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RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 253

Epistemologia da argumentação
Desidério Murcho1

É sabido que nem todos os argumentos forma lógica é necessário complementar a


válidos (dedutivos ou não) têm conclusões lógica formal com outro tipo de considera-
verdadeiras: os argumentos válidos com ções, se quisermos compreender a argumen-
premissas falsas poderão ter conclusões falsas. tação correcta.
De modo que a validade é uma condição A lógica formal permite compreender e
necessária mas não suficiente da boa argu- explicar o fenómeno da validade de argumen-
mentação. Chama-se «sólidos» aos argumen- tos como os seguintes:
tos que, além de válidos, têm premissas
verdadeiras (Aristóteles chamava-lhes «de- Se Deus existe, a vida faz sentido.
monstrações»). Num argumento sólido é Mas a vida não faz sentido.
impossível (ou improvável, no caso dos Logo, Deus não existe.
argumentos não dedutivos) que a sua con-
clusão seja falsa. Contudo, nem todos os Se Kant era parisiense, era francês.
argumentos sólidos são bons. Um exemplo Mas Kant não era francês.
óbvio de um argumento sólido mau é o Logo, não era parisiense.
seguinte: «A neve é branca; logo, a neve é
branca». Nesta comunicação apresenta-se um A validade destes argumentos pode ser
diagnóstico deste tipo de argumentos sólidos explicada recorrendo unicamente à sua for-
maus segundo o qual a boa argumentação ma lógica, que pode ser representada como
tem de obedecer a certos requisitos se segue:
epistemológicos. Procura-se explicitar esses
requisitos e mostrar que consequências se Se P, então Q.
seguem deles, as mais importantes das quais Mas não Q.
serão as seguintes: 1) A qualidade da argu- Logo, não P.
mentação é relativa aos agentes cognitivos
envolvidos; 2) Há circunstâncias em que é Isolando as proposições simples («Deus
racional rejeitar argumentos sólidos e em que existe», «A vida faz sentido», «Kant era
é irracional aceitar argumentos sólidos. parisiense», «Kant era francês») e distinguin-
A argumentação ou persuasão racional é do-as dos operadores verofuncionais («Se…,
o processo através do qual se procura esta- então…», «não»), compreende-se que a
belecer uma dada conclusão, com base num validade dos dois argumentos acima é ex-
dado conjunto de premissas. A lógica formal plicável recorrendo unicamente à sua forma
permite compreender alguns aspectos de certo lógica: podemos usar quaisquer proposições
tipo de argumentos: os argumentos cuja no lugar de «P» e «Q» que, se mantivermos
validade ou invalidade pode ser explicada a estrutura do argumento, o argumento será
recorrendo exclusivamente à sua forma ló- válido.
gica. Dado que existem outros tipos de O tipo de validade aqui em causa é a
argumentos, este facto seria, só por si, validade dedutiva, que difere da validade não
suficiente para tornar evidente que a lógica dedutiva. Alguns autores preferem não usar
formal tem de ser complementada pela ló- o termo «validade» no caso dos argumentos
gica informal, se quisermos compreender não dedutivos, mas esta não é uma boa
cabalmente a argumentação. Contudo, como opção2. Num argumento dedutivamente vá-
veremos, também no caso dos argumentos lido é impossível que as suas premissas sejam
cuja validade ou invalidade pode ser verdadeiras e a sua conclusão falsa. O mesmo
explicada recorrendo exclusivamente à sua não acontece no caso da validade não dedu-
254 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume II

tiva. Num argumento válido não dedutivo é


improvável (mas não impossível) que as suas
premissas sejam verdadeiras e a sua conclu-
são falsa. Além disso, a validade não dedu-
tiva nunca depende inteiramente da forma
A validade é uma condição necessária da
lógica dos argumentos em causa; mas alguns
boa argumentação, mas não suficiente. Isso
tipos de validade dedutiva dependem intei-
ramente da forma lógica dos argumentos em é evidente se pensarmos em argumentos
causa. Vejamos alguns exemplos de argumen- válidos mas com premissas falsas, como o
tos indutivos (um dos tipos de argumentos seguinte:
não dedutivos):
Se a neve é branca, a Lua é feita de
Todos os corvos observados até hoje queijo.
são pretos. A neve é branca.
Logo, todos os corvos são pretos. Logo, a Lua é feita de queijo.

Todos os corvos observados até hoje Apesar de válido, este argumento é mau
viveram antes do ano 2100. porque a primeira premissa é falsa. Chama-
Logo, todos os corvos vivem antes do se «sólidos» aos argumentos que, além de
ano 2100. válidos, só têm premissas verdadeiras. A
diferença crucial entre os argumentos sólidos
Estes dois argumentos têm a mesma forma e os argumentos meramente válidos é que
lógica; contudo, ainda que possamos defender os segundos podem ter conclusões falsas, mas
que o primeiro é válido, o segundo é clara- os primeiros não. A solidez é uma condição
mente inválido. A forma lógica não é, pois, necessária da boa argumentação, dado que
tudo quanto basta para distinguir os argumen- um argumento válido mas não sólido pode
tos não dedutivos válidos dos inválidos3. ter uma conclusão falsa.
Também há argumentos dedutivos cuja Todavia, apesar de a solidez ser uma
validade não depende inteiramente da sua condição necessária da boa argumentação, não
forma lógica. Os seguintes argumentos, por é suficiente. E este é o aspecto que dese-
exemplo, são dedutivamente válidos: jamos esclarecer aqui. Considere-se o seguin-
te argumento:
A neve é branca.
Logo, a neve tem cor. A neve é branca.
Logo, a neve é branca.
Kant era solteiro.
Logo, não era casado. Este argumento é válido porque é impos-
sível que a premissa seja verdadeira e a
Contudo, a validade destes argumentos conclusão falsa. E é sólido, porque a pre-
não pode ser estabelecida recorrendo unica- missa é verdadeira. Contudo, trata-se de um
mente à forma lógica, dado que o seguinte exemplo extremo de um mau argumento.
argumento tem a mesma forma lógica do Porquê? A explicação comum é que se trata
segundo, mas é claramente inválido: de uma versão óbvia da conhecida falácia
da petitio principii ou petição de princípio:
Kant era solteiro. a conclusão limita-se a repetir a premissa.
Logo, não era feliz. Mas o que há de errado com a petição de
princípio? Afinal, do ponto de vista estrita-
Alguns tipos de validade dedutiva depen- mente lógico, o argumento dado é tão válido
dem não apenas da forma lógica dos argu- quanto outro qualquer. Como podemos es-
mentos em causa, mas também das relações clarecer o problema da circularidade na
conceptuais ou semânticas presentes no ar- argumentação?
gumento4. Podemos, assim, traçar o seguinte Não parece possível esclarecer o proble-
quadro do universo da validade: ma da circularidade na argumentação por
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meios puramente lógicos. Porque do ponto vista da lógica formal tudo o que se pode
de vista estritamente lógico nada há de errado dizer é que de um dado conjunto de pro-
com os argumentos circulares. O problema posições se deriva ou não outra proposição
dos argumentos circulares não é estritamente dada; mas a lógica formal não tem recursos
lógico, no sentido formal do termo; é lógico, para distinguir conjuntos de proposições que
mas no sentido amplo do termo, que inclui são argumentos de conjuntos de proposições
a lógica informal. É a lógica informal que que não são argumentos. Isto porque a noção
procura explicar e sistematizar fenómenos de argumento implica uma intenção de um
argumentativos que não podem ser explica- agente: alguém tem de ter a intenção de
dos nem sistematizados pela lógica formal. sustentar uma proposição com base noutras.
Tome-se o caso simples da noção de falácia. Dado que a lógica formal não lida com
Do ponto de vista estrito da lógica formal agentes, não pode definir a noção de argu-
não há falácias: há apenas argumentos in- mento, tal como não pode definir a noção
válidos. Mas nem todos os argumentos in- de falácia.
válidos são falácias. O seguinte argumento A mesma limitação fundamental da ló-
inválido não é uma falácia: gica formal ocorre no que respeita à expli-
cação da circularidade ou da petição de
Sócrates era grego. princípio na argumentação. O fenómeno em
Logo, a neve é branca. causa não é formal; é um fenómeno
argumentativo no sentido mais amplo, que
Apesar de este argumento ser inválido, inclui aspectos relacionados com os agentes
é tão obviamente inválido que não se qua- cognitivos envolvidos.
lifica como falácia. Pois uma falácia é, por Qualquer explicação do que há de errado
definição, um argumento mau ou inválido que na circularidade argumentativa deve ser tão
tem a aparência de ser bom ou válido. ampla quanto possível e deve detectar for-
Vejamos o seguinte argumento falacioso: mas análogas do mesmo erro em argumentos
que não sejam, estritamente falando, petições
Se Sócrates era ateniense, era grego. de princípio. Considere-se uma vez mais o
Sócrates era grego. seguinte argumento:
Logo, era ateniense.
Se Deus existe, a vida faz sentido.
Este argumento é falacioso porque pare- Mas a vida não faz sentido.
ce válido, apesar de ser de facto inválido. Logo, Deus não existe.
Contudo, do ponto de vista da lógica formal,
o argumento é apenas inválido, não se dis- Este argumento é dedutivamente válido.
tinguindo de outros argumentos inválidos que Mas será um bom argumento? A resposta é
não são falaciosos porque não parecem negativa, pois dificilmente encontraremos
válidos. Assim, a noção de falácia não pode alguém que aceite a inexistência de Deus com
ser definida pela lógica formal, pois introduz base neste argumento. E há boas razões para
elementos epistemológicos ou até psicológi- isso.
cos que lhe são alheios. A lógica formal não O problema que este argumento tem em
lida com agentes e por isso não pode ex- comum com qualquer petição de princípio
plicar fenómenos argumentativos que resul- explícita é o seguinte: as suas premissas não
tem das reacções dos agentes que usam a são mais plausíveis do que a sua conclusão.
argumentação. É a lógica informal que Tal como no caso da noção de falácia, que
abrange as relações entre os argumentos e introduz uma noção relativamente vaga e
os agentes cognitivos envolvidos (quer se- intratável em termos de lógica formal (a
jam os argumentadores ou os destinatários noção de «parecer» válido ou bom), também
da argumentação). É porque a lógica infor- aqui a lógica informal introduz uma noção
mal abrange estas relações que pode definir vaga e intratável em lógica formal: a noção
a noção de falácia. de plausibilidade relativa. Antes de esclare-
A própria noção de argumento não pode cer melhor esta noção, vejamos como ela nos
ser definida pela lógica formal. Do ponto de ajuda a esclarecer o que há de errado tanto
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com as petições de princípio como com mento plausíveis. E por isso este argumento
argumentos como o último exemplo dado. pode persuadir racionalmente essas pessoas
Tanto num caso como no outro, os ar- a mudar de ideias quanto à relação entre
gumentos falham porque não partem do mais deveres e direitos.
plausível para o menos plausível. Dado que Esta noção de argumento bom ou forte,
a função de um argumento é persuadir um baseada na noção de plausibilidade das
agente cognitivo da verdade ou plausibilidade premissas, pode suscitar algumas objecções.
da conclusão em causa, isso tem de se Uma das mais evidentes é a seguinte:
conseguir partindo de algo que o agente
considere mais plausível do que a conclusão. A caracterização de argumento bom
O agente tem de ser compelido racionalmen- ou forte com base na plausibilidade
te a aceitar a conclusão por ver que é falha o alvo porque a qualidade da
impossível ou muito improvável que a con- argumentação é independente do que
clusão seja falsa dadas as premissas; mas isto os agentes pensam. Um agente pode
significa que o agente tem de pensar que as perfeitamente pensar que um dado
premissas são mais plausíveis do que a argumento é bom ou forte, mas esse
conclusão, caso contrário recusará o argumen- argumento pode ser muito mau, ou
to recusando pelo menos uma das premissas. pode basear-se em premissas falsas.
Assim, no caso do argumento sólido Assim, tudo o que precisamos para
apresentado cuja premissa é exactamente compreender a argumentação é a velha
igual à conclusão, a única razão dada ao noção de solidez: a validade, junta-
agente para aceitar a conclusão depende da mente com a verdade das premissas,
sua aceitação prévia da própria conclusão. é tudo o que precisamos para carac-
No outro caso, o modus tollens sobre Deus terizar a boa argumentação. O resto
e o sentido da vida, apesar de nenhuma das é psicologia e como tal é logicamente
premissas ser uma mera repetição da con- irrelevante.
clusão, as premissas não são mais plausíveis
do que a conclusão. Ambos os argumentos A primeira reacção óbvia a esta objecção
são destituídos de poder persuasivo; são é voltar a chamar a atenção para o problema
ambos maus ou fracos, apesar de serem dos argumentos circulares. Estes argumentos
ambos dedutivamente válidos e apesar de pelo são claramente maus, e no entanto podem
menos um deles ser claramente sólido. perfeitamente ser sólidos.
Considere-se agora o seguinte argumen- Contudo, o mais importante é sublinhar
to: que não se trata de apelar para fenómenos
«meramente psicológicos», mas sim para o
Se quem não tem deveres também não estado cognitivo do agente. Sendo a argu-
tem direitos, nem os recém-nascidos mentação uma actividade racional, seria
nem os deficientes mentais têm direi- estranho que nesta actividade o estado
tos. cognitivo do agente não tivesse qualquer
Mas é absurdo defender que nem os relevância. Por «estado cognitivo» do agente
recém-nascidos nem os deficientes entende-se o conjunto de crenças ou convic-
mentais têm direitos. ções que o agente tem, aquilo que o agente
Logo, é falso que quem não tem julga saber, o que ele pensa ser falso, o que
deveres também não tem direitos. ele aceita apenas parcialmente, o que ele
duvida, etc. O estado cognitivo do agente é
Este é um argumento bom ou forte a base a partir da qual o agente avalia não
porque, além de válido, as premissas são mais só os argumentos que lhe são apresentados,
plausíveis do que a conclusão. Muitas pes- mas toda e qualquer nova informação.
soas pensam que quem não tem deveres Eis alguns exemplos: a Mariana diz ao
também não tem direitos. Essas pessoas João que ontem foi ao supermercado mas não
acham muito implausível a conclusão do havia leite. O João acredita porque nada do
argumento acima. Mas essas mesmas pesso- que a Mariana diz entra em conflito com a
as acharão ambas as premissas deste argu- informação geral que ele tem das coisas, isto
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é, com o seu estado cognitivo. Compare-se a acreditar em coisas que antes não sabiam
agora com duas outras situações: A Mariana ou não acreditavam.
diz-lhe o mesmo, mas o João acabou de vir Torna-se agora mais claro por que razão
do supermercado e viu que havia leite. Neste não se pode aceitar que a força ou qualidade
caso, o João não aceita o relato da Mariana: de um argumento é independente do estado
talvez ela não tenha visto bem, ou talvez lhe cognitivo dos agentes envolvidos. A verdade
esteja a mentir deliberadamente por qualquer é uma noção metafísica, independente do que
razão. Noutra circunstância, a Mariana diz os agentes pensam que é verdade, e o mesmo
ao João que ontem foi ao supermercado, mas acontece com a validade. Por isso, a solidez
o supermercado tinha sido desintegrado por é independente dos agentes cognitivos. Um
extraterrestres. Mesmo que o João não tenha argumento é sólido ou não independentemente
ido ao supermercado nos últimos dias, a do que os agentes cognitivos possam pensar.
afirmação da Mariana é de tal forma Mas o mesmo não acontece com a força ou
implausível que requer informações adicio- qualidade de um argumento, pois neste caso
nais; dado que o João não ouviu falar de tão trata-se de procurar influenciar o estado
portentoso acontecimento nos jornais, na cognitivo do agente. Ora, a única maneira
Internet, na televisão, nem aos vizinhos, parte racional de reagir quando alguém procura
do princípio de que a Mariana está a contar influenciar o nosso estado cognitivo é ava-
lérias — ou talvez se prepare para lhe contar liar cuidadosamente essa proposta; e não há
uma piada. Em qualquer caso, dado o estado outra maneira de o fazer excepto usando os
cognitivo do João, a afirmação da Mariana elementos relevantes do nosso estado
é recebida com justificada descrença. cognitivo. Não se trata de dizer que avali-
Contudo, repare-se que, apesar de estar amos tudo segundo o nosso próprio ponto
a agir de forma perfeitamente racional, dando de vista, fazendo de cada agente cognitivo
mais ou menos crédito às afirmações da uma espécie de ilha cognitiva, isolada e
Mariana em função das convicções gerais que incomensurável. Se alguém recusa aceitar
tem acerca do mundo, o João pode estar novas informações empíricas claras, por
errado em todos os exemplos dados. Apesar exemplo, porque colidem com as suas cren-
de muitíssimo improvável, é possível que o ças prévias, essa pessoa é dogmática e ir-
supermercado tenha sido desintegrado por racional. Mas se essa pessoa aceitar toda e
extraterrestres; apesar de tal coisa entrar em qualquer afirmação que colide com o seu
conflito com o estado cognitivo do João, é estado cognitivo, ainda que essa afirmação
uma situação possível. Daqui segue-se que não tenha maior base de apoio ou
em certas situações é perfeitamente racional plausibilidade do que o simples facto de
não aceitar verdades. Em que situações? alguém lho ter dito, então essa pessoa pode
Quando, relativamente ao estado cognitivo estar igualmente a ser irracional. A
do agente, tal verdade é improvável e o agente racionalidade é algo que se situa entre o
não tem qualquer razão independente para dogmatismo e a leviandade. É o que acon-
a aceitar. tece quando um agente avalia cuidadosamente
Os exemplos dados poderão parecer as novas informações, contrastando-as com
artificiosos. Mas ilustram algo que é comum o seu estado cognitivo, procurando ver se
e perfeitamente visível no desenvolvimento deve dar maior crédito à nova informação
da ciência e de outras actividades racionais. que o obriga a rever algumas das suas crenças,
Dado o estado cognitivo de Ptolomeu, era ou se pelo contrário a nova informação não
racional aceitar que a Terra estava parada — merece maior crédito do que as suas crenças
nem ele nem os seus contemporâneos tinham anteriores incompatíveis.
razões fortes para pensar que a Terra se Assim, torna-se claro que há situações nas
movia. Quando surgiram novas informações, quais é racional rejeitar argumentos sólidos:
a ideia de que a Terra estava imóvel foi-se Se o estado cognitivo de um agente for tal
tornando menos plausível. Mas dizer que que lhe dê razões para pensar que um dado
surgiram novas informações é outra maneira argumento não é sólido, depois de uma análise
de dizer que o estado cognitivo das pessoas ponderada, então o agente deve rejeitar o
se alterou: as pessoas passaram a saber ou argumento. Contudo, o argumento pode
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perfeitamente ser sólido e acontecer apenas pode dizer é que se a sua situação cognitiva
que o agente não está em condições de o se alterar, talvez por força de alguma des-
saber. Vejamos um exemplo simples: coberta ou inferência, ele passará a achar
plausível a afirmação que antes achava
Se a Terra não estiver no centro do implausível. Mas isto só acontece porque o
universo, a cosmologia de Ptolomeu estado cognitivo do agente se modificou.
está errada. Note-se que o que se disse não implica
A Terra não está no centro do uni- que qualquer crença efectivamente aceite por
verso. um dado agente cognitivo é racionalmente
Logo, a cosmologia de Ptolomeu está plausível para ele. A racionalidade envolve
errada. restrições quanto ao que um dado agente pode
aceitar como plausível. Um partidário ferre-
Hoje, temos razões para pensar que este nho da pena de morte, por exemplo, que se
argumento é sólido, porque temos razões para recusa a avaliar a sua crença, pesando a sua
pensar que as suas premissas são verdadeiras plausibilidade relativamente a outras crenças
(e sabemos que o argumento é válido). Mas que ele também tem, é pura e simplesmente
sem telescópios e sem outros elementos irracional e não se pode dizer que do seu
científicos, tanto fruto da observação directa estado cognitivo a pena de morte é plausível;
como da elaboração teórica, muitos agentes o que se passa é que ele se recusa a avaliar
cognitivos estiveram durante séculos numa racionalmente a sua crença.
situação tal que tinham razões para pensar Dado que, no que respeita à força ou
que este argumento, apesar de válido, não qualidade de um argumento, a relação de
era sólido. plausibilidade entre as premissas e a conclu-
A situação inversa é também óbvia: são desempenha um papel central, e dado que
podemos estar numa situação cognitiva tal a plausibilidade é relativa a agentes, segue-
que seja racional pensar que um dado argu- se que a força ou qualidade da argumentação
mento é sólido quando, na verdade, esse é relativa aos agentes. Este relativismo da
argumento não é sólido. argumentação, contudo, não é global; não é
A solidez é, pois, independente dos um relativismo cognitivo. Um relativista
agentes cognitivos. E os agentes cognitivos cognitivo em relação à argumentação é al-
podem estar errados na sua avaliação da guém que defende que os argumentos são
solidez dos argumentos, pela razão prosaica sólidos ou não em função dos agentes; ou
de que não são omniscientes. Mas é preci- alguém que defende que qualquer avaliação
samente porque não são omniscientes que a de um argumento por um agente é tão boa
plausibilidade é uma noção muito diferente como outra qualquer. Não é este relativismo
da verdade ou da validade. A verdade e a cognitivo que se defende aqui. O relativismo
validade são independentes dos agentes e isto que se defende aqui não é cognitivo porque
significa que uma pessoa pode perfeitamente não torna tudo igual a tudo, porque não faz
pensar que um argumento é sólido quando qualquer avaliação de um dado argumento
o argumento não é realmente sólido. Mas não ser tão boa quanto outra qualquer. Um agente
faz muito sentido dizer que um agente pensa que não avalie cuidadosamente um argumen-
que uma dada afirmação é plausível apesar to e se limite a declará-lo mau porque a sua
de essa afirmação não ser plausível. O único conclusão lhe desagrada, é dogmático e
sentido em que se poderia dizer tal coisa seria irracional – porque, ao contrário do que ele
este: o agente pensa que a afirmação é afirma, não é verdade que, relativamente ao
plausível porque não a avaliou cuidadosamen- seu estado cognitivo, ele tenha razões para
te, não pesou de forma minimamente impar- pensar que o argumento é mau. Este agente
cial os prós e os contras, limitando-se a ser não tem razões algumas para achar que o
conduzido pelos seus preconceitos e ideolo- argumento é mau; é apenas casmurro e
gias. Mas se um agente for racional e se achar irracional.
que uma dada afirmação é implausível, depois Note-se, além disso, que o tipo de
da sua avaliação honesta e cuidada, não se relativismo aqui em causa permite igualmen-
pode dizer que ele está enganado. O que se te distinguir aquele tipo de afirmações que
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são plausíveis para qualquer agente cognitivo, Em consequência, este tipo de argumentos
ou para a generalidade dos agentes cognitivos, não é racionalmente persuasivo. Regra geral,
daquelas afirmações que são plausíveis para para argumentar a favor de uma dada con-
alguns mas não para outros agentes clusão, é preciso usar argumentos válidos
cognitivos. Vejamos os seguintes dois exem- cujas premissas sejam plausíveis para quem
plos: não aceita a conclusão.
Podemos objectar que muitas vezes nós
Se o assassínio gratuito de inocentes já aceitamos uma dada afirmação e quere-
for permissível, a vida não é sagrada. mos apenas procurar justificação racional para
Mas a vida é sagrada. ela. Esta objecção não colhe porque se a nossa
Logo, o assassínio gratuito de inocen- procura for realmente racional, e não mera-
tes não é permissível. mente ideológica, teremos de reunir duas
condições: 1) iremos procurar argumentos a
Se o Papa defende que não se deve favor da afirmação que já aceitamos, mas as
tomar a pílula, não se deve tomar a premissas desses argumentos têm de ser mais
pílula. plausíveis do que a conclusão; 2) teremos
O Papa defende que não se deve tomar de estar dispostos a abandonar ou a suspen-
a pílula. der a nossa crença caso não encontremos bons
Logo, não se deve tomar a pílula. argumentos a seu favor.
É evidente que há sérios problemas de
O primeiro argumento é muito fraco por- pormenor, nomeadamente uma compreensão
que a segunda premissa é menos plausível, para rigorosa da dinâmica da aceitação e rejeição
qualquer agente cognitivo, do que a conclusão. racional de crenças. Mas seja quais forem
Mesmo para uma pessoa religiosa, e que aceite os aspectos de pormenor dessa dinâmica,
que a vida é sagrada, esta ideia não é mais parece claro que uma condição necessária
plausível do que a ideia de que o assassínio para a aceitação racional de uma crença por
gratuito de inocentes não é permissível. Assim, meio de um argumento é que as premissas
podemos dizer que a fraqueza deste argumento desse argumento sejam mais plausíveis para
é universal, apesar de relativa ao estado o agente em causa do que a conclusão.
cognitivo dos agentes. Isto acontece porque há Assim, podemos afirmar que a qualidade
certas afirmações cuja plausibilidade é parti- da argumentação é o resultado de três tipos
lhada por todos os agentes cognitivos. de factores:
Por outro lado, a força do segundo ar- 1. O factor lógico, que por vezes é
gumento depende de estados cognitivos que exclusivamente formal, é a validade (dedu-
não são amplamente partilhados por muitos tiva e não dedutiva). A validade garante que
agentes. Para um católico, o argumento pode é impossível ou pelo menos improvável que
ter bastante força, se ele achar mais plausível as premissas de um argumento sejam ver-
a primeira premissa do que a conclusão. Mas dadeiras e a sua conclusão falsa. A validade
quem não é católico acha a primeira premis- é independente do estado cognitivo dos
sa implausível. agentes.
Podemos agora compreender melhor por 2. O factor metafísico é a verdade. A
que razão alguns argumentos válidos são verdade das premissas é uma condição
maus ou fracos, ainda que sejam sólidos. necessária da argumentação de qualidade, pois
Vejamos o seguinte exemplo: garante, juntamente com a validade, a ver-
dade da conclusão. A verdade é igualmente
Se a vida é sagrada, o aborto não é independente do estado cognitivo dos agen-
permissível. tes.
A vida é sagrada. 3. O factor epistemológico é a relação de
Logo, o aborto não é permissível. plausibilidade existente entre as premissas e
a conclusão do argumento. Num argumento
Este tipo de argumento é usado muitas bom ou forte as premissas são mais plausíveis
vezes perante destinatários que acham qual- do que a conclusão. A plausibilidade é rela-
quer das premissas muitíssimo implausíveis. tiva ao estado cognitivo dos agentes.
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É o factor epistemológico que explica É agora claro que não é uma boa ideia
alguns fenómenos interessantes da argumen- usar o termo «validade» apenas para a
tação. E sem este factor não podemos ex- validade dedutiva, usando o termo «força»
plicar como podem os seres humanos, no caso da validade não dedutiva: pois apesar
epistemicamente finitos e falíveis, avaliar de a validade dedutiva ser discreta, ao passo
racionalmente os argumentos, pois teremos que a validade não dedutiva é contínua, a
de pressupor uma falsidade evidente: que são qualidade global da argumentação, seja ela
omniscientes. É o factor epistemológico da dedutiva ou não, é contínua, sendo natural
argumentação que permite explicar o proces- e adequado comparar a força relativa de dois
so de avaliação racional de argumentos por argumentos igualmente válidos, em função
parte de agentes cognitivos não omniscien- da relação de plausibilidade existente entre
tes. as suas premissas e conclusões5.
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_______________________________ João é casado; nenhum casado é solteiro; logo,


1
King’s College London. o João não é solteiro». O problema desta redução
2
Nomeadamente, porque, nesse caso, se usam simplista é que não exibe a diferença relativa-
termos como «força» para a validade não dedu- mente a outra «redução» que ninguém aceita como
tiva, o que depois torna impossível usar o mesmo redução: «O João é casado; nenhum casado é feliz;
termo para o fenómeno da força dedutiva, que logo, o João não é feliz». Neste segundo caso,
iremos esclarecer aqui. não se trata de uma redução porque a segunda
3
Note-se que estes são exemplos de gene- premissa não diz respeito ao significado dos termos
ralizações, um dos dois tipos de induções (sendo ou conceitos envolvidos. Mas isto significa que
o outro a previsão), mas não devemos esquecer tudo o que estamos a fazer com a pretensa primeira
que há outros tipos de argumentos não dedutivos redução é dizer que a inferência depende do
importantes, como os argumentos de autoridade, significado dos termos e conceitos envolvidos, o
os argumentos por analogia e os argumentos que não é novidade alguma, quando o que se queria
causais; é por este motivo que se usa aqui o termo era uma verdadeira redução destes factos
«argumentos não dedutivos» em vez de «argu- conceptuais ou semânticos à forma lógica. E isso
mentos indutivos». é coisa que não se fez.
4 5
O argumento formalmente não válido «O Agradeço a Miguel Amen, Célia Teixeira e
João é casado; logo, não é solteiro» pode trans- Américo de Sousa as discussões e objecções que
formar-se no argumento formalmente válido «O me permitiram melhorar este ensaio.

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