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ANAIS DE

EVENTO
ISBN online: 978-85-8359-051-4

1
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA
FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

2017

2
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
UNESP/FCLAr

Profª. Drª. Carla Gandini Giani Martelli

Coordenação Geral Docente da XVI Semana de Pós-Graduação em Ciências


Sociais da UNESP/FCLAr

Prof. Dr. Milton Lahuerta

Coordenadores dos Grupos de Trabalho

Ana Clara Citelli, Ana Paula Santos Horta, Alexandre Aparecido dos Santos,
Carlos Eduardo Tauil, Danusa de Oliveira Jeremin, Débora de Souza Simões,
Giovanna Ísis Castro Alves de Lima, Guilherme Bemerguy Chêne Neto, Larissa
Rizzatti Gomes, Luciane Alcântara, Luiz Ricardo de Souza Prado, Matheus
Henrique de Souza Santos, Meire Adriana da Silva, Natália Carvalho de Oliveira,
Richard Douglas Coelho Leão, Rosângela de Sousa Veras, Thiago Pereira
Mazucato, Vladimir Bertapeli

Revisão e Organização dos Anais da XVI Semana de Pós-Graduação em Ciências


Sociais da UNESP/FCLAr

Luiz Ricardo de Souza Prado e Richard Douglas Coelho Leão

Semana da Pós-Graduação em Ciências Sociais (16. : 2017 : Araraquara, SP)

Democracia : Anais da XVI Semana de Pós-Graduação em Ciências Sociais / XVI


Semana da Pós-Graduação em Ciências Sociais; Araraquara, 2017 (Brasil). – Documento
eletrônico. - Araraquara : FCL-UNESP, 2017. – Modo de acesso: <
http://fclar.unesp.br/#!/pos-graduacao/stricto-sensu/sociologia/eventos/semana-de-pos-
graduacao-em-ciencias-sociais/>.

ISBN online: 978-85-8359-051-4.

1. Pós-Graduação. 2. Ciências sociais. 3. Democracia. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da FCLAr – UNESP.

3
A PRODUÇÃO DE DISCURSOS ISLAMOFÓBICOS ONLINE NO
BRASIL: ESTUDO EXPLORATÓRIO DOS AGENTES CRISTÃOS

Felipe Freitas de SOUZA1270

Resumo: Recentemente é perceptível a proliferação de discursos de ódio sobre o Islam e os


muçulmanos em ambientes virtuais como blogs, redes sociais e canais de compartilhamento de
vídeos. Em alguns casos, tais discursos são produzidos nacionalmente por indivíduos que se
posicionam enquanto católicos e evangélicos. O presente estudo visa identificar os principais
agentes cristãos produtores de discursos islamofóbicos online. Compreende-se a islamofobia
enquanto o preconceito anti-Islã e anti-muçulmanos que objetiva justificar, em diferentes níveis de
intensidade, a violência simbólica e física, seja individual ou institucional, contra muçulmanas e
muçulmanos, independentemente de suas filiações políticas, culturais ou identitárias, pressupondo
um Islã Imaginado. Tratando-se de estudo exploratório a ser continuado, elencou-se os principais
agentes produtores dessa modalidade discursiva, caracterizada pela negação das possibilidades de
diálogos culturais entre não-muçulmanos e muçulmanos e pela consequente hipótese de um
inevitável choque de civilizações. Encontraram-se sujeitos de diferentes pertencimentos ao
cristianismo e que, em seus discursos textuais ou audiovisuais, mobilizam elementos religiosos para
proporem rupturas, embates ou mesmo a violência contra os praticantes do Islam. Apreendem-se
a associação do “perigo islâmico” à “ameaça comunista”, a defesa da oposição dos valores cristãos
frente a valores islâmicos imaginados e a constante associação de características negativas à
generalidade dos muçulmanos. Também se identifica a mobilização de eventos e dados
internacionais enquanto motes para a persecução dos muçulmanos brasileiros ou no Brasil,
caracterizando uma islamofobia por tradução cultural. O preconceito contra o migrante também é
presente no repertório islamofóbico, sugerindo que os estrangeiros oriundos de países de
população de maioria muçulmana em situação de migração possuiriam um perigo inerente à nação
brasileira pela mera pertença a uma religião. Conclui-se indicando a relevância de maiores
pesquisas sobre a islamofobia no Brasil, seus produtores e meios de circulação online, bem como
indica-se a relevância da elaboração de relatórios sobre os episódios de preconceito anti-
muçulmanos no esteio de organizações internacionais (Council on American-Islamic Relations,
estadunidense, e Tell MAMA, britânico).

Palavras-chave. Islamofobia. Tradução Cultural. Islam. Xenofobia.

INTRODUÇÃO

A literatura internacional vem se debruçando sobre a problemática da islamofobia


a algumas décadas, indicando reflexões e problemáticas no tocante aos preconceitos contra
Islã e contra muçulmanos. O próprio conceito de islamofobia vem se disseminando no
espaço público, ocorrendo a produção de relatórios e trabalhos acadêmicos que a
mobilizam enquanto categoria de análise dos agentes sociais. Recentemente também
cresceram os incidentes que alvejam muçulmanos nos Estados Unidos (CAIR, 2017), bem

1270
Mestre em Educação Tecnológica; CEFET-MG/Belo Horizonte; membro do GRACIAS – Grupo de
Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes; felipefdes@gmail.com.

2639
como na Europa (BAYRAKLI; HAFEZ, 2017); no caso do Brasil, também ocorreram atos
de agressão contra a comunidade e contra o patrimônio1271, evidenciando a necessidade de
refletir-se sobre a islamofobia no Brasil e o modo pelo qual ela ocorre.
A primeira definição de islamofobia a surgir foi no relatório do The Runnymede
Trust, o qual afirma que:

O termo islamofobia refere-se a hostilidade infundada em relação ao Islã.


Refere-se também às conseqüências práticas de tal hostilidade pela
discriminação injusta contra indivíduos e comunidades muçulmanas, levando à
exclusão dos muçulmanos dos principais assuntos políticos e sociais. (...) A
palavra "islamofobia" foi inventada porque existe uma nova realidade que precisa
ser nomeada: o preconceito anti-muçulmano cresceu tão consideravelmente e
tão rapidamente nos últimos anos que uma nova palavra se faz necessária no
1272
vocabulário para que ele possa ser identificado e antagonizado (THE
RUNNYMEDE TRUST, 1997, p.4).

Essa hostilidade frente aos muçulmanos não seria exercida somente na presença de
muçulmanos. Atualmente, os crimes de ódio são manifestos principalmente nos espaços
virtuais. As redes sociais e outros espaços online potencializaram a circulação das
discriminações: “Um efeito colateral da internet é sua reprodução ágil e rápida legitimação
da discriminação. Isso é particularmente evidente no caso da cyber-islamofobia e a
contestação infindável da ‘verdade sobre o Islam’”1273 (CHAO, 2015, p.57). No caso da
verdade sobre o Islam, temos um dos efeitos da islamofobia cristã: o de outorgar-se um
discurso totalitário sobre uma religião que muitas vezes seus críticos demonstram
desconhecer. Na internet, esses discursos estão disponíveis no YouTube para pesquisa e
visualização: o presente estudo, exploratório e qualitativo, visa traçar os principais
produtores de islamofobia online por meio de audiovisuais. Não esgotamos a temática,

1271
Dentre outros casos, temos como exemplo o vandalismo praticado contra a mesquita do Distrito Federal
em 2016 (http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/03/vandalismo-em-mesquita-do-df-foi-
intolerancia-religiosa-diz-governo.html), pichação contra a Mesquita Brasil em São Paulo em 2015
(http://spressosp.com.br/2015/01/12/islamofobia-em-sp-mesquita-brasil-e-pichada-com-mensagem-je-suis-
charlie/) e os casos recorrentes de agressão contra muçulmanas (http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-
01-25/islamofobia-no-brasil-muculmanas-sao-agredidas-com-cuspidas-e-pedradas.html e
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/mulheres-sao-vitimas-de-agressoes-por-serem-
muculmanas-em-curitiba-2q6boovjzp27i6jnv3w4j9mpz).
Tradução livre de: The term Islamophobia refers to unfounded hostility towards Islam. It refers also to
1272

the practical consequences of such hostility in unfair discrimination against Muslim individuals and
communities, and to the exclusions of Muslims from mainstream political and social affairs. (...) The word
'Islamophobia' has been coined because there is a new 2640
reality which needs naming: anti-Muslim prejudice has
grown so considerably and so rapidly in recent years that a new item in the vocabulary is needed so that it can
be identified and acted against.
1273
Tradução livre de: A dark side effect of the internet is the rapid reproduction and quick legitimization of
discrimination. This is particularly evident in the case of cyber Islamophobia and the endless online
contestation over ‘the truth about Islam’.
uma vez que além dos grupos cristãos estão presentes grupos de direita e extrema-direita
dentre o rol dos produtores de preconceito contra muçulmanos. Em fase inconclusiva, a
pesquisa está em andamento e objetiva estudar a produção da islamofobia online de modo
geral – e não somente a cristã.

ISLAMOFOBIA CRISTÃ

Muitos das obras que abordam a islamofobia dedicam-se a indicar as relações entre
cristãos e muçulmanos. Desde os primeiros contatos entre muçulmanos e cristãos, como
demonstra Arjana (2015), houveram colaborações, mas também a construção de
representações negativas sobre os muçulmanos. Os convívios não eram despidos de
tensões. Uma das primeiras apreensões sobre a Islamofobia é a obra, de 1910, de Alain
Quellien, La Politique Musulmane dans l’Afrique Occidentale Française (“A Política
Muçulmana na África Ocidental Francesa”). Nela, o autor já identificava essa tensão entre
muçulmanos e cristãos:

Sempre houve e perpetuou-se um preconceito contra o Islã


predominantemente dentre pessoas das civilizações ocidental e cristã.
Para alguns, o muçulmano é o inimigo natural e irreconciliável do cristão
e do europeu, sendo o Islam barbárie e a negação da civilização, a
crueldade e a má fé sendo tudo o que se poderia esperar da maioria dos
muçulmanos1274 (QUELLIEN, 2010 apud TYRER, 2013, p. 161).

O medo que os cristãos nutriram pelos muçulmanos baseia-se na percepção do


Islam enquanto uma ameaça inerente ao cristianismo. No pensamento islamofóbico, o
objetivo de todos os muçulmanos e do Islam é a destruição de outras sociedades:

Infelizmente, hoje alguns comentadores políticos e "especialistas"


promovem a islamofobia. A premissa básica dele é de que os
muçulmanos, desde a ascensão do Islam até o presente, têm procurado
aniquilar o cristianismo e islamizar a Europa. Esta historiografia
infundada e reducionista nega ou negligencia deliberadamente os catorze
séculos de história de interações religiosas, políticas, demográficas e
intelectuais do Islam com outras culturas e sua participação no
desenvolvimento do patrimônio comum do mundo e da visão
humanista. Embora essa visão antagônica não tenha desfrutado de apoio

Tradução livre de: There has always been, and remains, a prejudice against Islam prevalent among people
1274

of Western and Christian civilization. For some, the Muslim is the natural and irreconcilable enemy of the
Christian and the European, Islam is the negation of civilization and barbarism, cruelty and bad faith are all
that one can expect of most Mohammedans.
2641
na maioria dos círculos acadêmicos, ela afeta negativamente a opinião
pública1275 (IHSANOĞLU, 2011 p. viii).

A islamofobia também é uma manifestação comum em sociedades


predominantemente cristãs, independentemente se os agentes sociais islamofóbicos são de
alguma denominação religiosa ou não. Os setores nacionalistas e xenofóbicos mobilizarão
então esse discurso para pautar suas proposições perante os imigrantes e refugiados, por
exemplo:

Historicamente, a islamofobia tem características pró-cristãs e anti-


muçulmanas, nomeadamente no momento das Cruzadas, do Império e
do colonialismo. Na era moderna, as características religiosas foram
substituídas por noções seculares, a saber o foco nas ideias de liberdade,
democracia e valores globais1276 (ABBAS, 2011, p .74).

Historicamente, o Islam e os muçulmanos foram encarados enquanto potenciais


adversários pela cristandade. Os muçulmanos encarnariam os bárbaros, não civilizados,
enquanto os ocidentais ou europeus ou o “nós” manifestamos um modo “correto” de ser
humano, que pode inclusive ser difundido a força a depender da compreensão da época:
o “fardo do homem branco”, a dura missão de imposição da civilidade europeia, encontrou
no cristianismo um de seus apoios morais para justificar chacinas e genocídios na África e
Ásia (TODOROV, 2010). O barbarismo que se atribui aos muçulmanos, e que teme os
muçulmanos, seria semelhante ao praticado pelos cristãos no passado?

O cristianismo também ascendeu ao domínio através da conquista e da


conversão, primeiro no mundo romano e depois nas áreas vizinhas à
Europa, Armênia, Arábia, África Oriental e Ásia Central. Como
observado anteriormente, as Cruzadas travadas pelos cristãos europeus
desde o século XI até o XII foram outro capítulo violento da história do
cristianismo. Durante a Primeira Cruzada em 1099, os cruzados
promoveram morticínio depois de assumirem o controle de Jerusalém,
assassinando quase toda a população de homens, mulheres e crianças
muçulmanas. Os judeus, que lutaram lado a lado com os muçulmanos

1275
Tradução livre de: Unfortunately, today some political commentators and “experts” promote
Islamophobia. Their basic premise is that Muslims, from the rise of Islam to the present, have sought to
annihilate Christianity and Islamize Europe. This unfounded and reductionist historiography denies or
deliberately overlooks Islam’s fourteen-century-old history of religious, political, demographic, and
intellectual interactions with other cultures and its share in the development of the world’s common heritage
and its humanistic outlook. While this antagonistic view has not enjoyed support in most scholarly circles, it
negatively affects public opinion.
Tradução livre de: Historically, Islamophobia had
1276
pro-Christian and anti-Muslim features, namely at the
2642
time of the Crusades, empire, and colonialism. In the modern era, religious characteristics have been replaced
by secular notions, namely a focus on the ideas of freedom, democracy, and global values.
para defenderem a cidade, não foram poupados tampouco. Os cruzados
incendiaram uma sinagoga em que os judeus se refugiaram e
certificaram-se de que cada um deles queimou até a morte. Esta não era
uma anomalia: cruzados atravessando a Alemanha, a caminho de
Jerusalém, haviam assassinado judeus a sangue frio1277 (KUMAR, 2012,
p. 53).

ISLAMOFÓBICOS BRASILEIROS

O Council on American-Islamic Relations apresenta em um de seus relatórios


(CAIR, 2013) a ideia de haveriam grupos do Círculo Interno de produção da islamofobia,
assim como membros do Círculo Externo. Tais Círculos teriam relação com a intensidade
da islamofobia: os grupos que se dedicavam exclusivamente à islamofobia são os Internos,
enquanto os Externos seriam aqueles que incluem, dentre seu rol de xenofobias, o
preconceito contra muçulmanos. Assiste-se contemporaneamente ao surgimento de
organizações dedicadas única e exclusivamente à causa da islamofobia.
Visando o embasamento para estudos posteriores, partimos para a identificação de
produções audiovisuais de grupos brasileiros produtores de islamofobia na plataforma de
vídeos YouTube. Procedemos à transcrição de algumas das produções encontradas e
utilizamo-las para relatar, nesse estudo preliminar, quem são os principais agentes sociais
produtores de discursos islamofóbicos identificados. Objetivamos também apresentar
alguns dos elementos discursivos, de modo que estudos sobre a islamofobia no Brasil
possam aprofundar-se sobre suas redes de relações e, principalmente, sobre as origens
culturais de seus conteúdos.
As questões levantadas anteriormente sobre setores do cristianismo e sua percepção
do Islam são exemplificadas pelos exemplos que relatamos abaixo. O presente texto não
realiza uma análise aprofundada sobre todos os materiais colhidos, tampouco expressa a
totalidade das transcrições realizadas pelo pesquisador.
O primeiro agente social é o grupo Geração de Mártires. Liderado por Tupirani da
Hora Lores, que já foi preso por agredir umbandistas (MEIRELLES, 2010) e que afirma

Tradução livre de: Christianity too rose to dominance through conquest and conversion, first in the Roman
1277

world and then in the neighboring areas of Europe, Armenia, Arabia, eastern Africa, and central Asia. As
previously noted, the Crusades, waged by European Christians from the eleventh century to the thirteenth,
were another violent chapter in Christianity’s history. During the First Crusade in 1099, crusaders launched
a killing spree after taking control of Jerusalem, murdering almost the entire population of Muslim men,
women, and children. The Jews, who fought side by side with the Muslims to defend the city, were not spared
either. The crusaders set fire to a synagogue in which Jews had taken refuge and made sure that every one of
2643 passing through Germany en route to Jerusalem
them burned to death. This was not an anomaly: crusaders
had murdered Jews in cold blood.
ser “o último Elias”, o grupo passou a ter alguma repercussão após um protesto conduzido
no Rio de Janeiro, cidade que sedia o grupo, no qual os participantes empunham placas e
cartazes com expressões anti-Islã e anti-muçulmanos (VICE BRASIL, 2017).
Anteriormente à manifestação noticiada pela Vice Brasil, houve um protesto, filmado pelo
grupo e disponibilizado sob o título de “PASSEATA (ESCOLA DE ASSASSINOS) (21
de Jul. de 2017)” (GERAÇÃO DE MÁRTIRES, 2017a), no qual o grupo esclarece alguns
de seus posicionamentos e informa sua missão. Em um primeiro momento, é um grupo
que visa atuar diretamente no espaço público:

A um servo cabe ser igual ao seu senhor. Quando cumprirmos a nossa


missão e esse tempo só Deus sabe nós declararemos combatei o bom
combate, completei a carreira e guardei a fé. Eu não tou preocupado se
daqui eu vou voltar pra casa, eu estou preocupado se daqui eu terei
cumprido a minha missão. Não interessa viver. Me interessa cumprir a
minha missão. É pra isso que Jesus Cristo nos chamou. Agora, ficar
dentro da igreja é muito cômodo falando de uma prosperidade, de um
comodismo isso aí não é o nosso chamado. Geração Jesus Cristo é um
povo chamado para a guerra [alguém grita “Aleluia Deus], é pra guerra,
e uma guerra tremenda, e você vê que nós usamos algumas palavras e o
mundo fica louco. Com algumas palavras que a gente usa. Não
precisamos de armas (GERAÇÃO DE MÁRTIRES, 2017a).

O repúdio por outros grupos religiosos ou outras instituições, como a universitária,


é atestada pelo líder da Geração de Mártires:

A formação acadêmica dos meus filhos é serem sacrificados no altar de


Deus. Essa é a formação acadêmica dos meus filhos. Eu não interesso
no meu filho ter um grande salário, não me interessa meu filho ter uma
postura, fazer concursos públicos. Maior [sic] ofício que um homem
pode alcançar sobre o planeta Terra se chama sacerdócio de Jesus Cristo.
Pra isso ninguém consegue prestar um concurso, tem que Deus
diretamente o chamar. Nenhum homem consegue isso nas suas próprias
forças. Você considera que são pastores essa raça de Universal? [grito
“queima eles”] Você acha que isso são pastores? [grito “mata eles”] O
Deus da Universal eu cuspo na cara dele [gritam “aleluia”] (GERAÇÃO
DE MÁRTIRES, 2017a).

Além das manifestações de repúdio a outras religiões e as metáforas bélicas e


sacrificiais, o vídeo começa e termina com uma canção, de composição de Tupirani
Loures, cuja letra sintetiza o posicionamento do grupo perante os muçulmanos:

2644
Era uma vez uma besta chamada Maomé, legalizador do estupro, da
poligamia, da pedofilia e da sem-vergonhice [sic]. A besta Maomé
escreveu o Alcorão livro de ódio dos muçulmanos. Manual de terror, de
ira, de pedofilia. Assassinos em primeiro grau, terroristas, no mundo sem
igual. Pra mostrar como são assassino estes islamitas, oh Deus compus
essa canção ao mestre com carinho. Pra mostrar como eu não esqueço
as tuas lições, testemunho à população quem são os muçulmanos.
Comunismo, fascismo, nazismo, islamismo, é tudo igual. Putin, Fidel,
Chaves, Mussolini e Hitler, Aiatolá Khomeini, cortam cabeça
esquartejam é tudo normal. Escola de assassinos, ensinando o mal
(GERAÇÃO DE MÁRTIRES, 2017a).

A equiparação, na canção, do comunismo com o fascismo, nazismo e islamismo


demonstram um interesse pela confusão desses movimentos, sugerindo aos seus seguidores
que são movimentos equivalentes se não em seus meios, ao menos em seus objetivos. A
confusão e a deturpação são também realizadas sobre o Alcorão, mas dessa vez por
membros do culto da Geração de Mártires. Em seu canal no YouTube, o grupo realizou
uma série de vídeos individuais, com membros do grupo apresentando seus relatos acerca
do Islam e dos muçulmanos. Abaixo, segue o relato de um dos membros em vídeo
intitulado “Alcorao manual da putaria” [sic], que afirma estar escrito no Alcorão que:

Tu deves estuprar, casas e divorciar meninas na pré-puberdade. Tá no


Alcorão, 65:4 e 4:3. Tu deves ter relações sexuais com escravas sexuais
e trabalhadoras escravas. Tá no Alcorão, 4:3 e 4:24, 5:89, 33:50, 58:3,
70:30. Tu deves bater nas escravas sexuais, nos trabalhadores escravos e
nas esposas. Tá no Alcorão, 4:34. Tu deves matar os não muçulmanos
para garantir e receber as 72 virgens no céu. Alcorão 9:111. Tu deves
lutar contra os não muçulmanos mesmo que você não queira. Alcorão,
2:216. Tu deves chamar os não muçulmanos de porcos e macacos.
Alcorão 5:60, 7:166, 16:106. Tu deves extorquir não muçulmanos para
manter o Islã forte. Alcorão 9:29 (GERAÇÂO DE MÁRTIRES, 2017b).

Todas as referências não são encontradas em nenhuma das versões do Alcorão em


português (Mansour Challita, Helmi Nasr e Samir El-Hayek), de modo que se trata de uma
leitura do grupo pra apresentar sua percepção do Alcorão em uma completa modificação
do texto-base do livro sagrado do Islã. São trechos criados ou baseados em material
inventado, demonstrando muito mais a criatividade de seus idealizadores do que
informações sobre o Islam e sobre os muçulmanos.
Além do grupo Geração de Mártires, teremos indivíduos tanto da Igreja Católica
quanto de grupos evangélicos de diferentes denominações. Na Igreja Católica, destaca-se o
Padre Paulo Ricardo com suas críticas não só ao Islã e aos muçulmanos, mas também ao

2645
marxismo, ao comunismo e ao que o padre se refere como “marxismo cultural”. Na
hermenêutica do Padre, temos que:

No mundo muçulmano, nós temos claramente dois grupos de pessoas.


Nós temos a maior parte dos muçulmanos, pelo menos eu espero que
seja a maior parte dos muçulmanos, nunca fiz nenhuma estatística, temos
a maior parte dos muçulmanos que são pessoas pacíficas, ordeiras, que
sabem viver com as outras pessoas e conviver na paz e na justiça. Muito
bem. Não temos absolutamente nada contra essas pessoas que vivem a
sua religião. No entanto, existem, infelizmente são numerosos, alguns
muçulmanos fanáticos que enveredaram pelo caminho doentio do
terrorismo e que agora atam bombas nos seus corpos, jogam aviões
contra prédios e fazem todo tipo de arruaça. Queimam carros, destroem
propriedade alheia e fazem todo tipo de pressão violenta e civil. Eles
acham que venceram uma jihad, vencerão uma guerra santa, através
desses atos, e com isso só demonstram seu fanatismo e só demonstram
que estão fazendo aquilo com propósitos religiosos (PADRE PAULO
RICARDO, 2011).

Para o Padre, a distinção entre o “bom muçulmano” e o “mau muçulmano” é clara.


Apesar disso, o Padre diz não ter acesso a estudos que afirmam qual grupo, se o “bom” ou
o “mau”, é majoritário e ainda reduz toda motivação dos atentados terroristas à questão
religiosa. Ora, reduzir a ação de grupos terroristas somente à religião é uma postura
orientalista que remete ao século XIX: a hermenêutica mobilizada pelo Padre não avança
a séculos, de modo que a crítica realizada mais uma vez demonstra mais o habitus do Padre
do que a realidade do Islam.
O Padre defende então a vitória pelos muçulmanos do 11 de Setembro, como se
fosse uma etapa em uma batalha cultural na qual os muçulmanos teriam sido blindados à
crítica como consequência. A “ameaça muçulmana” se realizaria, em conluio com os meios
de comunicação, para a destruição do cristianismo (clamor semelhante ao expresso pelo
ex-astrólogo e autointitulado filósofo Olavo de Carvalho):

Esta guerra dos donos dos meios de comunicação, esta guerra, dos donos
da nova cultura ocidental quer destruir o cristianismo. Enquanto isto,
eles dão passe livre aos muçulmanos porque, por enquanto, os radicais
muçulmanos são aliados nessa guerra anticristã. (...) Ou seja, a igreja
católica é a grande perdedora do 11 de Setembro. Quem será o grande
vencedor? Vamos ter que esperar ainda alguns anos para saber se o
grande vencedor do pós 11 de Setembro foi a religião muçulmana ou o
ateísmo da elite globalista (PADRE PAULO RICARDO, 2011).

2646
Uma guerra cósmica desencadeada contra o catolicismo: é nesse cenário imaginado
que se desenvolve a “crítica ao Islam” do Padre citado. A “elite globalista” também é citada,
relacionando a queda do cristianismo a um plano global de destruição do Ocidente. Em
suma: uma análise persecutória das questões contemporâneas, como se tudo se resumisse
a religião, como se a religião fosse a causa de absolutamente toda e qualquer ação.
Retornando aos grupos evangélicos, o canal Dois Dedos de Teologia, produzido e
apresentado por Yago Martins (além de professor em faculdades teológicas, associado ao
Instituto Ludwig von Mises Brasil), recentemente publicou um vídeo chamado “A
MELHOR ARMA CONTRA O ISLAMISMO” [sic]. Um dos participantes do quadro,
Walvert Veras, afirma que:

Eu não considero o Islã como pacífico. Quando eu estive em Foz do


Iguaçu, fui conversar com o sheikh, lá da mesquita sunita, e ele começa
a conversa comigo dizendo mas como você sabe, o Islã quer dizer paz.
(risos de todos) Não é. Mas não é paz. E o entendimento deles de paz é
paz sob o domínio do islamismo (DOIS DEDOS DE TEOLOGIA,
2017).

Os participantes se detém em procurar compreender porque os muçulmanos não


estão sendo combatidos com um “contra-proselitimo”: devem-se “aproveitar as
oportunidades” para converter os imigrantes e refugiados. O autor Yago Martins também
se posiciona contrariamente ao que chama de marxismo cultural, estabelecendo um nexo
com o Padre Paulo Ricardo no tocante ao combate aos grupos de esquerda e no
enaltecimento do cristianismo enquanto uma religião autenticamente “brasileira”.
Tem-se também o canal Reino Eterno, apresentado por Luiz Shimoyama, onde,
com um vídeo chamado “A besta de apocalípse é o Islã? (Explicação Simplificada)” [sic],
apresenta então os procedimentos para se compreender a profecia de Apocalipse 19:

No vídeo de hoje, eu quero fazer um atalho pra revelar quem que é a


besta de Apocalipse. Claro que eu vou tar linkando [sic] outros vídeos
pra vocês poderem ver juntamente com esse, mas eu vou mostrar, é,
como se estudar Apocalipse. Eu vou fazer uma leitura de uma profecia
que ela tá toda bloqueada e eu vou dar a senha pra você desbloquear
essa profecia e você vai ver de maneira rápida quem que é a besta de
Apocalipse (REINO ETERNO, 2015).

Por todo o vídeo o pregador faz uma relação entre senhas e segurança de redes
para se referir aos modos como devem ser lidos os versículos bíblicos, como se fosse uma

2647
senha de quatro códigos, como se fosse acessar uma rede social. O esvaziamento de uma
linguagem tradicional e o apelo para imagens de contextos virtuais são uma constante em
todo o vídeo. As palavras Islã e muçulmanos não aparecem novamente no vídeo citado,
apesar de haver a sugestão pelo título de quem seria “a besta do Apocalipse”. Outros vídeos
do canal associam atos de vilania aos muçulmanos:

Por que você acha que Apocalipse 20 tá falando dos cristãos degolados?
Que é decapitados [sic]? É uma característica da besta. Decapitar cabeça
[sic]. Decapitar cristão. Isso é o que o Alcorão manda fazer. No mesmo
livro que fala que existe somente um Deus, que é Allah, e Muhammad
o Seu Profeta. No mesmo livro que fala que Jesus é apenas um profeta,
que ele não morreu pelos pecados de ninguém que ele não é filho de
Deus, que ele casou ainda, teve filhos (REINO ETERNO, 2016).

O trecho no qual Luiz afirma que Jesus casou e teve filhos é inexistente no Alcorão,
provavelmente fruto da fantasia do realizador do vídeo. Curiosamente, no vídeo anterior
(REINO ETERNO, 2015), o autor afirma e reafirma a necessidade de se considerar
contextualmente os versículos bíblicos; já nesse último vídeo, o autor simplesmente aplica
uma leitura literalista para o Alcorão, ignorando que existe uma tradição interpretativa do
Islã mais antiga ainda do que a tradição evangélica. No mesmo esteio desse comunicador
está Natan Rufino, pastor evangélico que em seu vídeo “Crítica Textual e a Marca da Besta
no islamismo. NATAN RUFINO” (NATAN RUFINO, 2016) realiza o mesmo
procedimento: uma leitura literalista do Alcorão, como se os muçulmanos em sua
unanimidade aderissem à leitura de um pastor evangélico sobre a religião.
Enquanto um comunicador solitário, temos Nando Moura: guitarrista, ex-
integrante da banda de metal progressivo Angra, professor de música, também é
reconhecido no YouTube enquanto produtor de conteúdo sobre diferentes temas. Dentre
esses temas, estão as críticas a outros criadores de vídeos e também ao Islam e aos
muçulmanos. O cenário que Nando Moura traça é de um cristianismo decadente, acurado
pela constante “ameaça islâmica”:

Então, a, a Europa e o mundo ocidental está [sic] completamente


despreparado para combater essa guerra ideológica contra o Islã. Só pra
você ter uma ideia, ah, chegaram quatro mil jihadistas extremistas do
Estado Islâmico misturados com os refugiados da Síria, e essa é uma
realidade, já foi noticiada (...). Não existe um caso de extremista
evangélico no Brasil mas os caras mataram as pessoas no Charlie Hebdo
e o que que a SuperInteressante faz? Lança uma matéria elogiando o
Islã. A única força que poderia se impor contra o islamismo seria o

2648
cristianismo. Mas ele está completamente fragmentado, destruído, pelo
achincalhamento geral da mídia. Pelo escárnio geral de todas as pessoas.
Você pode desenhar Jesus Cristo e encher ele de bosta, Maria sendo
estuprada, você pode músicas disso, letras dizendo que quer acabar com
Cristo, que quer sodomizar Cristo, você pode fazer o que você quiser
para achincalhar a religião cristã. Mas se você for fazer isso com a religião
islâmica, eles te matam. E agora a Europa e o mundo ocidental [sic] está
completamente despreparado para lutar ideologicamente contra a
mentalidade islâmica (NANDO MOURA, 2015a).

A percepção do autor de que a mentalidade islâmica está em oposição ao mundo


ocidental parte de um alijamento da História: não haveriam fatores políticos, sociológicos,
econômicos, filosóficos, haveria somente o fator religioso. No caso do Islam, o autor
fantasiaria que a religião propõe o morticínio de todos os que não sejam muçulmanos,
apesar da existência a mais de mil anos de populações cristãs em territórios islamizados e
da presença de cristãos dentre as elites desses territórios (GRIFFITH, 2007). A ideia de
que a Europa e os Estados Unidos serão dominados por muçulmanos também se faz
presente:

Agora, meu amigo, é o seguinte: todo ateuzinho no futuro vai pagar pelo
escárnio que fizeram com a religião cristã. Todo aquele que achincalhou,
todo aquele que descreu, todo aquele que, que, que, jogou a religião na
lama, vai pagar. Porque com os muçulmanos a história é diferente. Ou
você segue a lei deles ou você tá fudido. Espere só eles serem a maioria
na Europa e a maioria nos Estados Unidos pra você ver o quanto você
vai se fuder (NANDO MOURA, 2015a).

Tais leituras parecem possuir elementos persecutórios e paranoides que haveriam


de serem melhor investigados. Continuando com seu argumento de oposição ao Islam, o
autor defende que ao cristianismo não caberia creditar nenhum dos crimes e barbáries
praticadas no mundo; todavia, as ações dos muçulmanos jamais poderiam ter outra
motivação que não a religião. Tal aspecto é evidenciado em relação à fantasia acerca da
dominação muçulmana:

O que as pessoas não entendem é que uma vez que o Islã se torne a
religião dominante, não existe divisão do Estado e do Alcorão. O Estado
precisa seguir a sharia que está no Alcorão. Não existe divisão, não existe
Estado laico. É isso que as pessoas não conseguem compreender. Por
que você acha que lá no Oriente Médio a mulher é tratada que nem um
cachorro? Que um homossexual, aí sim, é apedrejado até a morte? Aqui
no máximo a gente diz oh cara, eu acho que você dá o seu loló aí é
pecado. Ah, mas eu quero dar assim mesmo. Pô cara, eu acho que você

2649
vai pro inferno. [gritando estereotipado] Ah, eu não vou pro inferno não.
É isso. Essas são [gritando algo incompreensível] que o cristão faz. Agora,
quando esses caras se tornarem a religião mundial, quando eles
conseguirem ideologicamente, culturalmente se sobrepor ao
cristianismo, aí você vai ver a merda absoluta (...). Nós estamos indo
mesmo para o buraco (NANDO MOURA, 2015b).

Ou seja: de acordo com o autor do vídeo, os episódios de violência contra mulher


ou contra homossexuais não teriam relação alguma com o cristianismo. Como o autor
afirma sobre a homofobia, “Aqui no máximo a gente diz oh cara, eu acho que você dá o
seu loló aí é pecado” – ignorando a violência endêmica contra homossexuais. Já em relação
ao Islã, tudo se deve à religião: a condição das mulheres em países como o Iraque, por
exemplo, não teria nenhuma relação com a invasão estadunidense, o bombardeio de
cidades, o mercado internacional de petróleo e o capitalismo financeiro-especulativo, mas
tão somente com a religião do Islã. Ora, tais reducionismos são operados pela conveniência
e não pela busca do entendimento do real papel que a religião islâmica pode estabelecer
em tais formações sociais – como o historiador marxista Maxime Rodinson realiza em suas
obras sobre o Oriente Médio, por exemplo.
O medo do muçulmano remete também ao medo da invasão interna, na conversão
de elementos de um dado país ou no uso político das taxas de natalidade. O canal Marra
Rejane, de pessoa anônima que só apresenta a própria voz, apresenta conteúdo pró-
Intervenção Militar e islamofóbico de natureza paranoide:

Ô desacordado, inconsciente, me desculpe. Você ainda continua sem


entender o que é o Islã, o Islã significa submissão. Abre o olho. É um
conselho bom que eu tou te dando. Não é como chegar aqui um bando
de gente do candomblé, um bando de gente que tenha qualquer religião.
Uma invasão de judeus? Sem problema. Qualquer fé que venha que não
tente superar a nossa, suplantar e impor a sua própria religião,
principalmente a sharia, que são os costumes ou comportamento dentro
do Corão. E você tá ignorando isso na, na talvez porque não gosta de ler
ou porque não se interessou pelo assunto, mas o Islã não é como a
invasão de qualquer um em nosso solo. Não, não é. Não é. Não é. O Islã
vem pra ficar, ocupar, com raízes extremamente sólidas. Eles estão,
como eu falei num áudio aí, no alto da Rocinha, já pagando por
gravidezes das nossas brasileiras, que os filhos que vão nascer vão ser a
primeira leva de brasileiros muçulmanos. E aí como expulsar e matar
essa garotada, essas meninas, que vão ser totalmente, totalmente, lavadas
pro Islã? Isso tá acontecendo no Brasil todo. Já são milhares de crianças
nascidas em solo brasileiro, filho de mães brasileiras e pais muçulmanos,
no Paraná, em Foz do Iguaçu principalmente. É isso que você precisa
entender, meu amigo. Entenda isso. Se você não entender isso, você
achar que Islã é igual a corrupto, não. Corrupto a gente tem um Sérgio
Moro pegando firme, outros juízes. Mas o Islã não. O Islã nós vamos ter

2650
que lutar contra a coisa mais forte que tem de cada um de nós, que somos
corretos, que é a Democracia. Você não pode tratar o muçulmano com
democracia. É a única coisa que ele pedem pra ser tratados, é a
democracia. Assim que eles usam pra conseguir chegar a 15, 20% da
população de um país. Eles começam automaticamente a ir matando a
democracia. São tantos filmes, tantos vídeos, você não tá vendo isso?
Poxa, quando eu digo acordar, é no bom sentido (MARRA REJANE,
2017).

O autor do vídeo afirma, portanto, que muçulmanos estariam sistematicamente


engravidando moradoras da Rocinha e de outros lugares no Brasil. Afirma ainda que
seriam filhos de mães brasileiras e pais muçulmanos em uma plena confusão entre termos:
ser muçulmano não indica nacionalidade e tampouco necessariamente filiação política. A
imigração é fantasiada enquanto uma estratégia “Cavalo de Tróia”, operada por uma
inteligência supra-nacional, maquiavélica e destruidora.
São esses alguns dos argumentos que muitos dos “críticos do Islam” mobilizam para
realizar suas considerações sobre uma religião extremamente complexa, tradicional, avessa
ao reducionismo. No caso dos muçulmanos:

A redução em questão é tripla. Em primeiro lugar, a população


muçulmana, contando com um bilhão de pessoas e habitando em
numerosos países, é reduzida ao Islã, como se, diferentemente de todos
os outros grupos humanos, os muçulmanos fossem obrigados a submeter
os mais insignificantes atos de sua existência ao aval da religião que, por
sua vez, permanece a causa única de suas escolhas. Em seguida, o Islã é
reduzido ao islamismo: uma religião com catorze séculos que descreve
uma via de realização espiritual é interpretada como o programa político
de alguns grupos na atualidade. Por último, o islamismo é reduzido ao
terrorismo quando, afinal, ele pode adotar múltiplas vias de ação política
que transgridem as leis em vigor. (...) Além de falsas, essas reduções são
perniciosas: assim, um bilhão de muçulmanos são lançados nos braços
de alguns milhares de islamistas e todos vivem sob a suspeita de serem
terroristas (TODOROV, 2010, p. 224-5).

Para além da persecução e do reducionismo, enquanto característica final que


apontamos para essa islamofobia cristã está na tradução cultural de conteúdos
internacionais. A tradução cultural não é somente um conceito, mas também uma prática.
No âmbito conceitual, sua origem remete aos estudos antropológicos:

Sendo tarefa da antropologia tornar uma cultura inteligível para outra,


considerou-se que ao papel do antropólogo e de seu campo se poderia
aplicar a metáfora da tradução, já que envolvia um grau de criatividade e
de interpretação tão alto quanto o de traduções propriamente ditas. (...)

2651
A recepção de uma cultura por outra exige, pois, que ela seja “traduzida”
por um intermediário, um intérprete que se esforça conscientemente em
tornar seus caracteres e linguagem compreensíveis a “leitores”
habituados a outros “textos” (PALLARES-BURKE, 1996, p. 13-14).

Não seria todo e qualquer conteúdo cultural que uma cultura receptora traduz de
uma outra cultura: existe um processo de seleção cultural, conforme Pallares-Burke
elucida. Assim, uma vez que não ocorreram ou ocorrem atos de violência relacionados aos
muçulmanos no Brasil, os islamofóbicos necessitam buscar informações em outros países,
selecionando-as, editorando-as. A seleção operada pelos conteúdos estrangeiros, sejam
fantasiosos ou reais, demonstram muito mais as estratégias dos grupos islamofóbicos para
posicionarem-se em seus respectivos campos de produção simbólica do que fornecem
esclarecimentos possíveis sobre o Islam e os muçulmanos.

CONCLUSÕES

Ao contrário do que alguns cristãos possam afirmar acerca da irredutibilidade de


relações entre o Islam e o Cristianismo, ou mesmo de uma oposição entre o Islam e o
Ocidente, pode-se aceitar a existência de tensões exatamente pelo fato dessas religiões
compartilharem elementos de repertórios semelhantes. Assim como os cristãos, os
muçulmanos também acreditam em Jesus e em sua segunda vinda, ou mesmo seu
nascimento miraculoso da virgem Maria (PINTO, 2010).
A mobilização de uma retórica islamofóbica por agentes sociais cristãos os
posicionam de um modo determinado no campo de produção de bens espirituais. Tal
posicionamento favorece esses agentes sociais na manutenção da ou luta pela hegemonia
no campo religioso, submetendo uma população minoritária no Brasil aos discursos que
falam pelos muçulmanos – exatamente como os orientalismos praticaram ao longo dos
séculos.
A superação do paradigma do “choque de civilização”, tão marcadamente aventado
pelos que se identificam com a ideia de “nós versus eles”, poderá ser realizada a partir da
apreensão de que ocorrem hibridismos culturais, trocas simbólicas, que não há uma “forma
europeia pura”: o que existe é uma pluralidade de manifestações humanas, sendo o Islam
uma forma tão legítima quanto outras de existirem. Os próprios conceitos de Islam e
Ocidente, quando não bem delimitados, esvaziam a discussão: não são conceitos auto-
evidentes, explicativos por sua mera evocação. Além disso, muitos dos discursos expostos

2652
acima fundamentam-se sobre uma estrutura extremamente frágil: ao pronunciarem quem
são os Bons e quem são os Maus, automaticamente se outorgam a pecha de Bons e
condenam à vilania todos os que não fazem parte de seus grupos. Não há mérito em contar-
se dentre os Bons quando a própria pessoa ou organização define quem é quem. Isso é
aprofundado quando é por meio de uma “revelação” que aquele cristão demoniza os
muçulmanos: daí a importância de se pesquisar em profundidade as especificidades da
islamofobia cristã, seja católica, seja evangélica.
Enquanto um expediente de reflexão honeste sobre o Islam não se consolidar nas
análises e investigações dos agentes sociais cristãs brasileiros, enquanto ainda houver o
estímulo ao preconceito contra muçulmanos por parte de setores que se identificam com
a cristandade, ressaltamos que maiores pesquisas sobre a islamofobia no Brasil precisarão
ser conduzidas por dois motivos: primeiro, para denunciar as violências contra
muçulmanos, e segundo, para mapear o desenvolvimento desse preconceito enquanto
ainda está no início da implantação de uma “indústria da islamofobia”, como ocorre nos
EUA. Seus mecanismos de produção e circulação estabelecem relações com as mídias
sociais e demais formas online de produção e distribuição de bens simbólicos, não sendo
possível hoje desvincular a islamofobia online da offline.
No esteio do crescimento da islamofobia internacional, as associações como o
CAIR (Council on American-Islamic Relations) e a SETA (Foundation for Political,
Economic and Social Research) apresentam um esforço em arrolar e refletir sobre os
episódios de preconceito contra muçulmanos de um modo único frente à exiguidade de
iniciativas em território nacional ou mesmo na América Latina. Observar esses relatórios e
suas conclusões podem tanto orientar os pesquisadores acadêmicos quanto alertar aos
muçulmanos brasileiros contemporâneos sobre o que os aguarda caso a islamofobia não
seja combatida pelo conhecimento e diálogo.

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