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Departamento de Filosofia

O teorema da incompletude de Gödel

ALUNO: HUGO HOFFMANN BORGES


ORIENTADOR: LUIZ CARLOS PINHEIRO DIAS PEREIRA

1 – Introdução

1.1 – Panorama Histórico

É notório que o período entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do
século XX, no âmbito da lógica e da matemática, foi marcado por um crescente interesse na
investigação sobre os fundamentos da matemática e pela ênfase no rigor demonstrativo no intuito
de reduzir – ou até mesmo eliminar – as intuições matemáticas.

Algumas posições fundacionalistas destacaram-se por suas perspectivas a respeito de tais


questões, como por exemplo, o formalismo, que, em linhas gerais, pretendia construir um sistema
formal completo (i.e., um conjunto de axiomas e regras de inferência, aliados a um método
simples de verificação que decida quais sentenças pertencem ao sistema e quais não pertencem)
capaz de descrever, de maneira precisa, cada campo da matemática.

Havia na época, um grande otimismo em relação à realização de tal empreitada. Tal


otimismo pode ser ilustrado pelo pronunciamento de David Hilbert (maior representante da
perspectiva formalista) no Congresso Internacional de Matemática, realizado em 1900: “Tome
qualquer problema não resolvido, como a existência de um número infinito de números primos da
forma 2n + 1. Por mais que tal problema pareça inacessível, por mais que estejamos
desamparados, temos, no entanto, a firme convicção de que sua solução deve seguir de um
número finito de processos puramente lógicos. (…) ouvimos dentro de nós um chamado
perpétuo: Há um problema. Procure sua solução. Você pode achá-la pelo raciocínio puro, pois na
matemática não há ignorabimus1.” 2

Tal otimismo, no entanto, não era, em nenhum sentido, apenas uma crença infundada, uma
vez que o desenvolvimento da Teoria dos Conjuntos de Zermelo-Fraenkel e alguns resultados
como o teorema de compacidade3 pareciam indicar que, cedo ou tarde, seria possível formalizar
cada campo da matemática. Entretanto, um breve pronunciamento realizado no Segundo

1
Expressão latina: ‘algo que nós nunca saberemos’.
2
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. p.16.
3
O teorema de compacidade diz que dado um conjunto infinito C, se todo subconjunto finito de C tem um modelo,
então o conjunto infinito C tem um modelo. Com isto é possível dar uma prova de consistência relativa da aritmética
(a aritmética é consistente se a teoria dos conjuntos for consistente).
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Seminário sobre a Epistemologia das Ciências Exatas, representou um forte golpe4 neste
otimismo geral.

Tal seminário ocorreu em Könnisberg, nos dias 5, 6 e 7 de setembro de 1930 e as atrações


principais consistiam nas apresentações sobre as diversas perspectivas sobre os fundamentos da
matemática, cada uma delas defendidas por grandes nomes. Rudolf Carnap representava a
posição logicista do Ciclo de Viena, Arend Heyting defendia a posição do Intuicionismo (ou
construtivismo), von Neumann reproduzia a perspectiva do Formalismo, além de Frederich
Waismann, defensor da perspectiva de Wittgenstein.
Apesar de todos estes grandes nomes, foi da boca do jovem matemático Kurt Gödel, até então
um desconhecido no meio lógico, que foram proferidas, sem nenhum alarde nem floreios, as
seguintes palavras: “Podemos até, assumindo consistência formal da matemática clássica,
apresentar exemplos de proposições que são, realmente verdadeiras, mas não são demonstráveis
nos sistemas formais da matemática e da lógica clássica.” 5

Tais palavras marcaram radicalmente a história da matemática e da lógica, alterando


drasticamente seus cursos. O intuito da presente pesquisa será então, explicar seu significado e
explorar suas consequências.

1.2 - Visão Geral da Prova do Teorema de Gödel6

Segue-se aqui uma breve ilustração da estrutura geral da prova de Gödel. Uma apresentação
mais detalhada – porém não exaustiva – será apresentada na versão final da presente pesquisa.
Suponhamos uma sentença A, análoga ao paradoxo de Epimenides (paradoxo do mentiroso),
que afirme que ela mesma não é demonstrável. Teremos então (i): A diz que A não é
demonstrável. Assumamos também que, independentemente de qualquer sistema, sentenças
falsas não podem ser demonstradas. Teremos então (ii): sentenças falsas não são demonstráveis.
Assumindo a consistência do sistema (i.e. que o sistema não produz contradições),
suponhamos que a sentença A seja falsa. Pela afirmação (i), teríamos então que A é
demonstrável. No entanto, o fato de A ser falso e demonstrável contradiz a afirmação (ii). Logo,
por reductio ad absurdum, A é verdadeira, mas indemonstrável. A negação ¬A também é não-
demonstrável, pois, dado que A é verdadeiro, ¬A é falso; e por (ii) temos que sentenças falsas
não são demonstráveis, logo ¬A é não-demonstrável.

Portanto, o sistema formal que produziu a sentença A é incompleto, uma vez que não é capaz
de gerar uma prova para todas as sentenças verdadeiras do sistema, em especial a sentença A.

No entanto, qualquer sentença A (ou ¬A) que seja não-demonstrável em um dado sistema
consistente S, poderá ser demonstrável em outros sistemas formais consistentes. Podemos
adicionar A como novo axioma de S, obtendo o sistema formal consistente S+A, com A

4
É importante salientar que, apesar do forte impacto, o teorema de incompletude não refuta, em nenhum sentido, a
visão otimista de Hilbert. O teorema apenas estabelece que tal otimismo não pode ser justificado pela exibição de um
único sistema, mesmo se nos atermos apenas aos problemas da aritmética. Ibid.[1] p.16, 34 e 39.
5
A bem da verdade, ninguém, com a exceção de von Neumann, percebeu, naquele dia, a força e o impacto de tais
palavras. No entanto tal fato não diminui sua grandeza, mas, pelo contrário, ilustra o tamanho da originalidade da
descoberta de Gödel.
6
KLEENE, S.C. Introduction to Metamathematics. 2ª ed. New York.2009. 204-205p.
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trivialmente demonstrável7. Analogamente, podemos somar ¬A como novo axioma do sistema S,


sem ferir a consistência de S, pois se S + ¬A fosse inconsistente, então teríamos uma
demonstração de A em S.8

2 – Visão Geral dos Conceitos Envolvidos

Os teoremas de incompletude talvez sejam os teoremas mais famosos e prolixos da história da


lógica, não apenas por terem criado conceitos e técnicas que seriam fundamentais para teoria da
computação, como também por terem atraído a atenção de um vasto público geral.

O primeiro teorema de Gödel nos diz precisamente que, se um sistema formal S, que
contenha no mínimo a aritmética elementar, for consistente, então S será incompleto, com a
sentença A9 como um exemplo de sentença verdadeira e indemonstrável no sistema. Já o segundo
teorema de Gödel diz que, se o sistema formal S for consistente, então S não é capaz de provar
sua própria consistência por meio dos seus métodos de formalização.10 Certamente, a primeira
pergunta que o leitor não-especializado irá fazer será: “o que isto quer dizer exatamente?”

O problema foi bem delimitado por Franzén: “Os teoremas de incompletude são teoremas
sobre a consistência e a completude de sistemas formais. ‘Consistente’, ‘inconsistente’,
‘completo’, ‘incompleto’ e ‘sistema’ são palavras usadas não apenas como termos técnicos da
lógica, mas em muitos outros sentidos na linguagem comum. Portanto, não é nenhuma surpresa
que os teoremas de Gödel tenham sido associados com várias idéias relacionadas à incompletude,
sistemas e consistência em algum sentido informal.” 11

Tendo isto em vista, a presente seção terá como objetivo uma breve exposição sobre cada um
dos conceitos envolvidos nos enunciados dos teoremas. Para, na seção seguinte, analisarmos
algumas interpretações equivocadas, causadas por um uso semântico livre dos termos.

2.1 – Sistemas Formais

Um sistema formal é um sistema de axiomas (expressos em alguma linguagem formal


definida) e regras de inferência usadas para perpetuar a demonstrabilidade dos axiomas12 para
outras sentenças da linguagem. Um teorema é uma sentença da linguagem do sistema obtida por
uma série específica de aplicações das regras de inferência. Uma prova dentro do sistema é uma
sequência finita de aplicações das regras, com um teorema como conclusão.13

7
É claro que isto não nos diz se A é demonstrável em um sentido mais interessante de ser (ou não) demonstrável
por raciocínio puro, de maneira que fosse aceita pela maioria dos matemáticos.
8
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 50 p.
9
Seção 1.2.
10
KLEENE, S.C. Introduction to Metamathematics. 2ª ed. New York.2009. 207p. 210p.
11
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 4 p.
12
Pode parecer estranho dizer que um axioma A de um sistema S, seja demonstrável em S (ou ainda, que A seja
falso), uma vez que, em contextos informais, axiomas são tomados como verdades básicas que não podem ser
demonstradas. Na lógica, no entanto, algo é ‘demonstrável’ em relação à um sistema formal S. Cada axioma A de S
possui uma prova trivial, produzida pela sentença ‘A é um axioma’, que serve de ponto de partida para
demonstrações menos triviais.
13
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 16 p.
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Os dois sistemas formais de maior destaque, aos quais o teorema da incompletude se aplica,
são a aritmética de Peano (PA) e a teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel + Axioma da
escolha14 (ZFC). PA é um sistema formal para aritmética elementar. Já ZFC é um sistema
extremamente poderoso, suficiente para provar a maioria dos teoremas dos dias de hoje.

Gödel, na formulação original do teorema15, provou a incompletude para um sistema


particular P, no entanto, as propriedades do sistema P são compartilhadas com uma série de
outros sistemas formais clássicos, de maneira que, atualmente, podemos estender o escopo do
teorema de incompletude não apenas para sistemas com PA e ZFC, mas a uma vasta classe de
sistemas formais em que certa quantidade de aritmética pode ser realizada, independentemente de
seus axiomas expressarem ou não qualquer parte do conhecimento matemático e até mesmo se
seus axiomas forem falsos (ver nota 12) ou não estiverem associados a qualquer interpretação16.

Os axiomas, teoremas e quaisquer outras sentenças do sistema formal, incluindo as provas


dadas dentro do sistema, podem ser tomadas como sendo apenas sequências finitas de símbolos
sem significado. Tais sequências podem ser – ou não – sentenças dotadas de sentido.

De um ponto de vista mais técnico, cada sistema formal deve conter ainda um algoritmo (i.e.
um procedimento mecânico simples, sendo possível ser realizado por um computador) que, dado
uma sequência qualquer de símbolos s, é capaz de decidir se tal sequência pertence a um
determinado conjunto E de sequências do sistema. Ou seja, dado uma sequência s como input
(entrada), o computador, por meio de algumas operações, retornará como output (saída) ‘sim’,
caso s pertença ao conjunto E ou ‘não’, caso s não pertença ao conjunto E.17

2.2 – Uma certa quantidade de aritmética

É comum encontrar formulações do primeiro teorema de incompletude que afirmam que o


teorema se aplica a uma série de sistemas formais em que pode ser realizada certa quantidade de
aritmética elementar. Apesar de ser uma noção aparentemente intuitiva, cabe aqui uma breve
explicação sobre o que tal afirmação quer dizer.

Podemos definir a aritmética elementar a partir de: um conjunto de variáveis como x, y, z


(com ou sem sub índice); um numeral arbitrário (usualmente 0) como primeiro termo; uma
função s, chamada função sucessor, usada para construção do conjunto dos números naturais a
partir do primeiro termo (s(0) = 1, s(1) = s(s(0)) = 2, s(2) = s(s(s(0))) = 3, etc); símbolos para as
relações de adição (+), multiplicação (x), ordem (<) e identidade (=); quantificadores universal

14
O axioma da Escolha afirma que dado uma coleção de conjuntos não-vazios (i.e. conjuntos que contenham ao
menos um elemento), é possível criar um conjunto, chamado conjunto escolha, que possui exatamente um
elemento de cada um dos conjuntos iniciais. O axioma da Escolha, apesar de ser muito útil para demonstração de
alguns teoremas importantes, não é unanimidade entre os matemáticos.
15
GÖDEL, K. On formally undecidable propositions of principia mathematica and related systems. 2ª ed. New York.
1992.
16
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 19 p.
17
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 64 p.
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(∀) e existencial (∃); operadores lógicos para negação (¬), conjunção (∧), disjunção (∨) e
implicação (→); além do ‘bottom’ (⊥) e do ‘verum’18 (⊤).19

Qualquer sistema que, em sua linguagem, contenha a linguagem descrita acima, certamente
será capaz de demonstrar alguns fatos básicos sobre os números naturais e, portanto, satisfará a
condição do teorema de incompletude. O teorema, no entanto, também se aplica a sistemas que
não produzem sentenças explicitas sobre os números naturais, mas que se referem a objetos
matemáticos que podem ser usados como representantes dos números naturais. Sequências de
símbolos ou conjuntos finitos, por exemplo, podem ser usados como representantes de números
naturais.20

2.3 – Consistência

Um sistema formal S será consistente se os axiomas e regras de inferência de S não forem


capazes de produzir, dado uma sentença A (expressa pelo sistema), uma prova de A e uma prova
de ¬A, ou seja, o sistema será consistente se ele não produzir contradições a partir da aplicação
das regras de inferência. Caso contrário, o sistema será inconsistente.

É importante notar que, um sistema consistente é capaz de demonstrar apenas sentenças


possíveis de serem expressas no sistema. Outro fato interessante é que a existência de sentenças
não-demonstráveis em um sistema consistente S não influencia a consistência de S, uma vez que
A é não-demonstrável em S se e somente se S + A e S + ¬A forem ambos consistentes.21

Os sistemas formais inconsistentes (i.e. que produzem contradições), por outro lado, não
possuem sentenças não-demonstráveis e são capazes de demonstrar quaisquer sentenças, como
por exemplo, as sentenças ‘2 + 2 = 5’ ou ‘x = 1782, y = 1841, z = 1922 e n = 12 é um
contraexemplo para o teorema de Fermat’. Isso acontece, pois, em um sistema formal
inconsistente, todas as sentenças são demonstráveis pela regra de inferência conhecida na lógica
como ex falso quodlibet (qualquer coisa se segue de uma contradição). 22 23

O segundo teorema da incompletude prova que, se a sentença ‘o sistema formal S é


consistente’ (pressupondo que a sentença possa ser expressa no sistema) 24 for falsa, então é
possível demonstrar sua falsidade por meio de suas próprias regras. Por outro lado, se a sentença

18
O ‘bottom’ é usado para indicar algo que é sempre falso, já o ‘verum’ é usado para indicar uma tautologia, ou
seja, algo sempre verdadeiro.
19
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 155 p. (adaptado)
20
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 22 p.
21
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 19 p.
22
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 18 p.
23
Estamos tomando como dado que os sistemas formais apresentados possuem a regra do 'ex falso quodlibet', no
entanto, algumas lógicas, como por exemplo a lógica paraconsistente, não empregam o uso de tal regra.
24
Assumir que a sentença ‘S é consistente’ é capaz de ser expressa no sistema é um passo muito importante para a
prova, pois, em caso contrário, a observação de que a consistência de S não pode ser demonstrada em S não
representaria nenhum conteúdo relevante (não é um fato relevante que um sistema formal para aritmética não
seja capaz de provar sentenças de fora da linguagem da aritmética, como, por exemplo, que cavalos tem quatro
patas). Ver: FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 35 p.
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‘o sistema formal S é consistente’ for verdadeira, segundo o teorema de incompletude, então não
é possível demonstrar tal sentença usando apenas os métodos de prova contidos no sistema.25

O resultado do segundo teorema de incompletude, em nenhum sentido, indica que os


sistemas formais da aritmética sejam inconsistentes (na verdade, a consistência da aritmética em
si nunca esteve em dúvida, o que se buscava de fato era uma prova para sua consistência). O que
o teorema indica é que se um sistema formal for consistente, então ele não será capaz de
apresentar uma prova de sua própria consistência.

2.4 – Completude

Um sistema formal S é dito sintaticamente completo (ou ainda negation complete) se o


sistema S é capaz de produzir, dada qualquer sentença A expressa pelo sistema, uma prova finita
para A ou ¬A. Em outras palavras, o sistema S será completo se todas as sentenças da linguagem
de S forem decidíveis, caso contrário, S será incompleto.

É importante notar que o conceito de completude apresentado – o conceito utilizado pelo


teorema de Gödel – é um conceito puramente sintático, i.e. não faz nenhuma referência sobre o
significado ou interpretações da linguagem, mas se refere apenas às regras formais para
construção de sentenças e provas. Portanto, tal noção de completude não pressupõe nenhuma
noção de verdade (ou falsidade) para as sentenças da linguagem do sistema, mas se refere apenas
às sequências de símbolos formados de acordo com certas regras (sentenças do sistema) e
sequências de sentenças conectadas por aplicações de certas regras formais de inferência (provas
do sistema).26

Isso posto, é importante observar ainda que, assim como o ‘ser’ de Aristóteles, a completude
se diz de múltiplas formas.27 Existem, além da completude sintática, a completude funcional (ou
completude de Post), a completude semântica e a completude modal.

A completude funcional28 se refere aos operadores lógicos (operadores booleanos) da lógica


proposicional. Um conjunto de operadores é dito funcionalmente completo se ele é capaz de
definir todos os outros conectivos em função dele. Por exemplo, o conjunto { ¬ , ∧ } é
funcionalmente completo, pois podemos definir a disjunção ((A ∨ B):= ¬ (¬A ∧ ¬ B) ) e a
implicação ((A → B):= ¬ (A ∧ ¬ B)) por meio da conjunção e da negação.

A completude semântica29 é uma propriedade que afirma que todas as sentenças válidas de
um sistema formal são demonstráveis (⊨ A → ⊢ A), ou seja, todas as sentenças formalmente
verdadeiras são demonstráveis sintaticamente. O igualmente famoso teorema de completude de
Gödel afirma que a lógica de primeira ordem é completa semanticamente.

25
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 37 p.
26
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 28 p.
27
Aristóteles, grande filósofo e fundador da lógica clássica, uma vez afirmou que ‘o ser se diz de muitas formas’. A
frase a que esta nota se refere é apenas paráfrase da declaração do Filósofo.
28
SMITH, P. An introduction to formal logic. 6ª Ed. Cambridge.2013.
29
Van DALEN, D. Logic and Structure. 5ª Ed. Utrecht. 2013. 43p.
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Há ainda a completude modal, que afirma que um sistema formal para lógica modal é
modalmente completo se toda incorporação de modelos for uma incorporação elementar.

3 – “A incompletude está em todos os lugares”

Conforme enunciado na seção anterior, a aparente familiaridade com os conceitos envolvidos


nos teoremas de incompletude, somado ao caráter intuitivo da estrutura geral da prova, atraiu um
vasto público não-especializado, que prontamente começou fazer suas próprias interpretações
sobre os resultados obtidos por Gödel. Tais interpretações, no entanto, geralmente estão muito
distantes do significado original dos teoremas, sendo resultado de um mal-uso dos conceitos. A
presente seção irá, portanto, apresentar algumas dessas interpretações, fazendo as observações
necessárias.

3.1 – Complexidade30

Com alguma frequência, é dito que os teoremas de incompletude se aplicam à sistemas


suficientemente complexos. Tal ideia de complexidade também aparece em algumas supostas
aplicações do teorema em campos não-matemáticos, como na seguinte citação de Richard
Garrod: “O matemático Kurt Gödel estabeleceu que em um sistema suficientemente complexo,
uma descrição completa do sistema não é possível. A complexidade de uma simples fotografia é
incalculável e as possibilidades criativas de uma única fotografia são de fato infinitas.”31

Em primeiro lugar, a afirmação de que o teorema de incompletude se aplica a sistemas


“suficientemente complexos” é incorreta, pois a condição de realizar certa quantidade de
aritmética não tem peso sobre a complexidade do sistema. Tal condição desempenha um papel
importante apenas no que diz respeito ao que pode ser expresso e provado em um sistema.
Existem sistemas muito simples aos quais o teorema de incompletude se aplica e sistemas muito
complexos aos quais o teorema não se aplica.

A citação de Garrod é um exemplo de associação livre entre teorema de Gödel e as noções de


incompletude e complexidade em um sentido informal. Pode ser o caso que a complexidade de
uma simples fotografia seja incalculável, mas Gödel não demonstrou que “uma descrição
completa do sistema” é impossível se o sistema for “suficientemente complexo”. Na citação, uma
fotografia parece ser considerada como um sistema. Independentemente do que se queira dizer
com isto, parece claro que Garrod não está sugerindo que uma fotografia seja capaz de provar
uma sentença da aritmética. Portanto, a evocação do teorema de incompletude, neste caso, é
apenas metafórica, usada como fonte de inspiração poética.

3.2 – Verdades não–demonstráveis32

É comumente dito que Gödel demonstrou que existem verdades que não podem ser provadas.
Tal afirmação está apenas parcialmente correta, pois não há nada no teorema de incompletude
que afirme que uma sentença não pode ser demonstrada em um sentido absoluto. Indemonstrável,
no contexto do teorema de Gödel, quer dizer indemonstrável em um sistema formal particular.

30
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 23 p
31
Retirado do Blog ''Postmodernism and the future of traditional photography" de Richard Garrod.
32
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 24 p
Departamento de Filosofia

Para qualquer sentença A não-demonstrável em um sistema formal S, existe, trivialmente, outro


sistema formal em que A é de fato demonstrável.33

A idéia de que o teorema de Gödel apresenta a existência de verdades não-demonstráveis


está sustentada no fato de que o teorema demonstra que vários sistemas formais, que contenham
axiomas e regras de inferência capazes de realizar todos os teoremas da aritmética, são de fato
incompletos.

Tal resultado, no entanto, não mostra que a demonstração de determinadas sentenças


verdadeiras da aritmética estará eternamente inacessível para a mente humana. De fato, existem
algumas formas de estender os axiomas de um sistema formal com o intuito de estabelecer certas
sentenças. De maneira que, nos dias de hoje, o fato de existirem sentenças indemonstráveis
dentro de um sistema formal específico não é tomado com um problema para a maioria dos
matemáticos.

3.3 – Uma condição da pós-modernidade

Pode-se pensar que o fato de uma sentença específica ser indemonstrável em um sistema
formal em particular, implica que a matemática se ramifica em duas versões, uma em que tal
sentença é verdadeira e outra em que a sentença é falsa (analogamente ao que acontece com o
postulado das paralelas, responsável pela distinção entre as geometrias euclidianas e não-
euclidianas).

Tal idéia é tomada em combinação com uma visão geral do teorema de Gödel, em favor de
um argumento pós-modernista, por Kadvany34:

“A simples observação de como os teoremas de Gödel criaram uma condição para pós-
modernidade começa com o primeiro teorema de incompletude. Este teorema diz, de fato, que um
sistema axiomático consistente, forte o suficiente para provar alguns resultados básicos da teoria
elementar dos números, será incompleto: sempre haverá sentenças formuladas pela sintaxe do
sistema em consideração que não serão nem demonstráveis nem refutáveis dentro do sistema.
Tais sentenças são ditas indemonstráveis com respeito ao sistema. Tomando a sentença
indemonstrável e sua negação, podemos estender o antigo sistema em dois novos sistemas
mutuamente incompatíveis, pela adição da sentença indemonstrável, ou de sua negação, como um
novo axioma. O exemplo clássico deste procedimento é a produção da geometria não-euclidiana
a partir da adição da negação do postulado das paralelas como axioma da geometria elementar
sem o postulado das paralelas. Os novos sistemas construídos também terão novas sentenças
indemonstráveis, diferentes das originais, e o processo de construção de novas sentenças
indemonstráveis e de novos sistemas capazes de incorporar essas novas sentenças e suas
negações seguirão ad infinitum.”

3.4 – O teorema de incompletude fora da matemática35

33
A sentença A é demonstrável no sistema S + A, em que A é um axioma de S.
34
KADVANY, J. Reflection on the legacy of Kurt Gödel: Mathematics, Skepticism, Postmodernism. The Philosophical
Forum 20 (1989). 161 – 181 p.
35
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 77 p
Departamento de Filosofia

Conforme já dito acima, “completude”, “consistência” e “sistema” são palavras usadas tanto
em um sentido técnico na lógica quanto em sentidos informais. Portanto, não é nenhuma surpresa
que o teorema de incompletude tenha sido usado em um grande número de aplicações fora do
campo da matemática. Seguem alguns exemplos:

• Pessoas religiosas afirmam que todas as respostas podem ser encontradas na Bíblia, ou em
qualquer outro livro que eles usem. Isto quer dizer que a Bíblia é um sistema completo,
mas Gödel parece indicar que isto não é verdade.
• Conforme a demonstração de Gödel, todos os sistemas formais consistentes são
incompletos e todos os sistemas formais completos são inconsistentes. A constituição
americana é um sistema formal, feitos alguns ajustes. Os pais fundadores fizeram a
escolha pela consistência em detrimento da completude, criando o poder judiciário para
fechar os espaços abertos pela incompletude.

• Gödel demonstrou que qualquer sistema axiomático deve ser ou incompleto ou


inconsistente. Como a filosofia do objetivismo de Ayn Rand afirma ser um sistema de
axiomas e proposições, uma dessas duas condições deve se aplicada ao sistema filosófico
de Rand.36

A primeira coisa que se deve notar é que as três afirmações desconsideram o fato essencial
de que os sistemas formais, aos quais o teorema de Gödel se aplica, devem ser capazes de
formalizar pelo menos certa parte da aritmética. Se lembrarmos de incluir esta condição, estas
supostas aplicações do teorema de incompletude caem por terra, uma vez que nem a Bíblia, nem
a constituição americana e nem a filosofia de Ayn Rand são fontes de teoremas da aritmética.

O teorema da incompletude é um resultado matemático que trata de sistemas formais como a


aritmética de Peano e ZFC. Sistemas formais são caracterizados por uma linguagem formal, um
conjunto de axiomas e um conjunto de regras de inferência que juntamente com os axiomas
determinam o conjunto de teoremas do sistema.

A Bíblia não é um sistema formal pelo simples motivo de que ela não possui uma linguagem
formal, mas sim um conjunto de textos em alguma linguagem comum como o grego, o hebraico
ou o inglês. Ela não possui axiomas explícitos, nem regras de inferência e muito menos teoremas.
O mesmo vale para a constituição americana e para filosofia de Ayn Rand. Decidir o que se
segue e o que não se segue destes textos não é uma questão para os matemáticos, mas para
teólogos, crentes, juristas, advogados e filósofos.

3.5 – Limite da razão humana37

Outro exemplo de “sistema” ao qual o teorema de incompletude usualmente é associado é a


‘Mente humana’ (ou cérebro, pensamento, intelecto, etc). Os comentários da seção anterior
também se aplicam aqui, pois não há nada de explicito na ‘mente humana’ parecido, com uma

36
Ayn Rand foi uma romancista e filósofa libertária russo-americana. Rand desenvolveu uma corrente filosófica
conhecida como 'Objetivismo'. Tal doutrina está exposta, principalmente, em 'Atlas Shrugged' (1957, disponível em
português) e em 'The Fountainhead' (1943).
37
FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse.1ª ed.Wellesly.2005. 80 p
Departamento de Filosofia

linguagem formal bem definida, axiomas e regras de inferência. Portanto, não faz sentido, à
primeira vista, dizer o que o teorema de incompletude se aplica à ‘mente humana’. No entanto,
existem dois pontos específicos na suposta relação entre a ‘mente humana’ e o teorema da
incompletude que merecem destaque.

Tomemos a seguinte afirmação: Na medida em que os seres humanos tentam ser lógicos,
seus pensamentos formam um sistema formal e então, necessariamente, o teorema de
incompletude se aplica à mente humana.

Se por “tentam ser lógicos” queira-se dizer apenas, em um sentido informal de “lógico” (i.e.
tentar fazer sentido, ser consistente ou falar de maneira clara) então não é possível apontar
nenhum sistema formal que se relacione com o pensamento humano. Sistemas formais são
estudados e aplicados em contextos matemáticos e na programação de computadores. Quando
dizemos que a ‘mente humana’ é um sistema formal que trata de questões como debates políticos,
argumentos legais, discussões formais (e informais) sobre esportes, ciência ou notícias, estamos
sendo metafóricos na melhor das hipóteses.

Outra observação interessante é que mesmo se aceitarmos que só faz sentido falar do teorema
de incompletude em contextos matemáticos, ainda podemos afirmar que os seres humanos
(‘mente humana’) de fato produzem provas matemáticas, em especial provas de sentenças da
aritmética. Portanto, se dissermos que a ‘mente humana’, quando produz provas de sentenças
aritméticas, não é afetada pelo teorema de Gödel, não estaríamos obrigados a aceitar que existe
algo de essencialmente não-computável sobre o pensamento matemático dos homens, que nos
permite transcender as limitações dos computadores e sistemas formais?

A questão levantada é se de fato faz sentido falar em um conjunto de sentenças da aritmética


que “a mente humana é capaz de provar”. Assumindo que existe tal conjunto, podemos nos
perguntar se o conjunto M (conjunto de todas as sentenças aritméticas humanamente
demonstráveis) é computacionalmente enumerável. Se este for o caso, a ‘mente humana’ é
afetada pelo teorema de incompletude e, portanto, existem sentenças que não são humanamente
demonstráveis (dado que a ‘mente humana’ é consistente). Se M não for computacionalmente
enumerável, a ‘mente humana’ é capaz de superar o poder de qualquer sistema formal, não sendo
afetado pelo teorema de incompletude.

Existem alguns argumentos a favor e contra a existência te tal conjunto, no entanto, nenhum
deles é de fato conclusivo e, portanto, nos restringimos a apenas dizer que nós não possuímos
ainda as ferramentas necessárias capazes realizar um tratamento definitivo para questão.

REFERÊNCIAS

[1] FRANZÉN, T. Gödel’s Theorem: a incomplete guide to its use and abuse.1ª
ed.Wellesly.2005.

[2]PEREIRA, L.C.P.D & CASANAVE, A.L. A propósito del formalismo de Johann von
Neumann. Aceito para publicação na revista 'Metatheoria'.
Departamento de Filosofia

[3] KLEENE, S.C. Introduction to Metamathematics. 2ª ed. New York.2009.

[4] SMITH, P. An introduction to formal logic. 6ª Ed. Cambridge.2013.

[5] Van DALEN, D. Logic and Structure. 5ª Ed. Utrecht. 2013.

[6] KADVANY, J. Reflection on the legacy of Kurt Gödel: Mathematics, Skepticism,


Postmodernism. The Philosophical Forum 20 (1989).

[7] GÖDEL, K. On formally undecidable propositions of principia mathematica and related


systems. 2ª ed. New York. 1992.

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