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2 A Definição de Número Uma Hipótese
2 A Definição de Número Uma Hipótese
Resumo
Nenhum aspecto da matemática foi tão analisado “à luz da teoria piagetiana” quan-
to o número. Os resultados encontrados por Piaget e Szeminska e publicados no livro A
gênese do número na criança geraram, também, inúmeras publicações acerca das suas
possíveis implicações pedagógicas. Para os pesquisadores, o número é elaborado a par-
tir da síntese operatória da seriação e da classificação, estabelecendo um tertium entre
as definições de número propostas por duas das principais correntes do pensamento
matemático: o logicismo e o intuicionismo. Neste artigo expõe-se o debate entre
intuicionismo e logicismo sobre o número e a posição epistemológica de Piaget que
levou a uma nova concepção de compreender a gênese do número na criança.
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Embora até então tivessem sido mas apenas numa coleção de sinais ou
tratadas, historicamente falando, como es- símbolos pré-lógicos e num conjunto de
tudos distintos, a matemática sempre operações com esses sinais. Como, por
relacionada com as ciências e a lógica com esse ponto de vista, a matemática carece
o idioma grego, o desenvolvimento de de conteúdo concreto e contém apenas
ambas, durante o século 19 e início do sé- elementos simbólicos ideais, a demons-
culo 20, de acordo com Russell, aproximou tração da consistência dos vários ramos
definitivamente lógica e matemática, a ló- da matemática constitui uma parte im-
gica tornando-se cada vez mais matemáti- portante e necessária do programa
ca e a matemática, cada vez mais lógica, formalista. Sem o acompanhamento des-
de maneira a ser, para Russell, inteiramente sa demonstração de consistência, todo o
impossível traçar uma linha entre as duas; estudo perde fundamentalmente o senti-
“na verdade, as duas são uma. Diferem do. Na tese formalista se tem o desenvol-
entre si como rapaz e homem: a lógica é a vimento axiomático da matemática
juventude da matemática e a matemática levado a seu extremo (Eves, 1995, p. 682).
é a maturidade da lógica” (Russell, 1974,
p. 186).
O intuicionismo
A tese do logicismo é que a matemática é
um ramo da lógica. Assim, a lógica, em Embora não tenha sido ele matemático
vez de ser apenas um instrumento da e nem tenha vivido a maior parte da sua
matemática, passa a ser considerada como vida no século 19, o pensamento filosófico
a geradora da matemática. Todos os con- de Immanuel Kant (1724-1804) influenciou
ceitos da matemática têm que ser formu- profundamente o desenvolvimento cientí-
lados em termos de conceitos lógicos, e fico e cultural dos séculos 19 e 20, inclusive
todos os teoremas da matemática têm que o da matemática, de modo que é oportuno
ser desenvolvidos como teoremas da ló- um breve interstício para algumas consi-
gica; a distinção entre matemática e lógi- derações acerca da posição da matemática
ca passa a ser uma questão de no sistema kantiano.
conveniência prática. (Eves, 1995, p. 677). Até Kant, tanto os filósofos racionalistas
quanto os empiristas dividiam as proposi-
ções matemáticas em duas classes mutua-
O formalismo mente excludentes e que esgotavam o uni-
verso das proposições: as analíticas, que
O embrião da escola formalista foi um englobam as verdades da razão e cuja nega-
estudo postulacional realizado pelo mate- ção conduz a não-contradições, e as
mático alemão David Hilbert (1862-1943) empíricas ou não-analíticas, que expressam
sobre a geometria, em 1899. Nesse estudo, os fatos. Kant reapresentou o problema da
Hilbert aprimorou o método matemático classificação das proposições oferecendo
desde a axiomática considerada material, uma outra: as proposições poderiam ser ana-
dos tempos de Euclides, à axiomática for- líticas e sintéticas, e a principal diferença
mal do século 20. Algum tempo depois, entre Kant e seus antecessores é que ele faz
tentando solucionar a crise instaurada pe- a distinção de duas classes de proposições
las antinomias na teoria dos conjuntos e sintéticas – as empíricas ou sintéticas a
para responder ao desafio à matemática posteriori e as sintéticas a priori, que não são
clássica, estabelecido pelos intuicionistas, empíricas.
Hilbert dedicou-se, seriamente, à As proposições matemáticas seriam,
elaboração do programa formalista. segundo Kant, sintéticas a priori, pois se-
riam as formas puras da intuição, o espa-
A tese do formalismo é que a matemática ço e o tempo, que permitiriam fundamen-
é, essencialmente, o estudo dos sistemas tar e legitimar os juízos sintéticos a priori
simbólicos formais. De fato, o formalismo (e também toda a matemática) expressan-
considera a matemática como uma cole- do a especificidade da matemática. Em
ção de desenvolvimentos abstratos em outras palavras, a matemática se referiria
que os termos são meros símbolos e as à realidade concreta, mas utilizaria, para
afirmações são apenas fórmulas envolven- apreendê-la, conhecimentos a priori de
do esses símbolos; a base mais funda da tempo e de espaço, o primeiro fundamen-
matemática não está plantada na lógica tando o número e, conseqüentemente, toda
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correntes, uma que se apoiava na lógica e outros sobre a gênese dos conceitos
outra na intuição, uma releitura dos clás- matemáticos mostram que:
sicos os enquadraria como intuicionistas.
E mais, como a intuição não oferece o ri- Todos os conceitos de caráter extensivo e
gor e nem mesmo a certeza, foi necessária métrico como a medida, a proporção em
uma evolução na ciência matemática, evo- geometria e o próprio número somente se
lução esta que a encaminhou para a lógi- constituem em sua forma operatória quan-
ca. Todavia, “para fazer aritmética, assim do podem se apoiar em agrupamentos ló-
como para fazer geometria, é preciso algo gicos de caráter intensivo (Piaget, 1975,
mais que a lógica pura”, sendo a intuição p. 96).
este “algo mais”, ressaltando contudo que,
sob esta denominação, diversas idéias es- Isto não significa, porém, que exista um
tão subentendidas (Poincaré, 1995, p. 18). estádio caracterizado por estruturas lógicas,
A intuição se apresenta, pois, sob que poderia ser considerado pré-numérico,
diversas formas, como um apelo aos sen- seguido de um estádio numérico; ao con-
tidos e à imaginação; como generalização, trário, existe uma interdependência entre o
por indução de procedimentos das ciên- lógico e o numérico e que é originária do
cias experimentais (representar um conceito de conservação dos conjuntos
polígono de n lados, por exemplo) e, a que como totalidades, sejam tais totalidades ló-
interessa particularmente a este trabalho, gicas ou numéricas. E mais, esta conserva-
a intuição do número puro (princípio da ção não se apresenta, absolutamente, como
indução) e da qual se originaria, para uma “intuição”, mas é construída, operato-
Poincaré, o verdadeiro raciocínio matemá- riamente, num longo e complexo processo.
tico, a única intuição que é passível de
certeza. A faculdade de conceber que uma unidade
A concepção de que o número (e, pode agregar-se a um “conjunto de unida-
conseqüentemente, a matemática) é pro- des”, que é assinalado por Poincaré como
duto de uma intuição racional foi (e ainda sendo o específico da intuição do número
é) sustentada por inúmeros matemáticos, puro, supõe, então, a “faculdade” de con-
existindo, porém, divergências quanto ao ceber conjuntos invariantes encaixados
sentido de intuição, que varia desde “a in- uns nos outros e a “faculdade” de ordenar
tuição da essência estática do número até desde o início os elementos agregados
a intuição operatória” (Piaget, 1975, p. 95). (Piaget, 1975, p. 97).
Ao considerar que o número inteiro
se funda sobre uma intuição sintética a No entanto, se a sucessão dos números
priori que se traduz no raciocínio por não pode se apoiar em uma primeira intui-
indução ou recorrência, Poincaré, por mais ção contendo de antemão a idéia de unida-
convencionalista que tenha sido em mui- de, após sua construção, esta mesma suces-
tas questões, como, por exemplo, sobre os são produz uma intuição racional, em tudo
vários tipos de números ou sobre os rela- semelhante à descrita por Poincaré, à
cionamentos entre os diversos tipos de es- diferença, porém, de ser final e não prévia,
paço, admite que tal intuição é operató-
ria, ou seja, uma intuição isenta de [...] no sentido de que o número é
contradição e que é “construída”. apreendido diretamente pelo espírito sem
A discordância de Piaget com os ser intermediado por raciocínios discursivos
intuicionistas se fundamentava no fato de ou lógicos. [...] concentração instantânea de
que a intuição do número puro não é a de inumeráveis raciocínios anteriores (e esque-
um número específico e sim de um núme- cidos), esta intuição final é apenas a expres-
ro qualquer, e seria, segundo o próprio são da compreensão inteligente e não nos
Poincaré (1943, p. 37), a “faculdade de con- informa nada quanto à sua construção
ceber que uma unidade pode agregar-se a (Piaget, 1975, p. 98).
um conjunto de unidades”.
Assim, ao procederem de uma Piaget considerou que a intuição
intuição que contém, de antemão, a no- operatória do número puro, irredutível à
ção de unidade, as operações numéricas lógica concebida por Poincaré, carecia de
se colocariam em oposição às operações especificidade, enquanto que a redução de
lógicas. Entretanto, os resultados de inú- Russell não seria operatória o suficiente, e
meras pesquisas realizadas por Piaget e sua hipótese, então, é a de que haveria a
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Referências bibliográficas
BOYER, C. B. História da matemática. São Paulo: Edgard Blücher, 1974.
DAVIS, H.; HERSH, R. A experiência matemática. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.