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Argumentos

RAZÕES E ARGUMENTOS
No capítulo anterior, na presuntiva companhia de Aristóteles, observamos que
todos os homens não apenas anseiam conhecer, mas também discutem, defendem suas
posições e fazem objeções às de outros. Nessa ocasião salientamos que oferecer razões
para acatar ou para rechaçar uma posição é uma importante estratégia em
empreendimentos que visam gerar a convicção.
Futuramente teremos ocasião de retornar ao tema do papel e importância da
argumentação seja na busca supostamente desinteressada pela verdade, seja na resolução
de problemas práticos (privados ou públicos). Pelo momento, para vermos com mais
nitidez e riqueza de detalhes algo, vamos limitar a nossa consideração. Fiquemos por ora
com um modo de argumentar que, mesmo que venha a se mostrar como não sendo o único
modo racional, é usualmente tido por paradigmático: os argumentos dedutivamente
válidos. Vamos caracterizar devagar essa noção fundamental da Lógica, através de
restrições na noção geral de oferecer razões, de argumentar.
A primeira restrição é considerar apenas os contextos de comunicação verbal, de
sorte que tanto as posições defendidas (ou criticadas), como as razões invocadas em seu
favor (ou contra elas) são expressas por meio da linguagem, mais especificamente por
meio de sentenças declarativas, privilegiando, por razões que se verá oportunamente, a
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expressão escrita . Destarte, acompanhando a tradição, podemos entender por argumento
em sua forma mais elementar um grupo de asserções uma das quais é aquela em favor da
qual se argumenta (dita, então, a conclusão) e as demais (ditas, premissas) são
apresentadas como razões que favorecem a conclusão (ou seja a verdade dessas é
apresentada como acarretando a verdade daquela). Um argumento, portanto, não é um
mero agregado de asserções, mas impõe uma estrutura às asserções envolvidas e que
permite distinguir premissas e conclusão; aquelas são apresentadas como razões que
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fundamentam, justificam a conclusão, em favor da qual se argumenta .
Um argumento elementar pode ser formado apenas por uma premissa e a
conclusão; por exemplo:
O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois ninguém reclama para si
mais bom senso do que possui.
Ninguém reclamar para si mais bom senso do que possui, fato expresso pela premissa, é
tomado aqui como razão para a ótima partilha do bom senso, que é expresso pela
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Essa restrição não deveria dar azo, embora tenha dado, a se crer que temas lógicos sejam temas de natureza
essencialmente linguística. Como dizia Quine, filosofo americano (se essa locução não for um oximoro) e
lógico matemático, o coração do lógico não está na linguagem. Essa opção, de privilegiar os argumentos
expressos linguisticamente, de modo algum prejudica a possibilidade, reconhecida por alguns autores, de
formas não verbais de argumentação
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Essa é uma compreensão tradicional dos argumentos, discriminando premissas e conclusão, cuja origem
remonta ao mundo grego clássico. Recentemente, na segunda metade do último século do milênio passado,
Stephen E. Toulmin, com base em presuntivas razões antes epistemológicas que lógicas, criticou essa
compreensão (que ele denominava de analítica, silogística) dos processos argumentativos e propôs um novo
formato para a análise dos argumentos, discriminando bases, garantias, apoio, qualificativos e restrições,
além da alegação (da conclusão) . Essa sugestão viria posteriormente a ganhar vida própria e ampla
circulação entre os estudiosos da teoria da comunicação e os da assim chamada lógica informal, sob a
alcunha de “modelo de Toulmin”. O leitor interessado nesse modelo, pode consultar, p.e., (TOULMIN;
RIEKE; JANIK, 1984); da obra originária de Toulmin, (TOULMIN, 2003) há uma tradução brasileira.

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conclusão. Ou um argumento pode conter mais de uma premissa, por exemplo, duas,
como no caso do argumento a seguir
Uma das substâncias ativas da canabis sativa é o THC (Tetra-hidro-carabinol). Ora,
estudiosos afirmam que o THC, além de provocar alterações da consciência, pode
causar danos irreversíveis na capacidade cognitiva. Por conseguinte, o uso da
canabis sativa não é recomendável para aqueles que querem preservar suas
capacidades cognitivas.
Nesse argumento, as razões expressas pelas premissas, que não recomendam o uso da
maconha (a sua conclusão), são a afirmação dos estudiosos sobre os danos causados pelo
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THC e o fato de ser essa uma das substancias ativas da maconha .
Num argumento, portanto, as asserções que constituem suas premissas são
apresentadas como fundamentos da conclusão, por conseguinte, como razões para acatar
a conclusão. Mas o que se deve entender aqui por razões? Pelas razões antes assinaladas,
não podemos pretender uma resposta exaustiva para essa questão. Aqui vamos nos
contentar em demarcar o que muito provavelmente é apenas um gênero peculiar de
argumentação que, todavia, desempenha um papel importante na investigação da verdade,
seja essa investigação conduzida precipuamente com fins meramente especulativos ou
ainda com fins práticos. Trata-se daqueles argumentos com respeito aos quais a verdade
conjunta das premissas deve ser condição necessariamente suficiente da verdade da
conclusão. Apressemo-nos em explicar essa cláusula, considerando inicialmente
exemplos. Os dois argumentos anteriormente apresentados não serão de valia aqui, pois
ainda que sejam exemplares castiços de argumentos, é pouco razoável crer que aquele
que venha a considera-los seriamente tome a verdade de suas premissas como condição
suficiente da verdade de sua conclusão; pelo contrário, todos hão de convir que o fato de
ninguém reclamar para sim uma melhor dotação não é condição suficiente da
equanimidade na distribuição; nem a afirmação de alguns (ainda que especialistas) é
condição suficiente da verdade daquilo que é afirmado. Consideremos, então, um outro
exemplo:
A biblioteca possui vários exemplares do manual de Lógica. Até o momento,
apenas um exemplar foi retirado. Há, portanto, pelo menos um exemplar do manual
disponível na biblioteca.
As premissas desse argumento são as asserções:
A biblioteca possui vários exemplares do manual de Lógica.
Até o momento, apenas um exemplar foi retirado.
E a conclusão, de cuja verdade a verdade das premissas é condição suficiente, num
sentido forte, é a asserção:
Há pelo menos um exemplar do manual disponível na biblioteca.
Independentemente do número de exemplares do manual de Lógica que a biblioteca de
fato possui e independentemente de quantos exemplares desse manual já tenham sido de
fato emprestados, se aquele número for maior que um (vários) e esse número for

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A fim de evitar confusões, deve-se observar que o termo argumento é aqui empregado com um sentido
diferente daquele que assume em certas construções usuais como, por exemplo, na afirmação: “Fiz o que
me pedira, pois me dera bons argumentos para fazê-lo”, onde o termo argumento é empregado com um
significado próximo ou mesmo idêntico ao dos termos motivo, justificação, razão. No sentido anteriormente
explicado, um argumento envolve tanto as premissas (que exprimem as razões, as justificativas, os
fundamentos), como a conclusão (que expressa o que se quer justificar, fundamentar).

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exatamente um, então tem de estar disponível para empréstimo ainda algum exemplar.
Ou seja, necessariamente, se as premissas desse argumentos forem ambas verdadeiras, a
sua conclusão também será verdadeira; formulando de maneira alternativa, inteiramente
equivalente, não possível que suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa.
Outro exemplo,
Nenhum número par maior que dois é um número primo.
O número de alunos inscritos no curso é par e maior que dois.
Portanto, o número de alunos inscritos no curso não é um número primo.
Independentemente de qual seja o número exato de alunos inscritos no curso e
independentemente também da verdade ou não da afirmação aritmética aludida, se aquele
número for par e maior que dois e se nenhuma par maior que dois é primo, então
necessariamente o número de alunos inscritos no curso não é primo.
A propriedade para a qual queremos chamar a atenção e que é caraterística do
gênero de argumentos exemplificado pelos dois últimos argumentos pode receber
diferentes formulações. Podemos dizer, como fizemos antes, que a verdade conjunta de
suas premissas é condição necessariamente suficiente da verdade da conclusão. Mas
também podemos dizer que não é possível que suas premissas sejam verdadeiras e a sua
conclusão falsa, ou, empregando uma fórmula equivalente, se todas as suas premissas
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forem verdadeiras, então necessariamente sua conclusão é verdadeira . Ou ainda, que a
verdade da conclusão decorre necessariamente da verdade conjunta das premissas
(alternativamente, a verdade dessas acarreta necessariamente a verdade daquela); posta a
verdade de todas as suas premissas, segue-se necessariamente a verdade da conclusão e,
nesse sentido, podemos dizer que a verdade é necessariamente preservada ao passarmos
das premissas para a conclusão. Todas essas formulações salientam que se trata de uma
relação entre valores de verdade (o ser verdadeiro ou o ser falso) das premissas e da
conclusão, uma relação que, todavia, não é determinada simplesmente pela verdade e/ou
falsidade de premissas e conclusão, mas envolve a possibilidade ou impossibilidade de
certa combinatória de valores de verdade (qual seja aquela em que todas as premissas são
verdadeiras e a conclusão é falsa). Donde, a verdade das premissas não é mera condição
de fato suficiente da verdade da conclusão, mas uma condição necessariamente suficiente.
Assim, para fazer referência a esse gênero de argumentos podemos empregar, de
maneira indistinta, as expressões “argumentos nos quais as premissas acarretam
necessariamente a conclusão”, “argumentos nos quais a conclusão decorre
necessariamente das premissas”, “argumentos nos quais a verdade conjunta de suas
premissas são condição necessariamente suficiente da verdade da conclusão”, etc. Nessa
medida, todas essas expressões são aqui tomadas como equivalentes e designam aqueles
argumentos com respeito aos quais não é possível que as premissas sejam verdadeiras e
a conclusão falsa. Em muitos textos de divulgação (por exemplo, SALMON, 2002; COPI,
1981, entre outros) e mesmo em manuais introdutórios de Lógica, (entre outros, MATES,
1972; TOMASSI, 1999) tais argumentos são denominados argumentos válidos ou
legítimos; o traço ora salientado de alguns argumentos é tomado como a marca
característica dos argumentos ditos válidos, legítimos, ou ainda corretos. Todavia, nunca
se deve prejulgar a resposta a alguma questão teórica pela terminologia, principalmente
quando se trata de uma questão disputada, cuja resposta não é evidente. Esse é exatamente
o caso aqui. Sem reflexões que forneçam mais subsídios, seria imprudente e

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Nesse contexto, necessário é o mesmo que a negação da possibilidade do contrário, ou seja, algo é
necessário se não for possível que não seja.

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desencaminhador afirmar ou negar a existência de outras formas legítimas, válidas,
corretas de argumentar além daquelas nas quais a conclusão decorre necessariamente das
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premissas . Assim, convém preservar o uso das expressões rebuscadas que ocorrem acima
para designar os argumentos com respeito aos quais não é possível que as premissas sejam
verdadeiras e a conclusão falsa. Em particular, no que se segue, vamos chamar tais
argumentos de argumentos que preservam necessariamente a verdade (porquanto
necessariamente a verdade é preservada ao se passar das premissas para a conclusão: se
aquelas forem verdadeiras, necessariamente esta, a conclusão, também será).
Mais importante que decidir a melhor terminologia, é prestar alguns
esclarecimentos para essas formulações. Começando pela ideia, à primeira vista estranha,
de condições necessariamente suficientes. Para compreendermos melhor a diferença entre
meras condições suficientes e condições necessariamente suficientes podemos retomar o
exemplo anteriormente considerado das quatro cartas que apresentam cada uma delas um
numeral no verso e uma letra do alfabeto no anverso, exemplo que fora empregado
justamente com o fim de esclarecer um pouco a noção de condição suficiente e condição
necessária. E suponhamos que, de fato, aos numerais que designam números pares no
verso de uma carta correspondam vogais no anverso; dizendo de outro modo, que seja
verdade que se no verso de qualquer uma dessas cartas estiver impresso um numeral que
designa um número par, no anverso da mesma carta estará impresso uma vogal. Nesse
caso, apresentar um algarismo que designa um número par é condição suficiente para que
no anverso da mesma carta ocorra uma vogal. Mas as coisas poderiam ser diferentes, não
há aqui nenhuma sorte de necessidade que vincule a ocorrência de numerais que designam
números pares no verso de uma dessas cartas à ocorrência de vogal no respectivo anverso.
O caso é algo semelhante e algo diferente com respeito a argumentos do gênero que ora
queremos focalizar. Se um argumento for dessa sorte, a verdade conjunta das premissas
é condição suficiente da verdade da conclusão e, nesse sentido, não se dá que as premissas
sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. No entanto, para ser um argumento da espécie
ora destacada não basta que ou sua conclusão seja verdadeira ou pelo menos uma de suas
premissas seja falsa (ou seja, que se as premissas são verdadeiras, a conclusão também é
verdadeira); deve ser necessário que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão
também o seja. Dizendo de outro modo, não basta estar excluído o caso em que premissas
são verdadeiras e a conclusão falsa, deve estar excluída já a mera possibilidade que um
tal caso venha a ocorrer. E isso que queremos cifrar por meio da locução condições
necessariamente suficientes.
Destaquemos que afirmar, como fizemos, ser a verdade conjunta das premissas
uma condição necessariamente suficiente da verdade da conclusão não é uma propriedade
que diga respeito à verdade ou falsidade, como matéria de fato, das premissas ou da
conclusão. Assim, por exemplo, o argumento:
Todos os gatos são pardos.
Ora, tudo que é pardo é ruminante.
Logo, todos os gatos são ruminantes
é do gênero de argumentos ora em foco, embora todas as suas premissas sejam
factualmente falsas; mas se fossem verdadeiras, a conclusão também seria verdadeira (o
que, como matéria de fato, não é o caso).

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Ainda mais que, como se verá oportunamente, a negação de outras formas de argumentação pode dar azo
ao dito espirituoso de G.K. Chesterton de que o louco é aquele que perdeu tudo menos a razão.

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A condição ora considerada faz alusão apenas a uma relação entre os possíveis
valores de verdade das asserções que constituem o argumento: exclui exatamente a
possibilidade de que as premissas sejam todas verdadeiras e a conclusão falsa. De sorte
que, se uma das premissas for falsa (basta uma, embora o mesmo valha se mais de uma
for falsa), então, pela mera análise do argumento, nada se pode afirmar sobre o valor de
verdade da conclusão. Nesse caso, a conclusão tanto pode ser verdadeira, como falsa. Por
exemplo, considere-se o argumento:
Todos os misóginos são ingleses.
Alguns misóginos se casam
Logo, alguns ingleses são casados.
Trata-se manifestamente de um argumento no qual as premissas acarretam
necessariamente a conclusão (não seria possível que nenhum inglês fosse casado, embora
houvesse misóginos casados e todos os misóginos fossem ingleses). Nesse argumento,
pelo menos uma de suas premissas (a primeira) é, como matéria de fato, falsa, mas a
conclusão é verdadeira, ainda que como mera matéria de fato. Mas pode ocorrer que tanto
as premissas, quanto a conclusão sejam, como matéria de fato, falsas, como no
argumento:
Todos os cavalos são pardos.
Ora, tudo o que é pardo é ruminante.
Logo, todos os cavalos são ruminantes.
E, ainda assim, as premissas acarretem necessariamente a conclusão.
Ou pode ocorrer ainda que tanto as premissas, quanto a conclusão sejam
verdadeiras, como no argumento:
Todos os homens são bípedes implumes
Todos os bípedes implumes são capazes de rir
Todos os homens são capazes de rir
Assim, ao se afirmar que as premissas acarretam necessariamente a conclusão no
argumento:
Todos os escritores que são prestigiados pelos editores internacionais são grandes
escritores.
O escritor Paulo Coelho é prestigiado pelos editores internacionais.
Logo, Paulo Coelho é um grande escritor.
não se esta pronunciando acerca dos valores de verdade que, como uma questão de fato,
assumem as premissas ou a conclusão desse argumento; exclui-se apenas a possibilidade
de que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. E nessa medida, afirma-se que
as premissas, se forem acatadas, oferecem razões dirimentes para a conclusão. Portanto,
aquele que não aceita a conclusão deve, em algum sentido do verbo “dever” a ser
examinado melhor, recusar uma de suas premissas (no caso do exemplo em pauta,
provavelmente a primeira, já que a segunda parece bem comprovada).
Por outro lado, o mero fato de premissas e conclusão serem verdadeiras não
assegura que o argumento é do gênero daqueles que preservam necessariamente a
verdade, como bem ilustra o conjunto de asserções seguinte:
Todos os homens são bípedes implumes.
Todos os homens são animais racionais
Todos os bípedes implumes são racionais.

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Pois, ainda que os únicos bípedes implumes sejam os seres humanos (e, portanto, seres
racionais, como reza a segunda premissa), caso em que a conclusão seria verdadeira, as
premissas apresentadas não permitem excluir a existência de bípedes implumes
(naturalmente implumes e não galinhas depenadas) irracionais, visto não afirmarem que
os únicos bípedes implumes são os seres humanos.
Em resumo, dado um argumento dessa espécie, sabemos somente que, se todas as
premissas forem verdadeiras, então necessariamente a conclusão será verdadeira.
Todavia, se alguma de suas premissas for falsa, nada se segue acerca da verdade ou
falsidade da conclusão. Vale dizer, das seis possibilidades combinatórias relativas a
verdade ou falsidade das premissas e da conclusão, exclui-se apenas uma: aquela em que
todas as premissas são verdadeiras, mas a conclusão é falsa. As outras cinco
possibilidades (todas as premissas falsas e a conclusão falsa, todas as premissas falsas e
a conclusão verdadeira, todas as premissas verdadeiras e a conclusão verdadeira, algumas
premissas falsas e outras verdadeiras e a conclusão verdadeira, e, finalmente, algumas
premissas verdadeiras, outras falsas e a conclusão falsa) são compatíveis com o fato do
argumento preservar necessariamente a verdade.
Certamente o apelo a noções modais (possibilidade e necessidade) introduz
alguma obscuridade nas formulações, pois restaria explicar de que sorte é essa
modalidade. Certamente não é o gênero de modalidade a que fazemos alusão ao dizermos
que vacas não podem voar. Nem o termo necessidade é empregado aqui na acepção em
que se diz que cabe ao estado prover as necessidades de seus cidadãos. Todavia, investigar
isso nos conduziria muito provavelmente a elucubrações metafísicas acerca dos
fundamentos do dever ser lógico. Aqui podemos apenas ilustrar o gênero de modalidades
envolvidas.
Percebemos não ser possível que as asserções
Os gorilas são maiores que os chimpanzés.
e
Os chimpanzés são maiores que os micos
sejam ambas verdadeiras e, ao mesmo tempo, ser falsa a asserção
Os gorilas são maiores que os micos
Portanto, a verdade é necessariamente preservada ao passarmos das premissas a
conclusão do argumento
Os gorilas são maiores que os chipanzés.
Ora, os chipanzés são maiores que os micos.
Logo, os gorilas são maiores que os micos.
Podemos também recorrer a noção de conceptibilidade para esclarecer a noção de
possibilidade envolvida na caracterização do gênero de argumentos que preservam
necessariamente a verdade. Assim, por exemplo, facilmente se percebe que não podemos
conceber que as asserções
Todos os homens são bípedes implumes.
e
Todos os bípedes implumes são racionais.
sejam ambas verdadeiras e, ao mesmo tempo, conceber como falsa a asserção

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Todos os homens são racionais.
Portanto, o argumento
Todos os homens são bípedes implumes.
Ora, todos os bípedes implumes são racionais.
Logo, todos os homens são racionais.
é do gênero que queremos distinguir.
Por fim, podemos perceber que através de argumentos desse gênero a questão da
verdade de uma alegação (que se converte em conclusão) se desloca para as premissas.
Consequentemente, reconhecida a verdade das premissas, reconhece-se a verdade da
conclusão. Assim, por exemplo, se for sabido que
O romance policial Um estudo em Vermelho é de Conan Doyle,
pode-se saber que
Conan Doyle é um escritor de romances policiais.
Importa também destacar que essa noção de argumentos que preservam
necessariamente a verdade diz respeito apenas aos valores de verdade que asserções
pedem ter e não remetem ao nosso conhecimento acerca da verdade ou falsidade de tais
asserções. Para ilustrar esse ponto, consideremos o argumento seguinte:
Todo número par maior que dois é a soma de dois números primos
O número de constelações na Via Láctea é par e maior que dois
Portanto, o número de constelações na Via Láctea é a soma de dois números primos
Esse é manifestamente um argumento que preserva necessariamente a verdade, embora
os efetivos valores de verdade das asserções envolvidas nos seja ignorado. Pois sua
primeira premissa é uma das formulações possíveis da assim chamada Conjectura de
Goldbach é um das questões em aberto clássicas da Teoria dos Números (pelo menos, até
o momento da redação desse texto); tampouco sabemos o exato número de constelações
da Via Láctea. Todavia, é inegável que se o número de constelações for um número par
maior que dois e se for verdade que todo número par maior que dois é a soma de dois
primos, então necessariamente o número de constelações da Via Láctea é a soma de dois
primos. E basta isso para estarmos autorizados a dizer que se trata de um exemplo de
argumento que preserva necessariamente a verdade, ou, o que é dizer o mesmo, um
argumento no qual as premissas oferecem condições necessariamente suficientes da
conclusão, ou ainda dizer que é um argumento com respeito ao qual não é possível que
suas premissas sejam verdadeiras e sua conclusão falsa, etc.
ARGUMENTOS DEDUTIVOS (FORMAIS)
Dentre os argumentos que preservam necessariamente a verdade, alguns (ainda
que talvez não todos) apresentam uma outra propriedade interessante já observada em
textos ditos aristotélicos, qual seja, o caráter formal (estrutural) de certos tipos de
argumentos. Pode-se perceber que o argumento
Todos os macacos têm rabos.
Todos os chipanzés são macacos.
Logo, todos os chipanzés têm rabos.
é um argumento que preserva necessariamente a verdade. Mais ainda, percebe-se
facilmente que se um termo, por exemplo, ‘macaco’ for substituído por outro, por
exemplo ‘burocratas’ em todas as suas ocorrências, o argumento resultante

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Todos os burocratas têm rabos
Todos os chipanzés são burocratas.
Logo, todos os chimpanzés têm rabos.
continua a ter tal propriedade. O mesmo ocorre se igualmente ‘rabos’ for substituído por
outro termo da mesma categoria gramatical.
Pode-se concluir que qualquer argumento da forma
Todos os ... têm ---.
Todos os === são ... .
Logo, todos os === têm ---.
no qual os espaços indicados por ... ou por --- ou, ainda, por === foram preenchidos por
termos gramaticalmente adequados (um mesmo termo preenchendo todos os espaços
marcados por um mesmo tipo de sinal) preserva necessariamente a verdade.
Mais um exemplo ajuda a esclarecer um pouco melhor esse ponto. Considere-se
o argumento
Se existe um ser contingente, então existe um ser necessário.
Ora, existe um ser contingente.
Logo, existe um ser necessário.
Trata-se de um argumento no qual as premissas acarretam necessariamente a conclusão.
Pois bem, se nesse argumento, a asserção “existe um ser contingente” for substituída por
outra qualquer, por exemplo, “Descartes pensa”, o argumento resultante
Se Descarte pensa, então existe um ser necessário.
Ora, Descartes pensa.
Logo, existe um ser necessário.
continua a preservar necessariamente a verdade. Ou seja, qualquer argumento da forma
Se ..., então ---.
Ora, ... .
Logo, ---.
no qual os espaços foram devidamente preenchidos por duas sentenças quaisquer,
preserva necessariamente a verdade.
Facilmente se percebe que a característica ora assinalada, de depender apenas da
forma dos elementos envolvidos, implica a característica anteriormente considerada, de
preservar necessariamente a verdade. À primeira vista, a inversa não é verdadeira, pois
parece haver argumentos tais que suas premissas acarretam necessariamente a verdade da
conclusão, sem que isso dependa do que parece ser sua forma. Por exemplo, no
argumento:
Pedro tem um livro a mais que Joana
Joana tem 47 livros
Logo, Pedro tem 48 livros.
As premissas acarretam necessariamente a conclusão, porém isso não depende apenas da
forma manifesta, mas de relações numéricas. Algo análogo, porém dependendo de
princípios do significado, ocorre no argumento.
Mr. Pickwick é solteiro.
Logo, Margareth não é sua esposa.

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Assim, podemos pensar que tais argumentos são uma subespécie própria do
gênero de argumentas anteriormente assinalado (aqueles que preservam necessariamente
a verdade).Todavia, trata-se de uma questão muito mais complexa, cuja solução depende
de respostas prévias a questões muito intrincadas, tais como, a natureza dos objetos com
os quais a lógica lida (se linguística ou não), as formas lógicas que asserções podem
exemplificar, e os critérios para considerar uma premissa como implícita no argumento.
Por exemplo, se forem levadas em conta relações de significação entre termos da língua
portuguesa e for explicitada a simetria da relação de casamento, o último argumento
poderia ser transformado no argumento
Mr. Pickwick não é casado com ninguém.
Se alguém é casado com outrem, então esse outrem é casado com aquele alguém.
Logo, Margareth não é casada com Mr. Pickwick.
Esse novo argumento é tal que, não apenas a passagem das premissas à conclusão
preserva necessariamente a verdade, mas está característica é assegurada pela mera forma
lógica das asserções envolvidas. Pois, pode-se dizer que esse último argumento tem a
forma seguinte:
X não mantém a relação R com alguém.
Se alguém mantém a relação R com outrem, então esse outrem mantém a relação R
com aquele alguém.
Logo, Y não mantém a relação R com X.
Uma redução análoga pode ser conduzida também no caso do primeiro
contraexemplo apresentado acima, introduzindo-se uma premissa adicional de sorte que
o argumento ficaria assim:
Pedro tem um livro a mais que Joana
Joana tem 47 livros
Portanto, Pedro tem um livro a mais que 47 livros.
Ora, 48 livros é um livro a mais que 47 livros.
Logo, Pedro tem 48 livros.
Trata-se, na verdade, de mais um caso da questão complexa de saber se todas as
maneiras legítimas (corretas, válidas) de argumentar reduzem-se às formalmente válidas
e que, por isso, preservam necessariamente a verdade. Não é possível aqui resolver tal
questão. Cabe, isso sim, observar que a Lógica, nos mais de dois mil anos de seu
desenvolvimento como disciplina teórica (arte ou ciência), privilegiou a consideração
daqueles argumentos que satisfazem as duas condições ora introduzidas. Tais argumentos
foram tradicionalmente chamados de dedutivos ou de argumentos formalmente válidos
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ou, ainda, de argumentos dedutivamente válidos .
ARGUMENTOS E INFERÊNCIAS
Como foi visto, por meio de um argumento procura-se justificar certa asserção (a
conclusão), a partir de outras asserções (as premissas do argumento); através do
argumento é exposta uma conexão entre as premissas e a conclusão, aquelas são
apresentadas como fundamentando (justificando) essa, de sorte que a aceitação das
premissas seria razão da aceitação da conclusão. Essa relação que se presume existir entre

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Essas expressões ‘formalmente válido (a)’ e ‘dedutivamente válido(a)’ devem ser entendidas como
significando o mesmo que válido(a) por razões puramente formais ou razões dedutivas, deixando em aberto
a possibilidade de argumentos válidos por outras razões; só assim é evitado o vício de pressupor, na
terminologia, respostas peculiares a questões disputadas.

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as premissas e a conclusão de um argumento pode, ainda, ser vista sob outra perspectiva,
indicada já por outros termos aos quais se costuma recorrer para indicar a relação. Diz-se
que a conclusão segue ou decorre das premissas, que estas implicam ou acarretam a
conclusão. Ou afirma-se que a conclusão “sai”, pode ser “tirada”, “extraída” das
premissas; ou é dito que, em um argumento, procura-se mostrar que a conclusão pode ser
inferida das premissas. Tem-se assim outra noção que desempenhou um papel
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fundamental no desenvolvimento da lógica: a noção de inferência .
De modo geral, porém não muito rigoroso, pode-se entender por inferência a
passagem, segundo certos critérios (regras), de algumas asserções (de um grupo de
asserções) a outra. Assim, por exemplo, da asserção
Totó late muito alto
Pode-se inferir, segundo uma regra do português que reza ser o termo ‘latir’ aplicável
estritamente apenas a cachorros, que
Totó é um cachorro.
Ou ainda, da asserção
Há fumaça saindo da casa de Ana
costuma-se inferir, segundo um princípio causal (ou, como diria o filósofo escocês Hume,
segundo o hábito) que
Há fogo em algum lugar da casa de Ana.
Os dois atos, o de argumentar e o de inferir, diferem com respeito aos fins que se
tem em vista, o que é manifesto já na regência usual dos verbos ‘argumentar’ e ‘inferir’:
argumenta-se em favor de algo e infere-se algo de algo outro. Ao argumentar, procura-se
justificar uma asserção e ao inferir, se quer saber que outras asserções podem ser
consequentemente extraídas das premissas.
No entanto, ainda que seja possível distinguir o ato de inferir do ato de argumentar,
todo grupo de asserções que forma um argumento pode ser visto como uma inferência e
vice-versa, toda grupo de asserções que expresse uma inferência pode ser visto como um
argumento. As diferenças entre inferência e argumento não devem ser sobrestimadas. Os
grupos de asserções antes apresentados como exemplos de argumentos podem ser
tomados como exemplos de inferências, nas quais a conclusão é inferida das premissas.
E, por outro lado, uma maneira de refutar uma dada asserção (i.e., de argumentar contra
ela) consiste exatamente em inferir da asserção alguma consequência inaceitável; ou
pode-se argumentar em favor de uma tese, mostrando que é possível inferir da negação
da tese uma asserção indesejável.
Se for feita abstração seja da ordem temporal, seja dos fins que se tem em vista,
verifica-se que tanto um argumento quanto uma inferência consiste na tentativa de expor
uma conexão entre suas premissas e suas conclusões. Ou seja, em ambos os casos, a

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Embora não seja encontre respaldo nos bons dicionários como o OED (que caracteriza como o ato de
inferir, de extrair uma conclusão de fatos ou proposições conhecidas ou assumidas), alguns autores autores
de língua inglesa empregar (por exemplo, (SALMON, 2002)) reservam o termo ‘inferência’ para designar
um gênero de atos psicológicos, em oposição aos argumentos, que seriam atos linguísticos. Aqui, a
diferença entre esses supostos dois domínios de entidades (psicológicas e linguísticas) não desempenhará
nenhum papel para demarcar as diferenças de significado entre os termos em pauta. Em outros textos, os
termos ingleses correspondentes aos nossos inferência e argumento são usados de maneira indistinta, como
se fossem perfeitamente intercambiáveis ( veja-se (GOLDFARB, 2004) (TOMASSI, 1999)).

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conclusão apresenta-se como decorrência das premissas. Quando se quer acentuar, num
conjunto de premissas e conclusão, o fato de que as premissas justificam a conclusão,
costuma-se falar em argumento; ao passo que, se o grifo recai sobre a possibilidade de
obter a conclusão a partir das premissas, fala-se em inferência. Argumentos e inferências
são diferentes perspectivas sob as quais é possível considerar a relação entre as premissas
e a conclusão, como se fossem duas direções de uma mesma via, fornecida pela relação
8
entre premissas e conclusão .

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Não é raro, principalmente entre autores de língua inglesa, considerar a distinção relevante como
dependendo daquela entre um suposto domínio mental e um igualmente suposto domínio linguístico
(argumentos seriam entidades linguísticas e inferências seriam itens mentais; argumentar seria um ato
verbal e inferir um ato mental). Essa maneira de discriminar as noções, além de não encontrar respaldos
nos léxicos autorizados (seja nos de língua portuguesa, seja nos de língua inglesa), grifa uma distinção
(entre atividades mentais e atividades verbais) no mínimo discutível e quiçá desnecessária para a
compreensão da natureza da Lógica, ademais de ignorar a distinção apontada acima (com respeito a qual a
distinção entre domínios é irrelevante). Oportunamente apresentaremos algumas razões para crer que a
distinção entre o domínio mental e o linguístico é sobrevalorizada quando do tratamento de questões lógicas
(por exemplo, na obra de introdução à Lógica ERNEST TUGENDHAT; URSULA WOLF, 1983), agora
fiquemos apenas com a observação de que talvez muitos autores de textos de lógica de viés filosófico
deveriam ter sido mais atentos à afirmação final do aforisma 4.1121 do Tractatus de Wittgenstein:
Meu estudo da linguagem por sinais não corresponderia ao estudo dos processos de pensar,
estudo que os filósofos sustentaram ser tão essencial para a filosofia da lógica? No mais das
vezes, eles só se emaranharam em investigações psicológicas irrelevantes, e um perigo
análogo existe também no caso do meu método. (grifo nosso)

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