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Os sortilégios de Antonin Artaud: a cena do subjétil1

André Silveira Lage


Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, ECA-USP
Pesquisador – Doutor em Literatura Francesa – Paris 8
Bolsa de Pós-doutorado FAPESP
Pesquisador, Professor, Performer

Resumo: Trata-se de apresentar e de analisar os sortilégios [sorts] de Antonin Artaud,


relacionando-os com as três dimensões do conceito de “subjétil” (o subjétil enquanto
suporte, figura do Outro, operação mágica e cirúrgica) elaborado por Jacques Derrida no
seu famoso artigo “Enlouquecer o subjétil”. Missivas conjuratórias ou agressivas que
misturavam escritura e desenho sobre folhas de papel voluntariamente perfuradas e
queimadas, esses sortilégios serão ainda considerados como um dos exemplos mais
significativos dessa vontade de “enlouquecer o subjétil” da qual fala Derrida. O objetivo de
tais operações? «Um exorcismo da maldição, uma vituperação corporal contra as
obrigações da forma espacial, da perspectiva, da medida, do equilíbrio, da dimensão»,
escreve Artaud.

Palavras-chave: Antonin Artaud, sortilégios, conceito de subjétil

Et les figures donc que je faisais étaient des sorts – que je brûlais avec
2
une allumette après les avoir aussi méticuleusement dessinées.

Os sortilégios [sorts]3 de Antonin Artaud são essas estranhas cartas que ele
endereçava a diversos correspondentes, em 1937, de Dublin, e em 1939, do asilo de Ville-
Évrard. Tal como a Correspondência com Jacques Rivière (1923-1924) ou as diversas
Cartas escritas de Rodez (1943), os sortilégios se inscrevem no território epistolar. Mas se
Artaud privilegia novamente o território epistolar, ele o privilegia para retomar – ou melhor
para reinventar – uma prática gráfica sem precedentes. Na situação do desastre vivido na
Irlanda, no desespero do enclausuramento psiquiátrico, Artaud vai desenvolver, com esses

1
Esse artigo é uma parte da minha pesquisa de Pós-doutoramento que está sendo atualmente desenvolvida
junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cências da Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo, com a Bolsa de Pós-doutorado da FAPESP.
2
ARTAUD, A. Œuvres, Paris, Quarto Gallimard, 2004, p. 1467. « E as figuras que eu fazia eram sortilégios –
que eu queimava com um fósforo após tê-las meticulosamente desenhadas. » Os trechos aqui traduzidos
tentam « se aproximar » do original em francês, o tanto quanto possível. Traduzi-los foi um grande desafio não
desprovido de impasses, dificuldades, indecisões e perdas, própria à experiência ou à travessia da tradução.
3
Há em Artaud um corpus de sete sortilégios, cujas reproduções fac-símiles foram primeiramente publicadas
no belo livro de Jacques Derrida e Paule Thévenin, Antonin Artaud : Dessins et portraits, Paris, Gallimard,
1986. Em seguida, eles foram retomados em diversos catálogos de exposições dedicados à obra plástica de
Artaud : Antonin Artaud : Œuvres sur papier, Marseille, édition de la RMN, 1995 ; Antonin Artaud, Paris,
Bibliothèque Nationale de France/Gallimard (7 de novembro de 2006 a 4 de février de 2007) ; Artaud, Madrid,
édition de la Casa Encendida, 2009.

1
sortilégios, uma modalidade totalmente nova de expressão gráfica, inaugurando, sob um
modo demasiadamente cruel e fulminante, a retomada da prática do desenho4.
Pontuo primeiramente alguns de seus traços comuns: os sortilégios são
datados e possuem o aspecto de estranhas missivas lançadas a amigos próximos (Roger
Blin, Lise Deharme, Sonia Mossé, Jacqueline Breton), médicos (Dr. Fouks, Dr.
Lubtchansky) e personalidades (Hitler). Eles não são, em princípio, uma obra de arte
destinada a ser exposta ou arquivada num museu. Não são representações artísticas
destinadas ao olhar. São, ao contrário, destinados a produzir efeitos mágicos, a agir
fisicamente sobre a sensibilidade de seus destinatários. Essa dimensão mágica dos
sortilégios será novamente sublinhada no livro Suppôts et Suppliciations (1947), onde
Artaud utilizará um termo diferente para designá-los, a saber, « amuleto » [gris-gris].5
Lançar sortilégios e construir amuletos: essas duas atividades poderiam ser
confundidas com atos de bruxaria enfeitiçadora mas, no entanto, a magia que está em jogo
nos sortilégios seria mais próxima de sua concepção da crueldade, nesse sentido que,
segundo Artaud, « tout ce qui agit est une cruauté 6». Tal como no seu teatro, a magia e a
crueldade são indissociáveis nos sortilégios. Ambas constituem um campo de forças, ora
trabalhado por esta ideia de ação levada às últimas consequências e extrema, ora por
esse corpo a corpo com a experiência da morte: « Nous ne sommes pas libres. Et le ciel
peut encore nous tomber sur la tête. Et le théâtre est fait pour nous apprendre d’abord
cela7 ».
Pela violência verbal e o sarcasmo dessas estranhas cartas escritas e
desenhadas, pela ação de queimar e perfurar o suporte, os sortilégios de Artaud reativam
não somente essas duas dimensões do seu teatro (a magia e a crueldade), mas também o
que ele chama de «HUMOR-DESTRUIÇÃO8». Assim, no Sortilégio a Lise Deharme (5 de
setembro de 1937), todas essas dimensões se reúnem para atingir fisicamente a
destinatária do sortilégio:

4
Lembremos que a prática do desenho começa durante os anos 20 e 30. As paisagens a guache de 1919, a
natureza morta (óleo de 1919), os retratos e auto-retratos realizados em torno de 1920-1923, como também o
estudo de figurino de teatro (1922) ou o estudo cenográfico da peça Os Cenci (1935), são alguns dos exemplos
desse período mais acadêmico, clássico, convencional, no qual se afirma um domínio técnico admirável, mas
ainda pouco inventivo.
5
ARTAUD, A. Œuvres, op. cit., p. 1421. « C’est en 1939, à l’asile de Ville-Évrard, que j’ai construit mes
premiers gris-gris […] » Tradução : « Foi em 1939, no asilo de Ville-Évrard, que construí meus primeiros
amuletos (gris-gris) […] ».
6
Ibid. p. 555. « Tudo o que age é uma crueldade ».
7
Ibid., p. 552. « Não somos livres. E o céu pode ainda desabar sobre nossas cabeças. E o teatro existe antes
de mais nada para mostrar-nos isso ».
8
Ibid., p 559. Sobre essa questão do humor, ver o meu artigo « O Teatro segundo Artaud ou A Reinvenção do
corpo ». Revista FIT- BH (Festival Internacional de Teatro). Julho de 2008. pp.63-71.

2
Je ferai enfoncer / une croix de fer / rougie au feu dans ton / sexe puant de
Juive / et cabotinerai ensuite / sur ton cadavre pour / te prouver qu’il y a /
9
ENCORE DES DIEUX!

Se nesse sortilégio fica claro que seu objetivo é violentamente combativo,


operando como uma arma de combate destruidora, encontramos no Sortilégio a Jacqueline
Breton (17 de setembro de 1937), uma diferença, a saber, sua dimensão protetora, que
opera como um amuleto [gris-gris]:

J’envoie un Sort / au Premier qui osera / vous toucher. / Je lui mettrai, en


bouillie / sa petite gueule de faux coq / orgueilleux. / Je le fesserai devant /
10
100.000 personnes !

É verdade que esses primeiros sortilégios são indissociáveis da irrupção do


delírio que perpassou a vida de Artaud durante seu internamento. Mas, paradoxalmente,
eles não são atos de delírio, nem atos de bruxaria enfeitiçadora. São, sobretudo, uma
descarga violenta de energia (verbal e plástica) contra um mal, um antídoto contra uma
maldição. São exorcismos, contra-conjurações, contra-feitiço. O sortilégio « quebra todo
feitiço »11, escreve Artaud. Ou seja, muito mais do que apenas querer dizer algo, eles
fazem algo ao dizê-lo. Não se limitam ao único plano da significação, mas efetuam uma
ação « ao dizer » algo e « pelo fato » de dizê-lo. Eis aqui um ponto crucial : os sortilégios
trabalham o performativo12 na espessura infra-fina do dizer e da magia.
Os sortilégios de Artaud são tributários de uma gestualidade, de uma escritura
teatralizada, na qual se conjugam as possibilidades da grafia (maiúsculas, sublinhamento,
data, assinatura, números cabalísticos), a disposição de diversos signos linguísticos e não
linguísticos sobre a página (lançados no centro, nos cantos das folhas, nas bordas, em
forma de triângulo) e a perfuração do papel pelo fogo. Se nos primeiros sortilégios, a
violência performativa das palavras é mais preponderante que a dos elementos
desenhados, nos sortilégios de 1939, o que prima, é a potência performativa de sua
crueldade gráfica. A diferença é imediata : eles são mais coloridos, perfurados, queimados,
maculados e maltratados em vários lugares. Há, nesse sentido, uma intensificação na
encenação desses « exorcismos da maldição », a qual está sempre acompanhada de uma

9
DERRIDA et THÉVENIN, P. Antonin Artaud: Dessins et portraits,, J. Paris, Gallimard, 1986, p. 257. « Enfiarei /
uma cruz de ferro / vermelha de fogo em teu / sexo fedido de Judia / e cabotinarei em seguida / sobre teu
cadáver para / te provar que há / AINDA DEUSES! »
10
DERRIDA, J., Artaud le Moma, op., cit., p. 71. « Eu lanço um Sortilégio / ao Primeiro que ousará / tocar-vos. /
Eu triturarei / seu rostinho de falso galo / orgulhoso. / Eu lhe darei uma surra / na frente de 100 000 pessoas! »
11
DERRIDA et THÉVENIN, P. Antonin Artaud: Dessins et portraits, op. cit. p. 258.
12
Refiro-me aqui à teoria de J. L. Austin, filósofo inglês da linguagem, para quem falar é sempre agir, ou ainda
dizer é fazer - como indica o título de uma de suas obras de referência. AUSTIN, J. L. Quand dire c’est faire,
Seuil, Paris, 1970.

3
intervenção gestual/cirúrgica, uma operação da mão, uma arma de fogo, um projétil (a
ponta do lápis, o fósforo, o cigarro). A crueldade gráfica desses sortilégios de 1939 torna-
se tão potente que eles acabam excedendo o plano do vísivel, materializando assim essa
ideia que a pictografia em Artaud é também uma arte do ouvido. Ela não é somente vista,
mas também ouvida. De fato, há neles o rasgo plástico de um grito performativo, a
dissonância visual de um bombardeamento, uma espécie de dilaceramento sonoro - como
diz o próprio Artaud a propósito do quadro de Lucas Van den Leyden, As filhas de Loth.
Os sortilégios colocam em jogo essa concepção do «ato gráfico como golpe,
como o acontecimento de uma perfuração performativa13». A folha de papel de cartas –
como mais tarde o caderno de estudante e a folha de desenhos – tornam-se um campo de
forças onde se conjugam a potência imprecatória das palavras e a experiência do fogo
voluntariamente aplicada sobre o papel. No Sortilégio à Sonia Mossé (14 de maio de
1939), a aliança entre esses procedimentos (escritura, desenho e fogo) é indiscutivelmente
mais radical e dilacerante. Ela reenforça a performatividade infernal e apocalíptica da
página, seu poder de ação, sua função exorcisante e mortífera. Nesse sortilégio, Artaud
escreve:
Tu vivras morte / tu n’arrêteras plus / de trépasser et de descendre.
Je te lance / une Force de Mort.
Et ce Sort / ne sera pas rapporté.
Il ne s[era] pas / reporté.
Et il brise / tout envoûtement.
14
Et ce sort ag[i]t immédiatement.

Mas o que há de interessante nesse gesto que alia esses três procedimentos
(escritura, desenho e fogo) é que ele nos mostra que queimar a folha de papel com um
fósforo ou um cigarro, interromper o sentido de uma frase com um buraco, com essas
pequenas perfurações performativas produzidas pelo fogo, impliquam antes de tudo uma
guerra contra a lógica da representação e contra seu suporte (o subjétil). O objetivo de tais
operações? « Un exorcisme de malédiction, une vitupération corporelle contre les
obligations de la forme spaciale, de la perspective, de la mesure, de l’équilibre, de la
dimension […] »15, escreve Artaud em fevereiro de 1947.
Eis aqui um ponto importante: os sortilégios são, de fato, um exemplo
emblemático dessa vontade de «Enlouquecer o subjétil» da qual fala Derrida no seu

13
DERRIDA, J. Artaud le Moma, Paris, Galilée, 2002, p. 70.
14
DERRIDA et THÉVENIN, P. Antonin Artaud: Dessins et portraits, op. cit., p. 257-258. « Você viverá morta /
você não cessará mais / de trapassear e de descer. / Eu te lanço / uma Força de Morte. / E esse Sortilégio /
não será relatado. / Ele não será / adiado. / E ele quebra / todo feitiço. / E esse sortilégio age imediatamente. »
15
ARTAUD. A., Œuvres, op. cit., p. 1467. « Um exorcismo da maldição, uma vituperação corporal contra as
obrigações da forma espacial, da perspectiva, da medida, do equilíbrio, da dimensão […] ».

4
famoso estudo sobre os desenhos de Artaud. O subjétil, como nos explica Derrida, é uma
antiga palavra francesa cujo uso bastante técnico pertence ao código da pintura e designa
aquilo que é colocado por baixo [dessous] - suporte ou superfície. Suporte (a tela de uma
pintura, o papel que sustenta um texto), ou então, num sentido ligeiramente diferente, a
matéria de uma escultura (o suporte como substância que está sob as formas). Derrida fala
de subjétil poroso, que se deixa atravessar (o papel, o gesso, a tela) e de suporte não
poroso, que não se deixa atravessar (o metal, o ferro). Relaciona-o também com a ideia de
uma membrana : «O subjétil, por exemplo o papel ou a tela, torna-se uma membrana16»
que será preciso dinamizar (atravessando-a, perfurando-a) para que ela possa atingir
também este outro subjétil que é o destinatário do sortilégio.
Suporte, superfície, material, pele e corpo do destinatário, o subjétil tem vários
sentidos. Derrida trabalha magistralmente o caráter polissêmico do termo, faz um uso não
monolítico. Lembra-nos ainda que Artaud emprega três vezes essa palavra. Mas ao utilizá-
la primeiramente num sentido técnico, ele subverte esse sentido logo logo, teatralizando-o
de maneira extremamente interessante : o subjétil torna-se também a figura do Outro, uma
espécie de inimigo contra o qual Artaud se insurge tal como um raio ou um trovão,
perfurando-o, abrindo pequenas passagens, atravessando-o com um projétil. A guerra
contra a lógica da representacão e seu suporte (o subjétil) se afirma como uma maneira de
retomar a guerra contra a impregnação invisível e sub-repíticia desse Outro na própria
língua materna, a saber, o francês. E a língua francesa enquanto lugar, residência desse
Outro que ela hospeda é o duplo de um outro Outro, aquele que pertence a uma cena
teológica, aquele que Artaud designa como um impostor, um invasor, uma ladrão potente
que roubou seu corpo desde o seu nascimento, impedindo-o cruelmente de ser, de existir e
de nascer. Esse Outro que será preciso combater para que Artaud não se aborte
continuamente de suas obras e não se sinta um eterno nati-morto tem um nome bem
conhecido : ele se chama Deus.
Nesse sentido, o que faz Artaud nos seus sortilégios não concerne somente os
destinatários reais ou fictícios dos sortilégios. É claro que eles são o primeiro alvo, a cibla
primeva. Mas não devemos esquecer que esse Outro se apresenta também sob suas duas
formas maiores e que uma é o duplo da outra, a saber : o Deus ladrão que é também a
língua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

16
DERRIDA, J, Enlouquecer o subjétil, [Tradução Geraldo Gerson de Souza]. São Paulo, Editora da Unesp,
1998, p. 45.

5
ARTAUD, A. Œuvres, Paris, Quarto Gallimard, 2004.

AUSTIN, J. L. Quand dire c’est faire, Seuil, Paris, 1970.

DERRIDA, J. e THÉVENIN P. Antonin Artaud : Dessins et portraits, Paris, Gallimard, 1986.

DERRIDA, J. Enlouquecer o Subjétil. [Tradução Geraldo Gerson de Souza]. São Paulo,


Editora da Unesp, 1998.

DERRIDA, J. Artaud le Moma, Paris, Galilée, 2002.

LAGE, A. « O Teatro segundo Artaud ou A Reinvenção do corpo ». Revista FIT- BH (Festival


Internacional de Teatro). Julho de 2008. pp.63-71.

Catálogos de exposição :

Antonin Artaud : Œuvres sur papier, Marseille, édition de la RMN, 1995.

Antonin Artaud, Paris, Bibliothèque Nationale de France/Gallimard (7 de novembro de 2006


a 4 de février de 2007).

Artaud, Madrid, édition de la Casa Encendida. 2009.

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