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ESTUDOS

A definição de número: uma hipótese


sobre a hipótese de Piaget
Clélia Maria Ignatius Nogueira

Resumo
Nenhum aspecto da matemática foi tão analisado “à luz da teoria piagetiana” quan-
to o número. Os resultados encontrados por Piaget e Szeminska e publicados no livro A
gênese do número na criança geraram, também, inúmeras publicações acerca das suas
possíveis implicações pedagógicas. Para os pesquisadores, o número é elaborado a par-
tir da síntese operatória da seriação e da classificação, estabelecendo um tertium entre
as definições de número propostas por duas das principais correntes do pensamento
matemático: o logicismo e o intuicionismo. Neste artigo expõe-se o debate entre
intuicionismo e logicismo sobre o número e a posição epistemológica de Piaget que
levou a uma nova concepção de compreender a gênese do número na criança.

Palavras-chave: definição piagetiana de número; logicismo; intuicionismo.

Abstract The definition of number: a hypothesis over


Piaget’s Theory
Perhaps no aspect in Mathematics has been so thoroughly analyzed than the concept
of number from Piaget’s point of view. Results by Piaget and Szeminska in their book “The
Child’s Conception of Number” brought forth several publications on possible pedagogical
implications on the issue. For researchers, the number concept is worked out from the
operational synthesis of serializing and classification, while establishing a tertium between
the definitions of number, which have been proposed by two of the main mathematical
thoughts, namely logics and intuitionalism. In this article the debate between intuitionalism
and logics on the number and Piaget’s epistemological stance that led to a new concept
on the genesis of number in the child is provided.

Keywords: Piaget’s definition of number; logics; intuitionism.

Introdução investigado os aspectos verbais e


conceituais do pensamento infantil que
Até 1940, Jean Piaget (1896-1980) já resultaram em A formação do símbolo na
havia analisado as fontes práticas e sen- criança. O próprio Piaget afirma, no prefá-
sório-motoras do desenvolvimento da cio da primeira edição do livro A gênese
criança e publicado seus resultados em do número na criança, escrito em 1941, que
duas obras clássicas: O nascimento da era necessário “ultrapassar essas duas
inteligência na criança e A construção do etapas preliminares e atingir os mecanis-
real na criança. Também já havia mos formadores da própria razão”, ou seja,

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procurar compreender como os esquemas infância. O interesse despertado pela


sensório-motores se organizavam no plano obra, desde sua publicação, jamais dimi-
do pensamento em sistemas operatórios, nuiu, apesar ou por causa das críticas te-
o que, para ele, só seria possível mediante óricas que o livro contém e dos novos
o estudo do número (Piaget; Szeminska, fatos experimentais nele apresentados.
1981, p. 11). Os sujeitos da pesquisa foram restritos
Do ponto de vista epistemológico, o a crianças do período intuitivo, não por-
problema “o que é o número?” intrigou filó- que não existissem indicativos da presen-
sofos e matemáticos desde a Antigüidade, ça do número em crianças mais jovens, mas
evidenciando a existência de um forte porque toda análise metodológica necessita
contraste entre a clareza instrumental do nú- fixar “começos”. Para não ficar remontan-
mero e a complexidade das teorias do indefinidamente às origens, Piaget e
construídas para explicá-lo. Nenhuma das Szeminska estabeleceram que os sujeitos
principais correntes do pensamento mate- de sua investigação deveriam ser capazes
mático, como o intuicionismo, o logicismo e de realizar tarefas inerentes às provas
o formalismo, até o século 20, conseguiu uma cognitivas programadas, limitando-os, en-
resposta satisfatória para explicar qual a ori- tão, ao período intuitivo ou pré-operatório.
gem do número. Tal desafio interessou a Para a determinação das provas,
Piaget, para quem somente uma investiga- Piaget e Szeminska se fixaram nas princi-
ção genética poderia conduzir a uma resposta pais “qualidades” ou “necessidades” do
mais conclusiva. número para existir – a conservação de
quantidades (condição de todo e qualquer
Assim como a verdade técnica da conhecimento), a correspondência termo
aritmética está fora de toda discussão, a a termo (essencial para a contagem), a de-
questão de se saber o que é o número dei- terminação da cardinalidade e do princí-
xa evidente a surpreendente incapacida- pio ordinal (aspectos indissociáveis do nú-
de do pensamento para apreender qual é mero) – , e, em todas elas, é possível per-
a natureza de certos instrumentos nos ceber que os autores buscam confirmar a
quais, entretanto, acredita compreender hipótese, não colocada abertamente, de
completamente e os utiliza em quase que o número é a síntese da classificação
todos os seus atos. e da seriação.
Como Piaget e Szeminska formularam
Este contraste entre a evidência essa hipótese é o tema que investigamos,
instrumental do número e a confusão das mediante pesquisa bibliográfica sobre a
teorias epistemológicas para explicá-lo construção do número, objetivando compre-
deixa claro a necessidade de uma ender o contexto científico e filosófico no
investigação genética: o desconhecimen- qual os pesquisadores estavam inseridos.
to do pensamento em relação às engrena-
gens essenciais de seu próprio mecanis-
mo é, com efeito, o índice psicológico de O número pela história e
seu caráter elementar e, em conseqüên- pela filosofia: algumas
cia, da necessidade de se remontar aos considerações
primórdios de sua formação para poder
alcançá-las (Piaget, 1975, p. 67-68). Até o século 18, embora já inteiramente
dedutiva, a matemática estava particular-
Piaget, em parceria com Alina mente ligada aos algoritmos, e pouca ou
Szeminska, realizou esta investigação ge- nenhuma preocupação existia quanto à
nética; os resultados obtidos foram relata- natureza de seus elementos ou quanto aos
dos no livro La genèse du nombre chez seus fundamentos. De uma maneira geral,
l’enfant, publicado em 1941, definindo à exceção do período clássico, na Grécia
número como “a síntese da classificação e Antiga, a evolução das idéias matemáticas
da seriação”. prosseguiu, até aí, de uma maneira prati-
No texto em questão apareceu, pela camente linear, sem maiores revoluções.
primeira vez, a resposta à pergunta: O que Esta história, vista hoje, parece indicar que
é número? Piaget e Szeminska se propu- a matemática se desenvolveu de uma
seram a apresentar, a partir de observa- maneira praticamente “esperada”.
ções precisas, uma explicação teórica co- Tal não é, todavia, o panorama do
erente da construção do número na século 19, no qual, após a descoberta de

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A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget

um novo mundo na geometria, a matemá- dividir os matemáticos quanto aos


tica passou a ser reconhecida não mais fundamentos da matemática.
como uma ciência natural, decorrente da
observação da natureza, ou que buscasse
descrevê-la, mas como uma criação inte- O logicismo
lectual do homem. Em decorrência dessa
nova concepção surgida no século 19, com O matemático alemão Friedrich Ludwig
o advento das geometrias não-euclidianas, Gottlob Frege (1848-1925) acreditava que a
a aritmetização da análise e da álgebra, a solução para o impasse seria a redução da
adoção da lógica simbólica como a lingua- aritmética à lógica. Para realizar esta tarefa,
gem da matemática e com a libertação da pretendia efetivar a consecução de dois
matemática do real, eclodiu o que ficou grandes objetivos: o primeiro seria definir
conhecido como “a crise dos fundamentos” toda expressão aritmética em termos lógi-
da matemática. Surgiram então, como va- cos e com isso mostrar que a toda expres-
mos descrever a seguir, diferentes formas são aritmética equivale uma expressão ló-
de conceber a matemática e, conseqüente- gica determinada; caso conseguisse realizar
mente, diferentes definições para número. tal tarefa, o segundo objetivo consistiria em
mostrar que as proposições lógicas obtidas
poderiam ser deduzidas de leis lógicas
As principais correntes do imediatamente evidentes.
pensamento matemático Frege eliminou qualquer recurso à
intuição e à linguagem comum, procuran-
Por quase todo o século 19, o mito de do mostrar que a aritmética poderia ser
Euclides (c.450-c.380 a.C.) era inabalável considerada como um ramo da lógica e que
tanto para os filósofos como para os mate- suas demonstrações não necessitavam se
máticos. A geometria euclidiana era con- fundamentar nem na experiência e nem na
siderada por todos “como o mais firme e intuição. Observou, então, que a matemá-
confiável ramo do conhecimento” (Davis; tica necessitava de uma profunda revisão
Hersh, 1986, p. 371). crítica, como nunca acontecera antes. Acre-
A descoberta das geometrias não- ditava que seriam necessárias demonstra-
euclidianas, contudo, implicou a perda da ções de proposições que, anteriormente, se
certeza da geometria, abalando, conse- aceitavam como evidentes e que conceitos
qüentemente, não só os alicerces da mate- relativamente novos, como de função, de
mática, mas de todo o conhecimento. Os contínuo, de limite, de infinito, etc., pre-
matemáticos do século 19 enfrentaram o cisavam ser reexaminados. De maneira
problema e buscaram uma outra fonte geral, seria necessário examinar todos os
segura para fundamentar seus trabalhos, campos da matemática com o rigor de de-
elegendo a aritmética como a “nova base monstração, delimitação precisa da vali-
sólida”. dade dos conceitos e sua exata definição,
Ao alicerçar a matemática sobre a a partir já do próprio conceito de número.
aritmética, porém, se estava, em última ins- Além da perda de credibilidade da ge-
tância, fundamentando-a sobre o número ometria como base sólida, é preciso recor-
natural, e verificou-se, então, que este não dar que, praticamente na mesma época,
possuía uma definição matemática forma- apareceram as várias antinomias da teoria
lizada, a ponto de o alemão Kronecker dos conjuntos, abalando todo o edifício ma-
(1823-1891) haver dito que “Deus fez os temático e fortalecendo a idéia de Frege,
números inteiros, todo o resto é criação do de que apenas uma análise minuciosa dos
homem” (Eves, 1995, p. 616). fundamentos da matemática, “graças ao
Estava desencadeada a “crise dos novo instrumento lógico, poderia salvar a
fundamentos” na matemática. coerência das matemáticas” (Grize, apud
A partir daí surgiram diversas Piaget et al., 1980, p. 121).
correntes buscando soluções para os pro- O programa apresentado por Frege não
fundos problemas apresentados, soluções encontrou eco até ser acatado por B. Russell
estas que se resumiam em tornar a mate- (1872-1970) e A. Whitehead (1861-1947).
mática, novamente, uma ciência confiável. Os dois retomaram a tese de Frege e procu-
Dessas correntes, três se destacaram: o raram demonstrar que a matemática pura
logicismo, o intuicionismo e o formalismo. (incluída aí a geometria) poderia ser
Estas três correntes continuam, até hoje, a inteiramente deduzida da lógica.

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Embora até então tivessem sido mas apenas numa coleção de sinais ou
tratadas, historicamente falando, como es- símbolos pré-lógicos e num conjunto de
tudos distintos, a matemática sempre operações com esses sinais. Como, por
relacionada com as ciências e a lógica com esse ponto de vista, a matemática carece
o idioma grego, o desenvolvimento de de conteúdo concreto e contém apenas
ambas, durante o século 19 e início do sé- elementos simbólicos ideais, a demons-
culo 20, de acordo com Russell, aproximou tração da consistência dos vários ramos
definitivamente lógica e matemática, a ló- da matemática constitui uma parte im-
gica tornando-se cada vez mais matemáti- portante e necessária do programa
ca e a matemática, cada vez mais lógica, formalista. Sem o acompanhamento des-
de maneira a ser, para Russell, inteiramente sa demonstração de consistência, todo o
impossível traçar uma linha entre as duas; estudo perde fundamentalmente o senti-
“na verdade, as duas são uma. Diferem do. Na tese formalista se tem o desenvol-
entre si como rapaz e homem: a lógica é a vimento axiomático da matemática
juventude da matemática e a matemática levado a seu extremo (Eves, 1995, p. 682).
é a maturidade da lógica” (Russell, 1974,
p. 186).
O intuicionismo
A tese do logicismo é que a matemática é
um ramo da lógica. Assim, a lógica, em Embora não tenha sido ele matemático
vez de ser apenas um instrumento da e nem tenha vivido a maior parte da sua
matemática, passa a ser considerada como vida no século 19, o pensamento filosófico
a geradora da matemática. Todos os con- de Immanuel Kant (1724-1804) influenciou
ceitos da matemática têm que ser formu- profundamente o desenvolvimento cientí-
lados em termos de conceitos lógicos, e fico e cultural dos séculos 19 e 20, inclusive
todos os teoremas da matemática têm que o da matemática, de modo que é oportuno
ser desenvolvidos como teoremas da ló- um breve interstício para algumas consi-
gica; a distinção entre matemática e lógi- derações acerca da posição da matemática
ca passa a ser uma questão de no sistema kantiano.
conveniência prática. (Eves, 1995, p. 677). Até Kant, tanto os filósofos racionalistas
quanto os empiristas dividiam as proposi-
ções matemáticas em duas classes mutua-
O formalismo mente excludentes e que esgotavam o uni-
verso das proposições: as analíticas, que
O embrião da escola formalista foi um englobam as verdades da razão e cuja nega-
estudo postulacional realizado pelo mate- ção conduz a não-contradições, e as
mático alemão David Hilbert (1862-1943) empíricas ou não-analíticas, que expressam
sobre a geometria, em 1899. Nesse estudo, os fatos. Kant reapresentou o problema da
Hilbert aprimorou o método matemático classificação das proposições oferecendo
desde a axiomática considerada material, uma outra: as proposições poderiam ser ana-
dos tempos de Euclides, à axiomática for- líticas e sintéticas, e a principal diferença
mal do século 20. Algum tempo depois, entre Kant e seus antecessores é que ele faz
tentando solucionar a crise instaurada pe- a distinção de duas classes de proposições
las antinomias na teoria dos conjuntos e sintéticas – as empíricas ou sintéticas a
para responder ao desafio à matemática posteriori e as sintéticas a priori, que não são
clássica, estabelecido pelos intuicionistas, empíricas.
Hilbert dedicou-se, seriamente, à As proposições matemáticas seriam,
elaboração do programa formalista. segundo Kant, sintéticas a priori, pois se-
riam as formas puras da intuição, o espa-
A tese do formalismo é que a matemática ço e o tempo, que permitiriam fundamen-
é, essencialmente, o estudo dos sistemas tar e legitimar os juízos sintéticos a priori
simbólicos formais. De fato, o formalismo (e também toda a matemática) expressan-
considera a matemática como uma cole- do a especificidade da matemática. Em
ção de desenvolvimentos abstratos em outras palavras, a matemática se referiria
que os termos são meros símbolos e as à realidade concreta, mas utilizaria, para
afirmações são apenas fórmulas envolven- apreendê-la, conhecimentos a priori de
do esses símbolos; a base mais funda da tempo e de espaço, o primeiro fundamen-
matemática não está plantada na lógica tando o número e, conseqüentemente, toda

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a aritmética, e o segundo alicerçando a a priori, porque só poderia ser provado


geometria. mediante um número infinito de experiên-
Estas idéias, que exerceram enorme cias, o que é impossível. Deste modo,
influência nos matemáticos no século 19, Poincaré enxergou no método matemático
constituíram a base do intuicionismo de um elemento intuitivo, e, para ele, “intuição”,
Poincaré. como o número, possuía o duplo sentido de
Jules Henri Poincaré (1854-1912) é “fonte de noções puras ou como instinto
considerado o matemático mais importan- inventivo” (Costa, 1971, p. 94).
te do período transitório entre os séculos Como “fonte de noções puras”, a
19 e 20, e, de acordo com diversos histori- intuição direciona o espírito para a no-
adores, nenhum de seus contemporâneos ção de número inteiro e, como instinto
dominou tanta diversidade de assuntos, inventivo, impulsiona o profundo traba-
enriquecendo todos eles. Interessou-se pe- lho do espírito na descoberta científica.
las geometrias não-euclidianas, mas, ao Desta forma, para Poincaré, o número te-
contrário do que depois se comprovou, de ria um caráter sintético e irredutível, en-
que todas possuíam o mesmo grau de ve- quanto para Russell, conforme será
racidade, preocupou-se sobremaneira em explicitado posteriormente, o número
investigar qual a “verdadeira geometria”. cardinal seria a “classe das classes”. Isto
Para Piaget isto pode ter sido o fato que retrata a oposição existente entre as cor-
impediu Poincaré de “descobrir” a Teoria rentes de pensamento matemático
da Relatividade. logicismo e intuicionismo, que, junta-
Poincaré produziu mais de 500 artigos mente com o formalismo de Hilbert,
técnicos e mais de 30 livros, tendo sido tam- pretenderam resolver a “crise dos
bém um dos principais e mais hábeis fundamentos” no século 20.
divulgadores da matemática e da ciência, O intuicionismo de Poincaré ganhou
mediante uma série de obras populares e força como corrente quando o holandês L.
semitécnicas, entre as quais se destaca A ci- E. J. Brouwer (1881-1966) conseguiu reu-
ência e a hipótese (1906), um texto de carac- nir em torno das idéias intuicionistas os
terística semipopular, em que apresenta uma oposicionistas do formalismo de Hilbert e
“teoria da matemática na qual é sensível a do logicismo de Russell. Para os seguido-
influência de Kant” (Costa, 1971, p. 92). res do intuicionismo, os elementos e axio-
Bastante influenciado pelo sistema mas da matemática não são tão arbitrários
kantiano, Poincaré, porém, não se contenta- como possam parecer. Segundo Brouwer
va apenas com o fato de que os postulados (1974, p. 448), “a linguagem e a lógica não
matemáticos fossem juízos sintéticos a são pressuposições para a matemática, a
priori; era preciso, também, que os concei- qual tem sua origem na intuição que torna
tos aos quais se referissem correspondessem seus conceitos e inferências imediatamente
a certas intuições materiais, intuições estas claros para nós...”.
que seriam indispensáveis à construção da
ciência. Assim, tal como em Kant, a mate- A tese do intuicionismo é que a
mática para Poincaré se apóia em “intui- matemática tem de ser desenvolvida ape-
ções”, principalmente na de número, razão nas por métodos construtivos finitos so-
pela qual é considerado um dos “fundado- bre a seqüência dos números naturais,
res” do intuicionismo. dada intuitivamente. Logo, por essa visão,
Para Poincaré, o número possui o a base última da matemática jaz sobre uma
duplo caráter de conceito puro e de forma intuição primitiva, aliada, sem dúvida, ao
intuitiva. É conceito puro enquanto esque- nosso senso temporal de antes e, depois,
ma do conceito de grandeza, isto é, “a par- que nos permite conceber um objeto, de-
te sem a qual não se pode passar da gran- pois mais um, depois outro mais, e assim
deza pura à sua imagem no espaço e no por diante, indefinidamente. Dessa ma-
tempo”. É forma intuitiva porque repre- neira obtêm-se seqüências infindáveis, a
senta a seqüência aditiva de uma unidade mais conhecida das quais é a dos núme-
a outra unidade e “realiza a síntese de um ros naturais. A partir dessa base intuitiva
mesmo objeto no espaço e no tempo” (a seqüência dos números naturais), a ela-
(Costa, 1971, p. 93). boração de qualquer outro objeto mate-
Poincaré concluiu que o princípio de mático deve ser feita necessariamente por
recorrência é sintético, porque não se reduz processos construtivos, mediante um nú-
à lógica do princípio da não-contradição, e mero finito de passos ou operações. Na

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tese intuicionista o desenvolvimento Hilbert e seus seguidores. Desta forma, o


genético da matemática é levado a extre- debate acerca dos fundamentos da mate-
mos (Eves, 1995, p. 679). mática se centralizou em torno do
logicismo e do intuicionismo.
Segundo Machado (1987), o intui- São estes, portanto, o cenário e o
cionismo considera a matemática como instrumental lógico de que dispunha
uma atividade autônoma, uma construção Piaget quando realizou sua investigação
de entidades abstratas a partir da intuição sobre a construção do número.
dos matemáticos, e, como tal, prescinde
tanto de uma redução à lógica quanto de
uma formalização rigorosa em um sistema As principais concepções
dedutivo, o que era defendido por Hilbert de número
e seus seguidores.
Na transição do século 19 para o Como dissemos, no livro A gênese do
século 20, ocorreram muitos congressos in- número na criança, Piaget e Szeminska
ternacionais de matemática (o primeiro foi queriam confirmar a hipótese, não expli-
em Chicago, em 1893). No segundo, reali- citamente exposta por eles, de que a no-
zado na cidade de Paris, em 1900, Hilbert ção de número seria a síntese operatória
proferiu a conferência principal, na qual da seriação e da classificação. Reafirma-
apresentou uma lista com 23 problemas, mos que esta hipótese estaria implícita,
que, segundo ele, seriam os focos das aten- uma vez que, no prefácio, escrito em 1941,
ções dos matemáticos do século 20. No da edição francesa da referida obra, o pes-
mesmo congresso, Poincaré apresentou um quisador afirma que “foi unicamente o
trabalho em que comparava os papéis da problema da construção do número em
lógica e da intuição na matemática. A par- relação com as operações lógicas” que des-
tir desse congresso, Hilbert se envolveu, pertou o seu interesse (Piaget; Szeminska,
com Poincaré, em uma das maiores 1981, p. 12).
controvérsias do século. Ainda no prefácio em questão, Piaget
esclarece a hipótese que direcionou a
Hilbert admirava o Mengenlehre de pesquisa realizada:
Cantor, ao passo que Poincaré o criticava
fortemente. As teorias de Cantor, como os A hipótese da qual partimos é, obviamen-
abstratos espaços de Hilbert, pareciam te, que esta construção é correlativa do
muito afastadas da base intuitivo- desenvolvimento da própria lógica e que
empírica que Poincaré e alguns de seus ao nível pré-lógico corresponde um perí-
contemporâneos preferiam (Boyer, 1974, odo pré-numérico (Piaget; Szeminska,
p. 448). 1981, p. 12).

Os matemáticos da época agruparam- Os resultados a que chegaram Piaget


se em torno das três principais correntes e Szeminska (1981, p. 12) confirmaram
de pensamento: o intuicionismo de que a hipótese por eles estabelecida, de
Poincaré, o formalismo de Hilbert e o que
logicismo de Russell, esta última ligada ao
formalismo (ambas valorizam a lógica), [...] o número se organiza, por etapa, em
mas não identificada com ele. solidariedade estreita com a elaboração
Todavia, como o sucesso ou o fracasso gradual dos sistemas de inclusões (hie-
do programa formalista estava vinculado rarquia das classes lógicas), com as rela-
à resolução do problema de consistência, ções assimétricas (seriações qualitativas)
o sonho dos seguidores do formalismo teve e com a sucessão dos números, constitu-
curta existência, pois, em 1931, o então indo-se, assim, em síntese operatória da
jovem matemático Kurt Gödel (1906-1978), classificação e seriação.
discípulo de Hilbert, provou de maneira
inconteste, por seguidores das três princi- Todavia, uma análise mais acurada da
pais correntes, que não é possível provar a investigação desenvolvida por Piaget e
consistência de um sistema dedutivo for- Szeminska nos permite inferir, uma vez
malizado capaz de abranger toda a mate- que as provas estabelecidas parecem con-
mática clássica, com todos os seus princí- duzir para isso, que a hipótese de que o
pios lógicos, conforme era idealizado por número se constituiria a síntese da

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A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget

classificação e da seriação estava presen- italiano Giuseppe Peano (1858-1932) em


te durante todo o desenvolvimento da pes- termos puramente lógicos, e definiram nú-
quisa realizada. O que teria motivado mero em termos de classes e de relações,
Piaget a formular tal hipótese? com o aspecto cardinal sendo estabeleci-
Para responder a esta pergunta, entra do pelas classes, e o ordinal, pelas relações
em cena o forte apelo epistemológico das assimétricas, porém de forma independen-
soluções insatisfatórias para a questão “o te. Um outro fator que decorre dessa con-
que é número?”, particularmente o longo cepção é que os números se constituem
e antigo debate, sem vencedor, entre isoladamente, a partir de classes indepen-
logicistas e intuicionistas. A este debate dentes entre si, e, portanto, não existiria
acrescentem-se as convicções de Piaget de uma iteração que culminaria com a suces-
que o conhecimento não está nem no su- são dos números inteiros. Para verificar se
jeito (apriorismo, implícito no logicismo) esta explicação era satisfatória, para Piaget
e nem no objeto (empirismo, pano de fun- (1975, p. 91) o problema se resumiria em
do do intuicionismo), mas na interação “determinar se os processos formadores do
entre ambos, uma interação particular que número são ou não os mesmos a partir dos
acontece internamente ao sujeito. Pode-se quais derivam as classes e as relações”.
inferir, assim, que Piaget procurava uma A teoria de Russell e Whitehead para
solução intermediária entre Russell e o número começa com a descrição do que
Poincaré. é uma “classe de classes”. Ou seja, duas
Dito de outra forma, do mesmo modo classes consideradas em sua extensão dão
como a concepção de inteligência de Piaget origem a uma mesma classe de classes se é
pode ser considerada como um tertium en- possível estabelecer uma correspondência
tre o lamarckismo e o neodarwinismo, que biunívoca entre seus elementos. O núme-
a sua posição acerca da construção do co- ro cardinal é definido como estas “classes
nhecimento fica a meio-caminho entre o de classes”, e, assim, o número 1 é a classe
empirismo e o apriorismo, ele terminaria de todas as classes unitárias, o número 2 é
por considerar o número também como a classe de todos os pares possíveis, o nú-
uma espécie de tertium entre Russell e mero 3 é a classe de todas as ternas, etc. O
Poincaré, ao “conceber como recíprocas e número ordinal é igualmente constituído
não mais unilaterais a relação entre a ló- por meio de classes, só que de relações
gica e a aritmética” (Piaget; Szeminska, assimétricas “semelhantes”, e esta “seme-
1981, p. 13). lhança” é obtida também mediante uma
Para confirmar nossa hipótese, a de correspondência biunívoca.
que Piaget estaria procurando finalizar o Apesar de estas “definições” terem
debate entre logicistas e intuicionista acer- sido aprovadas por muitos matemáticos e
ca da construção do número, nos apoia- quase todos os lógicos, houve muitas obje-
mos em considerações, discussões e argu- ções que podem ser agrupadas em duas
mentações do próprio Piaget sobre esses vertentes: as que defendem a existência de
modelos teóricos, extraídas dos prefácios um círculo vicioso e as que preconizam a
da primeira e da terceira edição francesa existência de diferenças funcionais entre
do livro A gênese do número na criança, e a classe lógica e o número.
de estudos posteriores do autor, particu-
larmente na obra Introducción a la
epistemologia genética. 1. El pensamiento O intuicionismo de Poincaré
matemático. e o número
O maior crítico ao reducionismo lógico
O número no logicismo de foi o francês Henri Poincaré. Ele denunciava
Russell e Whitehead a existência de um círculo vicioso, porque o
número já estaria presente ao se estabelecer
Partidários da idéia de Frege, Russell a correspondência biunívoca entre os obje-
e Whitehead tinham o ambicioso plano de tos singulares. Ele argumentava que na “ex-
“reduzir” a matemática à lógica. Assim, pressão ‘um’ homem, etc., o objeto individu-
apresentaram a aritmética como um ramo al ou a classe singular já implica a presença
da lógica pura. Para isso, o “plano” era “tra- do número 1" (Piaget, 1975, p. 92).
duzir” os axiomas de definição do núme- A contra-argumentação expunha que
ro natural estabelecidos pelo matemático existe uma distinção entre o “um” lógico e

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o número 1, ou seja, o “um” lógico O problema da concepção de Russell


implicaria a “identidade” e não o número, residia no fato de ele utilizar a correspon-
da mesma forma como os termos lógicos dência biunívoca matemática ao estabele-
“alguns”, “todos” ou “nenhum” se referem cer sua “classe de classes”. Deste modo, não
apenas à pertinência ou não dos indivíduos é puramente a classe que gera o número
a uma determinada classe. cardinal, mas uma classe já quantificada
Segundo Piaget (1975, p. 92), tanto pela correspondência qualquer.
Russell quanto seus adversários desenca-
dearam um embate sem saída, ao argumen- Assim, quando Russell constrói o número
tarem com identidades e classes isoladas, 12 e faz corresponder um a um os após-
pois o atomismo lógico possibilitava a jus- tolos de Jesus Cristo com os marechais
tificativa em ambas as direções. A “[...] de Napoleão, o apóstolo Pedro não é as-
identidade pertence tanto à matemática sociado ao marechal Ney em virtude de
como à lógica intensiva”, sendo que a suas qualidades comuns (como quando
especificidade lógica ou matemática só é um biólogo põe em correspondência os
passível de ser determinada em função da pelos dos mamíferos com as penas dos
“estrutura de conjunto da totalidade pássaros), mas simplesmente enquanto
operatória onde se inserem os elementos”. um constitui uma unidade qualquer do
No que se refere à diferença funcional primeiro conjunto e o outro uma unida-
entre classe e número, fica claro que a fun- de qualquer do segundo (Piaget, 1975, p.
ção da classe, como é constituída por indi- 94).
víduos que gozam de uma determinada
propriedade, é a de identificar, ao passo Quanto ao número ordinal concebi-
que a do número (que necessita abstrair as do como classe de relações assimétricas
qualidades) é a de diversificar; daí se con- semelhantes, a primeira questão que se
clui que são funções fundamentalmente apresenta é saber qual é a “semelhança”
heterogêneas. Entretanto, novamente, esse que intervém na constituição de duas (ou
argumento só seria válido se aplicado às mais) classes de relações assimétricas se-
totalidades operatórias e não aos elementos melhantes, e, analogamente ao número
isolados. cardinal, novamente é o tipo de correspon-
Piaget analisou a solução logicista dência biunívoca que é o determinante.
estudando a natureza da correspondência
biunívoca estabelecida para se criar as clas- Russell, ao não estabelecer na sua dupla
ses equivalentes, para verificar se ela é pu- redução estas distinções genéticas que
ramente lógica (qualitativa) ou se já conduzem a uma distinção correlativa na
introduz explicitamente o número. lógica entre as operações como tais, e não
Para Piaget, na correspondência somente entre as classes e as relações iso-
biunívoca lógica ou qualitativa os elemen- ladas, se encerra, assim, em dois círculos
tos se correspondem univocamente em viciosos (Piaget, 1975, p. 95).
função de suas qualidades, como, por
exemplo, quando se analisam as semelhan-
ças entre dois objetos (ou conjuntos de Poincaré e a intuição
objetos) e, para isto, se estabelece a corres- racional do número
pondência entre uma parte de um com a
parte semelhante no outro. Por considera- Poincaré não concordava com a tese
rem apenas as qualidades, as correspon- de que o número poderia ser reduzido à
dências qualitativas independem da lógica das classes e das relações. Ele en-
quantificação. tendia o número como o produto de uma
A correspondência biunívoca intuição racional (sintética a priori) e
qualquer ou matemática não é estabelecida irredutível às operações lógicas. Criticava
em função das semelhanças qualitativas, os matemáticos que se deixavam guiar
mas associando um elemento qualquer de simplesmente pela intuição, pois “na pri-
um dos conjuntos a um elemento também meira investida fazem conquistas rápidas,
qualquer do outro, com a única condição mas algumas vezes precárias, como se fos-
de que cada elemento seja colocado em sem ousados cavaleiros na linha de frente”
correspondência uma única vez, o que im- (Poincaré, 1995, p. 13).
plica uma quantificação, pressupondo a De acordo com Poincaré, se no século
unidade. 19 os matemáticos dividiam-se em duas

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A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget

correntes, uma que se apoiava na lógica e outros sobre a gênese dos conceitos
outra na intuição, uma releitura dos clás- matemáticos mostram que:
sicos os enquadraria como intuicionistas.
E mais, como a intuição não oferece o ri- Todos os conceitos de caráter extensivo e
gor e nem mesmo a certeza, foi necessária métrico como a medida, a proporção em
uma evolução na ciência matemática, evo- geometria e o próprio número somente se
lução esta que a encaminhou para a lógi- constituem em sua forma operatória quan-
ca. Todavia, “para fazer aritmética, assim do podem se apoiar em agrupamentos ló-
como para fazer geometria, é preciso algo gicos de caráter intensivo (Piaget, 1975,
mais que a lógica pura”, sendo a intuição p. 96).
este “algo mais”, ressaltando contudo que,
sob esta denominação, diversas idéias es- Isto não significa, porém, que exista um
tão subentendidas (Poincaré, 1995, p. 18). estádio caracterizado por estruturas lógicas,
A intuição se apresenta, pois, sob que poderia ser considerado pré-numérico,
diversas formas, como um apelo aos sen- seguido de um estádio numérico; ao con-
tidos e à imaginação; como generalização, trário, existe uma interdependência entre o
por indução de procedimentos das ciên- lógico e o numérico e que é originária do
cias experimentais (representar um conceito de conservação dos conjuntos
polígono de n lados, por exemplo) e, a que como totalidades, sejam tais totalidades ló-
interessa particularmente a este trabalho, gicas ou numéricas. E mais, esta conserva-
a intuição do número puro (princípio da ção não se apresenta, absolutamente, como
indução) e da qual se originaria, para uma “intuição”, mas é construída, operato-
Poincaré, o verdadeiro raciocínio matemá- riamente, num longo e complexo processo.
tico, a única intuição que é passível de
certeza. A faculdade de conceber que uma unidade
A concepção de que o número (e, pode agregar-se a um “conjunto de unida-
conseqüentemente, a matemática) é pro- des”, que é assinalado por Poincaré como
duto de uma intuição racional foi (e ainda sendo o específico da intuição do número
é) sustentada por inúmeros matemáticos, puro, supõe, então, a “faculdade” de con-
existindo, porém, divergências quanto ao ceber conjuntos invariantes encaixados
sentido de intuição, que varia desde “a in- uns nos outros e a “faculdade” de ordenar
tuição da essência estática do número até desde o início os elementos agregados
a intuição operatória” (Piaget, 1975, p. 95). (Piaget, 1975, p. 97).
Ao considerar que o número inteiro
se funda sobre uma intuição sintética a No entanto, se a sucessão dos números
priori que se traduz no raciocínio por não pode se apoiar em uma primeira intui-
indução ou recorrência, Poincaré, por mais ção contendo de antemão a idéia de unida-
convencionalista que tenha sido em mui- de, após sua construção, esta mesma suces-
tas questões, como, por exemplo, sobre os são produz uma intuição racional, em tudo
vários tipos de números ou sobre os rela- semelhante à descrita por Poincaré, à
cionamentos entre os diversos tipos de es- diferença, porém, de ser final e não prévia,
paço, admite que tal intuição é operató-
ria, ou seja, uma intuição isenta de [...] no sentido de que o número é
contradição e que é “construída”. apreendido diretamente pelo espírito sem
A discordância de Piaget com os ser intermediado por raciocínios discursivos
intuicionistas se fundamentava no fato de ou lógicos. [...] concentração instantânea de
que a intuição do número puro não é a de inumeráveis raciocínios anteriores (e esque-
um número específico e sim de um núme- cidos), esta intuição final é apenas a expres-
ro qualquer, e seria, segundo o próprio são da compreensão inteligente e não nos
Poincaré (1943, p. 37), a “faculdade de con- informa nada quanto à sua construção
ceber que uma unidade pode agregar-se a (Piaget, 1975, p. 98).
um conjunto de unidades”.
Assim, ao procederem de uma Piaget considerou que a intuição
intuição que contém, de antemão, a no- operatória do número puro, irredutível à
ção de unidade, as operações numéricas lógica concebida por Poincaré, carecia de
se colocariam em oposição às operações especificidade, enquanto que a redução de
lógicas. Entretanto, os resultados de inú- Russell não seria operatória o suficiente, e
meras pesquisas realizadas por Piaget e sua hipótese, então, é a de que haveria a

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Clélia Maria Ignatius Nogueira

possibilidade de um tertium entre as duas Conclusões


posições.
Pode-se afirmar que, com Piaget e
Sabe-se bem, com efeito, quantas discussões Szeminska, o número tem por fonte a ló-
o problema das relações entre o número e a gica, porém não deriva de nenhuma ope-
lógica ocasionou, com os logísticos procu- ração em particular. O número é
rando, com Russell, conduzir o número car- construído das relações de classes quan-
dinal à noção de “classe de classes” e o nú- do os sujeitos agrupam objetos por suas
mero ordinal, dissociado do primeiro, à de semelhanças, das relações assimétricas
classe de relações, enquanto seus adversá- quando estabelecem as diferenças ordena-
rios mantinham, como H. Poincaré e L. das e do número quando os sujeitos agru-
Brunschvicg, o caráter sintético e irredutível pam os objetos, ao mesmo tempo, como
do número inteiro. É verdade que nossa hi- equivalentes e distintos, o que é concilia-
pótese, num certo sentido, permite escapar tório com a irredutibilidade de Poincaré.
a essa alternativa, porque se o número é clas- Entendendo a importância das duas
se e relação assimétrica ao mesmo tempo, concepções de número, o intuicionismo e
ele não deriva de tal ou qual das operações o logicismo, e a impossibilidade da supre-
lógicas particulares, mas somente da sua macia de uma delas, pois ambas apresen-
reunião, o que concilia a continuidade com tavam aspectos positivos e negativos,
a irredutibilidade e leva a conceber como Piaget deduziu que, em vez de serem con-
recíprocas e não mais como unilaterais as traditórias ou opostas, as duas concepções
relações entre a lógica e a aritmética. Delas deveriam ser complementares. Dessa aná-
não convinha menos verificar sobre o pró- lise de Piaget e Szeminska, acreditamos,
prio terreno logístico as conexões assim emergiu a hipótese de que o número seria
estabelecidas pela experimentação psicoló- a síntese da classificação e da seriação, de-
gica, e foi o que logo tentamos (Piaget, 1981, monstrada no livro A gênese do número
p. 13). na criança.

Referências bibliográficas
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RUSSELL, B. Introdução à Filosofia da Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

Clélia Maria Ignatius Nogueira é professora doutora do Programa de Pós-Gradua-


ção em Educação para a Ciência e Ensino da Matemática da Universidade Estadual de
Maringá (UEM).

Recebido em 3 de julho de 2006.


Aprovado em 21 de julho de 2006.
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