedio a la po- ria mencionar as diversas iniciativas por reforma judicial
lítica: los partidos latinoamericanos en la era neoliberal. promovidas pelo Banco Mundial e outras instituições fi-
Argentina: HomoSapiens, 2005. nanceiras multilaterais durante os anos 1980, as quais fo-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 33-41, 2016
28
A este respeito podemos mencionar, por exemplo, as 35 ram em sua maioria direcionadas a prover um quadro de
emendas constitucionais à CF/88 que foram promovi- maior estabilidade para os novos tipos de transição eco-
das pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso nômica que dominaram o período. (DOMINGO, Pilar;
(emendas essas que vieram a facilitar o processo de priva- SIEDER, Rachel. Rule of law in Latin America: the inter-
tização); a reforma do art. 58 da Constituição Colombiana national promotion of judicial reform. Miami, 2011. Dis-
de 1991 (que foi promovida pelo governo conservador de ponível em: <https://www.jstor.org/stable/pdf/3177069.
Andrés Pastrana, em ordem a providenciar mais garantias pdf>. Acesso em: 16 nov. 2016.)
para investimentos estrangeiros); a modificação do art. 27 29
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitu-
da Constituição Mexicana (que veio a colocar limites nas cional: análisis filosófico, jurídico y politológico de la prác-
iniciativas para a distribuição de terra); a reforma Consti- tica constitucional. Buenos Aires: Astrea, 1992.
tucional Peruana de 1993 (que foi promovida pelo então 30
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitu-
presidente Fujimori – depois de seu autogolpe – e direcio- cional: análisis filosófico, jurídico y politológico de la prác-
nada a eliminar muitos dos compromissos sociais assumi- tica constitucional. Buenos Aires: Astrea, 1992.
dos pela Constituição de 1979); e as garantias dadas para 31
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitu-
a apreciação do dinheiro na Argentina através da reforma cional: análisis filosófico, jurídico y politológico de la prác-
37
elaborada por Carlos Menem. (PISARELLO, Gerardo. Un tica constitucional. Buenos Aires: Astrea, 1992.
Roberto Gargarell, Thiago Pádua, Jefferson Guedes
propriedade em Lima, Peru; a emergência do movimento nidades indígenas antes do desenvolvimento de projetos
dos piqueteros na Argentina; e também numerosos atos econômicos que poderiam afetar suas organizações co-
de violência contra a exploração de recursos minerais em muns36.
diferentes partes da região32.
Não surpreendentemente, algumas das mais rele- 4 A sala de máquinas da Constituição
vantes reformas sócio-legais das últimas décadas segui-
ram a crise econômica dos anos 1990 - incluindo aquelas Exemplos como esses, revistos acima, demons-
da Colômbia, Bolívia, Equador, Venezuela e México33. As tram não apenas a importância, mas também as limita-
novas mudanças constitucionais podem ser lidas como ções dos afazeres das reformas constitucionais. Reforma-
resposta direta para as crises sociais dos anos anteriores. dores legais não podiam, ou não queriam ir longe demais
Portanto, ao final do século, a maioria dos países da re- para assegurar que as constituições reformadas alcanças-
gião tem adotado constituições extremamente fortes, ao sem as características transformadoras que proclamavam.
menos no que se refere aos direitos sociais, econômicos e Afirmar isso não nega o valor do que tem sido alcançado
culturais que elas incluem. Uma primeira observação so- na região, em termos constitucionais, nos anos recentes.
bre a organização prevalente das cartas de direitos destas Muitos desses processos de reformas são dirigidas ao
constituições permite-nos reconhecer a dimensão deste avanço dos interesses dos menos avantajados, ao menos
fenômeno. em teoria. Melhor do que isso, a prática dessas Constitui-
As presentes constituições da América Latina ções mostrou que as mudanças introduzidas nas seções
garantem a proteção do meio ambiente, cultura, saúde, que resguardam direitos estão longe de ser inócuas. Nos
educação, alimentação, moradia, trabalho, vestuário etc34. últimos anos (embora - e isso é um problema- apenas nos
Adicionalmente, algumas das Constituições novas ou últimos poucos anos), os países da América-Latina que
reformadas incluíram garantias de equidade de gênero, têm adotado Constituições socialmente mais robustas
incluíram mecanismos de democracia participativa, cria- desenvolveram uma interessante e imaginativa prática ju-
ram as instituições do referendo popular ou da consulta dicial de cumprimento dos direitos sociais37.
popular, introduziram o direito à revogação do mandato Contudo, também parece claro que essas reformas
(recall), ou reconheceram o direito das ações afirmati- foram, no melhor dos casos, limitadas em seu escopo e
vas35. em suas conquistas. Uma das principais razões que expli-
Ainda mais notável, muitos dos renovados docu- ca essa conclusão é o fato de que os reformadores parece-
mentos constitucionais afirmaram a existência de estados ram concentrar suas energias na seção dos direitos, sem
“pluri” ou “multi” culturais, ou a identidade nacional, levar em conta o impacto que a organização do poder
provendo proteção especial aos grupos indígenas, esta- tende a ter sobre aqueles mesmos direitos que então esta-
belecendo a conduta obrigatória de consultas às comu-
36
GARGARELLA, Roberto. Recientes reformas constitu-
cionales en América Latina: una primera aproximaci-
32
Para uma visão geral, confira-se: SVAMPA, Maristella. ón. Desarrollo Económico, v. 36, n. 144, p. 971-990, jan./
Cambio de época: movimientos sociales y poder político. mar. 1997. Disponível em: <http://www.jstor.org/stab-
Argentina: Clacso-Siglo Veintiuno, 2008. Veja-se ainda: le/3467134>. Acesso em: 16 nov. 2016.
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 33-41, 2016
vam (extra) protegidos. Notavelmente, reformistas legais o bastante de modo a alcançar a “sala de máquinas” da
dedicaram a maior parte de seu trabalho para criar novos constituição. Se esse fosse o problema, a solução pode-
direitos, deixando a organização dos poderes basicamen- ria simplesmente ter sido esperar até a próxima reforma.
te intocada. O problema é que, preservando uma organização de po-
Agindo dessa maneira, reformistas legais mantêm deres que permanece arranjada debaixo de um modelo
fechadas as portas da “sala de máquinas” da Constituição: do século XIX de concentração de autoridade, as novas
o núcleo da maquinaria democrática não é modificado. Constituições colocam em risco as mesmas iniciativas
A máquina da Constituição não se transforma no objeto que elas avançaram através das seções de direitos39.
de atenção principal dos reformadores. É como se a sua Assim organizadas, as novas Constituições ten-
missão estivesse concluída com o trabalho nas seções dos dem a apresentar um desenho contraditório: elas pare-
direitos, como se os controles principais somente pudes- cem social e democraticamente comprometidas nas suas
sem ser tocados pelos aliados mais próximos daqueles seções de direitos, enquanto ao mesmo tempo elas pare-
que estão no poder. cem rejeitar esses mesmos ideais sócio-democráticos por
É interessante constatar essa notável omissão, tí- meio de sua tradicional organização política vertical. Não
pica de recentes reformadores, com o que seus antigos surpreendentemente, e em consequência, a velha orga-
antecessores costumavam fazer quando engajados nos nização política hiper-presidencialista tende a bloquear
processos de mudança constitucional. Por exemplo, os todas as iniciativas direcionadas a colocar em movimento
engenheiros do pacto liberal-conservador não mostra- as iniciativas de empoderamento popular incluídas nas
ram dúvidas sobre o que eles eram requeridos a fazer em novas Constituições. Por exemplo, autoridades políticas
ordem a assegurar a vida de seus mais estimados direitos - argentinas se recusaram a implementar as cláusulas de
vale dizer, basicamente o direito à propriedade. Para eles, participação incorporadas na Constituição de 199440; o
pareceu totalmente claro que, para garantir a proteção presidente do Equador sistematicamente vetou todas as
ao direito de propriedade, a primeira coisa a fazer foi en- iniciativas direcionadas ao implemento dos recém cria-
trar na “sala de máquinas” e primeiro introduzir algumas dos mecanismos de participação popular41. No Peru,
modificações necessárias. Tipicamente, eles propuseram Chile, México e no Equador, líderes indígenas sofreram
a restrição às liberdades políticas em ordem a assegurar prisões ou repressão toda vez que quiseram colocar em
o gozo de amplas liberdades econômicas. Essa foi, por prática seus novos direitos adquiridos42.
exemplo, a maior lição constitucional de Juan B. Alberdi O “equívoco” cometido por aqueles que quiseram
para a sua geração: foi necessário, temporariamente, atar promover reformas sociais com a ajuda da Constituição,
as mãos da maioria, de maneira a assegurar proteção a mas sem efetivamente tocar a “sala de máquinas” do do-
certos direitos econômicos básicos38. O “equívoco” dos cumento, aparece claramente em uma extraordinária
recentes reformadores também contrasta com o que os peça de auto criticismo escrita por Arturo Sampay. É im-
antigos radicais costumavam fazer quando engajados em portante notar que Sampay foi o principal jurista (Pero-
processos de mudança constitucional. Os radicais con-
centraram toda a sua energia na produção de certas mu- 39
NINO, Carlos Santiago. Hyperpresidentialism and consti-
danças políticas e econômicas básicas (tipicamente, na tutional reform in Argentina. In: LIJPHART, Arend; WA-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 33-41, 2016
nista) que contribuiu para a elaboração da Constituição ALBERDI, Juan Bautista. Bases y puntos de partida para
argentina de 1949, durante o governo do General Perón. la organización política de la República Argentina. Buenos
Aires: Linguka, 2003.
Aquela Constituição, como sabemos, incorporou um
profundo compromisso social, manifestado em um lon- ALBERDI, Juan Bautista. Obras selectas. Buenos Aires:
go e inovador catálogo de direitos sociais. Entretanto, em Librería La Libertad, 1920.
artigo que Sampay publicou alguns anos depois, o jurista
BARROS, Robert. Constitutionalism and dictatorship: Pi-
desafiou parte de suas prévias iniciativas. Isto foi o que nochet, the Junta, and the 1980 Constitution. New York:
ele disse: Cambridge University Press, 2002.
A reforma Constitucional de 1949 não foi pro-
priamente conducente para a predominância CAVAROZZI, Marcelo; MEDINA, Juan Manuel Abal. El
do povo, favorecendo o exercício do poder asedio a la política: los partidos latinoamericanos en la
político pelos setores populares. Isso se deveu, era neoliberal. Argentina: HomoSapiens, 2005.
primeiro, à fé que triunfantes setores populares
tinham na figura de líder carismático de Perón. CEPEDA-ESPINOSA, Manuel José. Judicial activism in a
Segundo, isso se deveu a mesma atitude vigilan- violent context: the origin, role, and impact of the Colombian
te de Perón, que fez todo o possível para preve- Constitutional Court. Washington University Global Studies
nir que setores populares alcançassem o poder
Law Review, Washington, v. 3, n. 4, p. 528-700, jan. 2004.
real que pudesse prejudicar o poder do governo
legal. Esses fatos ajudaram o governo a perma-
necer no poder até que chegasse o tempo em DOMINGO, Pilar; SIEDER, Rachel. Rule of law in Latin
que os setores oligárquicos, em conjunto com America: the international promotion of judicial reform.
as forças armadas, decidissem colocar um fim Miami, 2011. Disponível em: <https://www.jstor.org/sta-
em seu governo. Aquele foi o tendão de Achilles ble/pdf/3177069.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2016.
da reforma. E isso explica porque a Constitui-
ção morreu, como Achilles, morreu em uma ECHEVERRÍA, Julio. El Estado en la nueva Constituci-
fase inicial, por seu inimigo: ela era vulnerável ón. In: UBIDIA, Santiago Andrade; GRIJALVA, Agustín;
precisamente na parte mais significante, o que STORINI, Claudia. La nueva Constitución del Ecuador.
significa dizer, naquela parte que deve fornecer
Quito: Universidad Andina Simón Bolívar; Corporación
o seu suporte43.
Editora Nacional, 2009.
Com uma virtude não usual, Sampay reconheceu o
erro fatal que ele e outros membros de sua geração comete- ETCHEMENDY, Sebastián. Models of economic liber-
ram, ao não prestarem atenção suficiente ao que ele mesmo alization: business, workers and compensation in Latin
America, Spain, and Portugal 300-315. New York: Cam-
descreveu como “tendão de Achilles” da Constituição44.
bridge University Press, 2011.
Reformadores sociais devem levar a lição de Sampay no
coração. As novas Constituições precisam fazer consistente GARGARELA, Roberto. The legal foundations of inequal-
a organização de poder com novos impulsos sociais que ity: constitutionalism in the Americas 1776-1860. New
York: Cambridge Univ. Press, 2010.
incorporaram através da seção de direitos do catálogo no
documento constitucional. Em outras palavras, em ordem GARGARELLA, Roberto. Latin american constitution-
a introduzir mudanças sociais na Constituição, é preciso alism, 1810-2010: the engine room of the Constitution.
primeiro afetar a organização de poder que foi desenhada Oxford: Oxford University Press, 2013.
por velhas e elitistas sociedades do século XIX. GARGARELLA, Roberto. Recientes reformas constitu-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 33-41, 2016
HALPERIN-DONGHI, Tulio. Historia contemporánea de SIKKINK, Kathryn. The justice cascade: how human
América latina. Madrid: Alianza, 1985. rights prosecutions are changing world politics. New
York: W. W. Norton & Company, 2011.
HALPERIN-DONGHI, Tulio. The aftermath of revolution
in Latin America. New York: Harper Torchbooks 1973. SVAMPA, Maristella. Cambio de época: movimientos so-
ciales y poder político. Argentina: Clacso-Siglo Veintiu-
NEGRETTO, Gabriel L. Making constitutions: presidents, no, 2008.
parties & institutional choice in Latin America. New
York: Cambridge University Press, 2013. SVAMPA, Maristella; ANTONELLI, Mirta Alejandra.
Minería transnacional, narrativas del desarrollo y resisten-
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho consti- cias sociales. Buenos Aires: Biblos, 2009.
tucional: análisis filosófico, jurídico y politológico de la
práctica constitucional. Buenos Aires: Astrea, 1992. VILLA, Marco Antônio. A história das constituições bra-
sileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio. Rio de Janeiro:
NINO, Carlos Santiago. Hyperpresidentialism and con- Leya, 2012.
stitutional reform in Argentina. In: LIJPHART, Arend;
WAISMAN, Carlos H. Institutional design in new democ- WILSON, Bruce B. Changing dynamics: the political im-
racies: Eastern Europe and Latin America. New York: pact of Costa Rica’s Constitutional Court. In: ANGELL,
Westview Press, 1996. Alan; SCHJOLDEN, Line; SIEDER, Rachel. The judicial-
ization of politics in Latin America. New York: Palgrave
NINO, Carlos Santiago. Radical evil on trial. London: Macmillan, 2005.
Yale University Press, 1996.
WOOD, Gordon S. The creation of the American Repub-
PISARELLO, Gerardo. Un largo termidor: historia y críti- lic, 1776–1787. Chapel Hill: University of North Carolina
ca del constitucionalismo antidemocrático. Quito: Corte Press, 1969.
Constitucional para el Período de Transición, 2011.
WOOD, Gordon S. The radicalism of the American Revo-
SAMPAY, Arturo Enrique. Constitución y pueblo. Buenos lution. New York: Alfred A. Knopf, 1991.
Aires: Instituto Superior Dr. Arturo Jauretche, 1973.
ZEA, Leopoldo. The latin american mind. Norman: Uni-
SAYEG HELÚ, Jorge. El constitucionalismo social me- versity of Oklahoma Press, 1963.
xicano: la integración constitucional de México: (1808–
1988). 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1987.
41