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IDEOLOGIA E APARelHOS IDEOlóGICOS
DE ESTADO 1

(Notas para uma investigação)

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Título original
I
IDEOLOGIE ET APAREILS IDEOLOGIQUES D'ET AT
© Copyright by La Pensée
Tradução de Joaquim José de Moura Ramos 1 O presente texto é constituído por dois extractos
I! de um estudo em curso. O autor não quis deixar de
os intitular «Notas para uma investigação». As ideias
Reservados todos os direitos exposta.<; devem ser consideradas apenas como intro-
t
para a língua portuguesa à dução a uma discussão. (N. D. R.).
Editorial Presença, L.da
Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LISBOA
SOBRE A REPRODUÇÃO DAS CONDiÇÕES
DA PRODUÇÃO

Precisamos agora de delimitar algo que ape-


nas entrevimos na nossa análise, quando falá-
mos da necessidade de renovação dos meios
de produção para que a produção seja possível.
Trata-se apenas de uma indicação de passagem.
Vamos agora considerá-Ia por si mesma.
Como Marx dizia, até uma criança sabe que
se uma formação social não reproduz as con-
dições da produção ao mesmo tempo que produz
não conseguirá sobreviver um ano que seja 1.
A condição última da produção é portanto a
reprodução das condições da produção. Esta

1 Carta a Kugelmann, 11-7-1868, (Lettres sur 1e


le Capital, Ed. Sociales, p. 229),

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pode ser «simples» (reproduzindo 'apenas as movimento forças produtivas existentes em
condições da ,produção anterior) ou «alargada» (dans et 80US) relações de produção definidas.
(aumentando-as). Por agora, deixemos de parte Donde se segue que, para existir, toda a
esta última distinção. formação sodal deve, ao mesmo tempo que pro-
Que é então a reprodução das cOMições da duz, e para poder produzir, reproduzir as condi-
produção? ções da sua produção. Deve !pois reproduzir:
Vâmos entrar num domÍinio que nos é ao
mesmo tempo muito familiar (a partir do 1) as forças produtivas,
Liyro II do Capital) e singularmente desconhe- 2) as relações de produção existentes.
cido. As evidências tenazes (evidências ideoló-
gicas de tipo empirista) do ponto de vista da
produção, isto é, do 'ponto de vista da simples
prática produtiva (ela própria abstracta em
relação ao processo de produção), estão de ta,l
maneira embutidas na nossa «,consciência» quo-
tidiana, que é extremamente difícil, para ~_não
dizer quase impossível, elevarmo-nos ao ponto
de vista da reprodução. No entanto, fora deste
ponto de vista, tudo permanece abstracto (mais
que parcial: deformado) - não só ao nível da
produção como, e principalmente, da simples
prática.
Tentemos examinar as coisas com método.
Para simplifi.car a nossa eXiposição, e se
considerarmos que toda a formação social re-
leva de um modo de produção dominante, pode-
mos dizer que o processo de produção põe em

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REPRODUÇAO DOS MEIOS DE PRODUÇAO

Hoje, todos reconhecem (inclusive os eco-


nomistas burgueses que trabalham na contabi-
lidade nacional ou os teóri'cos «m8Jcro-econo-
mistas» modernos), porque Marx impôs esta
demonstração no Livro II do Oapital, que não
há produção possível sem que seja assegurada
a reprodução das condições materiais da pro-
dução: a reprodução dos meios de produção.
Qualquer economista, que neste ponto não
se distingue de qualquer capitalista, sabe que,
ano após ano, é preciso prever o que deve ser
substituído, o que se gasta ou se usa na produ-
ção: matéria-prima, instalações fixas (edifí-
cios), instrumentos de produção (máquinas),
etc. Dizemos: qualquer economista = a qualq uer
capitalista, pois que ambas exprimem o ponto
de vista da empresa, contentando-secam comeu-

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tarsimplesmente os termos da prática finan- porções tais que, no mercado nacional quando
ceira da empresa. não é no mercado mundial, a procura em meios
Mas sabemos, graças ao génio de Quesnay de produção (para a rt;produção) possa ser
que foi o primeiro a levantar este problema satisfeita pela oferta.
que «entra pelos olhos dentro», e ao génio de Para pensar este mecanismo que vai dar a
Marx que o resolveu, que não é ao nível da uma espécie de «fio sem fim», é preciso seguir
empresa que a reprodução das condições mate- o procesf1o «global» de Marx, e estudar princi-
riais da produção pode ser pensada, porque palmente as relações de circulação do capital
não é na empresa que ela existe nas suas con- entre o Sector l (produção dos meios de pro-
dições reais. O que se ,passa ao nível da em- dução) e o Sector II (produção dos meios de
presa é um efeito, que dá apenas a ideia da consumo) e a realização da mais~valia, nos
ne,cessidade da reprodução, mas não permite Livros II e III do Capital.
de modo algum pensar-lhe as condições e os Não entraremos na análise desta questão.
me,canismos. Basta-nos ter mencionado a existência da ne-
Um simples instante de reflexão basta para cessidade de reprodução das condições ma te-
nos convencermos disto: o Sr. X, capitalista riais da produção.
que na sua fiação 'Produz tecidos de lã, deve
«reproduzir» a sua matéria-prima, as sua's má-
quinas, etc. Ora não é ele que as produz para
a sua produção - mas outros capitalistas: um
grande criador de carneiros australiano, o Sr.
Y , o dono de uma grande metalurgia, o Sr.
Z , etc, etc ... , os quais devem por sua vez,
para produzir estes produtos que condicionam
a reprodução das condições da produção do Sr.
X ... , reproduzir as condições da sua própria
produção e assim indefinidamente - em pro-

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REPRODUÇAO DA FORÇA DE mABALHO

Contudo, há uma coisa que de certo modo


não pode ter deixado de espantar o leitor.
Falámos da reprodução dos meios de produção,
- mas não da reprodução das forças produ-
tivas. Portanto, não falámos da reprodução
daquilo que distingue as forças produtivas dos
meios de produção, ou seja, da reprodução da
força de trabalho.
Se a observação do que se passa na empresa,
em 'particular o exame da práUca financeira,
das previsões de amortização-investimento, nos
pôde dar uma ideia a.proximada da existência
do processo material da reprodução, entramos
agora num domínio sobre o qual a observação
do que se passa na empresa é se não totalmente,
,pelo menos quase inteiramente cega, e por uma
razão de peso: a reprodução da força de
2 17
trabalho iP8.'3S8.-se essenciaLmente fora da em- Lembremos que esta quantidade de valor
presa. (o salário), necessário à reprodução da força
Como é assegurada a reprodução da força de trabalho, é determilIlado não pelas necessi-
de traba~ho? dades de ~ S. M. I. G. «biológico», mas pelas
:m assegurada dando à força de trabalho o cnecessidades de um mínimo histórico (Marx
meio material de se reproduzir: o salário. sublinhava: é preciso cerveja para os operá-
O salário figura na contabilidade de cada em- rios ingleses e vinho para os proletários fran-
presa, como «capital mão de obra» 1 e de ceses) -portanto historicamente variável.
modo algum como condição da reprodução Indiquemos também que este mínimo é du-
material da força de trabalho. plamente histórko pelo facto de não ser defi-
No entanto é assim que ele «age», dado que nido pelas necessidades históricas da classe
o salário representa a.penas a parte do valor operária «reconhecidas» pela classe capitalista,
produzida pelo dispêndio da força de trabalho, mas pelas necessidades históricas impostas pela
indispensável à reprodução desta: entendamos, luta de classes proletária (luta de classes
indispensável à reconstituição da força de dupla: contra o aumento da duração do tra-
trabalho do assalariado (ter casa para morar, balho 8 contra a diminuição dos salários).
roupa para vestir, ter de comer, numa palavra Porém, não basta assegurar à força de tra-
poder apresentar-se amanhã - cada amanhã balho as condições materiais da sua reprodu-
que Deus dá-ao Iportão da fábrica); Mrescoo- ção, para que ela seja reproduzi da como força
temos: indispensável à alimentação e educa- de trabalho. Dissémos que a força de trabalho
ção dos filhos nos quais o proletário se repro- disponível devia ser «competente», isto é, apta
duz (em x exemplares: podendo x ser i,gual a ser posta a funcionar no sistema complexo
a O, 1, 2, etc .... ) como força de trabalho. do processo de produção. O desenvolvimento
das forças produtivas e o tipo de unidade his-
toricamente constitutivo das forças produtivas
1 Marx forneceu a este propósito um conceito cien- Ilum momento dado produzem o seguinte re~ml-
tífico: o de capital variável. tado: a força de trabalho deve ser (diversa-
18 19
mente) qualificada e portanto reproduzida. riores, eté.). ~rendem...ge portanto «.saberes
como tal. Diversamente: segundo as exigên- práticos» (des «savoir loire»).
cias da divisão social-técnica do trabalho, nos Mas, por outro lado, e ao mesmo tempo que
seus diferentes «postos» e «empregos». ensina estas ,técnicas e estes .conhecimentos, a
.ora, como é que esta reprodução da quali- Escola ensina também as «regras» dos bons
ficação (diversificada) da força de trabalho é costumes, isto é, o cornvortamento que todo o
agente da divisão do trabalho deve obse.rvar,
assegurada no regime crupitalista? Diferente-
segundo o lugar que está destinado a ocupar:
mente do que se rpassava nas formações sociais
regras da moral, daconsdênciecívka e pro-
esclavagistas e feudais, esta reprodução da
fissional, o que significa exactamente regras
qualificação da força de trabalho tende (tra- de respeito pela divisão social-técnka do tra-
ta-se de uma lei tendencial) a ser assegurada
balho, pelas regras da ordem estabelecida pela
não em «cima das coisas» (aprendizagem na dominação de classe. Ensina também a «bem
própria produção), mas, e cada vez mais, fora falar», a «redigir bem», o que significa exacta-
da produção: através do sistema escolar capi- tamente (para os futuros capitalistas e para
talista e outras instâncias e instituições. os seus servidores) a «mandar bem», isto
Ora, o que se a,prende na Escola? Vai-se é, (solução ideal) a «falar bem» aos operá-
mais ou menos longe nos estudos, mas de qual- rios, etc.
quer maneira, aprende-se a ler, a escrever, a Enunciando este facto numa linguagem mais
contar, .- portanto algumas técnicas, e ainda científica, diremos que a reprodução da força
muito mais coisas, inclusive elementos (quepo- de trabalho exige não só uma reprodução da
dem ser rudimentares ou pelo contrário apro- qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma
fundados) de «cultura científica» ou «literária» .reprodução da submissão desta às regras da
directamente utilizáveis nos diferentes lugares ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da
da produção (uma i,ustrução para os operários, submissão desta à ideolÜ'gia dominante para
outra para Ü'Stécnicos, uma terceira para os os Olperários e uma reprodução da cap3JC1idaile
engenheiros, uma outra para os quadros supe- (para manejar bem a ideologia dominante para

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08 agentes da eJqlloração e da repressão, a ideológica que é assegurada a reproduçoo da
fim de quepOS83Jm assegurar também, «pela qualificação da força de trabalho.
palavra», a dominação da classe dominante. Mas aqui reconhece-se a presença eficaz
Por outras palavras, a Escola (mas tam- de uma nova realidade: a ideologia.
bém outras instituições de Estado como a Aqui vamos introduzir duas observações.
Igreja ou outros aparelhos como o Exército) A primeira para fazer o balanÇo da nossa
ensinam «saberes práticos» mas em moldes que análise da reprodução.
asseguram a sujeição à ideologia dominante Acabámos de estudar rapidamente as for-
ou o manejo da «prática» desta. Todos os mas da reprodução das forças produtivas, isto
agentes da produção, da exploração e da re- é, dos meios de produção por um lado, e da
pressão, não falando dos «profissionais da ideo- força de trabalho por outro lado.
logia» (Marx) devem estar de uma maneira Mas ainda não abordámos a questão da
ou de outra «penetrados» desta ideologia, para 7'eprodução das 7'elações de p7'Odução. Ora esta
desempenharem «conscienciosamente» a sua questão é uma questãocrucial da teoria mar-
tarefa - quer de explorados (os proletários), xista do modo de produção. Não a abordar é
quer de exploradores (os capitalistas), quer de uma omissão teórica - pior, um erro político
auxiliares da exploração (os quadros), quer grave.
de p3Jpasda ideologia dominante (os seus «fun- Portanto, vamos abordá-Ia. Mas, para isso,
cionários»), etc .... precisamos uma vez mais de fazer um grande
A reprodução da força de trabalho tem pois desvio.
como condição sine qua nonJ não só a repro- A segunda nota é que, para fazer este des-
dução da «qualificação» desta força de traba- 'Vio, precisamos de mais uma vez levantar o
lho, mas também a reprodução da sua sujeição nosso velho problema: que é uma socied3Jde?
à ideologia dominante ou da «prática» desta
ideologia, com tal precisão que não basta
dizer: «não só mas também», pois conclui-se
que é nas formas e sob as /0r-rtW8 da sujeição

22 f3
INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURA

Já tivemos ocasião 1 de insistir sobre o


carácter revolucionário da concepção marxista
do «todo social» naquilo que a distingue da
«totalidade» hegel:iana. Dissémos (e esta tese
apenas retomava as proposições ,célebres do
materialismo histórico) que Marx ,concebe a
estrutura de qualquer sociedade como consti-
tuída pelos «níveis» ou «instâncias», articula-
dos por uma determinação específica: a in-
/raestrutura ou b3Jse económica («unidade»
das forças produtivas e das relações de pro-
dução), e a superestrutura) que comporta em si
mesma dois «crlÍveis»ou «instâncias»: o jurÍ-

1 Em Pour Marx e Lire le Capital (Paris. Ed.


Maspero).

25
dico-político (o direito e o Estado) e a ideolo- ter-se» (no ar) sozinhos se não assentassem
gia (as diferentes ideologias, religiosas, moral, de fa-cto na sua base.
jurídi ca, politica, etc.). A metáfora do edifício tem ,portanto como
Além do interesse teórico-<pedagógico (que objectivo representar a «determinação em úl-
ilustra a diferença que separa Marx de Hegel), tima instância» pelo económico. Esta metáfora
esta representação oferece a vantagem teórica espacial tem pois como efeito afectar a base
de um índice de eficácia conhecido nos célebres
c3Jpital seguinte: permite inscrever no disposi-
termos: determinação em última instância do
tivo teórico dos seus conceitos essenciais aquilo
que se passa nos «andares» (da superestru-
a que chamámos o seu índioe de eficácia res-
pectivo. Que quer isto dizer? tura) pelo que se passa na base económica.
A partir deste índice de eficácia «em última
Qualquer pessoa pode compreender facil-
instância», os «andares» da superestrutura
mente que esta representação da estrutura de
encontram-se evidentemente afectados por índi-
toda a sociedade como um edifício que comporta Ices de eficácia diferentes. Que tipo de índice?
uma base (infraestrutura) sobre a qual se Podemos dizer que os andares da superes-
erguem os dois «andares» da superestrutura, trutura não são determinantes em última ins-
é uma metáfora, muito precisamente, uma me- tância, mas que são determinados pela base;
táfora espacial: uma tópica 1. Como todas as que se são determinantes à sua maneira (ainda
metáforaR, esta sugere, convida a ver alguma não definida), são-no enquanto determinados
coisa. O quê? Pois bem, precisamos isto: que pela base.
os andares superiores não poderiam «man- O seu índice de efi,cácia (ou de determina-
ção), enquanto determinada pela determinação
em última instância da base, é pensado na
tradição marxista sob duas formas: 1 há uma
1 Tópica, do grego topos: lugar. Uma tópica repre- «autonomia relativa» da superestrutura em
senta, num espaço definido, os lugares respectivos ocu-
pados por esta ou aquela realidade: assim o económico relação à base; 2 há «uma acção em retorno»
está em baixo (a base) a superestrutura por .cima. da superestrutura sobre a base.

26 ,'27
Podemos portanto dizer que a ,granc1evan.
Pensamos que é a partir M, reprodução
tagem teórica da tórpka marxista, portanto da que é possível e necessário pensar o que
metáfora espacial do edifício (base e superes. caracteriza o essencial da existência e natu-
trutura) é simultaneamente o facto de fazer
reza da superestrutura. Basta colocarmo-nos
ver que as questões de determinação (ou de
no ponto de vista da reprodução para que se
índices de eficácia) são Icapitais; mostrar que esclareçam algumas das questões cuja exis-
é a base que determina em última instância
tência a metáfora do edifício indicava sem lhes
todo o edifício; e, por via deconsequência,
dar uma resposta conceptual.
obrigar a levantar o problema teórico do tLpo A nossa tese fundamental é que só é possí-
de eficácia «derivada» própria à superestru-
vel colocar estas questões (e portanto respon-
tura, isto é, obrigar a pensar o que a tradição der-lhes) do ponto de vista da reprodução.
marxista designa sob os termos ,conjuntos de Vamos analisar brevemente o Direito, o
autonomIa relativa da superestrutura e acção
de retorno da superestrutura sobre a base. Estado e a ideologia a partir deste ponto de
vista. E vamos mostrar simultaneamente o que
O inconveniente maior desta representação
se passa do ponto de vista da prática e da pro-
da estrutura de qualquer sociedade pela metá-
fora espacial do edifício é evidentemente o dução por um lado, e por outro, da reprodução.
facto de ela soeI' metafórica: isto é, de per-
manecer descritiva.
Mas a partir daqui, parece-nos desejável e
possível representar as coisas de outro modo.
Ê preciso que nos entendam: não recusamos de
modo algum a metáfora clássica, visto que por
si só ela nos obriga a ir além dela. E não
vamos além dela, para a rejoeitar como caduca.
Gostaríamos apenas de tentar p€nsar o que
ela nos dá na sua forma descritiva.

28
29
o ESTADO

A tradição marxista é peremptória: o Es-


tado é explicitamente concebido a partir do Ma-
nifesto e do 18 do Brumário (e em todos os
textos cláss1cos ulteriores, sobretudo de Marx
sobre a Comuna de Pavis e de Lenine sobre
o Estado e a Revolução) como aparelho
repressivo. O Estado é uma «máquina» de
repressão que ,permite às classes dominantes
(no século XIX à classe burguesa e à «classe»
dos proprietários de terras) assegurar a sua
dominação sobre a classe operária para a
submeter ao processo de extorsão da mais-
-valia (quer dizer, à exploração crupitalista).
O Estado é então e antes de mais aquilo
a que os clássicos do marxismo chamaram
o aparelho de Estado. Este termo compreende:
não só o aparelho especializado (no sentido

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estrita) cuja existência e necessidade reconhe- esta rupresentação da natureza do Estada per-
cemos a partir das exigências da rprá.tica jurí- manece descritiva.
dica, isto é a policia - os tribunais - as pri- Como vamos empregar várias veres este
sões; mas também o exér0ito, que (o ~raleta- adjectivo (descritivo) e, para evitar qualquer
riado pagou esta eXiperiênciacom o seu sangue) equívoco, impõe-se uma breve explicação.
Lntervém directamente como força repressiva Quando dizemos, falando da metáfora do
de arpodoem última instâmcia quando a polícia, edifíciO', eu falando da «teoria» marxista do
e os seus co~pos auxiliares eSlpecializados, são Estado, que são concepções ou representações
«ultrapR.ssados pelos a;contecimentos»; e acima descritivas do seu objecto, não pretendemos
deste conjunto o chefe do Estada, a governo e com isso criticá-Ias. Pelo contrário, pensamos
a administração. que as grandes descobertas científicas não
Apresentada sab esta forma, a teoria mar- podem evitar passar pela fase a que chama-
xista-Ieninista do Estado capta o essencial, remos de uma <<teoria» descritiva. Fase essa
sem dúvida. O aparelho de Estado que define que seria a primeira fase de toda a teoria,
(' Estado coma força de execuçãO'e de interven- pelo menos no domíniO' que nos ocupa (o da
ção repressiva, «ao ser,viça das classes domi- ciência das formações sociais) . Como tal,
nantes», na luta de classes travada pela bur- poder-se-ia - e segundo cremos deve-se até -
guesia e pelos seus aliados cantra a proleta- encarar esta fase como uma fase transitória,
rIado é de facto o Estado, e define de facto necessária ao desenvolvimento da teoria. Ins-
a «função» fundamental deste. crevemos o seu carácter transitório na nossa
expressão: «teoria descritiva» assinalando, na
conjunção dos termos que empregamos, o equi-
DA TEORIA DESCRITIVA A TEORIA valente a uma espécie de «contradição». Com
efeito, o termo de teoria «briga» decerto modo
No entanto, também aqui e à semelhança com o adjectivo «descritiva» que lhe está
do que fiZÉ'mas notar a propósito da metáfora aposto. Muito precisamente, isto quer dizer:
do edifício (infraestrutura e superestrutura), 1) que a «teoria descritiva» é de factO', sem dú-
3 33
32
vida. possivel, o começo sem retorno da teoria, de Maio de 1905 em petrogrado, da Resi8-
mas 2) que a forma «descritiva» em que a te0- LêIlJcia.de Charonne, etc .... às simples (e rela-
ria. se apresenta exige., precisamente pelo efeito tivamente anMinas) intervenções de uma «cen-
desta ~contradição», um desenvolvimento da sura» qu~ proíbe a Religiooa. de Diderot ou
teoria que ultrapassa a forma da «des.crição». uma peça de Gatti sobre Franco; ela esclarece
Precisemos o nosso pensamento, voltando todas as forma.s directas ou indirectas de eXiplo-
ao nosso objecto presente: o Estado. ração e de extermínio d!liSmassas ípqpulares (as
Quando dizemos que a «teoria» marxista guerraS imperialistas); ela esclareoe a subtil
do Estado, de que dispomos, permanece em (/orninaçâo quotidiana em que está brutalmente
parte «descritiva», isto significa antes de mais presente, por exemplo nas formas da demo-
que esta deoria» descritiva é, sem dúvida (oracia política, aquilo a que Lenme chamou
possível, o próprio começo da teoria marxista dt'pois de Marx, a ditadura da burguesia.
do Estado, e que este começo nos dá o essen- Contudo, a teoria descritiva do Estado
cial, isto é, o princípio decisivo de todo o desen- rnpresenta uma fase da constituição da teoria
volvimento ulterior da teoria. que exije por si mesma a «superação» desta
Diremüscom efeito que a teoria descritiva fase. Porque é claro que soea definição em ques-
do Estado é correcta, dado que podemos per- 1:10 nos dá efectivamente meios para identificar
feitamente fazer correS/ponder à definição que " reconhecer os f3Jctos de opr,essão relacio-
ela dá do seu objeoto a imensa maioria dos nando-os com o Estado, concebido como apa-
f!l;ctos observáveis no domínio a que ela se 1"1'lho repressivo de Estado, este «pôr em
refere. Assim, a definição do Estado como n'laGão» dá lugar a um género de evidência
Estado de classe, existente no aparelho de lllllito particular a que mais adiante vamos
Estado repressivo, es.clarece de uma maneira "('ferir-nos: «sim, é isso, é verdade! ... » 1. E a
fulgurante todos Os fados observáveis nas di-
versas ordens da repressão sej!l;mos seus domí-
nios quais forem: dos massacres de Junho d.e
48 à Comuna de Paris, do sangrento Domingo 1 Cf mais adiante: A propósito da ideologia.

34 35
acumulação dos factos sob a definição do vação do poder de Estado ou tomada do poder
Estado, se mult~plica a sua ilustração, não faz de Estado), objectivo da luta de classes política
avançar realmente a definição do Estado, isto IPor um 1000, e o ~arelho de Estado por outro
é, a sua teollia científka. Toda a teoria descri- Indo.
tiva ,corre pois o risco de «bloquear» o desen- Sabemos que o apa.re1ho de Estado pode
volvimento, no entanto indispensável, da teoria. lll'rmane.cer intacto, como o provam as «revolu-
É por isso que julgamos indispensável, para I;ÔCS»burguesas do século XIX em França
desenvolver esta teoria descritiva em teoria, (1830, 1848) ou os gol;pes de Estado (o Dois
i~to é, para compreendermos mais profunda- li;.; Dezembro, Maio de 1958) ou as quedas do
mente os mecanismo do Estado e do seu fun-
l':stado (queda do Império em 1870, queda da
cionamento, acrescentar alguma coisa à defi-
:\." República em 1940), ou a ascensão política
nição clássica do Estado ,como aparelho de
Estado. da pequena burguesia (1890-95 em França),
dc., sem que o aparelho de Estado seja afec-
lado ou modificado por este facto: pode perma-
o ESSENCIAL DA TEORIA MARXISTA DO ESTADO ']I{'cer intacto apesar dos aJcontecimentos polí-
Licos que 8Jfectaan a detenção do poder de
Precisemos antes de mais um ponto impor- I';cüado.
tante: o Estado (e a sua existência no seu Mesmo após uma revolução social como a
aparelho) só tem sentido em função do poder di' 1917, uma grande parte do aparelho de
de Estado. Toda a luta de classes política gira I':stado permaneceu intacta após a tomada do
em torno do Estado. Quer dizer: em torno da 1" )der de Estado pela aliança do proletariado
detenção, isto é, da tomada e da conservação (' dos camponeses pobres: Lenine não se cansou
do poder de Estado, por uma certa classe, ou d,' o repetir.
por uma aliança de classes ou de fracções de Podemos dizer que esta distinção entre
classes. Esta primeira precisão obriga-nos por- ,poder de Estado e aparelho de EstOOo faz
tanto a distinguir o ,poder de Estado (conser- Il:tr·te da «teoria marxista» do Estado, de
36 3"1
maneira expllcita a partir do 18 do Brumário comporte já elementos complexos e diferen-
e das Lutas de ClMSC8 em França de Marx. ciais cujo funcionamento e jO'gO'só podem ser
!Para resumirmos sobre este ponto a deoria compreendidos mediante o recurso a um arro-
marxista do Estado», podemos dizer que os fundamento teórico suplementar.
c1ássi,cos do marxismo sempre afirmaram:
1) o Estado é o aparelho repressivo de Estado;
2) é preciso distinguir o poder de Estado do
a.parelho de Estado; 3) o objectivo das lutas
de classes visa o ,poder de Estado e, cons€-
quentemente, a utilização feita pela.s classes (ou
aliança de classes ou de fracçÕ€s de classes),
detentoras do poder de Estado, do aparelho
de Estado em função dos seus objectivos de
classe; e 4) o proletariado deve tomar o poder
de Estado para destruir o aparelho de Estado
burguês existente, e, numa primeira fase, subs-
tituÍ-Io por um lliparelbo de EstaAlo completa-
mente diferente, proletário, depois em fases
ulteriores, ini.ciar um processo radical, o da
destruição do Estado (fim do rpoder de Estado
e de todo o poder de Estado).
Deste ponto de vista, e por conseguinte o
que nós nos proporíamos acrescentar à «teoria
marxista» do Estado, já figura nela. Mas
parece-nos que esta teoria, assim completada,
permanece ainda em parte descritiva embora

38 39
OS APARELHOS IDEOLóGICOS DE ESTADO

o que é ,preciso acrescentar à «teoria mar-


xista» do Estado é pois outra coisa.
Devemos agora avançar com prudência
num terreno onde, de facto, os clássicos do
marxismo nos precederam há longo tempo,
mas sem t€r sistematizado, sob uma forma
teórica, os progressos decisivos que as suas
experiências e os seus métodos e processos
(démarches) implicaram. As suas experiências
(~métodos permaneceram de facto no terreno
da prática política.
De facto, na sua 'prática política, os clás-
sicos do marxismo trataram o Estado como
uma realidade mais complexa do que a defini-
<Jio que dele se dá na «teoria marxista do
Estado», mesmo completada como a apresen-
bmos. Na sua prática reconheceram esta com-

41
plexidade, mas não a exprimiram numa teoria
correspondente '. marxista, o Aparelho de Estado (AE) com-
preende: o Governo, a Administração, o Exér-
Gostaríamos de tentar esboçar muito esque-
cito, a Polícia, os Tribunais, as Prisões, etc.,
maticamente esta teoria correspondente. Para
esse fim, prcpomos a tese seguinte. que constituem aquilo a que chamaremos a
partir de agora o Aiparelho Re:pressivo de
Par a se avançar na teoria do Estado, é
Estado. Repressivo indica que o Aparelho de
indispensável ter em conta, não só a distinção
entre poder de Estado e aparelho de Estado) Estado em questão «funciona pela violência»,
mas também outra realidade que se situa - .pelo menos no limite (porque a repressão,
manifestamente do lado do ruparelho (repres- por exemplo administrativa, pode revestir for-
sivo) de Estado, mas não se confunde com ele. mas não físicas).
Designaremos esta realidade pelo seu conceito: DesLgn3JmOSpor Aparelhos Ideológicos de
os aparelhos ideológicos de Estado. Estado um certo número de realidades que se
Que são os 8Jparelhos ideológicos de Estado 3Jpresentaill ao observador imediato sob a forma
(AlE) ? de instituições distintas e especializadas. Pro-
Não se confundem com o aparelho (repres- pomos uma lista empírica destas realidades
sivo) de Estado. Lembremos que na teoria que, é iClaro,necessitará de ser examinada por-
menorizadametllte, posta à prova, rectificada
1 S;ogundo o que conhecemos, Gramsci foi o único
e reelaborada. Com todas as reservas que esta
que se aventurou nesta via. Teve a ideia «singular» de
que o Estado não se reduzia ao aparelho (repressivo) exigência implica, podemos desde já considerar
de Estado, mas compreendia, como ele dizia, certo nú- como Aparelhos Ideológicos de Estado as ins-
mero de insti tuições da «sociedade civil»: a Igreja, as tituições s~guintes (a ordem pela qual as enun-
Escolas, os sindicatos, etc. Gramsci não chegou infeliz-
ciamos não tem qualquer significado parti-
mente a siBtematizar estas instituições que permanece-
ram no estado de notas perspicazes, mas parciais (cf.
cular) :
Gramsci: Oeuvres Coisies, Ed. Sociales, pp. 290-291
(nota 3), 293, 295, 436. Cf. Lettres de Prison, Ed. Socia- - O AlE religioso (O sistema das diferentes
les, p. 313.
Igrejas) ,
42 1;3
- o AlE escolar (o sistema das diferentes a unidade que COQlstituiesta pLuralidade de ALE
~()Ilas públicas e particulares), num corpo único não é imediatamente visível.
- o AlE familiar 1, Num segtlJ11domomento, podemos constatar
- o ALE jurídico 2, que enquanto o aparelho (repressivo) de Es-
- o AlE polLtico (o sistema iPOlítico de tado, unificado, pertence inteiraanente ao domí-
que fazem parte os diferentes partidos), nio público, a maioria dos Aparelhos Ideoló-
- o ALE sindical, gicOS de Estado (na sua dispersão aparente)
- o AlE da informação (imprensa, rádio- releva pelo contrário do domínio privado. Pri-
-televisão, etc.), vadas são as Igrejas, os Partidos, os sindicatos,
- o ALE ,cultural (Letras, Belas Artes, as famílias, algumas escolas, a maioria dos
desportos, etc.). jornais, as empresas culturais, etc., etc ....
Por agora deixemos de parte a nossa pri-
Dissémos: os AlE não se Iconfundem com meira observação. Mas o leitor 'não deixará
o A!parelho (repressivo) de Estado. Em que de relevar a segunda para nos perguntar com
consiste a diferença? que direito podemos considerar ,como Apare-
Num primeiro momento podemos observar lhos Ideológicos de Estado instituições que, na
que, se existe ,um Acparelho (repressivo) de sua grande maioria, não possuem estatuto
Estado, existe uma pluralidade de Aparelhos público, e são pura e simplesmente instituições
ideológicos de Estado. Supondo que ela existe, privadas. Como Marxista consciente que era,
Gramsci já salientara esta objecção. A distin-
ção entre o público e o privado é uma distinção
1 A Família desempenha manifestamente outras interior ao direito burguês, e válida nos domí-
funções para além das de um AlE. Intervém na repro- nios (subordinados) em que o direito burguês
dução da força de trabalho. E, segundo os modos de
produção, unidade de produção e (ou) unidade de
exerce os seus «poderes». O domínio do Estado
consumo. escapa-lhe porque está «para além do Direito»:
2 O «Direito» pertence simultaneamente ao Apare- o Estado, que é o Estado da classe dominaJllte,
lho (repressivo) de Estado e ao sistema dos AlE. não é nem público nem privado, é pelo con-

44 45
trário a co.ndição de toda a distinção entre m€'Ilte prevalente pela repressão (inclusive fí-
públ1co e privado. Podemos dizer a mesma ska), embora funcione secundariamente pela
coisa partindo agora dos nossos Aparelhos Ideo- ideologia. (Não há 81parelho rpuramente repres-
lógicos de Estado. P01lJCO importa que as ins- sivo). Exemplos: o Exército e a Políoia funcio-
tituições que os realizam sejam «públicas» ou nam também pela ideologia, simultaneamente
«;privadas». O que importa é o seu funciona- para assegurar a· sua própria coesão e repro-
mento. Instituições rprivadas podem perfeita- dução e pelos valores que projeetam no exterior.
mente «funcionar» como Aparelhos Ideológicos Da mesma maneira, mas inversamente, deve-
de Estado. Uma análise U!Il1 pouco mais pro- mos dizer que, em si mesmos, os .A:parelhos
funda de qualquer dos AlE seria suficiente Ideológicos de Estado funcionam de um modo
para provar o que acabámos de dizer. massivamente prevalente pela ideologia) em-
Mas vamos ao essendal. O que distingue bora funcionando secundariamente pela re-
os AlE do Aparelho (repressivo) de Estado, Ipressão, mE'smo que no limite, mas apenas no
é a diferença fundamental seguinte: o Aparelho Emite, esta seja bastante atenuada, dissimu-
repressivo de Estado «funciona pela violência», lada ou até simbólica. (Não há aparelho pura-
enquanto os Aparelhos Ideológicos de Estado mente ideológico). Assim a e~cola e as Igrejas
funcionam «pew, ideologia». «educam» por métodos apropriados de sanções,
Podemos precisar rectificaooo esta distin- de exclusões, de selecção, etc., não só os seUs
ção. Diremos de facto que qualquer .A:parelho oficiantes, mas as suas ovelhas. Assim a Famí-
de Estado, seja de rep:-essivo ou ideoló.5"ico, lia... Assim o Aparelho IE cultural (a cen-
«funciona» simultaneamente pela violência e sura, para só mencionar esta), etc.
pela ideologia, mas com uma diferença muito Será útil referir que esta determinação do
importante que impede a confusão dos Apare- duplo «funcionamento» (de ma,neira prevalente,
lhos IdeológÍ'Cos de Estado com o Aparelho de maneira secundária) pela repressão e pela
(repre~sivo) de Estado. ideologia, consoante se trata do Aparelho (re-
Ê que em si mesmo o Aparelho (represlsivo) pressivo) de Estado ou dos Aparelhos Ideo-
de Estado funciona de uma mameira mass,iva- lógicos de Estado, permite compreEnder o facto

46 47
dominante nos Aparelhos ideológicos de Estado
de constantemente se tecerem combinações são duas coisas diferentes. Será preciso entrar
muito subtis explícitas ou tácitas entre o jogo no pormenor desta diferença, - mas ela não
do Aparelho (repressivo) do Estado e o jogo
poderá esconder a realidade de uma profunda
dos Aparelhos Ideológicos de Estado? A vida
identidade. A partir do que sabemos, nenhnma,
quotidiana oferece-nos inúmeros exemplos disto
elasse pode duravelmente dACtero poder de Es-
que é preciso estudar em pormenor para irmos
mais além da simples observação. tado sem exercer simultaneamente a sua hege-
Esta observação obre-nos a via da com- mania sobre e nos Aparelhos Ideológicos de
Estado. Dou um único exemplo e prova: a preo-
preensão do que constitui a unidade do corpo
cupação lancinante de Lenine de revolucionar
aparentemente dispar dos AlE. Se os AlE
«funcionam» de maneira massivamente preva- o Aparelho ideológico de Estado escolar (entre
lEnte pela ideologia, o que unifica a sua diver- outros) para permitir ao proletariado sovié-
sidade é precisamente este funcionamento, na tico, que tinha tomado o poder de Estado, asse-
medida em que a ideologia pela qual funcio- gurar o futuro da ditadura do proletariado e
a passagem ao socialismo ".
nam é sempre unificada apesar das suas con-
tradições e da sua diversidade, na, ideologia Esta última nota permite-nos compreender
dominante) que é a da «classe dominante» ... que os Aparelhos Ideológicos de Estado podem
ser não só o al1'o mas também o local da luta
Se quisermos considerar que em principio a
«classe dominante» detém o poder de Estado de classes e por vezes de formas renhidas da
(de uma forma franca ou, na maioria das luta de classes. A classe (ou a aliança de
vezes, por meio de Alianças de classe ou de classes) no poder não domina tão facilmente
fracções de classes), e dispõe portanto do Apa-
relho (repressivo) de Estado, podemos admitir
que a mesma classe dominante é a.ctiva nos 1 Num texto patético datado de 1931, Kroupskaia
Aparelhos ideológicos de Estado. É claro, agir cop,ta a história dos esforços desesperados de ~n1ne
por leis e decretos no Aparelho (repressivo) e daquilo que ela considera como O seu fracasso (<<L6
chemin parcouru»).
de Estado e «agir» por intermédio da ideologia
" 49
48
os AlE como o Aiparelho (N1Pressivo)de Es- Se a tese que propusemos é fundamentada,
tado, e isto não só porque as antigas classes somos conduzidos a retomar, embora precisan-
dominantes podem durante muito teilllPocon- do-a num lponto,a teoria marxUstaclássica do
servar neles posições fortes, mas também por- Estado. Diremos que por um lado é preci&>dis-
que a resistência das classes exploradas pode tinguir o poder de Estado (e a sua detenção
encontrar meios e ocasiões de se exprimir por... ) e o .Aparelhode Estado por outro lado.
neles, quer utilizando as contradições existen- Mas acrescentaremos que o Aparelho de Es-
tes (nos AIE), quer conquistando pela luta tado compreende dois corpos: o corpo das
(nos AlE) posições de combate 1. instituições que r~resentll;m o Aparelho re·
Resum8imosas nossas notas. pressivo de Estado, por um lado, e o corpo
das instituições que representam o corpo dos
Aparelhos Ideológicos de Estado, por outro
lado.
lOque aqui é dito rapidamente, da luta de
Mas, se assim é, não podemos deixar de
classes nos Aparelhos Ideológicos de Estado, está evi-
dentemente longe de esgotar a questão da luta de colocar a questão seguinte, mesmo no estádio,
classes.
Para abordar esta questão é preciso ter presente
no espírito dois princípios.
O primeiro princípio foi formulado por Marx no de classes ultrapassa largamente estas formas, e é
Prefácio à Contribuição: «Quando se consideram tais porque as ultraopassa que a luta das classes explora-
perturbações (uma revolução social) é preciso distin- das pode também exercer-se nas formas dos AIE,
guir sempre entre perturbação material - que se pode portanto virar contra as classes no poder a arma da
constatar de uma maneira cientificamente rigorosa- ideologia.
das condições de produção económicas, e as formas jurí- E isto em virtude do segundo princípio: a luta
dicas, políticas, relígiosas, artísticas ou filosóficas nas de classes ultra,passa os AlE porque está enrai-
quais os homens tomam consciência deste conflito e zada em qualquer outra parte que não na ideologia,
o levam até ao fim.~ Portanto, a luta de classes na infraestrutura, nas relações de produção que são
exprime-se e exerce-se nas formas ideológicas e assim relações de exploração e que constituem a base das
também nas formas ideológicas dos AIE. Mas a luta relações de classe.

50 51
muito sumário, das nossas indicações: qual é
exactamente a medida do papel dos Aparelhos
Ideológicos de Estado? Qual pode ser o fun-
damento da sua importância? Noutros termos,
a que corresponde a «função» destes Aparelhos
Ideológicos de Estado, que não funcionam pela
repressão, mas pela ,ideologia?
SOBRE A REPRODUÇAO DAS RELAÇõES DE
PRODUÇAO

Podemos rugora responder à nossa questão


central que permaneceu em susrpenso durante
longas páginas: C01'nO é assegurada a reprodu-
ção das relações de proàfuçáAO?
Na linguagem da tópica (,infraestrutura,
superestrutura), diremos: é, em grande ,parte
assegurada 1 pela superestrutura, jurídicü;pOlí-
tica e ideológica.
Mas visto que considerámos dooispensável
ultrapassar esta linguagem ainda descritiva,

1 Em grande parte. Porque as relações de produ-


ção são primeiro reproduzidas pela materialidade do
processo de produção e do processo de circulação. Mas
não se pode esquecer que as relações i<leo16gicas estão
imediatamente presentes nestes mesmos processos.
52
53
diremos: é, em grande parte, assegurnda pelo sob formas ora limitadas, ora extremas, os
exercício do poder de Estado nos Aparelhos efeitos dos choques entre a luta de ol~ capi-
de Estado, no A'Par~lho(~ressivo) de Estado, talista e a luta de classes !proletária, assim
por um lado, e nos Aparelhos Ideológicos de como das suas formas subordinadas.
Estado, por outro lado.
Poderemos agora reunir o que foi di,toante- 3) Enquanto a nnidade do Aparelho (re-
riormente nos três sublinhados seguintes: pressivo) de Estado é assegurada pela sua
organização centralizada UJlificadasob a direc-
1) Todos os Aparelhos de Estado funcio- ção dos representantes das classes no poder,
nam simultaneamente pela repressão e pela exeeutando a [política de luta de ,classes das
ideologia, com a diferença de que o Aparelho classes no poder, - 'a unidade entre os dife-
(repressivo) de Estado funciona de maneira rentes Aparelhos Ideológicos de Estado é asse-
massivamente prevalente pela revressão, en- gurada, na maioria das vezes em formas con-
quanto os Aparelhos Ideológicosde Estado fUiD.- tradi tórias, pela ideologia dominante, a da
cionam de maneira massivamente IPrevalente classe dominante.
pela ideologia. Tendo em comtaestas características, pode-
mos então representar a reprodução das rela-
2) Enquanto o ApareTho (repressivo) de ções de produção 1 da maneira seguinte, se-
Estado constitui um todo organizado cujos gundo uma espécie de «divisão do trabalho»:
diferentes membros estão subordinados a uma o papel do Aparelho repressivo de Estado
unidade de comando, a da política da luta consiste essencialmente, enquanto aparelho re-
de classes rupHca-daIpelos representantes polí- pressivo, em a.ssegurar pela força (física ou
t1cosdas .classesdominantes que detêm o poder
de Estado, - os Aparelhos Ideológicos de Es-
tado são múltiplos, distintos, «relativamente 1 Na parte da reprodução para que contribuem o
autónomos» e. susceptíveis de oferecer um Aparelho repressivo de Estado e os Aparelhos Ideoló-
campo objectivo a contradições que ex:primem, gicos de Estado.

54 55
não) as condições políticas da reprodução das papel úniICo,,porque comum, da reprodução das
relações de produção que são em última análise relações de produção.
relações de exploração. Não só o aparelho de Enumerámos nas formações sociais capita-
Estado contribui largamente para se reprodu- lis-tas ,contemporâneas, um número relativa-
zir a ele próprio (existem no Estado carpitalista mente elevado de arparelhos ideológicos de
dinastias de homens políticos, dinastias de mi- Estado: o a"parelho escolar, o a.parelho reli-
litares, etc.) , mas também e sobretudo, o a.pa- gioso, o a,parelho familiar, o aparelho político,
relho de Estado assegura pela repressão (da o aparelho sindical, o aparelho de informação,
mais brutal força físiJca às simples ordens e o a.parelho «cultura!», etc.
interditos administrativos, à censura aberta ou Ora, nas formações sociais do modo de
tácita, etc.), as condições políticas do exercício produção «sen)Q,gista» (normalmente dito feu-
dos Ap:uelhos Ideológicos de Estado. dal), observamos que, se existe um aparelho
São estes de facto que asseguram, em repressivo de Estado único, formalmente muito
grande parte, a própria reprodução das rela- semelhante, a verdade é que não só a partir da
ções de produção, «escudados» no aparelho Monarquia absoluta, como a partir dos primei-
repressivo de Estado. É aqui que joga massi- ros Estados antigos conhecidos, ao que nós
vamente o papel da ideologia dominante, a conhecemos, o número dos aparelhos ideológicos
da classe dominante que detém o poder de de Estado é menos elevado e a sua individuali-
Estado. É por Intermédio da ideologia domi- dade diferente. Observamos por exemplo que na
nante que é assegurada a «harmonia» (por Idade Média a Igreja (aparelho ideológico de
vezes precária) entre o aparelho repressivo Estado religioso) acumulava muitas das funções
de Estado e os Aparelhos Ideológicos de Es- hoje atribuídas a vários aparelhos ideológicos
tado, e entre os diferentes Aparelhos Ideoló- de Estado distintos, novos em relação ao pas-
gicos de Estado. sado que evocamos, em particular funções esco-
Somos assim ,conduzidos a encarar a hipó- lares e culturais. A par da Igreja existia o
tese seguinte, em função da própria diversidade Aparelho Ideológico de Estado familiar que
dos Aparelhos Ideológicos de Estado no seu desempenhava um p8.ipelconsiderável em com-

56 57
paração com o que deseInilJenha hoje lIlas for- ao século XVIII, a !partir do !primeiro impulso
mações sociais c~italistas. Apesar das ~_ dado ,pela Reforma, se ccmcentra lIluma luta
cias, a 19reja e a Família não erailll osúni.cos antiderical e anti-religiosa; lIlão é por acaso,
Aiparelhos Ideológicos de Estado. Existia tam- é em função da própria ,posição dominante do
bém um Aparelho Ideológico de Estado político AIparelho Ideológico de Estado religioso.
(as Cortes, o Parlamento, as diferentes facções A Revolução f.rancesa teve antes de mais
e Ligas políticas, antepassados dos partidos po- por objectivo e resultado fazer passar o poder
lítilcos modernos e todo o sistema IPOlíticodas de Estado da aristocraJCia feudal para a bur-
Coanunas francas e, depois, das Cidades). Exis- guesia capitalista.,comereial, queb.rar em parte
tia também um poderoso .AJparelhoIdeológico de o antigo a.pareI:horepressivo de Estado e subs-
Estado «pré-sindical», arriscalIldo esta expres- tituí-Io ;por um novo (ex. o Exército nacional
são forçoslamente anacrónica (as poderosas popular) , - mas também aJtacar o ~are1ho
confrarias dos mercados, dos balIlqueiros e tam- ideológico de Estado n. o 1: a. Igreja. Dai a
bém as associações dos companheiros, ete.). constituição civil do clero, a. confis'cação dos
Até a Edição e a Informação conheceram UiIn bens da Igreja e a criação de novos aparelhos
desenvolvimento incontestável, assim como os ideológicos de Estado para substituirem o 8.lpa-
eSlpectáculos, primeiro, parte integrante da relho ideológ1co de Estado religioso no seu
Igreja e depois cada vez mais independootes p~el dominante.
dela.
Naturalmente, as coÍ8oo não andaram por
Ora, no período histórico pré...c~italista, si: como prova, temos a Concordata, a Restau-
que examin8Jmos a traços largos, é absoluta- ração e a longa luta de classes entre a aristo-
mente evidente que existia um Apa;relho Ideo- cracia fundiária e a burguesia industrial ao
lógiao de Estado a.om.inante)a Igreja) que longo de todo o século XIX rpelo estabeleci-
concentrava não só as funções religiosas mas mento da hegemonia burguesa n8JS funções
também escolares, e uma boa parte das fun- outrora desemrpoohadas pela Igreja: a"ntes de
ções de imorm8JÇão e de «cultUlI'a».Não é [pOr mais, na Escola. Podemos dizer que a bu.rgue-
8Jcaso que toda a luta ideológica do século XVI sia se apoiou no novo a,parelho ideológico
58 59
de Estado político, democrático-parlamentar, lógico de Estado político, isto é, o regime de
criado nos rprimeiros anos da Revolução, em democracia Iparlamentar nascido do sufrágio
seguida restaurado após longas e violen~ lu- universal e das lutas dos partidos.
tas, durante alguns meses em 1848, e durante E no entanto, a história, mesmo recente,
dezenas de anos a.pós a queda do Segundo mostra que a burguesia ,pôde e pode muito
Império, a fim de travar a luta contra a Igreja bem viver com Aparelhos Ideológicos de Estado
e de se 8Jpoderar das fUtnçõesideológicas desta, políticos diferentes da democracia parl3Jmentar:
numa palavra, não só para assegurar a sUJa o Império, n.O1 e n.O2, a Monarquia da Carta
hegemonia política, mas também a sua hege- (Luís XVIII e Carlos X), a Monarquia parla-
monia ideológica, indispensável à reprodução mentar (Luís Filipe), a democracia presiden-
das relações de produção ca.pitalistas. cialista (de Gaulle), para só falar da França.
Ê Ipor isso que nos julgamos autorizados a Em Inglaterra, as coisas são ainda mais mani-
avançar a Tese seguinte com todos os riscos festas. Neste país a Revolução foi particular-
que isso comporta: pensamos que o Aparelho mente bem «sucedida» do ponto de vista
Ideológico de Estado que foi colocado em ,posi- burguês, visto que, de maneira diferente da
ção dominante nas formações c8Jpitalistas ma- França, em que a burguesia, aliás devido à
duras, após uma violenta luta de classes falta de visão da pequena nobreza, teve de
política e ideológica contra o antigo Aparelho aceder a deixar-se levar ao poder à custa de
Ideológico de Estado dominante, é o Aparelho «jornadas revolucionárias») camponesas e ple-
Ideológico escolar. beias, que lhe custaram terrivelmente caro, a
Esta tese pode parecer paradoxal, se é ver- burguesia inglesa conseguiu «compor» com a
dade que para toda a gente, isto é, na repre- Aristocracia e «partilhar» com ela a detenção
sentação ideológica que a burguesia pretende do poder de Estado e a utilização do 8Jparelho
dar a si própria e às classes que ela eXiplora, de Estado durante muito tempo (paz entre
parece evidente que o Aparelho Ideológico de todos os homens de boa-vontade das classes
dominantes!) Na Alemanha as coisas são
Estado dominante nas formações sociais c3Jpi-
talistas não é a Escola, mas o Aparelho Ideo- ainda mais manifestas, visto que foi sob um

60 61
aparelllO ideológico de Estado político em que ções de produção, isto é, das relações de explo-
os Junkers imperiais (sÍtmbolo Bismark), o seu ração crupitalistas.
exéreito e a sua poli0ia, lhe serviam de escudo
e de pesso.al dirigente, que a burguesia fez a 2. - Cada um deles concorre para este
sua entrada estrondosa na históflÍa, antes de resultado único da maneira que lhe é própria.
«atravessar» a república de Weimar e de se O 3Jparelho político sujei·tando os indivíduos à
confiar ao nazismo. ideologia política de Estado, a ideologia «demo-
Cremos portanto ter fontes razões para pen- crática», «indirecta» (parlamentar) ou «di-
sar que, por detrás dos jogos do seu Aparelho recta» Cplebiseitária ou fascista). O aparelho
Ideológ1co de Estado político, que estava à de informação embutindo, através da imprensa,
da rádio, da televisão, em todos os «cidadãos»,
boca de cena, o que a burguesia .criou como
doses quotidianas de nacionalismo, chauvi-
Aparelho Ideológico de Estado n.O1, e rportanto
nismo, liberalismo, moralismo, ete. O mesmo
dominante, foi o aparelho escolar, que de facto
acontece com o aparelho ,cultural (o prupel do
substituiu nas suasfunçÕ€s o antigo Aparelho
desporto no .chauvinismo é de primeira ordem) ,
Ideológico de Estado dominante, isto é, a Igreja. etc. O ruparelho religioso lembrando nos ser-
Podemos até acrescEntar: o duo Escola-FamÍ-
mões e noutras grandes cerimónias do Nasci-
ha substituiu o duo Igreja-Família. mento, do Casamento, da Morte, que o homem
Porque é que o a;parelho escolar é de fado não é mais que cinza, a não ser que saiba amar
o .3Jparelhoideológico de Estado dominante nas os seus -irmãos até ao ponto de oferecer a face
formações sociais crupita1istas e como é que esquerda a quem já o esbofeteou na direita.
ele funciona? O a,parelho familiar ... , etc.
Por agora, basta dizer:
3. - O cOIllcertoé dominado por uma parti-
1. - Todos os Aparelhos Ideológicos de Es- tura ún1ca, perturb3Jda de quando em quando
tado, sejam eles quais forem, concorrem para por contradições (as dos restos das antigas
um mesmo resultado: a reprodução das rela- classes dominantes, as dos proletários e das

62 63
suas organizações): a ,partitura da ldeologia
da classe actualmente dominante, que integra enorme massa de Qriamças üai «na produção»:
na sua mús1ca os grandes temas do Huma- são os OIperários ou os pequenos camponeses.
~ A outr,a parte da juventude eSicolarizável con-
nismo dos Grandes Antepassados, que fizeram J
antes do Cristianismo o Milagre grego, e de- ·I.~·~·.·O
tinua: e seja como for faz um troço do cami-
pois a Grandeza de Roma, a Cidade eterna, e 11
nho para cair sem chegar ao fim e preencher
os temas do Interesse, particular e geral, etc.
-~(
'fI os postos dos quadros médios e pequenos,
~I
"I empregados, pequenos e médios funcionários,
Nacionalismo, moralismo e economismo.
.11
i4i
pequeno-burgueses de toda a espécie. Uma
4. - Contudo, neste concerto, há um Apa- última parte consegue aceder aos cumes, quer
para cair no semi-desemprego intelectual, quer
relho Ideológko de Estado que desempenha
para fornecer, além dos «intelectuais do traba-
incontestavelmente o papel dominante, embora
lhador colectivo», os agentes da exploração,
nem sempre se preste muita atenção à sua
mús1ca: ela é de tal maneira silenciosa! Tra- (capitalistas, managers), os agentes da repres-
ta-se da Escola. são (militares, polícias, políti,cos, administra-
dores) e os profissionais da ideologia (padres
Desde a rpré-1primária, a Escola toma a seu
de toda a espécie, a maioria dos qua,is são
cargo todas as crianças de todas as cJasses «laicos» convencidos).
sociais, e a partir da Pré-Primária, inculca-
Cada massa que fica pelo caminho está
olhes durante MlOS, os anos em que a criança
praticamente recheada da ideologia que con-
está mais «vulneráve!», entalada entre o apa-
vém ao papel que ela deve desempenhar na
relho de Estado familiar e o aparelho de Estado
sociedade de classes: papel de explorado (com
Escola, «saberes práticos» (des «savoir faire»)
<c(;onsciência profissiona1», «mora!», «cívica»,
envolvidos na ideologia dominante (o francês,
<maJCional»e apolítica altamente «desenvol-
o cálculo, a história, as ciências, a literatura),
vida»); papel de agente da exploração (saber
ou simplesmente, a ideologia dominante no
mandar e falar aos operários: as «relações
estado puro (moral, instrução cívica, filosofia).
humanas»), de agentes da repressão (saber
Algures, por volta "0S dezasseis anos, uma mandar e ser obedecido «sem discussão» ou
64 65
saber manejar a dem8Jgogia da retórica dos
dirigentes polítkos), ou profissionais da ideo-
, explorados. Os meclmismos que reproduzem este
resulta.do vital para o regime capitalista são
logia (que s8Jibam tra"tar as consc,iências com t naturalmente envolvidos e dissimulados por
o respeito, isto é, com o desprezo, a chan- 't uma ideologia da Escola unive~salmente rei-
tagem, a demagog;i.a que convêm, a.comodados
JI nante, visto que é uma das formas essenciais
às subtilezas da Moral, da Virtude, da «Trans- da ideologia burguesa dominante: uma ideolo-
cendência», da Nação, do p8Jpel da Fra"nça no giaque representa a Escola como um meio
mundo, etc.). neutro, desprovido de ideologia (visto que ...
l!: ,claro, grande nÚimero destas Virtudes lai.co), em que os mestres, respeitosos da
contrastadas (modéstia, resignação, submissão, «consciência» e da diberdade» das crianças
ipor um lado, cinismo, desprezo, altivez, segu- que lhes são confiadas (com toda a con-
rança, categovia, 'cap.acidade para bem-falar e fiança) pelos «pais» (os quais são igual-
habilidade) 8Jprendem-se também nas Famílias, mente livres, isto é, proprietários dos filhos)
na"s Igrejas, na Trop.a, nos Livros, nos filmes os fazem aceder à liberdade, à rnoralidade e à
e até nos estádios. Mas nenhum Aparelho Ideo- responsabilidade de adultos pelo seu próprio
lógico de Esta"do diSipõe durante tanto tempo exemplo, pelos conhecimentos, pela literatura
da audiência obrigatória (e ainda por cima e pelas suas virtudes «libertadoras».
gratuita ... ), 5 a 6 dias em 7 que tem a semana, Peço desculpa aos professores que, em con-
à razão de 8 horas por dia, da totalidade da"s dições terríveis, tentam volta:r contra a ideo-
cTianças da formação social crupitalista. logia, ...:ontra o sistema e contra as práticas
Ora, é através da aprendizagem de a"lguns em que este os encerra, as armas que podem
i
saberes práticos (savoir-faire) envolvidos na encontrar na história e no saber que «ensi-
inculcação massiva da ideologia da classe domi- nam». Em certa medida são heróis. Mas são
nante, que são em grande parte reproduzidas raros, e qua"ntos (a maioria) não têm sequer
um vislumbre de dúvida quanto ao «trabalho»
as relações de produção de uma formação
social capItalista, isto é, as relações de explo-
rados com eXlploradores e de eXiploradores com
I
i§; ,
que o sistema (que os ultr3Jpassa e esm3Jga)
os obriga a fazer, ipior, dedic3Jill-se ,inteira-

66 67
mente e em toda a consciência à realização
desse trabalho (os famosos métodos novos!).
Têm tão poucas dúvidas, que contribuem até
pelo seu devotamento a manter e a alimentar a
representação ideológica da Escola que a torna
hoje tão «natural», indispensável-útil e até
benfazeja aos nossos contemporâneos, quanto A PROPóSITO DA IDEOLOGIA
a Igreja era «natural», indispensável e gene-
rosa para os nossooantepassados de há séculos.
De facto, a Igreja hoje foi substituída pela
Escola no seu papel de Aparelho Ideológico
Ao aV8mçarmos o ,conceito de Aparelho
de Estado dmninante. Está emparelhada com
Ideológi~o de Estado, quando dissemos que os
a Família como outrora a Igreja o estava.
AlE «funcionavam pela ,ideologia», invocámos
Podemos então afirmar que a crise, de uma
uma realidade sobre a qurul é preciso diZ'er
profundidade sem precedentes, que por esse
mundo fora abala o sistema escolar de tan- umas pala vnas: a ideologia.
Sabe-se que a exipressão: a ideolo,gia, foi
tos Estados, muitas vezesconjugada com uma
forjruda por Cabanis, Destuut de Tracy e pelos
crise (já anunciada no Manifesto) que S8JCode
seus amigos, que lhe atribuíram por objecto a
o sistema familiar, adquire um sentido polítko,
teoria (genética) da,s ideias. Quando, 50 anos
se consideramos que a Escola (e o par Escola-
mruis tarde, Marx retoma o termo, dá-lhe, a
-Família) constitui o Aparelho Ideológico de
partir das Obras de Juventude, um sentido
Estado dominante, Aparelho que desempenha
totalmente diferente. A ideologia passa então
um papel determinante na reprodução das re-
a ser o sistema das ideias, das representações,
1açães de produção de um modo de produção que domina ° espírito de Um homem ou de
ameaçado na sua existência pela luta de clas-
sea muudial. um grupo social. A luta ideológko-politica que
Marx desencadeou nos seus artigos da Gazeta
Renana depressa o confrontariam Icom esta
68
69
realidade, e obrigá-Io-iam a 341rofundar as suas
primeiras ,intuições.
No entamto, depar.amo-lIlos neste ponto com
um paradoxo espantoso. Tudo parecia levar
Marx a formular uma teoria da ideologia. De
facto, a ]dJeologia Alemã oferece-nos, antes dos A IDEOLOGIA NÃO TEM HISTóRIA
Manuscritos de 44, uma teoria exlplícita da
ideologia, mas ... não é marxista (e prová-lo-
-emos em breve). QUaillto ao Capital) se con-
tém mui,tas ind1caçães ipaTa 'UJIllateooi.a. das Primeiro que tudo, uma prulavra para eXipor
,ideologias (a mais visível: a ideologia dos a razão de prindpio que me parece, se não
economistas vulgares), não contém propria- fundamentar, pelo menos a,utorizar o projecto
mente esta teorlÍa, a qual depende em grande de uma teoria da ideologia em geral) e não o de
parte de uma teoria da ideologJia em geral. uma teoria das ideologias parüculares, que
Gostaria de 'correr o risco de propor um eXiprimem sempre, seja qual for a sua forma
esboço esquemátioo desta teoria da ideologia (religiosa, moral, jurídka, política), posições de
classe.
em geral. As teses de que vou partir não são,
Será sem dúvida necessário desenvolver
é claro, improvisadas, mas só podem ser de-
fendidas e ex.perimentadas, isto é, iConfi~a;das uma teoria das ideologias consideradas no duplo
ou rectif1cadas, atr,avés de estudos e anáLises aspecto acima indicado. Veremos então que
a,profundados. uma teoria das ideologias repousa em última
análise na história das formações sociais, por-
tanto na dos modos de produção combinooos
nas formações sociais e da história das lutas
de classes que nelas se desenvolvem. Neste sen-
tido, é ela:ro que não se pode fOI11I1lularuma
teoria da,s ideologias em geral) pois que as

71
70
ideologias (definidas sob a dupla relação que nário, isto é, nulo, de «resíduos diurnos», apre-
indicamos acima: regional e de iclasse) têm sentados numa composição e numa ordem arbi-
uma história, cuja determinação em última trárias, por vezes «invertidas», numa palavra,
instância se encontra, como é e~idente, fora «na desordem». Para eles, o SOIIlhoera o ima-
das ideologias em sd., embora dizendo-Ihes res- ginário vazio e nulo «eorn:struido» arbitraria-
peit<;}o mente, ao acaso,COtm resíduos da única reali-
Todavia, se posso definir o projecto de uma dade cheia e positiva, a do dia. Tal é, na Ideo-
teoria da ideologia em geral) e se esta teoria logia Alemã) o estatuto exacto da filosofia e
é de facto um dos elementos de que dependem da ideologia Cpois que lIlesta obra a filOsofia
as teorias das ideologias, isso impLica uma é a ideologia por excelência).
proposição aparentemetllte paradoxal que enun- A ideologia ,começa por ser, segundo Marx,
ciarei nos seguintes vermos: a ideologia não uma construção imaginária, um puro sonho,
tem história. vazio e vão, ,constituído pelos «resíduos diur-
Como se s,abe, esta fórmula figura numa nos» da única realidade plena e positiva, a da
passagem da Ideologia Alemã. Marx enuncia-a história concreta dos indivíduos concretos,
a propósito da metafísica que, segundo diz, materiais, produzindo materialmente a sua
tal ,como a moral, não tem história (subenten- existência. É nesta perspectiva que, na Ideolo-
dido: e as outras formas da ideologia). gia Alemã, a ideologia não tem história, dado
Na Ideologia Alemã) esta fórmula figura que a sua história está fora dela, está onde
num contexto francamente positivista. A ideo- existe a única história possível, a dos indiví-
logia é então concebida eomo pura ilusão, puro duosconcretos, etc. Na Ideologia Alemã) a
sonho, isto é, nada. Toda a sua realidade está tese segundo a qual a ideologia não tem his-
fora de si própria. É pensada como uma cons- tória é portanto uma tese purament1e negativa
trução imaginária cujo estatuto é exactamem.te pois que significa simultaneamente:
semelhante ao estatuto teórico do sonho nos
autores anteriores a Freud. Para estes auto- 1. - a ideologia não é nada ooquanto puro
res, o sonho 'era o resultado puramente imagi- sonho (fabricado não se sabe por que potên-
72 73
eia: sabe-se .rupooasque ela IProvém da aliena- é, omni-histórica, IIlOsentido em que esta estru-
ção da divisão do trabalho, o que é também tura e este funcionamento estão, sob uma
uma determinação 'J'IAegativa) • mesma forma, imutável, PI"eSootesnaquilo a que
se chama a história inteira, no sentido em que
2. - a ideologia não tem história, o que o Manifesto define a história como a história
não quer de maneira nenhuma dizer que não da luta de classes, isto é, história das socie-
tenha história (pelo contrário, uma vez que dades dJe classes.
é apenas o pál'ido reflexo, vazio e invertido, Para forneceru:ma referência teórica, di-
da história real), mas ela não Item históma rei, retomando ° exemplo do sOIIlhoagora na
própria. concepção freudiana, que a proposição enUlIl-
Ora a tese que eu gostaria de derender, ciada: a ideologia não tem história, pode e
retomaindo formalmente os termos da Ideolo- deve (e de uma maneira que não tem absolu-
gia Alemã (<<aideologia não' tem história»), tamente nada de arbitrário, mas que é pelo
é radicalmente diferoote da tese positivista- contrário teoricamente necessária, porque exis-
-historicista da Ideologia Alemã. te uma ligação orgânica entre as duas pro-
Porque, por um lado, ,creio Ipoder sustentar posições) ser posta em relaçãodirecta com a
que as ideologias têm uma história própria protposição de Freud segundo a qual o incons-
(embora esta história seja determinada em ciente é eterno) isto é, não tem história.
última instâJllcia pela luta de .classes); e, por Se eterno não quer dizer tramscoodente a
outro lado, que a ideologia em geral não tem toda a história (temporal) mas omnipresente,
história) não num sentido negativo (a sua his- trans-histárico, portanto imutável na sua forma
tória está fora dela) mas num reIlitido absolu- ao longo da história, retomarei, valavra por
tamente positivo. palavra, a expressão de Freud e direi: a ideo-
Este sentido é 'positivo, se é verdade que logia é eterna como o inconsciente. E aJCres-
é ,próprio da ideologia o ser dotada de uma centarei que esta aproXlimação me parece
estrutura e de um funcionamento tais, que teoricamente justificaJda pelo faoto de que a
fazem dela uma realidade não histórica, isto eteI'lnidade do incOlIJ.lscientebem uma certa

74 75
relação com a eternidade da ideolo~ia em
geral.
Ê assim que me jul~ autorizado, pelo
menos presuntivamente, a propor uma teoria
da ideologia em geral, no sentido em que Freud
formulou uma teoI"ia do inconsciente em geral.
A IDEOLOGIA É UMA ((REPRESENTAÇÃO)) DA
Para simplificar a expressão, e toodo em RELAÇÃO IMAGINARIA DOS INDIVIDUOS COM
conta o que se disse sobre as ideologias, pas- AS SUAS CONDIÇõES DE EXISTt:NCIA
samos a empregar o termo ideologia prura
designar a ideologlia em geral, de que disse
que não tem história ou, o que é equivalente,
que é elerna, isto é omnipresente, sob a sua Para abordar a tese central sobre a estru-
forma imutável, em toda a história (= histó-
ria das formações sociais compreendendo clas- tura e o funcionllimento da ideologia, proponho
ses sociais). ProvisoI1iamente, limito-me de duas <teses: uma negativa e outra Ipositiva.
facto às «sociedades de classes» e à sua história. A primeira refere-se ao objecto que é «repre-
sentado» sob a forma imaginária da ideologia,
a segunda refere-se à materialidade da ideo-
logia.
Tese 1: A ideologia representa a relação
imlliginária dos indivíduos com as suas con-
dições reais de existência.
De uma maneira geral, diz-se da ideologia
religiosa, da ideologia moral, da ideologia jurí-
dica, da ideologia política, etc., que são «con-
cepções do mundo». E é claro que se admite,
a mooos que se viva uma destas ideologias

76 77
cama a verdade (,par exemplO',se se «acreditar~ ideolog,ia, chega-se à ,conclusão de que na ideo-
em Deus, na Dever O'Una Justiça, etc.), que a lagia «os homens se representam sob uma
ideologia de que ~ fala entãO' de um pontO' farma imaginária as suas condições de e~is-
de vista crítica, aO' examiná-Ia coma um etnó- tência reais».
lagO' e~amina as mitos de uma «sociedooe pri- Esta inte11pretaçãa dei~ ,infeli~mente em
mitiva», que estas «'concepções dO' mundO'» suspelI1Saum pequena prablema: parque «,pre-
sãO' na sua grande parte imaginárias, ,istO' é, cisam» as homens desta transp08'içãa imagi-
1}ãa «carrespondentes à realidade». náI'lia das suas condições ,reais de e~istência,
ContudO', embon adinütindO' que elas nãO' para se «representarem» as suas candições de
correspandem à realidooe, portantO' que cans- existência reais?
tituem uma ilusão, admite-~ que fazem alusãO' A primeira resposta, a da séculO' XVIII,
à realidade, e que basta «inte~retá-las» para propõe uma soluçãO' simples: acu1pa é das
reencontrar, sO'b a sua representaçãO' imaginá- Padres e das Déspotas. Faram eles que «far-
ria da mundO',a própria realidade desse mundO' jaram» as Belas Mentiras para que, julgandO'
(idealagia = ilusão/alusão). abedecer a Deus, as hamens abedecessem de
E~istem diferentes üpas de inte~retaçãa, factO' aos padres au aas Déspatas, na maiar
das quais as mais ,canhecidas sãO' O'üpO' meca- :parte das vezes aliadas na sua impostura, as Pa-
nicista) corrente na séculO' XVIII (Deus é a dres ao serviçO' dos Déspatas au vice-versa, se-
representaçãO' imaginária da Rei 'real), e a gundo as pasições palíticas dos ditas «teóricos».
interpretaçãO' «hermenêutica», inaugurada pe- Existe portantO' uma causa para a transpasiçãa
los primeiros Padres da Igreja e vetamada par imaginária das candições de existência real:
Feuerbach e pela es,cala teO'lógi,ca-filO'sófica esta causa é a exis,tência de um pequeno grupO'
nele inspirada, pO'r e~emplO' O' teólogO' Barth, de hamens cínicas, que assentam a sua dami-
etc. (Para Feuerbach, par e~empla, Deus é naçãO' e a sua explaraçãa da «pava» numa
a essência da Homem real). Afirma a essencial representaçãO' falseada da mundO' que inven-
di~enda que, sab a condiçãO' de interpretar a taram para subjugar as espíritas, dominando
transposiçãO' (e a inversãO') imaginávia da a ima,ginaçãa destes.

78 79
A segunda reSlposta (a de Feuerba,ch, reto- ideologia, são as condições de existência dos
mada a par e passo por Marx nas ObI1as de homens, ,isto é, o seu mundo real.
Juventude) é mais «profunda», isto é, igual- Ora, retomo aquú uma tese que já formu-
mente falsa. Também ela procura e encontra lei: não são as ,condições de existência reais, o
uma causa para a transposição e para a defor- seu mundo real, que «os homens» «se represen-
mação imaginária das condições de existência tam» na ideologia, mas é a relação dos homens
reais dos homens, numa palavra, para a aliena- com estas condições de existência que lhes é
ção no imaginádo da representação das condi- representruda na 'ideologia. Ê esta relação que
está no c~mtro de toda a representação ideoló-
ções de existência dos homens. Esta causa já
não são os Padres ou os Déspotas, nem a ima- gica, porta:nto imaginária, do mundo real.
Ê nesta relação que está contida a «üausa» que
ginação activa destes e a imaginação passiva
das suas vít,imas. Esta eausa é a alienação deve dar conta da deformação imaginária da
representação ideológica do mundo real. Ou
material que reina nas condições de existência
melhor, rpara deixa:r em suspenso a linguagem
dos próprios homens. Ê assim que, na Questão da ica:usa, convém formular a tese segundo a
Judaica e noutros escritos, Marx defende a qual é a natureza imaginária desta relação
ideia feuerbachiana segundo a qual os homens que fundamenta toda a deformação imaginária
se fazem uma representação alienada (= ima- que se ipode observar em toda a ideologia (se
ginária) das suas condições de existência por- mão se viver na verdade desta).
que estas condições de existência são em si Falando uma Linguagem marxista, se é
alienantes (nos Manuscritos de 44: porque verdade que a ,representação das Icondições de
estas condiçÕ€s são dominadas pela essência existência real dos ülJdividuos que OCUP3JID pos-
da sociedade alienada: o «trabalho alienado»). tos de agentes da produção, da exploração, da
Todas estas interpretações tomam portanto repressão, da ideologização, da prática cien-
à letra a tese que pressupõem, e em que repou- tifka, releva em última instância das relações
sam, a saber, que o que é reflectido na repre- de produção e das relações derivadas das rela-
sentação imaginária do mundo, presente numa ções de produção, rpodemos dizer O seguinte:

80 81
toda a ideO'logiarepresenba, na sua defO'rmação grupO' de indivíduos (Padres ou Déspotas)
necess,ariamente im~ginária, não as relações de autO'res da grande mistificação iÍdeológLca,asSiÍm
[produção ex:istentes (e as O'utras relações que comO' a soluçãO' pelo carkter ali€lIladO' do
delas derivam), mas antes de mais a relação mundO'real. NO'prosseguimentO' da iIlossa expO'-
(imaginária) dos ,indivíduos com as relações siçãO'vamos ver pO'l1quê.PO'r aJgüra, nãO' ire~
de produção e ,com as reLações que delas deri- mos mais longe.
vam. Na !ideologia, o que é representado nãO' Tese II: A ideologia tem uma ~istência
material.
€ o si,stema das relações reais que govel1nam a
existência dos indivíduos, mas a relaçãO' ima- Já aflO'rámO's esta tese quandO' dissérrlos
que as «1dieias» üU «rCfPresentações», etJc., de
ginária destes indivíduos ,com as relações reais
em que vivem. que parece ser cO!IllIpostaa iÍdeologia, nãO'tinham
Se\lldo assim, a questão da «causa» da de- existência ideal, CiSlPiritiUal,
mas material. Suge-
rimos que a existênôia ideal, eS[lLritual, das
formaçãO' imaginária das relações reais na
«ideias» relevava ex:clusivamente de uma ideO'-
,ideologia ,caJi[lor ,terra, e deve ser substituída
logia da «ideia» e da ideologia e, acrescen-
por uma outra questãO': ipO'rqueé que a repre-
temos, de uma ideolO'gia dO'que rpareee «funda-
sentaçãO' dada aos indivíduos da sua relação
mentar» esta iCollicerpçãO'a[lartir da rupariçãO'das
(individual) com as relações sociais que gover-
ciências, a sruber, O'que 00 práticos das ,ciências
nam as suas ,condições de existência e a sua
se re[lresentam, na sua ideolügia cS[lOlltânea,
vida ,coleertiva e individual, é necessariamente
comO' «ideias», verdadeiras üU falsas. É clarO'
imaJginária? E qual é a natureza deste ima- que, rupresentaJda sO'b'a fO'rma de uma afirma-
ginário? Assim colocada, a questão eV3;0ua a çãO',esta tese nãO' é demOIlSitrada. Aipenas pedi-
solução peLa «pandilha» (<<clique») 1 de um

a «explicação» de um desvio político (oportunismo de


1 11:propositadamente que emprego este termo direita ou de esquerda) pela acção de uma «pandilha»
muito moderno, Porque mesmo nos meios comunistas, (<<clique») é infelizmente corrente.

82 83
mos que llie seja Iconcedtdo, em nome do ma;De- télicos (note-se que Marx tinha Aristóteles
vialismo, um preconceito favorável. DesenvoJ- em grande 'conta), diremos que «a matéria se
vimentos muito longos seriam necessários :para àiz em vários sentidos», ou melhor que ela
a SiUademonstração. existe sob diferentes modalidades, todas enrai-
A tese :presunti va da existência não oopiri- zadas em última instâneia na matéria «física».
tual mas ma;teI'Íal das «ÍJdeias» ou outras «re-
Dito isto, vejamos o que se passa nos
presentações», é-tllos de Lado necessária para «indivíduos» que vivem na ideologia, isto é,
wvançar na anáLise da natureza da ideologia. numa ropresentação do mundo determinada
Ou melhor, é-nos útil :para escl3;I'ecer o que (religiosa, moral, etc.), cuja deformação ima-
toda a análise sé.ria de uma ideologia mostra ginária depende da relação imaginária destes
imediatamente, eIl1ipirkamente, 'a todo o obser- indivíduos com as suas condições de existência,
v8Jdor mesmo pouco critico. Íf,to é, em última instâmcia,com as relações de
Dissemos, ao falar dos aparelhos ideoló- produção e de classe (ideologia = relação ima-
gicos de Esta;do e das prá1Jitcasdestes, que cooa ginária com relações reais). Diremos que esta
um deles era a crealização de uma ideologia relação imaginária é em si mesma dotada de
(sendo a unidade destas diferentes ideologias uma existência mate!1Íal.
regionais - religiosa, moral, jurkLi:ca, (política, Ora verificamos o seguinte:
estética, €tc. - assegurada pela sua subsun- Um indivíduo crê em Deus, ou no Dever,
ção à 'ideologia dominante). Retomamos esta ou na Justiça, etc. Esta crença releva (para
tese: uma ideologia existe ,sempre num a;pare- todos os que vivem Inuma 'representação ideo-
lho, e na sua prática ou suas práticas. Esta lógka da ideologia, que reduz a ideologia a
existência é material.
ideias dotadas por definição dee~istência espi-
Ê daro que a existência material da ideolo- ritual) das ideias desse mesmo individuo, por-
gia num aparelho e nas suas :práticas não possui tanto dele, como sujeito possuindo uma cons-
a mesma modalidooe que a e~istênüia material ciência na qual estão contidas as ideias da
de uma pedra ou de uma espingarda. Mas, e sua crença. Através do dispositivo «concerptual»
correndo o risco de nos chamarem n€o-aristo-
perfeitamente ideológico assim estabelecido
84 85
(um suj<lito dotado de uma consciência em que
fo~ma lirvremente, ou reconhece livremente, as
II suas ideias», deve rportanto inscrever nos actos
da sua prátilca materÍail as suas prqprias ideias
de sujeito ,Livre.Se 01 não faz, «as coisas não
ideias em que crê), ocompomamento (material)
do dito sujeito decorre naturalmente.
I
-~

'"
estão bem».
1.,.
De facto, se não faz o que deveria fazer
O ,indivíduo em ,questão conduz-se desta ou
em função daquilo em que rucredJita, é ipOTque
daquela mameira, adOlpta este ou ruquele com- faz outra coisa, o que, sempre em função do
portrumento (prático e, o que é ma~s, iParbidpa mesmo :esquema ideaJista, dá a entender que
em certas prátLcas reguladas, que são as do apa- tem ideias diferootes das que proclruma, e que
relho ideológi'co de que «dependem» as ideirus age segundo essas outras ideias, como homem
que enquanto sujeito escolheu livremente, cons- quer dnconsequente» (<<ninguém é mau volun-
cientemente. Se crê em Deus, vai à Igreja para
tariamente»), quercÍillÍICo ou perverso.
assistir à Missa, ajoelha-se, reza, confeSlSa-se,
Em quaLquer doIS,casos, a ideologia da á.deo-
faz penitência (antigMIlJent<lesta era material logia reconhece portanto, apesar da sua defor-
no sentido corrente do teNllo) e naturalmente
mação imaginária, que as «ideias» de um sujeito
arrepende-se, e continua, etC. Se crê no Dever, humano existem nos seulSalCtos,ou devem exis-
terá comportamentos ,correspondentes, inscritos tir nos seus :tctos, e se ,isto não wcnntece, em-
nas prática,s rituais, «,conformes aos bons costu- presta-lhe outras 1deias correspondentes aos
mes». S'e crê na Justiça, subme1er-se-á sem
aJctos (mesmo pervemos) que ele realiza. Esta
discussão às regras do Direito, e poderá ruté ideologi,a fala dos ·actos: nós falaremos de
prort€sltar quamdo estas são v,iolrudas, russinar actos inseridos em práticas. E faremos notar
petições, tomar iparte numa manifestação, e1lc. que estas IpráticaJs são reguladas por rituais
Em tOldoeste esquema verificamos ,portanto em que elas se inscrevem, no seio da existência
que :a representação ideológica da ~deologia é material de um aparelho ideológico) mesmo
obrigada a reconhecer que todo o «sujeito», que se trate de uma ipequenísSlÍma:parte deste
dotado de uma «,consciência» e crendo nas
alParelho: uma missa pouco frequentruda nUlffia
«ideüas» que a sua «:consciência» lhe inspira e crupela, um enterro, 'Um peqUi€lIlOdesalfio de
que aceita livremente, deve «agir segundo as
87
86
fuItebol numa sooiedade desportiva, um d~a de práticas materi.ati8, regulaiUls par ritu.wis mate-
aulas numa escOila,uma 'I1tmniãoou um meeting riais que soo também de/i'Yllido8 pelo aparelho
de um partido político, eW. ideológico material de que relevam 00 ideia8
Devemos à «dia1OOt~ca»defemsiva de Pascal desse sujeito. o,s quaItroadjectivos «materiais~
a maravilhosa fórmula que nos vaiÍ permitir Ílnsoritos na nossa rprÜlposiçãodevem ser afecta-
inverter a ordem do esquema nocional da ideo- dos de modalidades diferentes: a materialidade
logia. Pl8,SlcaldÍQ';aproximadamente o seguinte: t de uma deslocação para ~r à missa, de um
«Ajoelhai-iVos, mexei os lábios como se fOSlSeis ajoelhar, de um gesto de sinal da oruz ou de
rezar, e sereis crentes». Inverte portanto escam- mea culpa, de UJInafI'lase, de uma oração, de
dalosarnente a ordem das coisas, trazendo, como uma ,contrição, de uma penitência, de um olhar,
CrÍlSto, não a rpaz, mas a divisão, e aLém disso, de um aperto de mão, de um dis~urso iVerbal
o que é muito pouco cristão ('porque 3:i daquele ex'temo ou de um d~urso verball «'interno»

II
que provoca escâruialo!), o escândalo. Bem- (a consciência) não é uma única e mesma
-aventurado escândalo que, 'por desafio jan- materia1idade. Deixamos em suspenso a teoria
senista, o leva a falar uma Linguagem que da diferença das modalidades da materialidade.
designa a Tealidade em /pessoa, N~ta apresentação IÍnverlida das coisas,
Vamos deixar Pascal aos seus argumentos não estamos lperamte uma «inversão», pois
de luta ideológka no seio do aparelho ideoló- const3Jtlamos que a;lgumas :noções deS3jparece-
gico de mstrudo reLigioso do seu tOO'lrpo.Reto- ram pura e simplesmente da nossa iI10IVa aJPre-
maremos uma HIIl@U8<gem mais directamente sentação, enquanto outras subs,iatem e novos
marxista, se pudermos, rpoisentramos em domí- termos 3Jparecem.
nios ainda mal explorados. Desapareceu: o termo ideias.
Diremos portanto, ,considerando arpenrusum Subsistem: os ,termos sujeito, cornseiência)
sujeito (tal indivíduo) ,que ta existência da::; crença, aotos.
ideirus da sua ,crença é material, porque rus AJparecem: os termos práticas) rituais, apa-
suas idcias são ados materiais i1'Weridos em relho ideológico.

88 89
Não se !trata portMlJto de uma inversão E enunoi'amos então as duas teses con-
(salvo .no sentido em que se diz que 111m,go- juntas:
vermo ou um capo foram derrubados [renver-
sés] ), mas de uma remodelação (de tipo não 1- Só existe IPrátlea através e sob uma
ministerial) ibastamte estI1amha, dado que obte- ~deologia;
mos o seguJ1nte result8ido: 2 - Só existe ,ideoJogia através do sujeito
As ideias desa'Pareceram enquamto tais e para sujeitos.
(enquanto dotadas de uma e~istência ideal,
Podemos agora regressar à nossa tese
espiritual), na med,ida em que f:lcou claro que central.
a existêncIa destas se linscreY1ianos actos das
práticas reguladas ,pelos rituais def,inidos em
última instância Ipor UtIll alParellio ideológico.
Surge assim que o sujeito age enqu8mJto é
agido pelo seguinte sistema (enunciado na sua
oroem de determina.ção real): ideologia exis-
tindo num aparelho 'ideológico ma;terirul, pres-
crevendo p.rMic8JSmateriais, reguladas por um
rutual mruteI1ial, as quais (práticas) existem
nos actos maJteriais de um sujeito rugindo em
consciência segundo ,a sua crença.
~as esta apresentação ~ostra que ,conser-
vámos as Inoções seguintes: sujeito, consciência,
crença, actos. Desta sequência, extraímos já
o termo ,central, decisivo, de que tudo depende:
a Inoção de ~mjeito.

90 91
A IDEOLOGIA INTERPELA OS INDIVíDUOS
COMO SUJEITOS

Esta tese seTVe para eXip1icitar a nossa


última proposição: só existe ideologia pelo
sujeito e para sujei,tos. Entenda-se: só existe
ideologia paJ'a sujeitos concretos, e esta desti-
nação da ideologia só é possível pelo sujeito:
entenda-se, pela categoria de sujeito e pelo seu
funcionamento.
Com ,isto pretendemos dizer que, mesmo que
ela só apareça sob esta denominação (o sujeito)
aquando da instauração da ideologi'aburguesa,
e sobretudo aquando da instauração da ideo-
logia jurídica \ a categoria de sujeito '(que

1 Que toma a. categoria juridica de «sujeito de


direito» para fazer dela uma noção ideológica: o ho-
mem é por natureza um sujeito.

93
pode funcionar sob OIUtvasdenominações: par Que o autor, enquanto escreve estas linhas
exemplü em Pl3Jtãü, a alma, Deus, ebc.) é a de um discurso que se pretente .científilca, es.teja
eategorra ,cün'Sltitutiva de tüda a ideülOlg,ia,seja completamente auselllte, ,como «sujeito», do
qual for a detellminaçãü desta (regional ou «seu» discursrOcierntíficü Crporquetodo a dis-
de classe) e seja qual [ar a sua data histó- curso rCicntífico é por def,inição um discurso
rka - dado que a ideologia não tem história. sem sujerito; não existe «Sujeito da ,ciência»
DizemüS: raC3Jtegüria .de sujeito é 'Constitu- a não ser numa ideologia da ciência) , é outra
tiva de toda a ,ideola~ia, mas aü mesmü tempo questão que por agara deixaremos de lado.
e imediatamente rucresc€II1Jtamosque a cate- COlmodizi,a admiraveLmente S. Paula, é no
«Lagos» (entenda-se: na ideülo~ia), que temos
goria de sujeito só é constitrutiva de toda a
«o ser, o movimento e a vida». Segue-se que
ideologia) na mediàa em que toda a ideologia
para você (leitor), rcoma'para mim, a categoria
tem par função (que a deji'Y/Je)«constituir» üS de sujeito é uma «evidêrnóa» primeira (as evi-
i'YIJdivíduosconcretos em sujeitos. É neste jogo
dências sãa sernpre ,primeiras) : é claro que eu
de duplacolI),sUtuição que cOll.&iste01 fUiOJciona- e você somos sujeitos (1.ivres, morais, et:c.).
mento de toda a ideülogia, !pois que a ideolog;ia Cama todas as evidênaias, incluindo as que
não é mais que o seu prÓlIJriüfUllIcionamerntü fazem com que uma !palavra «designe uma
nas forma:s mruteriais da exJistêrnoiadeste futll- coisa» üu «possua uma signifi:cação» (portantü
cijünamento. incluindü ,aiSevidêrncias da «trans'parência» da
Para se compreender bem 01 que segue, con- linguagem), esta «evidência» de que eu e você
vém sublinhar que tantü a autor destas linhas, somos sujeitos - e que esse facto nãü consti-
camü o leitür, são sujeitas, rportantü SlUjeitos tUliprablema - é rumefeito ideológ1co, a efeitü
ideológi'cas (prOlposição tautOllógica), istü é, ideológicü elementar 15. Aliás, é próprio da ideo-
que a 3Jutor comü 01 leitor ,desta:s lirnhas v,ivem
«eSIPontaneamente» üu «rnaturalmente» na ideo-
log,ia, no sentidü em que dissémas que «o 15 Os linguistas e os que, para diversos fins, uti-
hamem é par natureza um anianal ideológica». lizam a linguística, deparam-se com dificuldades que

94 95
logia impor (sem o parecer, (pois que se trata tando-lhe a mão (prática iritual material do
de «evidências») 'as evidêlllCiascomo evidências, reconhecimento ideológico da v,ida quotidiana,
que não podemos deixar de reconhecer, e pelo menos em França: noutras paragens,
perMlJte aS quais temos a inevitável reacção outros rituais).
de ex:elamarmos (€IIllvoz alta ou no «silêncio Com esta nota [prévia e estas üustrações
da consciência»): «é evidoote! É issp! Não concretas, pretenda llApenasfazer notar que eu
há dúvida!» e você (leitor) somos sempre já Isujeitos e,
Nestia reacção exeme-se a função de re- como tais, praticamos ininterruptamente os
conhecimento ideológko que é uma das duas rHuais do reconhecimento ideológico, que nos
funções da ideo.logia como tal (sendo o seu garantem que somos efectivamente Slujeitos
inverso a função de descornheGimento). concretos, individuais, inconfundíveis e (natu-
Dando um exemplo altamente «Iconcreto», ralmente) insubstituÍveis. O acto de escrever a
todos nós temos amigos que, quando nos batem que actualmente procedo e a leitura a que você
à porta, e quando de dentro, através da porta actualmente se dedica 1 são, também do ponta
foohada, rperguntamos: «quem é?», reSlpondem de vista desta relaçãO', rituais do reconheci-
(pois «é evidoote») «'sou eu! ». De fado, reco- mento ideológico, incluimo a «evidêIliCia»com
nhecemos que «é ela» ou que «é ele». Abrim2s a qual se lhe pode impor (a você) a «verdade»
a porta e «realmente era mesmo ela». Dando ou o «erro» das minhas reflexões.
outro exemplo, quando reconhecemos na rua Mas o reconhecimento de que somos sujeitos
alguém do nosso (re)lconhecimento, mostramos e que funcionamos nos rituais práticos da vida
que o reconhecemos (e que reconhecemos que
ele nos reconheceu) dizendo-lhe «olá» e aper-
1 Notar: este duplo actualmente prova mais uma
vez que a ideologia é «eterna», dado que estes dois
«actualmente» estão separados por um intervalo de
provêm do facto de desconhecerem o jogo dos efeitos tempo; escrevo estas linhas a 6 de Abril de 1969, e
ideológicos em todos os discursos - inclusive nos pró- elas serão lidas mais tarde, numa época indetermi-
prios discursos científicos. nável.

96 97
quotidiana. mais elementar (B!perto de mão, o 8Ujeit08 concretos} pelo funcionamento da cate-
fa..cto de você ter um nome, o facto de saber, goria de sujeito.
mesmo se o ignoro, que você «tem» um 'Il0illle
t" Aqui está uma ,proposição que implica que
.~.
própdo, que o faz ser reconhecido como sujeito ª
F distingamo!';, ,por agora, os indivíduos concretos
t"
único, etc.) dá-nos aJpeI1asa «consoiência» da (pOrum lado, e os sujeitos COIliCretospor outro,
nossa prática incessaillite (eterna) do reconhe- embora a este nível o sujeito COllicretosó possa
cimento ideológico, - a sua consciência, isto é, existir assente num indivíduo COIliCreto.
o seu reconhecimento} - mas de maneira ne- Sugerimos então que a ideologi'a «3Jge»ou
nhuma nos dá o conhecimento (científico) do «funciona» de bal forma que «re,cruta» sujeitos
mecanismo deste reconhecimento. Ora é a este entre os indivíduos (recruta-os a todos), ou
conhecimento que é preciso chegar, se quiser- «transforma» os indivÍJduos em sujeitos (trans-
mos, embora falando na ideologia e do seio da forma-os a todos) por esta operação muito
ideologia, esboç,ar um discurso que tente rom- precisa a que chamamos a interpelação} que
per com a ideologia para correr o risco de ser o podemos representar-nos com base no tipo da
começo de um discurso científico (sem sujeito) mais banal interpelação polkial (ou não) de
todos 08 dias: «Eh! você» 1.
sobre a ideologia.
Se supusermos que a cena teórica imagi-
Portanto, para representar porque é que a
nada se passa na rua, o indivíduo interpelado
categoria de sujeito é ,constitutiva da ideolo-
'Volta-se. Por esta simples ,conversão física de
gia, que só existe pela ,constituição dos sujeitos
180 graus, torna-se sujeito. Porquê? Porque
concretos em sujeitos, vou empregar um modo reconheceu que a interpelação se dirigia «efecti-
de exposição partkular: suficientemente «con-
creto» para que seja re,conhecido, mas sufi-
cientemente abstracto para que seja pe:nsável
e pens3Jdo, dando lugar a um conhecimento. 1 A interpelação, prática quotidiana submetida a
um ritual preciso, adquire uma forma muito «especial»
Direi numa primeim fórmula: toda a ideo- na prática policial da «interpelação», na qual o que
logia interpela 08 indivíduos concretos como estâ em causa é a interpelação de «suspeitos».

98 99
VamJJente»a ele, e que «era de facto ele que :passar-se fora da ideologia (muito precisa-
era interpelado» (e não outro). A exiPeriência meIllte, na rua) pltssa-se de facto na ideologia.
prova que as telecomunicações práticas da O que se passa de facto na ideologia parece
intEmpelação são de tal maneira que, 'pratica- porbLnto pa.ssar..,se fora dela. Ê por isso que
mente, a ,inteI'IPelação l1llJIlicafalha 18. pessoa aqueles que estão na .ideolo~ia se julgam por
visada: chamamento verbal, assobio, o inter- definição fora dela: um dos efeitos da ideolo-
pela.do reconhece 8ellliPre que era a ele que gia é a dencgação ,prática do carácter ideológico
iÍnterpela;vam. Fenómeno estranho, que 8lpes,ar da ideollogia, pela ideologia: a ideologia nunca
do gran~ número dos que «têm a COQ1SlCiên- diz «'sou tdeológüca». Ê predso estar fora da
cia trlllnquila», não se explica apenas pelo ,ideologia, ,i'sto é, no Iconhecimentocientífko,
«sentimento de culpabilidade». para poder dizer: estou na ideologia (caso
Naturalmente, para comodidade e clareza excepcional) ou ('caso geral): estava na ideo-
da eXiposiçãodo nosso pequeno teatro teórico, logia. Ê sabido que a a,cusação de se estar na
somos obrigados a 8lpresentar as coisas dentro ideologia só é feita l1elativamente aoS outros, e
de uma sequênoia, com um antes e um depoús, nunca relativamente ao próprio (a menos que
portanto dentro de uma sucessão temporal. se seja verdadei11amente SlpinoZÍ'sta ou mar-
Indivíduos passeiam. Algures (normalmente nas xista, o que 'neste ponto corresponde exltcta-
costas destes) ouve-se a interpelação: «Eh! mente à mesma 'posição). O que equivale a
t
Pst!». Um indivíduo (90 % das ve~ é o cha-
mado) volta-se, crendo-desconfiando-<Sabeooo
que é a ele que chamam, portanto reconhecendo
i
I
!

dizer que a ideologia não tem :exterior (a ela),
mas ao mesmo tempo que é apenas exterior
(para 'a JCiê,nciae para a realiidade).
que «é efectiVMIlente ele» que é visado pela Duzentos anos antes de Marx, Spinoza
inteIlpelação. Mas, na realidrude, as coisas eXipli,cou pel1feitamente e!sta questão; Marx
passam~ sem a mínima sucessão. A existên- praUcou-a, mas sem a eXiplicar pormenorizada-
cia da ideologi,a e a linterpelação dos ,indivLduO'S mente. Mas deixemos este ponto, no entanto
como sujeitos são uma únÍlCae mesma coisa. pesado de ,consequências não só teóricals 'como
Podemos acrescentar: o que assim parece direct.amente políticrus, dado que, por exemplo,

100 101
toda a teoria da critica e da autocritJica, regra se pusermos de lado os «sentimentos», isto é,
d~ ouro da !prática da luta de classes mar- as formas da ideologia famiLiar, IpaJternal/ma-
XIsba-Ieninista, dele depende. te mal/conjugal/fraternal, nas quais acI'IÍança
Portanto a ideologia inteI1pela os indivi- que vai nascer é esperada: está previamente
duos como sujeitos. Como a ideologia é eterna, estabelecido que terá o Nome do Pai, terá
vamos suprimir a forma da temporalidade na portanto uma idoobidade, e será iJnsubstituíve1.
qual representámos o funoionaJIDentoda ideolo-
Antes de nascer, a criooça é portanto sem-
gia e afirmar: a ideologia seIDipre-já ,interpelou
pre-já sujeito, designado a sê-Ia na e pela con-
os indivíduos lComo sujeitos, o que nos leva
figuração ideológica familiar espedfJca em
a precisar que os individuos são sempre-já
que é «esper8Jda» d€IPoisde ter sido concebida.
lintenpelados lpela ideologia como sujeitos, e nos
conduz necessariamente a uma última propo- É inútil dizer que esta configuração ideológica
sição: os indivíduos são sempre-já sujeitos. familiar é, na sua uniddade, fortemente estru-
Portanto, Os indivíduos são «abstractos» rela- turada, e que é nesta estrutura implacável
tivamoote 'aos sujeitos que sempre-já são. Esta mais ou menos «patológica» (sUipOndo que
!proposição pode parecer rum par8Jdoxo. este ,termo tem um sentido adequado), que o
Que um indivíduo seja sempre-já sujeito, ootigo futuro-sujeito deve «encontrar» o «seu»
mesmo Mltes de nascer, é no entanto a simples lugar, isto é, «tornar-se» o sujeito sexual
realidade, acessível a ,c'ada um e, de maneira (rapaz ou r8.lpariga) que já é IPrevia-mente.
:nenhuma, um paradoxo. Quando sub.linhou o Compreende-se que esta pressão (contrainte)
lI'itual oideológi,code que se rodeia a ex,pe:ctativa e esta pré-designação ideológi,ca, e todos os
de um «nasoimento», esse «wcontecimento feliz», riÍtuais da criação e mais tarde da eduC'ação
iFreud mostrou que os individuos são sempre familiares, têm uma reLação com o que Freud
«abstractos» relativamente aos .sujeitos que estudou nas formas das «etapas» pré.,genitais
eles são se~pre-ji. Todos sabemos quanto e e genitais da sexualJid8Jde, portanto naquilo
como uma iCriooça que 'Vai nascer é esperada. que Freud definiu, [pelos seus efeJtos, como
O que equi'vale a dizer muito prosruicamente, sendo o incOiIlsciente.

102 103
Vamos dar mais um 'passo. O que vai agora
oCUiPara nossa atenção é a mam.eira como os
«8Jctores» desta encenação da intel'lPelação e os
seus respectivos p8Jpeis são reflectidos na pró-
pria estrutura de ·toda e qualquer ideologia.

UM EXEMPLO: A IDEOLOGIA
RELIGIOSA CRISTA

Como ·a estrutura formal de qualquer ideo-


logia é sempre a me1sma, vamos contentar-lIlos
!Com .8Jnalisar um único exemplo, acessí,vel a
tOldos, o da ,ideologiareHgiosa, rpreCÍ's8Jlldoque
a m.esma demonstr8Jção pode ser reproduzida
a propósito da ideologia moral, jurídica, paU-
tic,a, estétiJca, ete.
Consideremos port8Jllto a ,ideolo~ia rel1giosa
clIhlltã. Vamos empregar uma figura deretó-
rioca e «fazê-Ia If,alar», isto é, reunir num diS'-
curso ficHcio o ,que ela «diz» não só IIlOsseus
Test'8Jmentos, nos Iseus teólogos, nos seus Ser-
mões, m8JSt8JIDbémnas suas práticrus, nos seus
'rituais, nas suas .cerimóni8JSe nos seus sacr8J-
mentos. A ideolo~iareHgiosa crilstã diz mais
ou menos isto.

101, 105
Diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano cha- interpelando o indivíduo Pedro para fazer dele
mado Pedra (todo o indivíduo é oh,amado p€lo um sujeito, livre de obedecer ou de desobede-
seu nome no sentido passivo, nunca é ele que cer ao3<p€10, isto é, às <wdens de Deus; se ela
se dá a si próprio o seu Nome), Ipara te dizer os chama pelo seu Nome, reconhecendo assim
que Deus existe e que Itens de lhe prestar que eles são sempre-já inter;pelados como su-
contas. AcreSiCe:ruta:é Deus que se dil'lige a ti jeitos, com uma identidade pessoal (a tal ponto
!pela minha voz (a Escritura recolheu a Ipala- que o Cristo de Pascal diz: «Foi por ti que
vra de Deus, ,a Tradição transmitiu-a, a Infa.- ver,ti tal 'gota do meu s8ingue») ; se ela os inter-
libilidade Pontifical fixou-a alOS seus pontos pela de tal forma que o sujeito responde «sim,
«delicados» para todo o sempre). Diz: eis quem sou eu!»,. se ela obtém deles o reconhecimento
tu és: tu és Pedro! Eisa tua origem, foste de que eles ocupam de facto o lugar que ela
criado por Deus desde o Principio, embora lhes atribui no mundo, uma residência fixa:
tenhas nasddo em 1920 depois de Cristo! Eis «é verdade, estou aqui, operário, patrão, sol-
qual é o teu lugar no mundo! Eis o que deves dado!» neste vale de lágrimas; se ela obtém
fazer! Se assim fizeres, se observares «,a lei deles o re.conhec,imento de um destino (a vida
do amor», serás salvo, tu Pedro, e farás parte ou a condenação eternas) ,conforme o respeito
do Corpo Glorioso de Cristo! er!:c., ..., ou o desprezo com que eles tratarão os «man-
Ora, aqui está um discurso 8ibsolutamente damentos de Deus», a Lei tornada Amor;
banal, mas ao mesmo tempo, absolutamente - se tudo isto se Ipassa de facto assim nas
surpreendente. práticas dos rituais bem conhecidos do baiip-
Sunp.reemdente, porque se -considerarmos que tismo, da confirmação, da ,comunhão, da COill-
a ideologia religiosa se dirige de facto aos indi- fis'são e da extrema-unção, et:c.... ), devemos
víduos 1 ,para os «transformar em sujeitos», notar que todo este «procedimento» que põe
em cena sujeitos religiosos ICI1istãos,é domi-
nada ,por um fenómeno estra,nho: é que só
1 Embora saibamos que o indivíduo é sempre já
sujeito, continuamos a empregar este termo, cómodo existe uma tal multidão de 'sujeitos religiosos
pelo efeito de contraste que produz. possíveis, sob a condição absoluta de que

106 107
exista um Outro Sujeito unko, Absoluto, a sa- a saber, o indivíduo chamado Moisés. E Moisés
ber, Deus. interpeladO-'Chamado pelo seu Nome, tendo
VamO's passar a designar este Sujeito novo reconhecido que era «de footo» ele que era cha-
e s,ingular !pela fOI1ma escI1ita Sujeito com mado por Deus, reconhece que é sujeito,
maiúscula para o distinguir dos sujeitos vul- sujeito de Deus, sujeito submetido a Deus,
gares, sem maiúSiCula. sujeito pelo Sujeito· e submetido ao Sujeito.
Temos portanto que a interpelaçãO' dos indi- A prova: obedece-lhe e faz com que o seu povo
viduos como sujeitos sUipõe a «existência» de obedeça às ordens de Deus.
um Outro Sujeito, Único e ,central, em Nome Deus é portanto o Sujeito, e Moisés e os
de quem a ideologia reliigiosa ,inteI1pela todos inúmeros sujeitos do povo de Deus, os seus
08 indivíduos ,comO' sujeitos. Tudo isto está interlocutores-inteI1pel!lJdos: os seus espelhos,
escritO' claramente 1 naquilo a que precisa- os seus reflexos. Não foram os homens criados
mente se cha;ma a Escritura. «Naquele tempo, à imagem de Deus? Como toda a ,veflexão teo-
o Senhor Deus (Yaweh) fallou a Moisés na lóglca prova, quando «poderia» perfeitamente
nuvem. E o Senhor ·chamou Moisés: «Moisés!» rpas'sar sem eles ... , Deus precisa dos homens,
«Sou (de fa;cto) eu!, di,sse Moisés, sou Moisés o Sujeito preci,sa dos sujei,tos, como os homens
o teu 'serv,idor, fala e escutar.,te-ei!» E o Senhor precisam de Deus, os sujeitos iprecis!lJm do
fa;lou a Moisés e disse-,lhe: «Sou Aquele que Ê». Sujeito. Melhor: Deus, o gr!lJnde Sujeito dos
Deus de!fine-'se portanto a si IpTÓipriocomo sujei tos, precisa dos homens, 'a;té na tremenda
o sujerito por eXicelência, aquele que é por si inversão da sua ~magem neles (quando os
e Ipara Isi (<<SouAquele que Ê»), e aquele que home,ns meI1gulham no deboche, isto é, no
interpela o seu sujeito, o indivíduo que lhe pecado).
está submertido pel'a sua própria itIlterpela;ção, Melhor: Deus desdobra-se e en~ia ao mundo
o seu Filho, como simples sujeito «abandonado»
por ele (o longo queixume do Jardim das Oli-
1 Cito de uma maneira combinada, não à letra, veir!lJsque acaba na Cruz), sujeito mM Sujeito,
mas em «espírito e em verdade». homem mas Deus, 'para realizar aquilo que

108 109
prepara a Redenção final, a Ressurreição de pela à sua volta a infinJdade dos indi'VÍ-
Cl'Iisto.Deus !precisa portanto de «se fazer:. duos como sujeitos, numa dupla relaçãO'espe-
homem a si próprio, a Sujei:to precisa de se cular tal que submete os sujeitos aO'Sujeito,
tornar sujeito, como que para mostrar eIllipiri- embora damda-lhes, na Sujeito em que qual-
camente, de uma forma 'Vislvel aos alhos e quer sujeito lpode contemplar a sua própria
tangível às mãas (ver S. Tomás) dos sujeitos ima;gem (presente e futura) a garantia de que
que, se são sujeitos, submetidos ao Sujeito, é é efecti1vamelIltedeles e Dele que se trata, e
apenas para no dia do Julgamento Final entra- que, dado que tudo se passa em Família (a
rem, ,como Cristo, no seio do Senhor, cisto é, Sagrada FamíLia: a Fa;mília é por essência
no Sujeito 1. sa;grada), «Entre todos, Deus reconhecerá os
Decifremos em lingua;gem teórica esta seus», i'sto é, O'Sque tiverem reconhooido Deus
admirável necessidade do desdabramenta· do e se reconhecerem nele, esses serão salvos.
Sujeito em sujeitos e do própria Sujeito em Resumamos o que adquirimos sobre a ideo-
8ujeito-SiUjeitO. logia em gerruI.
Constatamos que a estrutura de toda a A es.trtIrturaredabrada da idealogia asse-
ideologia, inteI'pelando os indivíduos cOlmo gura ao mesma tempo:
sujeitas em nome de um Sujeito Único e Abso-
luto, é especular, quer dizer, em esp'elho, e 1) a interpelação das «indivÍduas» como
duplamente especular: este redobramento espe- suje1tos,
cular é constitutivo da ideologia e lliSsegurao 2) a sua submissão ao Sujeito,
seu funcionamento. O que s,ignifica que toda 3) o reconhecimento mútuo entre as su-
a ideologia é centrada, que o Sujeito Absa- jeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos,
luto ocupa o lugar único do Centro, e inter- e finalmente a reconhecimento do sujeito por
ele próprio 1,
1 o dogma da Trindade é a própria teoria do
desdobramento do Sujeito (o Pai) em sujeito (o Filho) 1 Hegel é (à sua maneira) um admirãvel «teó-
e da sua relação especular (o Espírito Santo). rico» da ideologia, enquanto «teórico» do Reconheci-

110 111
4) a garantia absoluta que tudo está bem I maneira», que é preciso obedecer a Deus, à
assim, e que, na condição de os sujeitos reconhe- ' voz 'da consciência, ao padre, a de Gaulle, ao
,cerem o que eles são e de se conduzirem em patrão, ao engenheiro, que é preciso «amar
consequência, tudo 'correrá bem: «Assim seja». o próximo como a si mesmo», etc. A conduta
Result.ado: encerrados neste quádruplo sis- concreta, material desta maioria não é mais
tema de lnteJ.iPcl.?-ção'como sujeitos, de submis- que a inscrição na vida das admiráveis pala-
são ao Sujeito, de reconhecimento universal e vras da sua oração: «Assim seja!».
de garantia absoluta, os sujeitos «amdam», Sim, os sujeitos «andam sozinhos». Todo
«andam sozinhos» na imensa maioria dos casos, o mistério deste efeito está nos dois primeiros
com excepção dos «maus sujeitos», que provo- momentos do quádrUIPlosistema de que~abá-
cam a intervenção deste ou daquele destaca- mos de falar, ou, se preferirmos, na ambigui-
mento de aparelho (repressivo) de Estado. Mas dade do termo de ."'Ujeito.Naac€lpção corrente
a imensa ma,ioria dos (bons) sujeitos anda bem do termo, sujeito significa de facto: 1) uma
«sozinha», ü,to é, pela ideologia (,cujas formas subjec.tirvidade livre: 11lll centro de inidativas,
concretas são realizadas nos Aparelhos Ideo- autor e responsável pelos seUlSa.ctos; 2)- um
lógicos de Estado). Inserem-,se nas práticas, ser submetido, sujeito a uma autoridade supe-
regidas pelos rituais dos AlE. «Reconhecem» mar, portanto desprovido de toda a liberdade,
o estado de coisas existente (das Bestehende), salvo da de aceitar livremente a sua submissão.
que «é vevdade que é assim e não de outra Esta última reflexão dá-iIloS o sentido desta
ambiguidade, que reflecte apenas o efeito que
a produz: o indivíduo é interpelado como
sujeito (livre) para qwe se submeta livremente
mento Universal, que acaba infelizmente na ideologia às ordens do Sujeito, partanto para que aceite
do Sabel Absoluto. Feuerbach é um espantoso «teórico»
da relação especular, que acaba infelizmente na ideolo-
(livremente) a sua sujeição, !portamto, 'Para que
gia da Essência Humana. Para encontrarmos matéria «realize sozinho» os gEstos e os~tos da sua
para desenvolver uma teoria da garantia, é preciso sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua
voltarmos a Spinoza. sujeição. É !por isso que «andam sozinhos».
112 113
II
,
I'

I
.~

«Assim seja!» ... Esta exlpressão que regista J


o ,efeito a obter, ,prova que não é «natural-
mente» assim (<<n8Jturalmente»:fora desta ora-
ção, isto é, fora da intervenção ideológica).
EstaetXJPl'essão prova que ·é preciso que seja
assim, 'para que as coisas S€ljam o que devem
II
:~

ser: para que a reprodução da-s relações de pro- POST-SCRIPTUM


dução seja, até nos processos de :produção e de
circulação, assegurada dia 31PÓS dia na «cons-
ciência», Jsto é, no comportamento dos indiví-
duos-sujeitos, que ocupam os postos que a di- Se estas poucas teses esquemáticas permi-
IV1isãosocial-téc.ni,ca do tl"abalho lhas atribui tem esclarecer certos aspectos do funciona-
na produção, na exlploração, na rEliPressão, na mento da Superestrutura e do seu modo de
iÍdeologização, na prática científica, ete. De intervenção na Infraestrutura, são evidente-
facto, o que é que está por detrás deste meca- mente abstractas, e deixam necessariamente
nismo de reconhecimento eSipecular do Suje1to em sU8lpenso problemas importantes, acerca
e dos indivíduos ,inteliPelados como sujeitos, e dos quais é preciso dizer umas palavras:
da garantia dada pelo S.ujeito aos sujeitos se
estes ac'eitarem Hvremente a sua sujeição às 1) O problema do processo de conjunto
«ordens» do Sujeito? A ,realidade Ipresente neste da realização da reprodução da.s relações de
mecaJllismo, a que é necessariamente desconJw- produção.
cUla nas pr6prias formas do reconhecimento Os AlE oontribuem, como elemento deste
(ideologia = reooooocimfJnto/ des<XmJwcimento), processo, para esta reprodução. Mas o ponto
é efectivamente, em última análise, a reprodu- dE' vista da sua sililliples contribuição perma-
ção das rel8JÇoosde íprodução e das relações nece abstracto.
que delas derivam. Ê uni'camente no seio dos próprios pro-
Janeiro-Abril de 1969 cessos de produção e de circulação que esta

114 115
reprodução é realizada.. :m realizada pelo meca- o proces80 de conjunto da realização da
nismo destes processos, onde é «acabada» r~produção das relações de produção ,permanece
a formação dos trabalhadores, onde são dis-
lPortarnto abstracto, enquanto não nos colocar-
tribuídos os lugares a ocupar, etc. :m no mos no ponto de vista desta luta de classes.
mecanismo interno destes processos que vem CoIOCarmO-t1lOS no ponto de vista da produção
exercer-se o efeito de diferentes ideologias (pri- é portanto, em última instância, colocarmo-nos
meiro que tudo o da ideologia jurídico-moral). no ponto de vista da luta das classes.
Mas este ponto de vista permamece a;1nda
abstra;cto. Porque numa sociedade de classes 2) O Iproblema da niatureza de classe das
as relações da produção são relações de eXiplo- ideologias eXJistentesnuma formação social.
I'ação, portamto, relações entre classes antagó- O «meca;nismo» da ,ideolog,ia em geral é
nicas. A reprodução das relações de produção, uma coisa. Vimos que se reduzia a alguns
objectivo úLtimo da classe dominante, não ,pode !princípios definíveis por poucas palavras (tão
portanto ser uma silllllples operação téc~ica «pobres» como as que em Marx definem a pro-
formando e distribuindo os indivíduos pelos dução em geral, ou em Freud o inconsciente
diferentes postos da «dirvisão técm,ica» do tra- em geral). Se encerra alguma verdade, este
balho. Na verdade não existe, excepto na ideo- mecanismo é abstracto à vista de qualquer for-
logia da classe dominante, «divisão técnka» do mação ideológica real.
trabalho: toda a divisão «técnica», toda a orga- Avamçámos a ideia segundo a qual as ideo-
nização «técnica» do trabalho é a forma e a 10g,iaseram realizadas em instituições, nos seus
máscara de uma divisão e de uma organização ritua.is e nas suas prátioas, os AlE. Vimos que
sociais (= de classe) do trabalho. Ass,im, a a este título elas concorriam ,para esta forma
reprodução das relações de produção só pode da luta de classes, 'v:i1:,alpara a classe domi-
ser um empreendimento de classe. Realiza-se nante, que é a reprodução das relações de prÜ'-
através de uma luta de cla;sse que opõe a clas,se dução. Mas este ponto de vista em si, por mais
dominante à classe eXiplorada. real que seja, !permanece abstracto.
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De facto, o ESltadoe os seus Aiparelhossó efeito, a luta de classes nos AlE é um aspecto
têm sentido do ponto de vista da luta de clas- da luta de classes, !por'Vezesdmportante e sÍn-
ses, como aJparclhosda Lutadas classes, asse- tomáüco: por exemplo a luta anti-religiosa no
19urandoa opressão de classe e garantindo as século XVIII, !por exemplo a «crise» do AlE
condiçÕ€sda exploração e da reprodução desta. escolar em todos os paises capitalistas de hoje.
MaJsnão há luta de classes sem classes anta- Mas a luta de Iclasse nos AlE é apenas um
gónkas. Quem diz luta de claJsse da classe as/pectode uma luta de doassesque transborda
dominante diz resi,stência, revolta e luta de e ultrapassa os AlE. A ideolog,iaque uma ,classe
classe da classe dominada. no poder torna dominante nos seus AlE, «,real""
Ê por isso que os AlE não são a realiza- 1iza~» de facto nesses AlE, mas transbor-
ção da ,ideologia em geral) nem sequer a reali- da-os, ultrrupassa-os,!porquevem de outro lado.
zação sem conflitos da ideologia da classe Só do ponto de vi,sta das classes, ,isto é, da
dominante. A ideolog;ia da clàsse domin8,lnte Juta de classes, é que podemos dar conta das
não se torna dominante por obra e graça ideologias existentes numa formação social.
divina, nem mesmo pela vi;rtude da sim- Não só !porqueé a partir daí que podemos dar
ples tomada do poder de Estado. :m pela conta da realização da ideologia dominante
..instauração (mise en place) dos AlE, em que nos AlE e das fo.rmas de luta de classe de que
esta ideologia é realizada e se realiza, que ela os AlE são alvo e local. Mas também e sobre-
se toma dominante. Ora esta instauração não tudo, porque é a partir daí que podemos com-
se faz por si, é pelo ,contrário o cootro, o alvo preender donde provêm as ideologias que se
de uma duríSislimae ininterrupta luta de classe: ~eal,izame afrontam nos AlE. Porque, se é
primeiro contra as antigas classes domina;ntes verdade que os AlE rerpresentam a forma na
e contra as suas posições nosa"ntigos e novos qual a ideologia da Iclasse dominante deve
AlE, em seguida ,contra a classe eXiplorada. necessariamente realizar-se, e a forma com a
Mas este ponto de vista da luta de classe qual a ideologia da classe dominada delVene-
nos AlE permanece ainda abstracto. Com oessariamente medir...se e afrontar-se, as ideo-

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logias não «nascem» nos AlE, mas das classes
sociais envolvidas na luta de classes: das Souas
condições de existência, das suas práticas, das
suas ex.periências de luta, etc.

Abril de 1970
íNDICE

Ideologia e Apare'1hos Ideológicos de Estado 7


Sobre a reprodução das condições da produção 9
Reprodução dos meios de produção ---- 13
Reprodução da força de trabalho ------ 17
Infraestrutura e superestrutura ------- 25
O Estado -------------- 31
Os Aparelhos Ideológicos de Estado ---- 41
Sobre a reprodução das relações de produção 53
A propósito da ideologia --------- 69
A ideologia não tem história -------- 71
A ideologia é uma «representação» da relação
imaginária dos individuos com as suas con-
dições de existência ---------_ 77
A ideologia interpela os individuos como sujeitos 93
Um exemplo: a ideologia religiosa cristã -- 105
Post-Scrtptum -------------- 115

120

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