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Felipe

Mury
© Felipe Mury

Gramma Editora
Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo
Tadeu Monteiro, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha, Lúcia
Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida, Mirian
Goldenberg e Silene de Moraes Freire.

Supervisão Editorial: Gisele Moreira


Coordenação Editorial: Flávia Midori
Revisão de Arquivos: Ana Grillo
Capa: Paulo Vermelho
Diagramação: Victor Mayrinck | Ciclo Estúdio
Acompanhamento Gráfico: Evelyn Costa

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M966p

Mury, Felipe
Peças teatrais [recurso eletrônico] / Felipe Mury. - 1. ed. - Rio de Janeiro :
Gramma, 2019.
recurso digital

Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9788559685763 (recurso eletrônico)

1. Mury, Felipe - Peças teatrais. 2. Teatro brasileiro. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

19-54655 CDD: 869.2


CDU: 82-2(81)

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644

09/01/2019 09/01/2019

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PREFÁCIO

Brecht e Tchekhov convocados por Felipe Mury

É sempre uma alegria entrar em contato com um novo trabalho


de dramaturgia.
No caso de Felipe Mury, isso significa não apenas um texto tea-
tral mas uma série de textos com estilos diversos.
Depois de ler dedicadamente cada uma das obras, já pensando
na tarefa de escrever um prefácio, tomei a liberdade de eleger o texto
mais recente de Felipe para destrinchar aqui.
O texto de 2017 se intitula “Gutural”. Título bem feliz! Os títu-
los são fundamentais, precisam funcionar como uma espécie de síntese
da síntese e ao mesmo tempo ser provocativos. A palavra “gutural”, que
se refere a garganta, a algo relacionado à fala, à voz, a uma sonoridade
particular, carrega este caráter provocativo que é tão bem-vindo!
Numa espécie de prólogo o autor propõe ao possível diretor:
“É peça para um ator só. Alterna momentos falando para a pla-
teia como em stand-up, para si mesmo, para a namorada, o pai, a mãe
e para o Universo/Deus. Achar os momentos certos de falar para cada
interlocutor.”
Nessa rubrica inicial está indicada pelo menos uma linha de en-
cenação, que seria a brechtiana, já que ao ator desse solo vem o autor
demandar um trabalho de distanciamento através da inclusão do espec-
tador como seu interlocutor direto.
A peça tem um aspecto autobiográfico que dá ao texto um tom
contemporâneo e ao ator e ao diretor uma ampla liberdade criativa, ao
permitir que uma dramaturgia física acompanhe a textual. Essa possi-
VI Felipe Mury

bilidade é importante para o teatro contemporâneo, que, exatamente,


instiga o encenador e o ator a serem coautores da obra.
As falas do personagem de “Gutural” surgem em cascata, numa
espécie de vomitório verborrágico, num ato de autoexposição ininter-
rupta e vertiginosa. Nesse movimento aparece diante do espectador/
interlocutor o panorama de uma cultura ocidental de classe média ur-
bana, com todas as suas idiossincrasias, cretinices, preconceitos, vícios
comportamentais e, é claro, no meio desse caldeirão, uma filosofia de
vida estropiada e contraditória, plena de dilemas, como um quebra-ca-
beça que o personagem não consegue montar sozinho, apesar de seus
esforços. Este sujeito, o anti-herói da trama, desconfia que existe al-
gum nexo em algum lugar. Mas, onde?
Num dos momentos finais ele se identifica com Vânia, também
um anti-herói, da peça TioVânia, de Tchekhov. Fica a questão: seria ele
um Vânia do século XXI?

Celina Sodré
Professora e diretora de teatro
APRESENTAÇÃO

Este grupo de peças surge como a realização de um antigo desejo


de produzir no campo da dramaturgia e de desvendar as técnicas e os
fazeres do texto teatral. Bastante diferentes entre si, as cinco peças aqui
apresentadas cobrem espectros temáticos e estilísticos diversos, mas
inauguram um canal comum de comunicação entre o mundo exterior
e os artistas dramáticos, que se pretende longevo. Escrever é um gran-
de prazer e um grande desafio − ao mesmo tempo que as horas senta-
do são algo de bom, excitante, o processo e o próprio esforço literário
são responsabilidades nada exíguas.
A peça escrita é encarada aqui como veículo interino da palavra,
magna, que existe para ser dita. Oralidade e teatralidade são marcas
deste conjunto. A musicalidade pode ser melhor observada em “Isa-
bel”, apesar de não ser completa enquanto gênero musical, por lhe
faltarem as melodias em partitura – mas ainda assim cumpre o papel
de romancear a biografia da princesa. “Assembleia Geral” nasceu como
sátira ao mundo promíscuo e desacreditado das estruturas políticas e
tem em seu bojo os signos da ironia, do nonsense e do absurdo. “Pêsse-
go” traz uma trama que deve ser interpretada com sensibilidade e sua-
vidade. “Em consulta” propõe uma reflexão sobre a medicalização dos
comportamentos ao mesmo tempo que fala da pulsão de vida quando a
juventude se transforma em maturidade. E “Gutural” é monólogo que
privilegia o ator em cena e expõe as frustrações de um homem comum
do nosso tempo, sem grandes peripécias dramatúrgicas, confiando no
magnetismo do intérprete.
A tradição moderna brasileira, a experiência pós-dramática e o
novo teatro são alimento para essa dramaturgia, mas sem classificações.
VIII Felipe Mury

Com este livro, queremos oferecer ao leitor caminhos para levar estas
peças aos palcos, ou ao menos o prazer da leitura. Trata-se de um óti-
mo conteúdo para exercícios cênicos, seleção de cenas e falas, e pode
ser utilizado em variadas situações. Assim, o trabalho de um eventual
diretor e de eventuais atores será mais determinante que o meu pró-
prio.
Faço votos de que esta obra se espalhe e dedico a primeira publi-
cação à minha tia Marli, entusiasta eterna do meu trabalho. Ofereço os
mais emotivos abraços aos que mergulharem nestes escritos.

Felipe Marendaz Mury


SUMÁRIO

Isabel 1

Assembleia Geral 47

Em consulta 85

Pêssego 123

Gutural 157
ISABEL
PERSONAGENS

ISABEL, jovem princesa do Brasil


GASTÃO, conde D’Eu, pretendente de Isabel
D. PEDRO II, o imperador
D. TERESA, a imperatriz
ABÍLIO, senhor de engenho escravagista
UBIRATÃ, ex-escravo, capanga de Abílio
BRILHANTINA, a cadelinha de estimação da princesa
ALBERTO, escravo fugido
MAYARA, escrava fugida
PADRE, protetor dos escravos
ZULEICA, a curandeira escrava
ALFREDO MARIA, visconde de Taunay, major na guerra, amigo
de Gastão no Exército, presente na música de Gastão
LUDOVICO AUGUSTO, príncipe de Saxe-Coburgo-Gota, primo de
Gastão, futuro cunhado de Isabel
LUÍSA, condessa de Barral e tutora
PROFESSOR, presente na cena da infância
MACHADO DE ASSIS, escritor
CASTRO ALVES, poeta
LUISINHO, filho de Isabel
PEDRINHO, filho de Isabel
ANTONINHO, filho de Isabel
MALANDRO TROVADOR NARRADOR, espécie de malandro do Rio
Outros: MASCATES, SOLDADOS e SERVIÇAIS.  [1]

1
 A peça traz letras de músicas que devem ser musicadas; de outra forma, devem ser encaradas como
poesia.
4 Felipe Mury

ATO I

RIO DE JANEIRO, 1854.

Música 1

MALANDRO NARRADOR – Uma história de amor e coragem, sem


pudores eu lhes vou contar. Resta à tia, à vovó e ao vovô se calar e no
sofá sentar. Muitos anos, faz muito anos, pouco mais de um século
atrás. Na cidade encantada do Rio fez nascer monarquia a mais. Sua
sina vocês hão de ver, trouxe ao povo algo de bom. Espectador, “es-
pecte” um pouco; agarre um lenço, te mandamos de volta: 43° 12’ 28”
Oeste, 22° 54’ 10” ao Sul, metade do décimo nono século. Como este
conto não há nenhum!

Música 1 – “Estamos aqui”, introdução ao ambiente do Rio de Janeiro


do meio do século XIX, com comerciantes, escravos, pescadores, se-
nhores e suas famílias cantando e fazendo parte da cena, um trovador
sola e narrará a história a partir de então. Esta primeira letra de música
é introdução à figura de Isabel: (“... e entre São Cristóvão e a serra de
Petrópolis vive a esperança de todos nós”). É puxada por um trovador-
-narrador, espécie de malandro do Rio antigo. Multidão e malandro-
-trovador cantam.

Marche, marche

Estamos aqui, todos aqui


Soldados, mascates, senhores e pescadores
Nos trópicos, uma ilha de civilização

A cidade vibra à beira da baía


São novos tempos, vieram para ficar
Rio é a cidade, é a cidade para se estar
Palácios, casebres, casarões
Peças teatrais 5

O banco, o mercado, a Igreja


Os papagaios fazem seus ninhos
E os macaquinhos?
Terra de índios, de portugueses e de africanos
Povos irmãos mesclados num só

Estamos aqui, todos aqui.


Soldados, mascates, senhores e pescadores
Nos trópicos, uma ilha de civilização

Em nosso brasão, dois golfinhos


Muito verde, muita vida
E assim por toda nação
Cariocas nos proclamamos
Brasileiro, sou sim senhor
Tudo que nasce e vem desta terra
Há de ser verdadeiro esplendor
Reino de paz, real paraíso
Do ouro, café e da cana a riqueza sem dúvida brotou
Somos muitos, queremos ser mais
Tudo aquilo que um dia sonhou

Estamos aqui, todos aqui


Soldados, mascates, senhores e pescadores
Nos trópicos, uma ilha de civilização

No Atlântico, uma joia maior.


E o que temos a frente, só Deus dirá
Uma coisa se tem por certo
Um bom homem está por nós a olhar
Sua filha, a redenção
E entre São Cristóvão e a serra de Petrópolis vive a esperança de to-
dos nós.
6 Felipe Mury

CENA 1

(Aos 8 anos Isabel está prestes a ter sua primeira aula. Luísa, a
condessa de Barral, sua tutora, a encaminha para a aula com o
professor republicano que a ensinará a ler.)

LUÍSA – Tarde. É tarde. Vamos.

(Isabel, pequenina e atabalhoada, entra no cômodo – há uma parede dividindo


a cena em dois ambientes.)

PROFESSOR – Princesa, princesa, é hora de se elevar! Vais aprender,


aprender! A ler, a ler! Tudo que aqui tenho é para te enriquecer: um
quadro, giz, uma folha, uma pena. Aqui está seu futuro e o futuro é glo-
rioso. (Vira-se de lado.) Se não é ainda chegada a hora da República, que
ao menos a monarca esteja preparada para sua função.

(Enquanto o professor se virava, ela pegara a pena, a folha e escrevera seu nome
completo.)

PROFESSOR – Ah, vejo que meu trabalho aqui já está feito. (Lendo.)
“Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonza-
ga”. É você!
ISABEL – Quem mais, professor? (Escrevendo e falando.) “Sapo, alfinete,
cortinas, degrau (pronunciando bem o “a-u”), professor, quadro, jar-
dim, camélia. É minha preferida dentre as flores!
LUÍSA (deixando a leitura na antessala ao lado e colocando o pé no cômodo)
– Duas orelhas e uma boca: ouça, não vocifere, princesa!
PROFESSOR – A menina está se comportando, não se preocupe, con-
dessa. E, mais, ela deve já ter alguma voz.
LUÍSA – Não discutiremos os modos que devem se impor à realeza. O
imperador, pessoalmente, me incumbiu de lhe dar maneiras e é assim
que é.
Peças teatrais 7

PROFESSOR (virando-se para Isabel, em surdina) – Não a contrariemos,


pode fazer mal às suas carótidas... São duas as carótidas?
LUÍSA – Como?
PROFESSOR – Estou elogiando a aluna. Quase uma autodidata!
LUÍSA – Caríssimo professor, aviso que não deves colocar ideias pro-
gressistas na jovem cabeça da herdeira. Seu pai, apesar de um liberal
em certos aspectos, não iria gostar de ver a filha reproduzindo as san-
dices dos novos tempos, coisas que se comentam por aí.
PROFESSOR – Certamente, condessa.

(Plano enquadrando Isabel. Ela olha para a janela e começa a cantarolar.)

ISABEL – “Não tenho certeza... Se um dia puder ajudar... Esse dia vai
chegar. Se um dia puder ajudar. Vou fazer, tenho que fazer, tenho que
fazer! Algo tem que mudar. Minha missão eu cumprirei, sem duas ve-
zes pensar. Não tenho certeza, não tenho certeza do que devo fazer,
mas eu sei... Eu sei que algo vou mudar!”
PROFESSOR – Vai mudar!
LUÍSA – Vai mudar!

(Começam a entrar os serviçais, cantando.)

Música 2 – “Trabalhadores livres”, música dos empregados livres


(contentamento e disposição)

A casa limpamos, os móveis lustramos, os cavalos selamos


A casa limpamos, os móveis lustramos, os cavalos selamos
Eu limpo as janelas! (serviçal 1)
Eu, as coxias! (serviçal 2)
Eu limpo tudo o que eles não limpam! (serviçal 3, mulher)
Nosso trabalho é pouco notado, tampouco somos premiados,
Mas o palácio depende de nós, depende de nós.
Varrer!
Escovar!
8 Felipe Mury

Tudo aqui obedece a uma ordem e a ordem é arrumar!


Os reais, tão lindinhos, precisam do almoço na hora certa
Carruagem, na hora certa
Jantar na hora certa
Abanar, na hora errada! (serviçal 4)

(balançando um leque, serviçal mulher)

É tanto trabalho! Nem um refresco!


Mas vale a pena!

Fazemos porque gostamos


Ajudar a realeza é uma honra!
Tenho o meu no fim do mês

E os convidados! Cada um mais abusado!


Mas o trabalho é uma benção por que não sou explorado

Fazemos porque gostamos


Ajudar a realeza é uma honra!
Tenho o meu no fim do mês

Lavar, passar, engomar.


Às vezes até amarrar
O espartilho que teima em não entrar
São as obrigações dos serviçais
Mucama, mucama!
As vestes da dama!

Fazemos porque gostamos


Ajudar a realeza é ajudar a nação.
É uma honra!

Tenho o meu no fim do mês... (serviçal velho)


Peças teatrais 9

D. PEDRO II (entrando em cena imediatamente, acompanhado de D. Teresa)


– Isabel!

(Todos se aprumam na presença do imperador.)

D. PEDRO II – Isabel, receberemos a visita do barão de Mauá. Gosta-


ria que estivesses comigo. Parece que seus seis filhos virão com ele. Tu
poderias entretê-los...
ISABEL – Sim, papai, será um prazer.
D. PEDRO II – Como estão tuas aulas?
ISABEL – Bem, estão bem. Já li duas vezes o manuscrito original de Les
derniers jours d’un condemné, de Victor Hugo, e fiz uma crítica literária
que o professor adorou.
D. PEDRO II – Muito bem. Logo estarás sendo introduzida a Platão e
a Maquiavel, esteja preparada.
ISABEL – Sim, papai.
D. Pedro II (para todos na sala) – Até mais ver, então.
D. TERESA – Até mais, querida, não te esqueças de usar o vestido de
cetim azul.

(Os imperadores se colocam a frente de Luísa e a interpelam.)

D. PEDRO II – Tutora... Preciso lhe falar.


LUÍSA – Sim, imperador, estou ao seu dispor.
D. PEDRO – Saiba desde já que, “o caráter de qualquer das princesas
deve ser formado tal como convém a senhoras que poderão ter que
dirigir o governo constitucional de um império como o Brasil. A ins-
trução não deve diferir da que se dá aos homens, combinada com a do
outro sexo: mas de modo que não sofra a primeira. Poderá impor cas-
tigos, e quando forem leves, sem meu conhecimento prévio, sendo o
maior deles a reclusão em um dos quartos dos respectivos aposentos,
assim como representar-nos, mesmo perante nossas filhas, sobre a jus-
tiça da concessão de algum prêmio.” [2]
2
  Fala real. LACOMBE, L. L. Isabel, a Princesa Redentora. Petrópolis: Instituto Histórico de Petrópolis,
1989, p. 34.
10 Felipe Mury

D. TERESA – Isabel e Leopoldina são nosso tesouro, deves cuidar delas


com a própria vida. Deves mostrar o mundo a elas, sem sair dos pa-
lácios. Deves lhes apresentar as verdades do mundo, sem macular sua
inocência. Deves torná-las não só damas ou princesas, deves torná-las
verdadeiros seres humanos. Pela dinastia...
LUÍSA – Compreendo, imperadores, compreendo.

1862

(Aos 16 anos, ISABEL já enfrenta as responsabilidades da coroa e, ao mesmo


tempo, as incertezas do futuro em sua vida pessoal.)

CENA 2

(ISABEL e D. TERESA se prepararam para assistir a um recital.


D.TERESA aperta o espartilho de ISABEL.)

D. TERESA – É importante que saibas apreciar a boa música, estarão


presentes importantes artistas do império. E não tocarás Wagner! Eu
proíbo. Somente melodias doces, leves e encantadoras...
ISABEL (vermelha e comprimida, desfalecendo) – Mamãe, mamãe...
D. TERESA (terminando de apertar o espartilho) – Assim, chegaremos às
dezessete horas, a tempo para o chá com bolo e assistiremos a tudo
desde o início. Como sou organizada! Deves puxar a mim, nesse sen-
tido. Teu pai, apesar de um homem correto e íntegro, anda muito
distraído.
ISABEL – Papai tem muitos afazeres. Deve ficar cansado. Como posso
ajudá-lo?
D. TERESA – Já tens ajudado bastante. Logo ajudarás mais ainda, to-
marás para ti as tuas responsabilidades.
LUÍSA (aparecendo no cômodo) – Senhoras. A carruagem já está à espera.
LEOPOLDINA (aparecendo logo depois) – Mamãe, mamãe, vamos! Es-
tou ansiosa. Deve haver muitos rapazes nesse recital. Estamos aqui a
perder tempo.
Peças teatrais 11

(Toca música clássica, mas alegre. LEOPOLDINA e ISABEL conversam, esqui-


vando-se do rebuliço do recital.)

LEOPOLDINA – Isabel, tu nunca arranjarás um marido desse jeito.


Falas muito complicado, és muito turrona. Tens que ser mais como eu,
vê, mais graciosa, mais feminina.
ISABEL (ignorando) – Ah, sim?
LEOPOLDINA – Sim! Te preocupas demais com as coisas do império,
coisas de homem. Seja mais dama... Ainda estás em estado bruto, de-
ves ser lapidada.
ISABEL – Eu não preciso ser nada! Preciso estudar e estar à altura de
ser a governante desse país. É isso que tenho que fazer.
LEOPOLDINA – Suponho que não queiras ter herdeirinhos correndo
pelo palácio?
ISABEL – Herdeirinhos?!
LEOPOLDINA – Sim! Para haver herdeiros tens que fazer um bom
casamento e, para fazer um bom casamento, tens que agradar a um ho-
mem, tens que lapidar teu jeito de ser.
ISABEL – Mudar para agradar alguém, isso eu não faço!
LEOPOLDINA – Então faça como quiser!
LUÍSA (aparecendo) – Precisamos ir. Amanhã teremos o grande jantar
com os embaixadores! Vosso pai conta com a vossa presença.
LEOPOLDINA – Jantar! Haverá vários rapazes! Vou me preparar, até
loguinho!

(Saem LEOPOLDINA e LUÍSA.) (Tempo)

ISABEL (cantando) – “Estarei eu muito opaca, muito chata? Só sei de


estatísticas falar! Serei eu legada para as traças? Um marido, um dia,
deverei arranjar!” Mas, mas... “Não sei, não sei... Tentarei, tentarei...
Eu já sei! Ao destino este peso vou deixar!”
12 Felipe Mury

CENA 3

(Uma tomada do Palácio de São Cristóvão, seus jardins e seu inte-


rior decorado, as mesas repletas de delícias para o jantar. No jan-
tar para os embaixadores, ISABEL fica cabisbaixa e tristonha.)

D. PEDRO II – Minha filha, não estás aproveitando o petit comité?


ISABEL – Estou, papai, estou.
D. PEDRO II – Por que não vais conversar com o embaixador da Fran-
ça? Nossas relações podem melhorar ainda mais.
ISABEL – Sim...
D. PEDRO II (percebendo o real motivo das preocupações de ISABEL) – Ou,
talvez, prefiras conhecer o filho do embaixador... Me disseram ser um
rapaz muito bem-educado.
ISABEL (olha o pai com surpresa) – Papai... Não estou interessada em fa-
lar com rapaz nenhum...

(D. PEDRO II olha a filha com bondade e compreensão.)

ISABEL – Talvez... talvez eu possa passar algum tempo conversando


com alguém da minha idade...

(ISABEL entra em uma roda de pessoas de sua idade. Começa a rir com o que o
rapaz mais eloquente do grupo fala.)

CENA 4

(Na lavoura de café, alguns alqueires de distância da cidade, escra-


vos trabalham e cantam. MAYARA e ALBERTO se juntam ao coro.)

Música 3 – “Canção dos Escravos” (revolta e tristeza)

Uma jornada de cão meu tataravô fez


No porão de um navio ele e a mais
seis-Centos mil!
Peças teatrais 13

Nas lavouras, nas minas, nas senzalas


Dando o sangue e a alma pelo bem do outro
O outro que rouba, o outro que bate, o outro que mata
A vida me escolhe ou eu que a escolho
Não há nada de bom em ser maltratado
A vida que tenho vale igual à do que está ao meu lado
O café, o ouro, ou um punhado de prata
Compram tudo ou mais do que aquilo a que tenho direito
Em mercados com troncos nos vendem a alma
Conto o tempo que essa tristeza vai se esvair
Todo sangue é vermelho, todos sabemos
Não há cor, não há raça que se oponha à vida
Vai o tempo e a história, curar a ferida
Bem comigo a força do meu orixá
E tão perto, a razão e a igualdade que o justo dá
O meu destino sou eu quem decido
Mas o fim do algoz cabe àquele com quem a pena há de estar
Aquele, aquele que decidirá!
É para o bem da nação, felicidade da gente
A vergonha que pulsa tem que findar
Num só golpe acabe com ela, me faça contente
Pela memória do que é humano, pela Terra,
por aquilo em que acreditar!

Todo sangue é vermelho, todos sabemos


Não há cor, não há raça que se oponha à vida
Vai o tempo e a história, curar a ferida

(MAYARA e ALBERTO trabalham na lavoura, retirando o café, com mais outros


escravos. Ela passa mal e cai. UBIRATÃ vem e ordena que ela continue a traba-
lhar e ameaça ALBERTO com o chicote. UBIRATÃ sai.)

ALBERTO – Não aguentamos mais isso. Temos que nos rebelar.

(Alguns escravos olham para ele com cara feia.)


14 Felipe Mury

MAYARA – Nós temos é que fugir daqui. Esse lugar não é para nós.
ALBERTO – Para onde vamos fugir, estamos ilhados.
MAYARA – Para a cidade. Lá, ninguém nos conhece, não seremos es-
cravizados.
ALBERTO – Não sei...
MAYARA – É isso! Vamos para a cidade. Hoje à noite! Quando todos
estiverem dormindo.
ALBERTO – Oi?!
MAYARA – Sim, é o único caminho.
ALBERTO – Está bem. Estou com você. Hoje à noite. Quando todos
estiverem dormindo.

(Cai a noite, à surdina, barulho de homens gritando “Peguem-nos, peguem-nos.


Estão fugindo”. Barulho de disparos de armas de fogo. Suspense.)

CENA 5

(Na casa-grande, sombria, ABÍLIO está de costas para o público,


olhando a Lua da janela longilínea, parado. Música tenebrosa to-
cando. UBIRATÃ vem e lhe fala ao ouvido, com cuidado e medo;
se afasta. ABÍLIO, que estivera segurando uma taça, a revela, e a
quebra com a mão direita.)

ABÍLIO (grotesca e monstruosamente) – Ha-ha-ha-ha! Ha-ha-ha-ha! Ha-


-ha-ha-ha! (gargalhada fatal ecoa)

(Trovão.)

CENA 6

(ISABEL está despachando com um funcionário, de aparência


muito metódica, acompanhada de LUÍSA. O funcionário anota
tudo que ISABEL fala.)
Peças teatrais 15

ISABEL – Todas as crianças têm que estudar! “A instrução pública me-


rece prioridade. Foram criadas na corte escolas de segundo grau desti-
nadas a preparar professores para o ensino primário de ambos os sexos
e deverão ser logo inauguradas” [3].
LUÍSA – Bem falado, princesa.
ISABEL – Devemos construir, além de escolas, teatros, bibliotecas,
hospitais, agências bancárias, tudo de que uma grande capital e um
grande país precisem para crescer mais ainda.
LUÍSA – Apoiado.
ISABEL – Doaremos também parte da fortuna real e das joias da Coroa
para ajudar os mais pobres!
LUÍSA – Isso! (percebe o que foi falado e se engasga) Como?! Não! Isso
não!
ISABEL – Já é tempo também de declarar que toda criança, filha de es-
cravos, nasça livre! Já é tempo também de que os mais velhos, maiores
de 60 anos, tenham sua liberdade concedida. Se pudesse instauraria um
data para a vergonha da escravidão acabar!

(Entram D. PEDRO II e LEOPOLDINA.)

LEOPOLDINA – Isabel, Isabel! Adivinha!

(ISABEL fica tonta com a irmã a rodeando como em uma ciranda.)

ISABEL – Eu não sei.


LEOPOLDINA – Papai tem o retrato de um pretendente! Um preten-
dente parati!
ISABEL – Eu não quero saber de pretendentes, tenho outras coisas
com que me preocupar.
D. PEDRO II – Tens certeza de que não queres dar nem uma olhada?
ISABEL – Tenho.
LEOPOLDINA – Ah, eu quero ver, eu quero ver! Dê-me aqui. (pega o
retrato das mãos do pai) Oh! Isabel! Vem ver, estás perdendo uma coisa.
3
  Fala real. Falas do trono desde 1823 até o ano de 1889. Brasília: D.F.: INL/MEC, 1977, p. 438.
16 Felipe Mury

ISABEL – Eu não quero ver. Não me interessa.

(LEOPOLDINA fica entretida com a foto.) (Tempo)

D. PEDRO II – Minha filha, há outra coisa...


ISABEL – Outra coisa? Mas com quantas surpresas devo me acostu-
mar?
D. PEDRO II – Acho que te devo algo...
ISABEL – Algo? Que algo?

(D. PEDRO II olha carinhosamente para ela e para uma caixa enorme, púrpura,
com um laço bem grande em cima.)

ISABEL (olhando a caixa e se alegrando, fica afoita) – Um presente?! O


que será? É o que estou pensando? (desfaz o laço e abre a caixa) Oh!!! (re-
tira lá de dentro uma cadelinha, muito bonitinha). Mas que coisa mais linda!
Papai, como adivinhaste? Como vou chamá-lo? Não, é uma menina!
Como vou chamá-la?
LEOPOLDINA (ainda olhando a foto do pretendente) – Acho que ele usa
algum gel de cabelo. Cera ou brilhantina será?
ISABEL – Brilhantina! É isso. Vai se chamar Brilhantina!

(TODOS que estão na cena passam a circundar ISABEL, que levanta o animal-
zinho nas mãos.)

Música 4 – “Estrangeiro” (desconfiança e revolta)

MASCATE 1 – Ouviram os novos boatos? Parece que o pretendente à


mão da princesa vem da Europa!
SOLDADO – Mas não pode ser, ele deve ser brasileiro!
Um imperador, mesmo que consorte
Deve trazer o brasão verde-amarelo
No sangue, em seu porte
Mas não pode ser, um varão forasteiro
Peças teatrais 17

Desconhecido da pátria
Um desgosto inteiro
Um profundo pecado

Não haverá casamento


A princesa pirou
Ele é de La France
Ele é estrangeiro!

E os frutos de tal relacionamento?


Serão europeus
Até onde vai o meu conhecimento

Não haverá casamento


A princesa pirou
Ele é de La France
Ele é estrangeiro!

CENA 7

(ABÍLIO se encontra com o imperador para tratar de assuntos im-


portantes e mostrar sua intenção de esposar a princesa, mesmo sendo
muito mais velho. Logo depois, encontra UBIRATÃ e tece comentários
maldosos e perversos sobre a família real, o império e o próprio Brasil.
Deixa escapar qualquer coisa de seus planos malignos. Um imenso
luar se vê através da janela longilínea.)
(UBIRATÃ se aproxima do chefe.)

ABÍLIO – Não aguento mais essa gente real! Ter que bajulá-los... Em
breve será minha vez de ser bajulado! Vou mandar nesse país inteiro!
Vou ter muito mais dinheiro! Vou convencer o chato do imperador
a derrubar mais florestas para plantar mais café! E então, o golpe de
mestre... A empreitada derradeira, que me levará à riqueza suprema!
Eu... Eu... (UBIRATÃ esbugalha os olhos e aguarda com atenção e curiosida-
de) me casarei com a princesa!!! (Gargalha)
18 Felipe Mury

UBIRATÃ – A princesa?! Mas... Mas a princesa não é muito nova? E


não tem milhares de pretendentes?
ABÍLIO – Quieto, figura insolente! Eu planejei tudo meticulosamente.
Primeiro, ganho a confiança do tonto do pai dela, me torno uma es-
pécie de conselheiro. Depois, asseguro todos os meus interesses junto
à corte. E, como uma espécie de brinde, a cereja do meu bolo de jiló,
me caso com a pombinha!
UBIRATÃ – Mas, mas... senhor! A princesa tem muitas coisas a diferir
do senhor... Por exemplo, ela é bonita, o senhor é... Bem, e quanto
à escravidão, a dizer? O senhor possui muitos escravos e a princesa é
abertamente contra a escravidão...
ABÍLIO – Isso não é nada, idiota! Ela é muito inocente, não sabe que a
realidade, que o comércio e os negócios exigem certos sacrifícios hu-
manos... E depois, quando ela tiver a oportunidade de me conhecer
melhor...Tenho certeza de que se apaixonará! Com todos os meus atri-
butos (alisa o bigode fino, embaixo do narigão), cairá de amores por mim!
UBIRATÃ (esboça risada, mas refaz a cara séria ao ver o chefe olhando para
ele) – Bem, sim, com certeza...
ABÍLIO – “Estou certo ou estou errado?”
UBIRATÃ – Está certo, meu lorde! Certíssimo.

(ABÍLIO se aproxima da janela. O tempo fecha e a lua cheia se esconde de medo


atrás das nuvens.)

CENA 8

(Estão imperador e princesa no Palácio de São Cristóvão.)

D. PEDRO II – Mas, minha filha, tu deves conhecer, afinal, teu pre-


tendente.
ISABEL – Mas eu não tenho certeza de que esteja preparada para me
casar. E com alguém que nunca vi!
D. PEDRO II – Pondera! Estás na idade, que dever maior para uma
mulher que compor sua família e ter bons herdeiros?
Peças teatrais 19

ISABEL (angustia-se, reflete, para e fala com resignação) – Se é meu desti-


no... Se é meu dever, não fugirei dele.
D. Pedro II – Olha a foto, que bela fotografia. Posou muito bem...

(Isabel pega a foto como quem nada quer.)

ISABEL (em súbita mudança de postura, ao ver quão belo é o pretendente)


– Ele é lindo! E alto... Além de dito inteligente... É o pretendente
perfeito!

1864, O CASAMENTO

CENA 9

SERVIÇAL (narrando a chegada como uma partida de futebol) – O navio


com os sobrinhos do Príncipe de Joinville aporta! Os pretendentes
desceram à terra! A esse momento a carruagem dispara rumo a São
Cristóvão! Conde D’Eu e o Príncipe de Saxe-Coburgo-Gota sincroni-
zados no gramado da Quinta!
Abriram as portas, vão entrar com fardão e tudo! Che-gouuuu, che-
gou! O futuro noivo chegou! (escusando-se pelo excesso de entusiasmo)
“Não sei o que me deu, fiquei empolgado com uma brincadeira de bola
que joguei hoje...”

D. PEDRO II – Cavalheiros! Queridas filhas...

(GASTÃO e ISABEL se olham. Suspense. Ele inclina a cabeça como a indicar que
esperava por mais, mas não desdenha a princesa.)
(ISABEL se intimida, mas logo retoma o interesse no olhar. )
(Ambos ficam rentes um ao rosto do outro. As respirações se confundem. Afastam-
-se bruscamente.)
(Simultaneamente, LEOPOLDINA e LUDOVICO tiveram o mesmo tipo de en-
contro.)
20 Felipe Mury

(Em um cômodo separado.)

ISABEL – Leopoldina, é ele, é ele!


LEOPOLDINA – Sim, sim! Viste como olhava pra mim?
ISABEL – Olhava para ti? Para mim!
LEOPOLDINA – Para mim!
ISABEL – Não!
LEOPOLDINA – Ludovico olhava para mim!
ISABEL – Ludovico? Ah, sim, claro. Mas Gastão olhava pra mim (chega
a suspirar).
LEOPOLDINA – Vocês vão se dar tão bem, já estou até vendo, quan-
tos herdeiros vamos ter pelo Palácio. Vamos construir outro!
ISABEL – Que exagero... Aliás, que tipo de casal vocês vão ser com
esses nomes, Leopoldina e Ludovico?
LEOPOLDINA – Vamos ser Lelu, Lulê!
ISABEL – Acho que estou... que estou... apaixonada. (suspira)

(Em outro cômodo.)

GASTÃO – Humm...
LUDOVICO – E então, o que achaste?
GASTÃO – Achei-a meio durona, difícil de dobrar. Será que me caso
hoje e amanhã acordo do lado de uma megera?
LUDOVICO – Que é isso, rapaz! Ela te adorou! E tu a adoraste...
Eu vi.
GASTÃO – É...
LUDOVICO – O que achaste da minha?
GASTÃO – Achei? Não sei não, não vi... Estava entretido.
LUDOVICO – Não viste? Como não viste?
GASTÃO – Não vi, ué! (tempo) Está bem: acho que a tua vai ser pior
do que a minha! Aliás, que tipo de casal vocês serão com esses nomes,
Ludovico e Leopoldina?
LUDOVICO – Ha-ha-ha! Não vai não ser pior não... Eu já tenho aque-
la ali no papo. Vamos ser Lelu, Lulê!
Peças teatrais 21

GASTÃO – Primo, pois é: tu e eu, apaixonados, na terra delas. Apai-


xonados no Brasil!

CENA 10

(No Jardim Botânico. Caminhando pelo corredor de palmeiras.


BRILHANTINA encontra, atrás de um arbusto que se mexia, três
micos. Começa a brincar com eles.)

ISABEL – Então, como estão as coisas na Europa?


GASTÃO – Estão bem, o sobrinho de Napoleão governa a França.
Neste momento não me lembro de nenhuma guerra importante. Mas
parece que há uma espécie de Revolução das indústrias... A Inglaterra
tem liderado a produção de manufaturas, as navegações e suas colônias
no mundo.

(BRILHANTINA morde a barra da calça de Gastão e lhe dá um cansaço.)

ISABEL – E como estão as pessoas? As modas?


GASTÃO (se desvencilhando de BRILHANTINA) – A julgar pela falta de
roupa das pessoas daqui, diria: vestidas.
ISABEL (chega a rir) – Mas aqui faz calor, não podemos ter as mesmas
vestes do clima temperado.
GASTÃO – Sim, mas talvez falte uma elegância ao povo daqui.
ISABEL – Elegância?!

(GASTÃO percebe a gafe e quer voltar atrás, mas é tarde.)

ISABEL (cantando) – “Tu talvez possas julgar o diferente, desdenhar da-


quilo que faz a identidade da gente. Mas não me espere dizer que estás
certo, é daqui que vem a beleza tão ou mais evidente.”.

(GASTÃO a olha fascinado. Chegam ao chafariz.)


22 Felipe Mury

ISABEL (cantando) – “Essa terra, esse trono são minha vida, certamente
tu terás muito o que aprender! Mas se escutares o ruído da água, se se-
guires a luz do astro rei, vais crescer, vais viver o sonho, eu sei!”

(ISABEL e GASTÃO dão-se as mãos. Beijam-se apaixonadamente. Música au-


menta.) (Tempo)

SERVIÇAL (aparece do nada) – “Foi, foi, foi, foi, foi; foi eeele!”
(ISABEL e GASTÃO continuam se beijando. BRILHANTINA e seus novos ami-
guinhos micos param de brincar e ficam olhando o casal, suspirando, dentro de
uma vitória-régia.)

Música 5 – “O canto do Brasil”, canção em que Isabel canta seu povo


para Gastão (romance e ufanismo)

O mar gentil
Florestas
O céu anil
Carnaval
Não se faz um arco-íris
Com uma só cor
Ou sinfonia
De nota só

Movimento sem fim


Não se faz o todo sem o diferente
Ouça o canto do universo
Ou te engana o que é aparente

Hoje em dia
Poderá um semelhante pertencer?
Sujeito de tal verbo
Ninguém com alma pode ser
Peças teatrais 23

Movimento sem fim


Não se faz o todo sem o diferente
Ouça o canto do universo
Ou te engana o que é aparente

(ISABEL e GASTÃO se beijam e se abraçam.)


(UBIRATÃ, no canto de cena, atrás de uma palmeira, observara tudo. Melodia
tenebrosa.)

CENA 11

(Juramento da princesa no Senado. Em um cenário belíssimo, na


frente de uma plenária de parlamentares, a princesa se compro-
mete a zelar pelos objetivos da pátria. )
(D. PEDRO II, TERESA, LEOPOLDINA e LUÍSA estão juntos, a
assistir.Vem ABÍLIO, sorrateiro e sombrio, parabenizar soturna-
mente o imperador pelo feito da princesa.)

ISABEL (no púlpito) – Eu estarei convosco, contem comigo! Pela nação!


(TODOS os presentes, menos ABÍLIO, repetem em coro “Pela nação!”.)
ABÍLIO – Imperador... Tem os meus cumprimentos pelo juramento
da princesa. Tenho certeza de que trará bons rendimentos à realeza e
ao governo.

(D. PEDRO acena com respeitabilidade.)

ABÍLIO – É sempre um prazer ter com o monarca. Meus cumprimen-


tos... (faz uma mesura e sai)
D. PEDRO II (virando-se para a esposa e as filhas) – Esse fazendeiro me
dá arrepios.
D. TERESA – E em mim dá calafrios!
ISABEL (chega as suas presenças) – E então?
D. PEDRO II e D. TERESA – Um esplendor! Parabéns, minha filha. Tu
nos enches de orgulho.
24 Felipe Mury

ISABEL (cochichando com LEOPOLDINA) – Papai, quero lhe falar. Um fa-


vor me está a faltar. (LEOPOLDINA se assanha) Queremos sair à cidade!
Queremos ver o que há nas ruas, como vivem os cidadãos.
LUÍSA – Mas, mas... Isso está fora de questão.
D. TERESA – Sim, está fora de questão. É muito perigoso.
LUÍSA – Está fora das prerrogativas das princesas!

(ISABEL olha com dengo para o pai. D. PEDRO II pondera, mexe a cabeça, alisa
o queixo barbado.)

D. PEDRO II – Está bem. Há de ser uma boa experiência para a futu-


ra monarca, já atingiu a maioridade. E para você também, Leopoldina.
Vão com cuidado. Luísa, acompanhe-as e leve alguns guardas. Como
negar algo a você, minha querida?!
D. TERESA – Mas, mas...
LUÍSA – Sim, senhor, imperador.

CENA 12

(MAYARA e ALBERTO andam na cidade, impressionados com a


quantidade de gente e com as quinquilharias.)

ALBERTO – Viu! Eu disse que devíamos fugir... Eu passei por um, pas-
sei por dois e “tibum”, ninguém nos pegou.
MAYARA – Mas a ideia de fugir foi... Ah, deixa pra lá. Esse lugar é
incrível!
ALBERTO – Quanta coisa nessas, nessas...
MAYARA – Lojas! É para quem ganha dinheiro, eles ganham e vão lá e
compram o que querem. E tem o restaurante, aonde se vai e eles te ser-
vem a comida! Tem o tílburi, uma carruagem de um só cavalo e duas ro-
das – daqui a pouco vão inventar uma que anda sozinha, com gasolina...
Tem empregados livres, que trabalham nas casas!
ALBERTO – Tem capanga de farda. Cuidado!
MAYARA – Eles são policiais, estão aqui para proteger a todos, até a
Peças teatrais 25

nós. Aquele é o prédio dos bombeiros, eles jogam água na cidade, se


pegar fogo.
MASCATE – Olhem! São as princesas! Estão a passear pela cidade!
MAYARA – A princesa?!
ALBERTO – Princesa? Onde, onde?
MASCATE – Dobraram a esquina. Perderam-se de vista.
MAYARA – Uma princesa... Seria tão belo ver uma princesa de perto.

(ALBERTO vai se afastando à medida que segue uma baiana com um tabuleiro
de doces e cocadas.)
(Separam-se, momentaneamente, entretidos com as coisas da cidade.) (Tempo)
(UBIRATÃ chega com mais capangas e consegue pegar MAYARA. ALBERTO per-
cebe que se perdeu de MAYARA e começa a buscá-la, vê que os capangas a pega-
ram. Começa a lutar com os capangas para livrar a amada. Consegue pegá-la de
volta. Os capangas restam desnorteados. Os escravos fogem.)
(MAYARA e ALBERTO chegam à porta de uma Igreja. Há uma cruz bem grande
há na frente. Um padre-monge aparece e resolve abrigar o casal.)

CENA 13

(De volta à casa-grande da fazenda de café.)

UBIRATÃ (com o rabo entre as pernas) – Meu lorde... Eu tenho algumas


notícias não tão agradáveis e uma muito boa para lhe contar...
ABÍLIO – Comece pelas amarguras.
UBIRATÃ (limpando o pigarro, com todo o cuidado) – O casal de escravos,
estavam nas minhas mãos, mas... fugiram.
ABÍLIO (furioso) – Como?!
UBIRATÃ – Sim... (fala bem rápido) E também o imperador mandando
trocar escravos por trabalhadores livres, alguns imigrantes! E também,
a princesa já tem um escolhido!
ABÍLIO – Meu Deus, quanta coisa de ruim! Primeiramente... Como
não conseguiste pegá-los?! Esses descerebrados conseguiram fugir! Tu
és um idiota que deixaria uma lesma escapar! Seres inferiores são os
26 Felipe Mury

escravos! São coisas! Eu traria mais um cacho da África, mas os mares


estão patrulhados, os ingleses estão acabando com o meu lucro! E eu
não deixarei nunca haver trabalhadores livres na lavoura! Trata de en-
contrar esses dois paspalhos!
UBIRATÃ – Sim, meu senhor.
ABÍLIO (com vilania) – Quanto à mão da princesa, bem, há de se ter
paciência... Algo pode acontecer a este especial pretendente... E Isabel
precisará de alguém para consolá-la... (Tempo) “Tenho que conversar
com o imperador para manter tudo como está. O desmatamento e a
escravidão só podem continuar... E então, ficar a sós com aquela pom-
binha. Seu dote, sua herança, hei de auferir. Um pacote perfeito vou
arranjar!” (Tempo) Você disse que tinha uma notícia muito boa...
UBIRATÃ – Ah, sim! O senhor fica muito bem de preto!

(Tempestade se forma.)

Música 6 – “Na curva do breu”, canção do vilão ABÍLIO (no grande


estilo dos melhores vilões de contos de fada)

Um mistério do mal vou desenterrar (alisando as sobrancelhas)


Um negócio de ruim estou a tramar
Um rebu
Um ebó
Um feitiço
Um vudu!
No silêncio da noite
Um segredo, eu escondo
O vilão vai agir
Alquimia infernal, um estrondo

O corvo acompanha
O chacal não vai errar
Na tormenta, enxurrada, deslizamento
Na curva do breu não vai escapar!
Peças teatrais 27

A fortuna também há de ajudar


Uma hecatombe, te desespero
É o fim da picada
Alquimia infernal, é o que espero

O corvo acompanha
O chacal não vai errar
Na tormenta, enxurrada, deslizamento
Na curva do breu não vai escapar!

Seus Pobres!

ATO II

(MALANDRO NARRADOR passeia pelo palco, brinca com a plateia. Cortinas


fechadas.)

MALANDRO NARRADOR – “Estão gostando do conto? É baseado em


fatos reais. Muitos fatos ainda estão por vir, alguns deles, fatos fatais!”

(Abrem-se as cortinas.)

CENA 14

(MAYARA e ALBERTO estão na igreja, tomando, cada um, um


pote de sopa.)

MAYARA – Que sorte não nos levarem de volta para a lavoura...


ALBERTO – Foi Deus quem nos ajudou.
MAYARA – Literalmente.
PADRE (chegando) – Aqui eles não os incomodarão. Querem cobertores?

(Ouvem-se barulhos na porta. Passos e vozes furiosas. É UBIRATÃ e os capangas.)

UBIRATÃ – Aqui estão eles! Peguem-nos!


28 Felipe Mury

(UBIRATÃ e ALBERTO travam uma verdadeira batalha. UBIRATÃ fica ferido


no rosto. Enquanto isso, MAYARA se esquiva e luta com outros capangas, batendo
com o pote se sopa na cabeça de alguns deles.(O PADRE se envolve na briga e,
por último, detém um capanga, de maneira a permitir que MAYARA e ALBER-
TO fujam.)

PADRE – Vão! Fujam! Procurem alguém, procurem por Zuleica!


MAYARA e ALBERTO – Zuleica?!

(O PADRE morre com uma facada do capanga.)


(MAYARA e ALBERTO fogem.)

CENA 15

(O casamento.Valsa toca na Catedral do Carmo.)


ABÍLIO (pessoas se afastam, com ojeriza, do escravocrata cafeeiro) – “Não
acredito que a pombinha preferiu aquele magricela para se casar! Estou
aqui contrariado, mas alguma coisa nesta celebração – como influên-
cia, proeminência – hei de ganhar. Meu título nobiliárquico afinal, um
barão enfim vou me tornar!”
UBIRATÃ – O senhor é muito esperto mesmo!
ABÍLIO – “E não é só isso, vou usar minhas armas. Ameaçarei o impe-
rador a parar minha produção e queimar todo o café se a mão de obra
escrava faltar. Imigrantes no Brasil não têm vez, o tráfico negreiro tem
que continuar.”
UBIRATÃ – Uau!

(Sob a mesma valsa.)

LEOPOLDINA (com BRILHANTINA no colo) – “Que dia especial! Está


tudo tão lindo! Quero um igual! Daqui a dois meses serei eu a casar! E
o meu Ludovico irei esposar!”
LUDOVICO – Eu mal posso esperar, meu docinho de banana!
Peças teatrais 29

(D. PEDRO os olha com benevolência.)

D. TERESA – Tenha calma, minha filha. Tudo a seu tempo. Vou ver
como está tua irmã.

(D.TERESA adentra a sacristia da Igreja do Carmo, onde o casamento será ce-


lebrado.)

D. TERESA – Minha filha, estás... (finalizaria com “bem?”) Linda! (ao


olhar a resplandecência de Isabel)
ISABEL – Mamãe, há de dar tudo certo, não é?
D. TERESA – Há de dar tudo certo, minha filha. Serás muito feliz!

(D. PEDRO II entra na sacristia.)

D. PEDRO II – Minha filha, estás... (finalizaria com “bem?”) Linda! (Ao


olhar a resplandecência de Isabel.) Vamos, sairemos pelos fundos da cate-
dral, e entraremos pela porta principal, marchando pela nave, até o al-
tar! (Ainda abobalhado pela beleza da princesa.)
ISABEL – Sim, papai. Vamos, então.

(Do lado de fora, ISABEL e os imperadores cruzam com o casal de escravos que
busca sua liberdade.)

ALBERTO – É uma divindade!


MAYARA – Meu Deus, como é bonita! Parece uma princesa!
ALBERTO – Uma princesa?! Vamos então saudá-la!
MAYARA – Não sejas bobo, a princesa não estaria andando a esta hora
na rua, como uma plebeia. E mais, parece que há algo de extraordiná-
rio a acontecer nesse momento na cidade. Temos que esperar.

(No altar, o arcebispo da Bahia celebra a união.)


30 Felipe Mury

PADRE (com algum sotaque baiano, ou malemolência) – Luís Filipe Maria


Fernando Gastão de Orléans, conde d’Eu, aceitas, de bom grado e com
o dom do coração, a princesa do Brasil, como esposa?
GASTÃO – Sim, com muito amor!
PADRE – Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela
Gonzaga de Bragança e Bourbon, princesa do Brasil, aceitas, de bom
grado e com o dom do coração, o conde, como seu esposo?
ISABEL – Sim, com muito amor!
PADRE – Eu os consagro, marido e mulher, príncipe e princesa! (Os
noivos se beijam.) Que toquem a valsa!
(Ouvem-se os sinos. Um belo número, onde a nobreza presente dança, a caráter
e nos moldes das grandes celebrações nos castelos europeus, uma valsa ensaiada.
Muito brilho, muito luxo, muita beleza.)

CENA 16

(Já sozinhos, em outro momento.)

ISABEL – Estou muito feliz de ter-me casado contigo, querido.


GASTÃO – Eu mais por ter juntado meu destino ao teu. Querida...
ISABEL – Devemos comemorar mais ainda nossas núpcias.
GASTÃO – Sim!
ISABEL – Quero um livro, uma música pelo nosso casamento!
GASTÃO – Isso é que é pedir!
ISABEL – Não, não, sobre meu casamento seria muita pretensão. Que
seja sobre algo transcendental, como a Arte, a Ciência, o mundo natural.
GASTÃO – Hum... Que seja feita a vossa vontade!

(Cenário se transforma em um bar, como um cabaré.)

Música 7 – “Música dos artistas”, Machado de Assis com Castro Al-


ves cantam (“Poetas”) – Artes, Política e Acontecimentos importantes
(1876) – (alegria e galhofa) – (pop-rock)
Peças teatrais 31

MACHADO – Parabéns à princesa.


CASTRO – Parabéns ao Gastão.
MACHADO – Paragrafozinho, paragrafozão
CASTRO – Verso pequeno, verso grandão
MACHADO – A pena caminha...
CASTRO – ...com a celulose, lucrar um montão.
MACHADO – Romanceando o que lhe é feio constrói-se o que lhe apraz.
Acontece no mundo, acontece na ficção.
É tarefa do artista encantar ao se pôr em cartaz.
Na virada do século um tanto de coisas prende a atenção.
CASTRO – Disseram que Julio Verne chegou ao centro da Terra.
Graham Bell espantou, com uma caixa falante, o imperador.
Assim andam as coisas, a gente imagina, depois realiza.
Um gesto de amor tira a gente da dor.
MACHADO – Tivemos no Rio, Charles Darwin,
O poeta da seleção e evolução
CASTRO – Em outras terras o impressionismo,
Claude Monet é a primeira alusão.

Artistas, cientista, e até o dentista


Inspiração e trabalho trarão, com certeza
Por mais um minuto, pela eternidade,
Para nossa alegria, mais um pouquinho a esperada beleza.

MALANDRO – Richard Wagner, Louis Pasteur, Frederic Mistral.


Não são uns e outros.
Merecem honraria, merecem a glória total.
Na música, ciência ou literatura nos entregam seus dons.
Essa cidade exala invenção.
É nossa paixão.
Vem do coração.
Desse jeito que é bom.
Gritei, chorei
Mas foi à sabedoria, a que vem dos gregos
32 Felipe Mury

A que me entreguei
Agora o brinde, põe aqui mais dois dedos
Vem aí o malandro (desfila o trovador-narrador)
Sem um tostão
Mais na beca que do que ando
É um bon-vivant.

Artistas, cientista, e até o dentista


Inspiração e trabalho trarão, com certeza
Por mais um minuto, pela eternidade,
Para nossa alegria, mais um pouquinho a etérea beleza.

MACHADO – Meu caro amigo Castro...


CASTRO – Meu caro amigo Machado...
MACHADO – As coisas estão feias, fora da cidade.
CASTRO – Salve, aqueles ditos proscritos! Salve, aquele que a salvação
nos trouxer!

CENA 17

(MAYARA e ALBERTO chegam a um quilombo. Começam a pro-


curar pela tal ZULEICA. Dizem quem estão procurando a um fu-
gido e são levados a um lugar separado, com a presença de uma
velha dama gorda e atarracada.)

ALBERTO – Zuleica, Zuleica!


MAYARA – Precisamos falar com você.
ALBERTO – Uma coisa terrível...
ZULEICA – Coisa terrível? Hoje não tem espaço para coisas terríveis.
MAYARA – Mas...
ZULEICA – Hoje é dia de festa!

(Começam a entrar os capoeiras, dançarinos, festeiros.)


Peças teatrais 33

Música 8 – “Jazz da Zuleica” , canção que o quilombo e aqueles pró-


ximos dançam, cantada pela curandeira mística e roliça. (um jazz bem
agitado)

Festaaa...
Festaaa...
Um tico-tico aqui,
Um tico-tico lá
A verdadeira magia vem do que é popular!
É a dança que te faz feliz! (capoeiras dançando)
E a música te tira do chão
Vale a pena cruzar o país
Com um berimbau na mão

Vai sorrir, vai sentir


É a mágica, do seio do clã
Pela farra, pelo movimento
Faz meu corpo voar, sou seu fã!

Vem do choro, do axé, do samba


Tudo aquilo que lhe faz o bem
Se obedece o compasso e o ritmo
Pode crer, não tem pra ninguém
É o canto do uirapuru!
Só a fonte escondida do êxtase
Leva a gente a envergar como o bambu (faz uma pose bem difícil de ioga)
Vai sorrir, vai sentir
É a mágica, do seio do clã
Pela farra, pelo movimento
Faz meu corpo voar, sou seu fã!

MAYARA – Zuleica, Zuleica!


ALBERTO – Precisamos lhe falar
34 Felipe Mury

ZULEICA – Digam, meus queridos, digam à Zuleica o que há de errado?


MAYARA – Ubiratã! Ubiratã está atrás de nós e descobriu nosso es-
conderijo.
ALBERTO – Está a mando de Abílio!
ZULEICA – Abílio?! (com espanto)
MAYARA e ALBERTO – Sim!
ZULEICA – Vocês precisam de proteção. Mas nem aqui no quilombo é
seguro. Como poderei ajudá-los?

(MAYARA e ALBERTO balbuciam entre si.)

ZULEICA (interrompendo os dois e evocando uma fumaça mágica, na qual é


possível ver as coisas – cantando) – “Vem a névoa da terra mostrar o ca-
minho, selar o destino!”

(Aparecem na névoa MAYARA e ALBERTO fugindo, ABÍLIO possuído dando or-


dem a Ubiratã e, por fim, a figura de uma coroa.)

ZULEICA – As coisas não estão boas... A ganância de Abílio mais uma


vez ameaça a trajetória de quem é bom. Só uma coisa adiantará. Só um
remédio há de funcionar.
MAYARA e ALBERTO – O quê? Qual?
ZULEICA – Para enfrentar os desígnios do mal, tudo aquilo que é pér-
fido e de má intenção, só aquele que o bem encarnar, só quem mesmo
de integridade exuberar. Alguém puro de coração. A intersecção!

(MAYARA e ALBERTO se olham sem entender.)

ZULEICA – Tem que vir o império do bem, derrotar a frieza do vil. As


forças do malfeitor vão aumentar... A menos que... (Mayara e Alberto se
atiçam) A menos que...
MAYARA – A princesa!

(ALBERTO olha sem entender.)


Peças teatrais 35

MAYARA – É isso! A princesa deve nos proteger. Só quem estiver aci-


ma de toda a maldade, exemplo de pureza de coração, poderá derrotar
de vez aquele que sofrimento nos inflige.
ZULEICA – Exatamente, minha filha.
ALBERTO – E como vamos chegar até a realeza?
MAYARA – Talvez a realeza chegue até nós.
ZULEICA – Até os monarcas já sentem a nossa dor.
MAYARA – Precisamos falar com o padre!
ALBERTO – Precisamos ir aos tribunais!
ZULEICA – Precisamos de ajuda dos céus e da Terra, a solução há de
chegar!
MAYARA – Vamos, vamos! Não temos tempo a perder.
ALBERTO – Essa é minha florzinha! Vamos. (Mayara e Alberto se vão.)
ZULEICA – Tenham cuidado! (Tempo) Essa princesa é uma pessoa muito
boa e precisa de ajuda. (Joga os búzios para o alto e uma fumaça mágica sobe.)

1864-1870, GUERRA DO PARAGUAI

CENA 18

(Estão ISABEL e GASTÃO no Palácio.)

Música 9 – Paródia de “There’s a hole in the bucket”

(ISABEL e GASTÃO cantarolam.)

ISABEL – “Esposo, Esposo! Não deveria haver guerra, sem guerra,


meu esposo, meu esposo...”
GASTÃO – “Mas tem um ditador no poder, no poder, minha esposa,
minha esposa...”
ISABEL – “Por que há de impor sofrimento aos países vizinhos, meu
esposo, aos vizinhos...”
GASTÃO – “Porque não há jeito, esposa, esposa, não há jeito.”
ISABEL – “Mas os povos devem se unir, se unir, meu esposo...”
36 Felipe Mury

GASTÃO – “Para isso lutamos, minha esposa, lutamos...”


ISABEL – “Que não peguemos em armas, meu esposo, em armas...”
GASTÃO – “Só em legítima defesa, defesa, minha esposa, minha esposa...”
ISABEL – “Mas algo deve resolver essa situação, meu esposo...”
GASTÃO – “Para isso a guerra, a guerra, minha esposa, minha esposa...”
ISABEL (fala) – Urgh!
GASTÃO – “Isabel, são muitos os perigos que enfrentamos; há a guer-
ra, a ganância dos senhores de terra, os republicanos!”
ISABEL – “É tão difícil se despedir. Te deixar de espingarda partir.”
GASTÃO – “Fique certa de que voltarei. As riquezas da pátria defen-
derei. Os camaradas comandarei com rigor e a vitória no campo che-
gará com ardor.” Serei um voluntário da pátria!

Música 9 – “Canção da Guerra”, canção de Gastão na guerra – (ba-


lada com ar de aventura, mas com tons que mostrem o assombro de tal luta) –
Participam dessa música Alfredo, o Visconde de Taunay, e D. Pedro II,
que também serviram na guerra. – “Bacamarte”

Nos rincões da América do Sul


A Bacia Platina de testemunha
Nas estâncias do Pantanal
Sangue humano há de coagular
Em aliança,
Argentina, Brasil e Uruguai
Sob a mira do ódio e da fúria
Perecendo estará o Paraguai
Nas trincheiras cada praça
Faz sua parte.
Quando de fronte com o inimigo,
Vai soar o meu bacamarte.
Mas agora, em confidência
Vou dizer, tem que a guerra acabar
Assim me testam a paciência
Para minha princesa hei de voltar
Peças teatrais 37

CENA 19

(Na face da Lua, através da janela longilínea, ABÍLIO vê todos os


acontecimentos relevantes que se sucederam com a princesa e GAS-
TÃO até o momento, como em um feitiço de magia negra.)

ABÍLIO – Posso ter perdido a pombinha... E também não morreu na


guerra Gastão, o esposo fiel. E também, algumas outras batalhas talvez
tenha eu perdido... Mas não é o fim. Uma conspiração tem lugar. Te-
nho tentáculos em todas as instâncias desse Estado. Logo logo, o impe-
rador vai perder seu posto, mais escravos comprarei. Meu ardil, meu
fel hão de triunfar!

(UBIRATÃ abaixa a cabeça e demonstra preocupação com o excesso de maldade.)


(MAYARA e UBIRATÃ estão a tentar entrar no Paço, para, de qualquer forma,
falar com a princesa.)

MAYARA – Vamos, tenha cuidado. O Paço é logo ali.


ALBERTO – Será que vamos ser ouvidos? Eles podem nos escorraçar...
MAYARA – Uma hora conseguiremos. Tenha fé, devemos tentar.

ATO III

MALANDRO NARRADOR – “Quatro filhos, herdeiros, a princesa e


príncipe hão de ter. A primeira, Luisinha, pobrezinha, não resistiu. Mas,
quanto aos demais, Pedrinho de Alcântara, Luisinho e Antoninho, carre-
garam consigo a tradição; dos Orleans e Bragança triunfou o brasão. E
a história do bem e do mal, essa por vezes vai e por vezes vem; Isabel o
vilão enfrentou, vai saber se o detém também!”

CENA 20

(Música egípcia. Com as efígies e pirâmides atrás, por ocasião de


sua visita ao Egito, D. PEDRO II escreve um carta para ISABEL.
Ele a lê enquanto escreve. O público ouve.)
38 Felipe Mury

D. PEDRO II – Querida Isabel, faço votos de que esteja cuidando de


tudo enquanto estou fora. Minha viagem está sendo interessante, já fiz
contato com alguns autóctones que me deram muitas informações so-
bre o Egito antigo. Anseio pela próxima viagem! Tenha cuidado com as
intrigas e maledicências do império. Um enorme beijo em sua testa.
D. Pedro II.

1888, ASSINATURA DA LEI ÁUREA.

CENA 21

(ISABEL já tem seus filhos. LUÍS com 13, PEDRINHO com 10, e
ANTÔNIO com 7 anos. ISABEL lê a carta do pai.)

ISABEL – Como papai faz falta...


GASTÃO – Mas você está se saindo muito bem como regente.
LUDOVICO – Tem minha integral aprovação!
LEOPOLDINA – Minha completa admiração!

(Uma ventania terrível entra batendo as portas e toma o Palácio. Entra histrio-
nicamente ABÍLIO com os seus capatazes.TODOS se arrepiam.)

ABÍLIO (mórbida e assustadoramente) – Olá... Creio que os senhores es-


tão com algo que me pertence!

(Os capangas de ABÍLIO começam a vasculhar o Paço.)

ISABEL – O que está acontecendo aqui?!


ABÍLIO – Ilustríssima regente, devo vos falar... Denúncias recebi. Al-
guns ratos, digo, escravos, no Palácio parecem se instalar... Como são
de minha propriedade, sinto-me no direito de por eles procurar.
ISABEL – Mas o senhor...
Peças teatrais 39

(GASTÃO está ao lado da esposa.)


(UBIRATÃ aparece com MAYARA e ALBERTO sendo segurados por outros dois
capangas.)

ABÍLIO – Aí estão! A prova do malfeito. Se tivesse um pouco mais de ve-


neno na língua, diria, princesa, que estáveis a dar abrigo a estes fugidos...
MAYARA – Princesa, precisamos vos falar!
ABÍLIO – Cala a boca, insolente! Não és digna de com a realeza se co-
municar!

(ISABEL se aproxima de MAYARA.)

ABÍLIO – Princesa, não vos aproximeis. Alguma doença podeis pegar!


ISABEL – Calado! (tempo) Minha querida, algo te aflige? Tens a palavra.

MAYARA – É uma honra, eu digo... Preparada não fui para belamente


falar. Mas a dor do meu sentimento vai achar a medida para se expressar.
Eu... E ele... E mais alguns milhões... Represento aqui o interesse do
povo do seu país! Precisamos e queremos ser libertados.
(Um breve silêncio. Melodia soa.Todos se olham, alguns passam a fazer comen-
tários. ABÍLIO se enfurece em seu canto, grunhe.)

ISABEL (proclamando) – Eu decreto que estes dois não são mais escra-
vos de ninguém! (acariciando o rosto de MAYARA – cantando) “Meu bem,
estás livre. Tens agora aquilo com que sonhaste! Tua vida pertence a ti.
Vais viver teu grande amor!” De hoje em diante, marquem a data, nin-
guém será feito escravo neste império!
ABÍLIO – Mas... Vais botar o trono a perder!

(GASTÃO se põe na frente de ABÍLIO.)


(ISABEL se pronuncia em cena e se prepara para declamar, cantar, sua opinião.)

Música 10 – “Igualdade” – Ode de Isabel contra a exploração do


homem pelo homem e ao amor (melódica, um lamento com esperança)
40 Felipe Mury

Diante da latente insensatez


Me pergunto o que mais vale
O tom da tez
Ou a pessoa, seu caráter?
Não reconhecem o que é humano
Sem a fidalga rouparia
Devo confessar
“Se mil tronos eu tivesse, mil tronos eu daria.”

É hora
Menina
Se o Sol brilha sempre igual
Igualdade vai reinar
É hora agora

Menina
Se o Sol brilha sempre igual
Igualdade vai reinar

(ISABEL segura uma pena dourada e assina, em letra, também de ouro, a Lei.
[tempo] Aplausos dos presentes.)

ABÍLIO – Não! Não pode ser! E meus rendimentos? Vocês me devem


ao menos uma indenização!
ALBERTO e MAYARA – Quem deveria ser indenizado somos nós!
GASTÃO – Como disse a Águia de Haia, “a grande transformação
aproxima-se do seu termo”, o Estado tem de zelar por estes novos ci-
dadãos, a partir de hoje! [4]

(LUDOVICO e LEOPOLDINA estão com as crianças, que repudiam cada uma de


uma vez a presença do canastrão.)

LUÍS – Vá embora!
4
  Fala real de Rui Barbosa sobre o fim da escravidão. Trecho do discurso “Aos abolicionistas baianos”,
em Obras completas de Rui Barbosa. v. 15, t. 1, 1888, p. 140.
Peças teatrais 41

PEDRINHO – Sai daqui!


ANTÔNIO – Mané!
(BRILHANTINA late.)
ABÍLIO – Monstrinhos...
GASTÃO – Ouviste as crianças. Põe-te daqui para fora!

(ABÍLIO vai andando de costas, como se fosse sair, mas tira um punhal do bolso
do paletó e se lança na direção de MAYARA, com o fim de matá-la.)
(ISABEL, rapidamente, empurra MAYARA e se coloca em seu lugar. ABÍLIO com
o punhal levantado para rente a princesa.)

LUDOVICO – Atentado! Ele atentou contra a princesa! Prendam-no!


GASTÃO – Prendam-no!

(Chegam o imperador e a imperatriz em plena regalia: ele com a mais bela co-
roa, manto e o cetro, e ela com uma fabulosa coroa e impressionante vestido.
Holofotes.)

D. PEDRO II (com toda a força e austeridade do monarca) – Prendam-no!


Que lhe caiba a prisão perpétua!

(Os GUARDAS do Paço, mais os parlamentares de casaca, cercam e levam ABÍLIO


arrastado.)

ABÍLIO – Mas eu, mas eu... (sai)


ISABEL – Papai!

(D.TERESA traz consigo a coroa que cabe a ISABEL e, com todo o sentimento,
a coloca em sua filha.TODOS se ajoelham ao seu redor.)

D. TERESA – A redenção.

1889, PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA


42 Felipe Mury

CENA 22

(Baile na Ilha Fiscal. A banda toca trecho da música tema da


ópera O Guarani, de Carlos Gomes. Estão presentes TODOS.)

LEOPOLDINA – Esse é...


LUDOVICO – ... o tema de grande ópera brasileira que estreou no
Teatro Scala, baseada no romance de um grande escritor nacional: em
cartaz o amor do índio Peri pela donzela Ceci!
LEOPOLDINA – Muito bem... Aprendeu muito bem. (morre de amores)

(No centro do baile.)

D. PEDRO II – Até certo ponto, me arrependo: fizemos muito pouco


acabar com a escravidão mais cedo.
D. TERESA – O importante é que está feito, os dias de tristeza acaba-
ram. Animem-se!

(ISABEL e GASTÃO conversam.)

ISABEL – Estou preocupada com o futuro da monarquia.


GASTÃO – Seja como for, nosso amor é infinito.

(ISABEL e GASTÃO se abraçam.)


(Usando uma capa negra, com capuz, se esquivando da multidão, está o vilão e
seu capanga, com a Lua enorme atrás.)

ABÍLIO – Os monarquistas estão fora do poder! Os militares procla-


marão a República, o Duque de Caxias e o Marechal Deodoro os trai-
rão! O imperador está fora! Ele e sua família hão de viver no exílio!
Na prisão não puderam me reter, com o juiz uma boa relação calhei
de manter. Quanto ao resto, não podem fazer nada contra mim, tudo
o que eu fiz contra os escravos foi dentro da lei! Vocês foram meus
cúmplices! Isso não acabou! Ha-ha-ha! (ouve-se o grito ecoar)
Peças teatrais 43

D. PEDRO II – Teresa, viste Isabel?


D. TERESA – Não, ela deveria estar aqui.

(Chegam LEOPOLDINA, LUDOVICO e GASTÃO.)

D. TERESA – Algum de vocês viu Isabel?


LEOPOLDINA – Não.
LUDOVICO – Não.
GASTÃO – No último instante, não.

(ISABEL sobe com cuidado as escadas da torre do castelo da Ilha Fiscal. Não
sabe, mas é seguida por ABÍLIO. Na sacada da torre, se debruça e canta.)

ISABEL – “Minha terra, nunca hei de te deixar. Se me ausento, no pei-


to te vou carregar.”
ABÍLIO – Arrá! (com uma arma de fogo) Nossas contas vamos acertar,
afinal. É seu fim, princesa. Pule!

(A princesa se vê encurralada, dá dois passos para trás. É quando chega GASTÃO e


surpreende ABÍLIO. Eles travam uma luta e, em certo momento, a arma é apontada
para cima, segurada pelos braços de ambos os oponentes, e um disparo tem lugar. A
arma foge das mãos de ambos e cai da sacada da torre.)

ISABEL – Ajuda! Ajuda!


ABÍLIO – Ubiratã, me defenda, faça alguma coisa!
UBIRATÃ (lá de baixo, chega a pegar a pistola, mas olha para ela com espírito
inédito...) – Eu sou livre agora... (grita para os outros capangas) Estamos
livres agora!

(Os dois homens continuam a se digladiar e, de repente, ABÍLIO está a impren-


sar GASTÃO contra a sacada. Tudo leva a crer que GASTÃO cairá. GASTÃO
se desvencilha empurrando com o pé ABÍLIO, que recua. É o recuo necessário
para tomar velocidade e investir contra GASTÃO novamente. É quando, usando
a própria velocidade e força do oponente, GASTÃO o joga da sacada da torre.
O corpo cai na baía de Guanabara. Uma névoa nefasta é levantada. Nunca se
44 Felipe Mury

soube o paradeiro do vilão. Dizem que perdeu a memória, passou a ser pedinte,
como na baía não há tubarão.)

(ISABEL e GASTÃO se abraçam. A beleza retoma a cena. Os dois descem e en-


contram todo o baile a sua espera. As crianças, LUDOVICO, LEOPOLDINA, D.
TERESA e D. PEDRO vêm ter com a princesa e o príncipe.)

CENA 23

(No palácio, a família real se prepara para ir para a Europa. Es-


tão perfilados guardas do Palácio, empregados, nobres, LUÍSA,
MAYARA e ALBERTO, ZULEICA, MACHADO e CASTRO, milita-
res, a fim de conduzir e de se despedir da realeza.)

D. TERESA – Não fiques sisudo, meu barbudo.


D. PEDRO II – Quem, eu?
ISABEL – Espero que o golpe traga algo de bom, no final, para os que
ficam.
GASTÃO – É o que todos esperamos.
D. PEDRO II – O bem-estar de todos é mais importante que o exercí-
cio cego do poder. Deixe ser...

Música 11 – “No começo do final” – Canção final – cantor over (fora


do elenco) – (rapsódia)

Deixe ser
Deixe estar
Alguma paz
Para poder recomeçar
Juntos em Paris
Da mocidade, vou sentir saudades
Foi por um triz
Porém a boa magia continua na cidade
Peças teatrais 45

Levo e deixo
Muito daquilo que importou
No começo do final
A felicidade não cessou

Juntos em Paris
Milhões de súditos,
Estão alguns tupiniquins
Deixa ser, deixa estar

Levo e deixo
Muito daquilo que importou
No começo do final
A felicidade não cessou

MALANDRO NARRADOR – “Nunca se soube o paradeiro do vilão.


Dizem que perdeu a memória, passou a ser pedinte, como na baía não
há tubarão. Foi assim a história, de triste, teve um fim, um final feliz.
O destino de todo um povo a esperança do inteiro país. Muito luxo de
nada adianta; se não tens a beleza do coração; a vitória pode vir sem
sangue; quando a pena, de alguém puro, recorre à mão.”

Levo e deixo
Muito daquilo que importou
No começo do final
A felicidade não cessou.

(Música para a saída da plateia.)


Assembleia
Geral
PERSONAGENS

REIN
RAÍNA
DEPUTADO DA FRANÇA
DEPUTADO DA ALEMANHA
DEPUTADO DA GRÉCIA
DEPUTADO DA INGLATERRA
DEPUTADA DA ESPANHA
DEPUTADO DA TCHÉQUIA
DEPUTADA DA HUNGRIA
MENDIGO, BLACK-BLOCK, SEGURANÇA, PRESIDENTE DA
UGANDA – feitos pelo mesmo ator
PRESIDENTE DA YAKUTIA, PRESIDENTE DOS ESTADOS
UNIDOS, NEONAZISTA – feitos pelo mesmo ator
50 Felipe Mury

ATO I

(Trombetas)

REIN – Eu, Frederico Gaspar Antônio Horácio Augusto Cristino João


Estêvão Luís de Orleans de Bragança de Avis Aragão Bourbon Orange
Habsburgo de Saxe-Coburgo-Gota Mecklemburgo-Schwerin Udekem
D’Acoz Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg Tudor Windsor,
prometo honrar os interesses da pátria euronpeia, guardar a igualdade
entre os indivíduos, as liberdades, a saúde e todos os direitos adquiri-
dos pelo povo até o presente momento, defender o território, manter
boas relações com outras nações, proteger a família, a propriedade e a
constituição.

(Discursos)

DEPUTADO DA FRANÇA – Caros compatriotas, tem alguém fazen-


do um ebó pra colocar nossas contas no buraco. A cotação de nossa
moeda única está uó. O câmbio flutuante não tem sido a solução, tam-
pouco a entrada de mais e mais empresas públicas no mercado finan-
ceiro, as ações destas só têm caído e fundos de pensão e investimento
parecem não ser mais boas aplicações para o dinheiro do especulador.
É sabido que a previdência está arrombada e que nossa população anciã
não dá conta do trampo, de forma que as pensões deverão ser suspen-
sas. Como a Winona está solta nas empresas públicas e o risco Euro-
pa tem crescido vertiginosamente, seremos obrigados a arrochar sa-
lários, enxugar os gastos e criar alguns novos impostos, aumentando
um pouco a alíquota dos já existentes. Nosso Banco Central está em
frangalhos. Obras públicas atrasadas deverão ser interrompidas, já que
as empreiteiras não estão dando conta de terminá-las e que não temos
mão de obra disponível. Achamos isso um verdadeiro absurdo, mas o
financiamento privado das campanhas políticas deverá ser suspenso.
Faço votos de que possamos melhorar e que algum milagre aconteça.
Sem mais, despeço-me.
Peças teatrais 51

TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.


DEPUTADO DA ALEMANHA – Caríssimos! Todos sabem que esta-
mos no meio de uma crise hídrica, que há muito não chove e os reser-
vatórios das poucas hidrelétricas que temos estão vazios. Sabemos que
o investimento em fontes renováveis como a eólica, a solar, a das on-
das, ou a da biomassa cessou devido à crise econômica. Sabemos que a
energia nuclear, altamente valorizada por nós nas últimas décadas, tem
se mostrado um elefante branco no que se refere à destinação dos re-
síduos de urânio e plutônio enriquecidos: os países pobres que outrora
recebiam nosso lixo já se recusam a nos servir. O carvão mineral russo
está muitíssimo caro; o ferro, o manganês, a bauxita e outros minérios
estão cada vez mais difíceis de encontrar no mercado internacional.
Quanto ao transporte, nossos rios estão cada vez mais poluídos e ra-
sos; o Reno, o Loire, o Ruhr, o Rhone, o Danúbio, o Volga, o Dinieper,
o Diniester, o Tejo, o Pó, o Tâmisa, o Elba, o Vístula, o Guadalquivir,
o Ebro, o Sena, estão coalhados de navios que não conseguem des-
carregar e sequer aportar. Os portos de Hamburgo e Roterdã, nossas
maiores conexões com o mundo exterior, estão em processo de asso-
reamento. Nossos aeroportos, apesar de grandes e numerosos, sofrem
com os altos preços do combustível. Nossas ferrovias, outrora orgulho
europeu, hoje estão sucateadas e os trens não servem. Como ainda não
foi inventado o teletransporte, faz-se imperativo que minimizemos os
impactos tanto dos transportes cagadíssimos que temos hoje. Assim,
reafirmando a importância de se sublinhar aquilo que realmente se
destaca na eminência do que seja relevante, desejo ao rein um bom rei-
nado e a nós uma boa vida.
TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Jovens! A conjuntura ambiental não po-
dia ser pior. Os solos estão contaminados por chumbo, esgoto, lixo in-
dustrial; as geleiras da Groelândia, Islândia e as neves da Sibéria estão
a derreter; a vida selvagem, tanto a terrestre como a marinha, já não
existe em nossas terras; ondas de calor cada vez mais frequentes matam
idosos e bebês; até os vulcões, que independem do fenômeno climáti-
co, têm invadido as cidades com cinzas e detritos. Nossas bacias hidro-
52 Felipe Mury

gráficas e portos estão cheios de titica humana. Os Alpes, os Cárpatos,


os Pirineus, os montes Escandinavos, os Urais têm derretido, além de
apresentar atividade sísmica fora do comum. O pisco-de-peito-ruivo,
pássaro que poderia ser símbolo do Velho Continente, não pode mais
ser encontrado como antes, restringindo-se a zoológicos; minha filha,
que teve sete desses passarinhos, adorava passarinhos, os viu perecer
e perecer devido a sua pouca tolerância ao calor. Eu que adoro um ho-
mard, não consigo mais achar, porque eles estão escassos em nossos
mares, a piscosidade só cai. Meio ambiente deveria ser sim uma priori-
dade e deveríamos ensinar a nossos infantes a cuidar desde cedo, nossas
torneiras estão secas porque não tivemos parcimônia. Não vai dar mais
para esbanjar. A chuva ácida tem sido um revés em Londres, por exem-
plo. Outro turning point é o problema do abastecimento alimentício, os
fertilizantes e agrotóxicos não surtem mais efeito e os transgênicos es-
barram na questão cultural e no medo das pessoas em adquirir doenças
com o seu consumo, e na diminuição dos pequenos produtores.
TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Euronpeus e euronpeias! Não te-
mos do que nos vangloriar por nosso Exército, Marinha e Aeronáutica,
estamos em guerra, em intervenção armada em alguns países, geren-
ciando outros falidos, temos navios e bases aéreas em diversas partes
do mundo, mas não damos mais conta de tantos conflitos que apare-
cem para ser solucionados por nossas forças. Trata-se da exaustão de
nosso contingente, de forma que um estado de patrulhamento nocivo
a nós mesmos se instaurou. Já há algumas décadas que tentamos sair
do Afeganistão e do Iraque e não conseguimos, parecemos estar em
um poço sem fundo, que só nos atola em mais e mais lama. Sangue
euronpeu jorra todos os dias. O homossexualismo parece ter corrom-
pido nossos quartéis e soldados maricas não param de sair do armário
pedindo igualdade para se casarem. Um vexame, uma vergonha. Não
tem como proibir isso, eu mesmo, de vez em quando... Mas daí a que-
rer oficializar a putaria, casar... A ameaça do terrorismo é uma reali-
dade, ano passado tivemos nove aviões sequestrados por organizações
terroristas. Não sabemos como combater esse inimigo. É um fantasma
Peças teatrais 53

que nos assola, perseguimos suspeitos por todo o globo e gastamos mi-
lhões em prevenção, mas não parece ser suficiente. Tivemos essa sema-
na o chefe do Estado Islâmico divulgando um vídeo onde afirma que
haverá um ataque em solo euronpeu e estadunidense, mas não conse-
guimos rastrear os responsáveis. Estamos cansados de carnificina, mas
não conhecemos outro modo de resolver nossos impasses. Com a zona
Schengen e o fim das fronteiras dentro do reino, ficou mais dificulto-
so o patrulhamento e o controle do trânsito de pessoas e cargas, em
especial as ilegais: o número de malotes de cocaína, maconha e haxixe
apreendidos tem se multiplicado e cremos que há muito mais todas as
semanas que escorre pela peneira da fiscalização. Droga é bom? É...
Mas nossa juventude está condenada ao vício. Não temos perspectiva
de mudança. Infelizmente, trago más notícias, mas espero que possa-
mos reviver algum dia nossos dias de glória.
TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Vai lá, arrasa, bee!
DEPUTADA DA ESPANHA – Meus queridos! Vivemos tempos de
mudanças nos costumes e nas interpretações e conceitos de justiça.
Está para nascer questão mais controversa que a do aborto, e falando
em nascer, reconhecemos o direito do nascituro, a partir da concep-
ção, como pessoa física. É claro que em situações como o estupro, ou
a anencefalia, temos exceções; contudo, não podemos permitir que
haja a violação da gestação, simplesmente porque não, por mais que
a mulher se ache dona de seu próprio corpo, o que não é. A proprie-
dade continua sendo a base de nosso sistema jurídico, o patrimônio é
intocável e a sua usurpação vedada. Outro ponto sensível é a noção de
família, que vem sofrendo sérios ataques. Casamento continua sendo
a união de macho e fêmea para fins de procriação, por mais que plúri-
mas formas de sacanagem sejam admitidas. Imagina se dois veados pu-
dessem casar, que zona que seria... E também não podem adotar, pois
não podem criar filhos descentemente. Também, quanto a inseminação
artificial e barriga de aluguel, temos que é permitida tão somente se
fizermos o controle de qualidade, devendo os embriões ser seleciona-
dos de forma que só nasçam loiros ou ruivos com olhos verdes, azuis
54 Felipe Mury

ou cor de mel. O trabalho, que ainda é necessário, uma merda, mas


necessário, fica protegido por leis especiais; a jornada é de 45 horas
semanais, com férias não remuneradas; o salário mínimo, quinhentos
euros e vinte centavos; há pagamento de horas-extras, não há décimo-
-terceiro, fundo de garantia ou seguro-desemprego, pois temos que
desonerar as empresas e o Estado, e pode baixar a porrada, descer o ca-
cete, nos sindicatos. Para os crimes contra a vida e crimes contra o pa-
trimônio, lançamos um projeto de lei que estabelece a pena de morte,
a prisão perpétua, tortura em casos específicos, porque só desse jeito
mesmo. A censura, que já não vemos há muito tempo, será novamente
uma ferramenta de melhoria do conteúdo dos veículos de comunica-
ção, não se podendo arguir perseguição política. Ah, gente, é isso.
TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Amorecos! Nossa rede de comunica-
ções ainda nos serve bem, mas temos alguns probleminhas. O sistema
de rádio, que as pessoas nem usam mais, está degradado e não vemos
mais serventia para esse veículo. A TV, veículo magnânimo entre nós,
sofre com a publicidade excessiva, as produções de baixa qualidade
dramatúrgica e com o recurso ao baixo calão. Acho que melhoramos
bastante ao proibir que os noticiários informem notícias ruins, para
não alarmar o público. O cinema, grande meio de encantamento e fas-
cínio, continua em alta; temos grandes artistas na área, é o que nos ga-
rante influência e soberania em relação aos demais países do mundo, de
maneira que transmitimos valores e ideias para nossos interlocutores,
além de ser uma indústria que movimenta bilhões todo ano e de emba-
lar gerações dando cultura e formação a nossos citoyens. O único porém
é o preço dos ingressos, que está proibitivo, especialmente depois que
abolimos a meia-entrada. A internet, bombante, já responde por mais
de quarenta por cento do mercado de audiovisual, compras etc. O tea-
tro já era, né? Já deu ficar sentado duas horas ouvindo um blá-blá-blá,
Não importa se é Brecht, Ionesco, whatever... A telefonia também e os
jornais impressos foram extintos há duas décadas. Temos de volta a fi-
gura da censura, pois é necessário controlar o conteúdo, visto que há
hoje muitos grupos sem-noção que querem desestabilizar o governo e
Peças teatrais 55

isso não pode. O ensino fundamental, médio, universidade, pós-gra-


duação estão na merda, mas nós ainda temos um dos melhores siste-
mas do mundo, isso deve servir de consolo. Tem essa coisa do bullying
também, mas isso é besteira: eu tenho um sobrinho que era chamado
de veadinho no parquinho e nem por isso ele ficou traumatizado. Mas
veado ele é mesmo. A remuneração e a qualificação dos professores é
outro assunto importante, mas não vai dar pra gastar dinheiro com isso
agora não. Enfim, gente; espero que tenha sido esclarecedor. XOXO.
TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Mes chères amis! On passe par une situa-
tion de crise au seine de l’Organisation des Nations Unies; ça a acquis une im-
portance vraiment grande et il faut qu’on lute pour qu’elle survie. Par rapport à
des activités du Conseil de Securité, on a la besoin de dire que les conflits armés
en cours offrent un nombre assez expressif de défis concernant la conciliation
des interêts locaux et internationaux. D’un côté, des populations autoctones
resistent aux interventions, d’autre, c’est nécessaire résoudre les guerres civiles
entre les pays, pour que les gens arrêtent d’être morts. Sur la reforme du CS, on
affirme que c’est impossible d’inclure le Brésil, India ou le Japon, seulement
l’Allemagne, puisque les pays des métis ne peuvent rien opiner sur les questions
tellemment compliquées. Le Conseil de Droits Humains (CDH) aident, depuis
plusieurs années, beaucoup de gens au monde entire; toutefois, il faut qu’on fais-
se moins d’expenditure pour les refugiés, parce que ils ne doivent pas croiser les
frontiers. Le Conseil Economique et Sociale (ECOSOC) est un orgue de relief, des
que la crise mondiale a atteint les nations developées, on a le besoin que les pays
pauvres arretent leur croissance pour ne pas alterer l’ordre naturale des choses.
Pour les pays en faillite, le Conseil de Tutelle encore fonctionne, mais, chaque fois
plus débile. Pour juger quelques scélerats qui tuent beaucoup de gens Le Tribuna-
le Pénal Internationale (TPI) existe et doit faire justice; pour les pays, La Court
Internationale de Justice (CIJ), pour organizer les fluxes globales, l’Organiza-
tion mondial du Commerce et pour qu’on se joindre et puisse boire des bons vins,
on a encore l’Assemblée Générale. C’est tout par ailleurs. À bientôt.
TODOS – AMEN.

(Festa dos parlamentares.)


56 Felipe Mury

DEPUTADO DA INGLATERRA (masturbando o DEPUTADO DA ALE-


MANHA) – Ah!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Ah!
REIN (para DEPUTADO DA TCHÉQUIA) – Meu nobre deputado tché-
quio, apreciei muito seu discurso sobre as Nações Unidas e comparti-
lho da sua visão sobre a organização. Gostaria de um boquete?
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Certamente, Vossa Alteza.
DEPUTADA DA FRANÇA (se maquiando) – Tem que caprichar na be-
leza, né?

(DEPUTADA DA HUNGRIA começa a rebolar.)

DEPUTADA DA ESPANHA – É muito Rihanna, né?


DEPUTADO DA ALEMANHA – Schön! Deputada da Espanha, devo
concordar com sua afirmativa. Ungarns Deputy ist etwas ganz Besonderes,
auch.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Caprichar no feitiço.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Arrasa, DJ!

(Todos dançam.)

DEPUTADA DA ESPANHA – Dizem que o delegado da Itália pegou


a da Suécia e depois teve barraco com o de Portugal que era gamado
nela.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Fiquei sabendo, menino...
DEPUTADA DA ESPANHA – Tey!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Tey!
REIN – Hoje eu quero muito doce, muito ácido!
DEPUTADA DA HUNGRIA – Ninguém segura esse rein hoje.

(Deputada da França sapateia de um canto a outro do palco.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – Estou lendo Ana Karenina, Tolstoy.


Achei-a meio puta.
Peças teatrais 57

DEPUTADA DA ESPANHA – Ah, mas o que dá pano para a manga é


putaria, não vê a outra? A Madame Bovary, Flaubert...
DEPUTADO DA INGLATERRA – Eu adoro, na verdade.
DEPUTADA DA ESPANHA – Eu também, mas vamos dançar?
DEPUTADO DA INGLATERRA – Vamos!

(DEPUTADO DA GRÉCIA curra a deputada da Hungria.)


(DEPUTADA DA ESPANHA curra o DEPUTADO DA INGLATERRA.)
(RAÍNA começa a pular por todo o salão.)

RAÍNA – Eu adoro flã! Eu adoro flã!


DEPUTADA DA HUNGRIA (enquanto está sendo currada) – Deputado,
como está o trabalho na comissão de constituição e justiça? Dizem que
a bancada neopentecostal está fazendo pressão para vocês encerrarem
os trabalhos referentes ao casamento gay.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Cara deputada da Hungria, isso acon-
tece já há bastante tempo... mas não vamos nos intimidar, se o casa-
mento gay não for aprovado, é porque não é certo mesmo, mas não
porque uns evangélicos bundas-moles estão querendo.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Muito bem, tem o meu apoio. Deve-
mos nos manter autônomos e independentes. Quando acabar aqui a
gente conversa mais. Ui!

(A essa altura todos estão engajados em algum tipo de sexo.)


(Visita do chefe de Estado daYakutia.)
(Um alarme toca.)

DEPUTADO DA ALEMANHA – Está na hora! Vamos receber a visita


do chefe de Estado da Yakutia e de Uganda!

(DEPUTADO DA FRANÇA coça o saco exageradamente.)

PRESIDENTE DA YAKUTIA – Caros bacanas! É com grande prazer e


entusiasmo que venho até a comunidade euronpeia hoje e falo a este
58 Felipe Mury

grande povo. São profundos os laços que nos unem e muitas as priori-
dades que alinham nossos governos. Em primeiro lugar, gostaria de so-
brelevar a questão da independência de nossa nação da Federação Rus-
sa. Há anos lutamos acirradamente para nos desvencilhar deste gigante
que suga nossas forças. Gostaríamos de contar com o apoio formal da
Euronpa nessa empreitada. Em segundo lugar, temos a mineração de
ouro, diamantes e urânio, a pesca e a criação de renas. Sobre o urânio
temos muito a dialogar, pois é um material de que precisam e que te-
mos em abundância. Nosso apoio para operações no oceano Ártico,
assim como nossa cooperação para assuntos climáticos, é fundamental.
Endossamos as políticas externas mantidas pela Euronpa e nos como
mantemos seus aliados. Muito obrigado pela atenção, caros bacanas.
Até a próxima vez.

(Visita do chefe de Estado de Uganda.)

PRESIDENTE DA UGANDA – Meus amos! É um gozo estar aqui em


solo euronpeu. Vocês não sabem o quanto é importante para mim essa
visita. Nosso pequeno país tem muito a agradecer pela contribuição
de sua vasta nação, especialmente depois do perdão de nossa dívida
externa. Nossas produções de café, tabaco e tudo mais têm em vocês
seu grande comprador e tudo o que construímos lá até hoje se deve à
colonização. Aliás, é uma pena que não sejamos mais uma colônia eu-
ronpeia. De todos os países da África somos os que mais têm condições
para o investimento externo e atingimos todas as metas de desenvolvi-
mento, apesar de ter uma população de maioria dundum. Estamos no
caminho certo e contamos com a sua ajuda para melhorar ainda mais.
Na ONU, votamos sempre alinhados, e, juntos, inauguraremos uma
nova era de prosperidade. Agradeço mais uma vez aos euronpeus e que
possamos comemorar juntos mais décadas de bonança.
DEPUTADA DA ESPANHA – Ainda bem que esse presidente da Ugan-
da é branco, menos mal.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Dizem que ele tem um PhD.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Philosophy Doctorate?
Peças teatrais 59

DEPUTADA DA HUNGRIA – Não, pretty huge dick...


DEPUTADO DA ALEMANHA – Temos que preparar tudo para a via-
gem do rein aos Estados Unidos. É uma visita muito esperada.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Acho que os preparativos já estão to-
dos prontos. O hotel já está reservado e o avião já está na pista.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Vamos causar lá. Parece que vai ter tiros
de canhão e tudo. Adoro uma pompa.

(Visita do REIN aos Estados Unidos.)


(DEPUTADO DA FRANÇA coça o saco exageradamente.)
(RAÍNA mexe no celular compulsivamente, DEPUTADO DA INGLATERRA
olha para ela.)

RAÍNA – Insta...
REIN – Caros amigos estadunidenses, é com muito amor que venho
ter convosco. Os laços que unem nossas pátrias são robustos e indelé-
veis. As contribuições de sua nação para o mundo são notáveis e nossas
parcerias ultrapassam a mera casualidade. Tenho orgulho de ser o Rein
que mais visitou seu território, em especial nos condados de Orlan-
do e de Hollywood, onde mantenho investimentos e atenção especial.
Hoje, 13 de abril, é o dia do desembarque das tropas americanas na
Normandia...

(DEPUTADO DA INGLATERRA cochicha no ouvido do REIN.)

REIN – Quero dizer, 30 de junho é o dia do desembarque na Norman-


dia. Treze de abril é o meu aniversário mesmo... Dando então pros-
seguimento, venho reiterar o apoio dado às invasões aos países árabes
que só dão problema, reforçamos nosso apoio tático com tropas e com
bases estratégicas no Mediterrâneo e no Egeu. Nos colocamos ao lado
desta grande nação no que se refere também à expansão dos valores e
ideias do capital e da demo-aristocracia pelo mundo. Devemos fazer de
tudo para que mais países se beneficiem com as liberdades individuais
e políticas, deixando, contudo, legado a uma classe superior o fardo de
60 Felipe Mury

decidir e tomar as providências para o bem comum. A colonização


de antigos Estados em falência é um dos principais pontos de conta-
to de nossa política externa e que fazemos questão de declarar supor-
te ao povo americunidostadense. Estamos aqui com nossa comitiva e,
na semana que vem, na assembleia geral das Nações Unidas, a fim de
consolidar aquilo que já tem sido feito no cenário internacional, não
podemos negar o avanço nas questões climáticas, em especial cons-
truindo plataformas flutuantes que darão conta de manter isoladas as
populações de cor de Tuvalu, Kiribati, Micronésia e Palau, Estados que
estão desaparecendo com o aumento do nível dos oceanos. Ao mesmo
tempo, saudamos o aumento das produções de petróleo e gás na Indo-
nésia, Rússia, América do Sul e Oriente Médio, todas suplantadas por
empresas europeias e americanas que não poupam recursos para cada
vez extrair mais destes solos. Por fim, venho aqui parabenizar a filha do
ilustre presidente J. P. Bush, Lisa Bush, por seu quinquagésimo aniver-
sário; que seja muito bem celebrado, e que aproveite muito bem sua
gestão como secretária de Estado.

(Rein prepara-se e maquia-se para um pronunciamento oficial nas redes de TV.)

REIN – Plebeus! Nunca antes na história deste país, tantas famílias ti-
veram acesso à TV a cabo. Nunca estivemos tão presentes no cenário
internacional, nunca nossos lares estiveram tão abastecidos com cham-
panhe e caviar. Comemoramos hoje, 8 de junho, o aniversário do par-
lamento europeu, e nesta preciosa data devemos relevar os avanços de
nossa administração no que tange à economia, às conquistas sociais e
à projeção internacional. Neste pronunciamento em rede nacional de
TV, gostaria de demonstrar minha solidariedade para com as vítimas
da imigração desenfreada. Sim, aqueles cujas famílias são obrigadas a
conviver com imigrantes têm o meu mais profundo sentimento e serão
indenizados por tal inconveniente.

(Mesa da Comissão para resolver a crise dos refugiados.)


Peças teatrais 61

DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Dando início a esta mesa da comissão


para a crise dos refugiados, tenho a dizer que nossas fronteiras têm sido
estupradas por indivíduos de procedência ignóbil e que nossa comuni-
dade tem sido maculada pela invasão desses demônios que deixam seus
países de origem. Muitas células terroristas inclusive têm adentrado
nosso território sob o disfarce de grupos de refugiados.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Todos nós temos tentado fugir des-
se bafão que assola nossas fronteiras, mas não podemos mais fechar
os olhos. É hora de agir, fazer alguma coisa. Temos que mandar essas
pessoas de volta. Dizem até que muitas são pintosas, que vêm aqui pra
transviar nossos jovens e nos viciar em cocaína.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Não podemos mais fazer a kátia, temos
que entender o problema e saná-lo. Muitos vêm para cá sem alibã ne-
nhum, em barcos mati que cruzam o Mediterrâneo e fazem aqui seus
covis, fazendo a aidê nos grandes centros urbanos.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – É uma situação uó!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Talvez devêssemos parar em algum
minuto para nos colocar no lugar desses refugiados que estão fugin-
do da ditadura, da guerra, da fome, das doenças. Muitos são famílias,
crianças. Encontram dificuldades ao chegar aqui e não têm apoio ne-
nhum.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Você está falando sério?
DEPUTADO DA INGLATERRA – Não, né, pô...
DEPUTADO DA FRANÇA – Como conceitua Lombroso, algumas et-
nias têm propensão para algumas condutas e para alguns crimes. Seria
um risco deixar que pessoas oriundas das mais baixas castas étnicas se
misturem as pessoas normais da Euronpa.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Fico bege com esses retirantes me-
quetrefes. Não tem nem um ocó odara.

(REIN e RAÍNA fazem sexo lasciva e atrapalhadamente.)

RAÍNA (tendo um orgasmo) – Orestes! Orestes! Oreeestes! Orestes!


Orestes!
62 Felipe Mury

REIN – Grrr.
RAÍNA – Oreeeeeeeestes!
DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-
mar a todos que o deputado de Portugal foi encontrado morto, car-
bonizado, depois da explosão de seu carro, com um vibrador enfiado
no cu.

ATO II

(Jantar)
(Todos sentados ao longo de uma grande mesa, comem e bebem, falam alto, e o
REIN, na cabeceira, observa tudo calma e furtivamente.)

DEPUTADO DA ALEMANHA – Vamos parar com essa colação de


velcro aí? Eu não aguentava mais, hoje as sessões no plenário foram in-
termináveis. Tive de obrigar um assessor meu a me abanar por mais ou
menos uma hora: não sei que calor é esse, essa coisa de aquecimento
global, efeito estufa deve ser para valer mesmo...
DEPUTADO DA FRANÇA (largando a deputada da Hungria, a quem
acariciava – fuma) – A Euronpa já não é mais a mesma. Minhas filhas,
eu já não deixo mais ver TV, só tem preto na TV. Eu queria levá-las
em um festival de música em Bremen, mas só tem banda que faz apo-
logia à miscigenação e uma ou duas têm estrangeiros tocando. Eu não
levo. Só tem má influência. Não concorda, excelentíssima deputada
da Hungria?
DEPUTADA DA HUNGRIA (estourando plástico-bolha) – Concordo,
excelentíssimo deputado da França. Mas isso se aplica aos próprios
integrantes dessa comunidade, não vê o que os alemães fazem quando
vão de férias para o Mediterrâneo? Uma gente mal-educada, arruacei-
ra, sem fleuma.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Sua caminhoneira! Bolacha!
DEPUTADA DA HUNGRIA – Sua Barbie!
DEPUTADA DA ESPANHA – Ela está certa. Bilu!
DEPUTADO DA TCHÉQUIA (subindo em cima da mesa e grunhindo)
– Nhé, nhé!
Peças teatrais 63

DEPUTADA DA ESPANHA – Indominus rex?

(DEPUTADA DA HUNGRIA olha para o DEPUTADO DA TCHÉQUIA colo-


cando conta-gotas do floral de Bahr na língua.)

DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Rescue...


DEPUTADO DA GRÉCIA – Afi!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Vocês ficaram sabendo do bafão?
Parece que a deputada da Moldova deixou de fazer a chuca e entregou
o maior cheque pro deputado da Irlanda.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Tô passado!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Disse que teve coió e tudo depois.
DEPUTADO DA FRANÇA – Nossa, como estava cheia de Barbie
aquela festa, né? Hoje está tranquilo, só estão caprichando muito no
carão. Sabe que eu nem gosto de ficar fazendo carão?
DEPUTADO DA TCHÉQUIA (para DEPUTADO DA GRÉCIA) – Vem cá,
deixa eu passar a mão nesse chuchu.
DEPUTADA DA ESPANHA – O problema é quando tem muito cacu-
ra. Detesto cacura.
REIN – Hoje eu quero muito doce, muito ácido!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Hoje o rein tá que tá.
DEPUTADA DA ESPANHA – Olha só como esse alemão é close.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Ele é muito close. Outro dia eu per-
guntei que horas eram e ele me ignorou.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Caros nobres prezados ilustres co-
legas! Hoje é uma ocasião de júbilo, um dia especial em que estamos
reunidos para confraternizar, brindar à pátria mãe e à saúde do rein.
Proponho um brinde. (levanta a taça) À Europa, ao rein!
TODOS – À Europa, ao rein!
DEPUTADA DA ESPANHA – Parece até que tem o edí de ouro...
DEPUTADO DA FRANÇA – Acabo de saber que nosso cônsul no
Brasil tem uma notícia fenomenal: finalmente Brasília vai urbanizar a
Amazônia, vão explorar petróleo, construir umas cidades, umas estra-
das, umas usinas lá e nossas empresas são as mais cotadas para começar
a empreitada. Estamos feitos.
64 Felipe Mury

(Todos comemoram.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – Um brinde: à Amazônia!


DEPUTADA DA HUNGRIA – Isso está com cara de equê desses bra-
sileiros.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA (para a DEPUTADA DA ESPANHA) –
Mona, já viu a mala do caríssimo deputado francês?
DEPUTADA DA ESPANHA – Aguei.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Vamos organizar um jogo.
TODOS – Um jogo? Um jogo?
DEPUTADO DA ALEMANHA – Vamos jogar assassino, detetive e ví-
tima.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Hodor.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Hodor!
RAÍNA – O banheiro está todo sujo de nena.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Assassino, detetive e vítima é mara!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Caríssimos, vamos distribuir os pa-
peizinhos... (distribui a cada um) Caro rein, cara raína, caro dep da In-
glaterra, caro dep da Grécia, cara dep da Espanha, cara dep da Hun-
gria, caro dep da Tchéquia, caro dep da França, eu.
DEPUTADA DA ESPANHA – Os que têm a neca mati por último.

(Todos jogam.)

DEPUTADA DA ESPANHA – Morri!

(Jogam.)

DEPUTADO DA GRÉCIA – Morri!


DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Deixa eu tecar um Paulo Otávio
aqui... (cheira cocaína)

(Jogam.)
Peças teatrais 65

DEPUTADO DA INGLATERRA – O assassino é a raína!


RAÍNA – Ah, para! Eu só estava começando...
DEPUTADA DA HUNGRIA – Parou tudo! Eu também era assassino.
REIN – Deixa eu ver esse papel (pega o papel da RAÍNA). Mas você é
vítima.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Tá explicado.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Essas duas pintosas estavam matando
as pessoas. Não valeu. Vamos jogar de novo.
REIN – Jogar de novo o caralho. Chega.
DEPUTADO DA INGLATERRA (dirigindo-se ao cabelo do DEPUTADO
DA TCHÉQUIA) – Olha o picumã do equê! Cortou? Pintou?
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Não fiz nada, ele é assim mesmo.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Sua Suzie!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Que que essa racha está falando aí?
Fica quieta sua sapatã dos diabos!
DEPUTADO DA GRÉCIA – É um tata mesmo...
DEPUTADA DA ESPANHA – Sente só o meu agudo: It’s time to try.
Defying gravity. I think I’ll try. Defying gravity. And you can’t pull me down!
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Tombou.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Tô passada!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Luxo!
DEPUTADA DA ESPANHA – Eu queria tanto ser atriz de musicais...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Não faz a Alice, não... Sonhadora.
DEPUTADA DA ESPANHA – Às vezes eu imagino um mundo dife-
rente. Talvez fosse possível um outro tipo de vida, um outro tipo de
sociedade...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Virar hippie? Acho esse estilo de vida
muito diferente.
DEPUTADA DA ESPANHA – Você quer dizer “diferente de você...”.
(canta “Cores do vento”, Pocahontas) “Se acha que eu sou selvagem / Você
viajou bastante / Talvez tenha razão / Mas não consigo ver / Mais sel-
vagem quem vai ser? / Precisa escutar com o coração / Coração / Se
pensa que esta terra lhe pertence / Você tem muito ainda o que apren-
der / Pois cada planta, pedra ou criatura / Está viva e tem alma, é um
66 Felipe Mury

ser / Se vê que só gente é seu semelhante / E que os outros não têm o


seu valor / Mas se seguir pegadas de um estranho / Mil surpresas vai
achar ao seu redor / Já ouviu um lobo uivando pra a lua azul? / Será que
já viu um lince sorrir? / É capaz de ouvir as vozes da montanha? / E com
as cores do vento colorir / E com as cores do vento colorir / Correndo
pelas trilhas da floresta / Provando das frutinhas o sabor / Rolando em
meio a tanta riqueza / Nunca vai calcular o seu valor / A lua, o sol e o
rio são meus parentes / A garça e a lontra são iguais a mim / Nós so-
mos tão ligados uns aos outros / Neste arco, neste círculo sem fim /
A árvore aonde irá? Se você a cortar nunca saberá / Não vai mais o
lobo uivar para a lua azul / Já não importa mais a nossa cor / Vamos
cantar com as belas vozes da montanha / E com as cores do vento co-
lorir / Você só vai conseguir desta terra usufruir, / se com as cores do
vento colorir”.
DEPUTADA DA ESPANHA – Ai, gente, desculpa. Não sei o que deu
em mim. (pausa) Não. Acho que ser índio não é bom não.
(RAÍNA começa a fazer felação no REIN.)
DEPUTADO DA INGLATERRA – Olha essa gravação aí.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Não faz a egípcia não: vocês mesmos.
DEPUTADO DA ALEMANHA (com uma garrafa de uísque na mão) –
Gente, vou fazer a Heleninha Roitman hoje, vou entornar.
DEPUTADA DA ESPANHA – Os ocós tão tudo doido hoje. Tudo tra-
balhado na colocação, na droga.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Eu queria mesmo era arranjar um bofe
cheio de aqué. Mas eu só consigo atender bofe ruim.

(DEPUTADO DA ALEMANHA começa a cambalear.)

DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Arrasou, abalou! As amapôs vão ficar


tudo louca por esse piá.
DEPUTADO DA INGLATERRA – O problema é que ele é Bill, né.
Sente só o feitiço dele. Cheio de truque.
DEPUTADA DA ESPANHA – Melhor do que você, todo trabalhado
no rivotril.
Peças teatrais 67

DEPUTADO DA ALEMANHA – Mas falando de trabalho: quem fará


o relatório da comissão de constituição e justiça?
DEPUTADA DA ESPANHA – O deputado tchéquio poderia fazê-lo.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – De maneira nenhuma, não quero en-
trar na sua frente.
DEPUTADA DA ESPANHA – Não se preocupe comigo.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Mas é uma ótima oportunidade.
DEPUTADA DA ESPANHA – Então agarre-a.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Tudo de bom.

(Começa uma pegação generalizada.)

TODOS – Suruba! Suruba! Suruba!


REIN – Sintam-se mais do que muito bem recebidos neste jantar e que
a sacanagem comece!

(Começam todos uma grande orgia.)


(Projeções no telão.)

DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-


mar a todos que o deputado da Romênia foi encontrado morto a faca-
das e com um buquê de flores enfiado no cu.

(Entra a RAÍNA.)
(Discurso da RAÍNA.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – E agora, o pronunciamento da raína!


RAÍNA – Meus servos! Digo, súditos! Há uma conspiração para acabar
com nosso império magnânimo. Fora a conjuntura político-econômi-
co-social, temos alguém que está aniquilando nossos parlamentares, de
forma que devemos deflagrar uma reação! Meu amado esposo rein está
lutando por seu povo e fazendo o seu melhor, mas esse clima de inse-
gurança não é aceitável. As vítimas têm aparecido mortas de forma ve-
xatória e isso é uma vergonha para nosso Congresso. Um assassinato já
68 Felipe Mury

é uma coisa bárbara, o assassinato de políticos ilustres é ainda mais gra-


ve. O fantasma da morte ronda sobre nossas cabeças. Se vocês querem
um motivo para protestar, protestem pelos congressistas sacrificados.

(O cofre.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – O cofre do Congresso está vazio!


Fomos assaltados! Melhor: furtados.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Mas como?
DEPUTADA DA ESPANHA – Tínhamos lá mais de cinquenta milhões
de euros. Esse dinheiro não pode ter sumido assim.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Acho que já tenho a solução para esse
mistério.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Qual é?
DEPUTADO DA GRÉCIA – Oi?
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Tivemos na semana passada três dias
de recesso, não foi?
DEPUTADO DA INGLATERRA – Foi.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Pois o nobilíssimo deputado da Gré-
cia me pediu a chave mestra do Congresso, pois ficaria “trabalhando
até mais tarde...”.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Oi?
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Pois foi exatamente o tempo de al-
guém estacionar um caminhão na porta dos fundos do prédio e fazer a
limpa no cofre.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Oi?

(Todos riem.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – Ah, mas esse deputado da Grécia


é um fanfarrão.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Que susto, eu já estava pensando que
teríamos de chamar a polícia. Ninguém quer chamar a polícia, não é?
DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-
Peças teatrais 69

mar a todos que o deputado da Noruega foi encontrado morto com uma
mordida profunda na jugular e uma cenoura enfiada no cu.

(Deputados murmuram preocupados.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – Mas que absurdo, já é a terceira vez.


DEPUTADO DA ALEMANHA – Não podemos deixar esses crimes
sem solução.
DEPUTADA DA ESPANHA – É um acinte a toda a classe.

(Euros na cueca.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – É o que eu sempre digo, morte aos


judeus. Isso tudo é culpa deles, a gente tinha que confiscar as poupan-
ças e colocar umas estrelas amarelas nos ombros deles. O problema é
que eles estão controlando tudo de Tel Aviv agora.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Pois é, e não bastasse isso, temos que
lidar com esses muçulmanos, turcos, sei lá, que estão poluindo visual-
mente nossas cidades.

(DEPUTADO DA GRÉCIA entra e começa a se ajeitar, especialmente as calças.)

DEPUTADA DA ESPANHA – O que foi, caro deputado grego? Está


com formiga no edí?
DEPUTADO DA ALEMANHA – Ele está dançando alguma dança dos
antepassados dele.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Não, não foi nada. Mas os judeus, hein...
DEPUTADA DA HUNGRIA – E isso não é nada, imagina uma nação
comandada por esses avarentos... A América está infestada.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Caríssimo. Não imagino que na
Grécia antiga dançassem tão mal. O que está havendo?

(DEPUTADO DA GRÉCIA deixa cair notas de euro de sua cueca.)


(Todos riem bastante.)
70 Felipe Mury

DEPUTADO DA ALEMANHA – Opa! É meu, é meu.


DEPUTADA DA ESPANHA – Mas que artifício antigo... Não podia
ter costurado dentro do terno? Esse todo mundo já conhece.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Da última vez que fiz isso, soltei
um peido babão e sujei tudo. Tive que lavar depois. Não que eu não
goste de lavar dinheiro...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Pois é, foi o jeito. Fiquei com medo de
estragar o terno.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Mas para onde ia esse dinheiro, meu
excelente amigo?
DEPUTADO DA GRÉCIA – Ia para a merenda das crianças de Creta,
é claro.

(Todos riem.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – Merenda? Ah, essa também é ve-


lha. Vamos, pode falar a verdade.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Eu ia construir um castelinho pequenini-
nho em Tessalônica... Estava juntando aos poucos.
TODOS – Ah!
DEPUTADA DA HUNGRIA – Quando for assim, você tem que pegar
direto do cofre. Você tem a senha, não?
DEPUTADO DA GRÉCIA – Sim.
DEPUTADO DA FRANÇA – Nós vamos deixando ele acumular no
cofre e quando tem bastante a gente manda o motorista levar para
onde for necessário
DEPUTADO DA ALEMANHA – Ele é o mais novo, ainda tem que se
habituar a nossa malandragem.

(Vindo do anfiteatro do palácio, onde foi encenado Otelo.)

RAÍNA – Estava muito ansiosa para esta peça, disseram que o ator
principal é hermafrodita... Mas ele é Schweepsch! He’s Schweepsch.
DEPUTADA DA TCHÉQUIA (estourando plástico-bolha) – O que é
Schweepsch?
Peças teatrais 71

RAÍNA – Schweepsch: denominação pessoal que designa gente descola-


da. Não é hipster, não é hippie, não é yuppie, não é goy. É schweepsch...
DEPUTADA DA TCHÉQUIA (anotando) – Sch-wee-p-sch...
RAÍNA – Isso. Adjetivo.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Achei ridículo esse ator que fez o
Otelo pintado de preto.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Mas é melhor do que se ele fosse
preto de verdade.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Fato.
REIN – Hoje, dia 11 de agosto, será decretado dia oficial do caviar.
Adoro caviar. Por mim eu instituía também o anglicanismo como reli-
gião obrigatória, mas esses bostas desses católicos ainda são maioria...
DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-
mar a todos que o deputado de Liechtenstein foi encontrado morto
com dois tiros no coração e um microfone da bancada, desses que usa-
mos, bem fininho, enfiado no cu.

(Condecoração a um neonazista pelo REIN, por honra e serviços prestados à nação.)

REIN – Estamos aqui hoje reunidos para conferir a este nobre cidadão
a medalha Hermann Goering por honra e serviços prestados à nação.
Este jovem, desde muito cedo, se mostrou comprometido com a cau-
sa da raça ariana pura e empreendeu neste intuito diversas ações no
sentido de minimizar os efeitos das migrações de raças inferiores e ju-
deus em nosso vasto território. É justo tratar este bravo guardião dos
valores e costumes da Europa como um herói, já que comandou grupo
paramilitar que agiu eliminando indivíduos indesejados em todos os
estados da Federação e esteve ele mesmo em campo usando pessoal-
mente de força e propagando a mensagem de hegemonia que nossa pá-
tria deve preconizar. Não podemos medir esforços para que esta gran-
de mãe gentil seja limpa de toda e qualquer ameaça de contaminação
étnica, religiosa e ideológica. Outro inimigo enfrentado pelo grupo de
Wilhem Steinenmeyer foi o câncer do socialismo. Não é de hoje que as
ideias soviéticas tentam se entranhar em nossa sociedade, de forma que
72 Felipe Mury

devemos levantar nossas mais eficazes armas contra este flagelo. Não
podemos esmorecer na luta contra aqueles que não valorizam o livre
mercado e a supremacia do capital; o comunismo só trouxe miséria e
vergonha aos lugares onde se implantou e aqui não seria diferente. Há
que falar também no perigo vindo do Subsaara, os dunduns. Os negros
representam um insulto a tudo que é humano e de bom gosto. Não há
palavras para classificar a chaga da miscigenação, que devastou países
como o Brasil ou Cuba. Políticas sérias estão sendo costuradas para ga-
rantir o branqueamento de nossa população e para afastar os dissemi-
nadores da feiura espiritual concernente à negritude. Senhor Wilhem
Steinenmeyer, o Reino Federado da Europa lhe concede o título de ba-
rão e a condecoração com a medalha Hermann Goering. Que a partir
desta data mais louros sua atuação possa nos trazer.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Já comprei minhas passagens para
a Lua, viajo mês que vem. Passeio completo, trilhas nas crateras e tudo.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Menino, você vai para a Lua é?
DEPUTADA DA ESPANHA – Dizem que faz frio lá. Aliás, você deve
ter desembolsado uma boa quantia. A Lua está pela hora da morte.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Pois é, mas eu mereço umas férias.
Isso aqui está me saturando, sabe. Preciso de uma massagem com ro-
chas lunares, uma gravidade zero...
DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de informar
a todos que o deputado de Luxemburgo foi encontrado morto eletrocu-
tado em uma banheira, com um secador de cabelo enfiado no cu.

(Um homem maltrapilho adentra a câmara e causa horror nos deputados. Co-
meça a pedir esmola a cada um.)

MENDIGO – Uma esmolinha, pelo amor de Deus! Pensem nos que


têm fome, pelo sentimento da fraternidade que nos une, pelo bem que
um sorriso pode fazer. Se não tiver dinheiro, aceito minha parte em
sorriso. Um sorriso para um miserável.

(Os deputados indignam-se e vão retirando suas facas lentamente, até cercá-lo
e esfaqueá-lo, matando-o.)
Peças teatrais 73

DEPUTADO DA GRÉCIA – É assim que se acaba com o problema da


mendicância e da indigência na Euronpa.
DEPUTADA DA ESPANHA – Muito bem feito. Aprendeu a lição.

(Entra um Black-block, que estava fazendo arruaça do lado de fora.)

BLACK-BLOCK – Eu represento os estudantes insatisfeitos, aqueles


que foram calados pela censura, pela ditadura, pela guerra. Vocês de-
vem abrir esta casa ao povo. Somos cidadãos, merecemos respeito e
não é só por vinte centavos de euro. O povo vai tomar o que é seu, vo-
cês terão suas penas, facínoras!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Então é você que anda estuprando e
matando políticos em solo euronpeu?
DEPUTADA DA ESPANHA – Merece uma lição, um revide.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Sim, isso não pode ficar assim. Jus-
tiça deve ser feita!
BLACK-BLOCK – Mas eu não fiz nada. Nada do que estão me acusan-
do. Talvez tenha quebrado uma vidraça de banco, mas nada mais.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Ele está mentindo, é óbvio.

(Começam a cercá-lo, tiram suas facas e esfaqueiam-no. Matam-no.)

DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-


mar a todos que o deputado da Holanda foi encontrado morto com
vestígios de cianureto na boca e com uma batata-doce enfiada no cu.

(Show da Madonna – música “Give it to me”.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – E com vocês, Madonna!


DEPUTADO DA ALEMANHA – Essa mulher vai fazer 200 anos e con-
tinua cantando e pseudodançando como ninguém. Que prodígio!
DEPUTADA DA HUNGRIA (estourando plástico-bolha) – Adoro.

(Todos cantam e dançam a música toda.)


74 Felipe Mury

What are you waiting for?


Nobody’s gonna show you how
Why wait for someone else
To do what you can do right now?
Got no boundaries and no limits
If there’s excitement, put me in it
If it’s against the law, arrest me
If you can handle it, undress me
Don’t stop me now
Don’t need to catch my breath
I can go on and on and on
When the lights go down
And there’s no one left
I can go on and on and on
Give it to me, yeah
No one’s gonna show me how
Give it to me, yeah
No one’s gonna stop me now
They say that a good thing never lasts
And then it has to fall / Those are the the people that did not
Amount to much at all
Give me a bassline and I’ll shake it
Give me a record and I’ll break it
There’s no beginning and no ending
Give me a chance to go and I’ll take it
Don’t stop me now
Don’t need to catch my breath
I can go on and on and on
When the lights go down
And there’s no one left I can go on and on and on
Give it to me, yeah
No one’s gonna show me how
Give it to me, yeah
No one’s gonna stop me now
Peças teatrais 75

(Madonna/PhatellWilliams)Watch this
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it (what?)
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it (what?)
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it (what?)
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it
Get stupid, get stupid, get stupid, don’t stop it
(To the left, to the right, to the left, to the right)
Get stupid, get stupid, get stupid, don’t stop it
(To the left, to the right, to the left, to the right)
Get stupid, get stupid, get stupid, don’t stop it
(To the left, left, right, right, left, left, right, right) Get stupid, stupid, stupid,
stupid, stupid, stupid
(Left, left, right, right, left, left, right, right)
Don’t stop me now
Don’t need to catch my breath I can go on and on and on
When the lights go down
And there’s no one left I can go on and on and on
Give it to me, yeah
No one’s gonna show me how
Give it to me, yeah
No one’s gonna stop me now
You’re only here to win
Get what they say?
You’re only here to win
Get what they do?
They’d do it too
If they were you
You done it all before
It ain’t nothing new
You’re only here to win
76 Felipe Mury

Get what they say?


You’re only here to win
Get what they do?
They’d do it too
If they were you
You done it all before
It ain’t nothing new
Give it to me, yeah
No one’s gonna show me how
Give it to me, yeah
No one’s gonna stop me now
Give it to me, yeah
No one’s gonna show me how
Give it to me, yeah
No one’s gonna stop me now
Give it to me

DEPUTADO DA ALEMANHA – Mas os crimes continuam...


DEPUTADO DA FRANÇA – Ora, o assassino só pode ser alguém que
tenha acesso aos parlamentares. Deve ser alguém de dentro e que te-
nha porte de arma, ao menos.
DEPUTADO DA ESPANHA – É claro, como não pensei antes: o se-
gurança! Foi ele!

(Cercam o segurança.)

SEGURANÇA – Eu? Eu não. Não fiz nada. Imaginem vocês. Meu de-
ver é servir e proteger os deputados. Jamais faria o contrário.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Ele está mentindo!
SEGURANÇA – Eu sou mais um trabalhador que tem que se sacrificar
pela educação de seus filhos, pelo pão de cada dia. Eu...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Peguem-no!

(Tiram suas facas e matam-no.)


Peças teatrais 77

REIN – Compatriotas! Venho saudá-los e vos digo que os tempos são


difíceis. Temos um fantasma assombrando esta casa de ilibada repu-
tação. A nação sofre. A carestia já é uma realidade, a moeda única se
corrompe a cada dia e o que se comprava na semana passada com um,
hoje não se compra com dez. Temos tensões com nossos vizinhos. A
família euronpeia está em frangalhos e proliferam-se as denominações
transviadas sexuais. Os escândalos de corrupção são uma constante.
Ameaças de golpe rondam o palácio. O que queremos ser? Um país
mais forte, eu suponho. Nessas condições, venho advertir que tenham
calma, não se desesperem. O melhor conselho que tenho para vos dar
é: fodam! Fodam muito! Tenham filhos! Pois, além de ser um ótimo
exercício, trazer prazer, não custa nada e nossa pátria precisa de mais
braços para o trabalho na indústria, agricultura e no comércio. Sejam
euronpeus conscientes! Fodam-se! Muito obrigado.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Essa onda de crimes ainda nos as-
sola. Temos que fazer algo.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Uma comissão interna deverá investigar,
apurar, cuidar do caso.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Sim! A polícia não dá conta.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Um dossiê será produzido. Temos
indícios de que a carnificina vem ainda mais de dentro.

(O DEPUTADO DA TCHÉQUIA vai se afastando do círculo.)

DEPUTADO DA ALEMANHA – Somente alguém com informações


privilegiadas poderia interceptar tantos políticos e matá-los tão fria-
mente.
DEPUTADA DA ESPANHA – Alguém da oposição!
DEPUTADA DA HUNGRIA – Não se trata de oposição. Poderia ser
qualquer um nesta sala.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Qualquer um?
DEPUTADO DA INGLATERRA – Qualquer um.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Caro deputado da Tchéquia, o que
houve, por que está se afastando?
78 Felipe Mury

DEPUTADA DA ESPANHA – Deputado tchéquio, onde estava ontem


às dez horas da manhã?
DEPUTADA DA HUNGRIA – Deputado, aonde pensa que vai?
DEPUTADO DA INGLATERRA – Está fugindo!
DEPUTADO DA FRANÇA – É ele, com certeza!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Peguem-no!

(Cercam-no, retiram suas facas, esfaqueiam-no e matam-no.)

ATO III

RAÍNA – My Bonnie lies over the ocean…


DEPUTADO DA ESPANHA – O deputado da Inglaterra vai contar
uma história!
DEPUTADA DA HUNGRIA – Ele vai contar um causo!
RAÍNA – My Bonnie lies over the sea… My Bonnie lies over the ocean, oh,
bring back my Bonnie to me!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Certa feita, eu era gajo, estava em
uma colônia de férias. Tinha um garoto que zoava todo mundo, tirava
sarro da cara de todos, chegava a ser chato.
REIN – Hum...
DEPUTADO DA INGLATERRA – Daí, dormíamos todos no mesmo
quarto, em beliches. Um dia, no café da manhã, um colega contou que
o garoto gritava: “Come o meu cu, come o meu cu, isso, gostoso, come
o meu cu, Orestes!”

(Todos riem.)

DEPUTADO DA INGLATERRA – Desse dia em diante, o garoto nun-


ca mais zoou ninguém. Ele não sabia se tinha mesmo gritado aquilo e
ficou muito sem graça, de forma que agora ele era o motivo das piadas.

(Todos riem.)
Peças teatrais 79

DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-


mar a todos que o deputado da Irlanda foi encontrado morto com uma
flecha atravessada na cabeça e com nada enfiado no cu.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Nós estávamos aqui quando esse últi-
mo assassinato aconteceu. O único que estava fora do recinto era o rein.

(Todos se entreolham.)
(REIN chega.)

REIN – O que foi? Por que estão me olhando assim?


DEPUTADA DA ESPANHA – Acontece, seu rein, que todos nós está-
vamos aqui quando o deputado da Irlanda foi morto, menos o senhor.
REIN – E o quico?
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Todas as evidências apontam para o
rein, inclusive as condições em que foram encontrados os cadáveres
denotam a presença de um maníaco sexual. O único que está presente
é o rein.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Caro rein, exijo explicações.
REIN – Você não exige nada.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Queremos saber onde o senhor estava...
DEPUTADO DA GRÉCIA – É muito estranho mesmo, você há de
convir...
REIN – É isso mesmo! Fui eu que violentei e dei cabo desses estrupí-
cios todos. Eu não aguentava mais tanta incompetência e estava ente-
diado. Gosto de cus, gosto de sangue. Matei, matei mesmo.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Isso é um absurdo! O que vamos
fazer?
DEPUTADO DA ALEMANHA – Temos que tomar uma atitude. Como
isso é possível? O rein, logo o rein!
DEPUTADO DA GRÉCIA – Podemos lançar uma medida protetiva
para afastar o rein momentaneamente, enquanto ele está assim afetado.
Quando melhorar, ele volta.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Não está vendo que ele não vai
melhorar? Isso é permanente.
80 Felipe Mury

DEPUTADO DA GRÉCIA – Então vamos internar o rein ad eternum.


DEPUTADA DA ESPANHA – Isso!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Mas ele é o rein...
DEPUTADA DA HUNGRIA – São seis assassinatos de forma hedion-
da. Não é possível perdoá-lo por esses crimes.
REIN – Vocês não decidem nada. Eu é que mando nessa porra. Me
soltem!
RAÍNA – Soltem o rein. Vocês vão se arrepender.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Talvez seja melhor soltá-lo...
RAÍNA – Meu marido desde pequeno sofre com Transtorno de Défi-
cit de Atenção, ele nunca conseguiu assistir a uma aula até o final na
escola. Quando nós estamos transando, ele olha para o teto, ou para as
padronagens do lençol, conforme a posição do ato.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Seu marido é um grande de um safado,
isso sim!
DEPUTADO DA GRÉCIA – E um assassino!
RAÍNA – Além de tudo, ele é ninfomaníaco. Isso é uma doença,
tá bom?
REIN – Eu gosto de foder!
DEPUTADO DA ALEMANHA – Talvez o rein esteja arrependido.
DEPUTADA DA ESPANHA – Arrependido nada, ele tem que ser pu-
nido exemplarmente. Por fornicação seguida de morte.
DEPUTADO DA INGLATERRA – O rein não pode sofrer um proces-
so por crime comum. Ele está acima da lei.
REIN – Eu sou a lei! Eu sou melhor que a lei. Já viu o tamanho da mi-
nha piroca?
RAÍNA – Ah, por favor, tenham compreensão. É só um estado passa-
geiro. Ele está aflito.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Aflitos estamos nós. Há uma crise de go-
vernabilidade e carnificina. Não podemos compactuar com esse qua-
dro; por maior que seja a piroca do rein.
REIN – Vocês só me tirarão do trono morto!

(Trombetas.)
Peças teatrais 81

REIN – Eu tinha que chupar todo mundo. Primeiro foi o rei da Dina-
marca. Ele enfiou aquele peru enrugado na minha boca, eu não po-
dia fazer nada, ele detinha o eleitorado. Então começou oficialmente
a chupação no congresso. Até o rei da Indonésia eu tive que chupar.
Aquele peruzinho pequenininho, não dava para nada. Mas eu tinha que
fazer cara de que estava gostando. Agora vou chupar todo mundo e
todo mundo vai me chupar!
RAÍNA – Ele é um baluarte da moral! Só teve uma vida conturbada.
É o fruto de gerações que lutaram para que todos tivessem direito à
ilustração, à vida. Ele é o rein! Contra o rein nada e, ao povo tudo!!!

(Dúvida.)

REIN – É assim que as coisas funcionam. Corrompido será aquele que


tiver a audácia de exercer minhas funções. O poder é o meu sexo e o
sexo é o meu poder. Quanto aos mortos, morreriam de qualquer for-
ma, porque não abreviar o processo? Deixem-me governar. Sem a co-
roa nada sou! E, sem mim, vocês igualmente nada são! Vamos juntos,
vamos prosperar novamente!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Mas por que matar as pessoas?
REIN – Não sei, tenho tara por sangue. Adoro ver uma hemoglobina
pingando e, mesmo quando não tem sangue, adoro ter a sensação de
que a vida de alguém está nas minhas mãos.
DEPUTADO DA INGLATERRA – O rein enlouqueceu.
DEPUTADO DA GRÉCIA – Temos que abrir um processo para de-
pô-lo.
DEPUTADO DA ALEMANHA – O rein está deposto, matem-no!
DEPUTADA DA ESPANHA – Ninguém tem coragem de matar um
ex-rein.
DEPUTADO DA FRANÇA – Pois eu não serei estuprado e morto. (Er-
gue a faca contra o rei, mata-o). Está vendo, queria comer todos e olha só
como acabou. Agora sou eu que vou te comer, seu filho da puta. (Segu-
ra-o pelas ancas e começa a currá-lo.)
82 Felipe Mury

(O REIN acorda no meio do coito e começa a gozar pedindo mais. O deputado


da França se assusta e o larga.)

REIN – Isso, isso! Eu quero mais. Me fode, me fode. (Pega a cabeça da


DEPUTADA DA ESPANHA e a manda chupar seu pênis.) Chupa, deputada.
(Ela o faz.)
DEPUTADO DA INGLATERRA – Somos uma putaria institucionali-
zada agora! E o futuro da Euronpa está em jogo! Temos um rein zumbi
ninfomaníaco.

(O REIN sai atrás de cada um dos deputados a fim de fazer sexo com cada um.
E faz.Todos estão cansados da orgia, menos o rein.)

REIN – Abram os cofres! Distribuiremos dinheiro por boquetes.


DEPUTADO DA ALEMANHA – Isolem o ex-REIN zumbi ninfoma-
níaco! (Uma gaiola cai sobre o ex-REIN e o enclausura.)
REIN – Está é a revolução das necas!
DEPUTADA DA HUNGRIA – O que vamos fazer agora?
DEPUTADO DA FRANÇA – Temos que acalmar a população. Estão
todos hiper-sexualizados.
DEPUTADO DA GRÉCIA – E revoltosos...
DEPUTADO DA ALEMANHA – Vamos, o que podemos fazer?
DEPUTADO DA INGLATERRA – Não tivemos aula de revolta da fa-
culdade de Direito.
DEPUTADO DA FRANÇA – Poderíamos devolver todo o dinheiro da
saúde, educação e previdência que demos a Elza...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Poderíamos pedir desculpas pelas ofensas
aos líderes das nações vizinhas que agora nos ameaçam... Poderíamos
lançar uma nova moeda a fim de controlar a inflação...
DEPUTADA DA ESPANHA – Poderíamos estimular a agricultura fa-
miliar para aumentar a produção de alimentos. Também incentivos à
indústria e ao comércio, talvez baixar os impostos...
DEPUTADO DA ALEMANHA – Baixar impostos? Oh!
DEPUTADA DA HUNGRIA – Oh!
DEPUTADO DA INGLATERRA – Oh! Acho que nunca foi feito...
Peças teatrais 83

DEPUTADO DA FRANÇA – Poderíamos mudar o código civil acei-


tando novas definições de família.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Poderíamos aumentar as punições
para a corrupção.
DEPUTADO DA INGLATERRA – A partir de agora, sem retroação
para crimes passados.
DEPUTADA DA HUNGRIA – Ah...
DEPUTADA DA ESPANHA – Ah...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Poderíamos proclamar a República!
DEPUTADO DA INGLATERRA – E quem seria nosso presidente?
DEPUTADO DA ALEMANHA – Alguém de honra, de mérito, com
alguma dignidade. Alguém se habilita? (Silêncio)
DEPUTADO DA FRANÇA – Soltem o rein! Vamos voltar para a pu-
taria!

(Apagam-se as luzes.)

VOICE OVER – “Eu, figura pública, acreditado da confiança de vocês,


peço desculpas pelo mal que minha administração e meus conceitos ul-
trapassados causaram ao público, por quem eu deveria trabalhar. Não
conhecemos nenhuma fórmula mágica para conduzir a sociedade, dado
que tantas receitas já falharam ao longo do tempo. Mas não podemos
desistir, não terminamos aqui nossos esforços. Há esperança e há luz
no fim do túnel. Somos mais fortes juntos e juntos venceremos a crise.
Ordem e progresso.”
Em consulta
PERSONAGENS

ARTUR
BETE, mãe de Artur
MÁRIO, pai de Artur
TÚLIO, amigo de Artur
OTÁVIO DE CARVALHO, psiquiatra
88 Felipe Mury

(ARTUR está de terno, sentado em frente a um computador, onde passa algum


tempo.)

ARTUR – Meu Deus, isso é muito idiota. Eu tenho que ficar escreven-
do nesse registro, isso é ridículo: “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz
da Comarca da Capital; Fulano da Silva vem, por meio desta, mover
ação de Danos Morais em face de Beltrano Cavalcanti... Desta feita,
pede deferimento. Rio, 12 de agosto de 2015.” Eu tenho mais o que
fazer do que escrever isso e ir a audiência ver juiz esculachar testemu-
nha... Não é possível, eu não nasci para isso. Quando é que eu vou fazer
o que gosto e ter algum prestígio, alguma fama por isso? Essa faculda-
de está me matando... E esse estágio... Prova de administrativo II na
sexta, trabalho de tributário, dez petições para terminar até amanhã.
Assim eu não vivo.
TÚLIO – E aí, moleque? Como é que você está?
ARTUR – Túlio? O que você está fazendo aqui? E de bermuda...
TÚLIO – Resolvi dar uma passadinha, eu estava por aí. Moleque, você
não vai acreditar nas ondas de hoje. Moleque... Moleque...
ARTUR – Eu não surfo.
TÚLIO – Ah é, esqueço disso às vezes. Mas fala, sábado vou a Búzios
com a Clarinha, não está a fim de ir com a gente?
ARTUR – Não vai dar. Vou ter prova na semana seguinte. Estou meio
ferrado de nota.
TÚLIO – Eu hein, Artur, você sofre com essa faculdade. Se eu fosse
você, já tinha largado. Iria fazer um mochilão pela Europa, intercâmbio
na Austrália, sei lá, desopilar.
ARTUR – É... Eu tenho que terminar essa merda. Meus pais estão me
pressionando. Eu me sinto pressionado, mais do que tudo.
TÚLIO – Você tem que deixar rolar, Hakuna Matata. Deixa de ser pre-
go e vai fazer alguma coisa que você goste. E o teu teatro? Nunca mais?
ARTUR – Pois é... Queria estar fazendo teatro. É uma das coisas que
eu mais gosto.
TÚLIO – Então. Mergulha nisso. Não tem jeito, a gente não vai ser
feliz se não fizer o que gosta e se não se sentir útil no que faz. E, pelo
visto, você não está feliz nem se sentindo útil...
Peças teatrais 89

ARTUR – Não...
TÚLIO – Enfim, fica a dica. A Marininha ainda está te dando aquele
mole?
ARTUR – Sei lá, cara, não ligo para ela não...
TÚLIO – Para quem tu liga? Cara, você é muito sério, muito amargo.
Não pode ser assim não.
ARTUR – Eu sou do meu jeito, me deixa. Mas ultimamente tem sido
pior, eu admito. Mas o que eu vou fazer?
TÚLIO – Mude.
ARTUR – Vou mudar, vou mudar.

(Em casa)

BETE – O jantar está pronto.


MÁRIO – Vamos lá comer?
ARTUR – Já vou, já vou.

(Sentam-se à mesa)

MÁRIO – O que temos hoje?


BETE – Adivinha? Fiz para te agradar.
MÁRIO – Risoto de shimeji?
BETE – Está frio.
MÁRIO – Picanha com capa de sal? Eu estou sentindo o cheiro de carne.
BETE – Errou. Cozido.
MÁRIO – Ah!
ARTUR – Eu gosto.
BETE – Hoje o tempo deu uma esfriada, combina.
MÁRIO – Boa pedida. Vocês viram as notícias hoje?
BETE – O que aconteceu de importante? Eu vi que aquela menina da
novela está grávida, né...
MÁRIO – Quem?
BETE – Aquela... A que você diz que lembra a Geiza.
90 Felipe Mury

MÁRIO – Ah sim, mas não me referia a isso. A Standard and Poor’s


abaixou novamente a nota do Brasil. Agora somos maus pagadores de
novo.
ARTUR – Já era esperado, as outras já tinham rebaixado. E essa me-
nina já está grávida há um bom tempo. Eu vi ela fazendo A Gaivota no
Glauce Rocha, há muito tempo.
BETE – Ela fazia uma gaivota?
MÁRIO – Então ela é boa atriz mesmo.
ARTUR – É. É sim...

(Silêncio)

MÁRIO – A carne está um pouquinho puxada no sal.


BETE – Come com o arroz que está quase sem nada.
ARTUR – Mãe, você já ouviu falar no shoebill?
BETE – Xibiu?
ARTUR – Shoe-bill. É um pássaro ciconiforme que vive na África, a
oeste do Nilo, é meio azulado, grande assim (faz com a mão até a altura
da cintura), tem cabeça enorme e um bico de sapato.
MÁRIO – Que que tem o xibiu?
ARTUR – Tem que é um pássaro relativamente raro, procurado por
observadores.
MÁRIO – Hum.
BETE – O cozido está servido, caprichem na abóbora e no inhame:
estão uma delícia.
ARTUR – Ele vive em largas regiões, é um pássaro grande, bonito.
Mas muitas pessoas insistem em colocá-lo em cativeiro. Em zoológi-
cos. Eu acho uma pena.
MÁRIO – Hum. Está bom mesmo esse inhame, do jeito que eu gosto:
não muito cozido.

(Todos comem.)

ARTUR (quebrando o silêncio) – Eu vou assistir a um musical esse fim de


semana, alguém quer ir comigo? Chama-se...
Peças teatrais 91

BETE – Você e essa sua mania de ficar indo ao teatro.


MÁRIO – Só gastando o meu dinheiro.
ARTUR – Eu pago meia. E eu tenho o dinheiro do estágio...
MÁRIO – Mas quem é que paga a sua casa? A sua comida? A sua roupa?
Quem paga seu médico, seu cursinho de alemão?
BETE – Você tem que ser mais grato ao seu pai e...
MÁRIO – E trabalhar logo. Trabalhar de verdade, ganhar o seu dinhei-
ro e ter a sua vida.
BETE – Ele sabe disso, não é, filho? Nosso filho é um menino ajuizado,
graças a Deus.
MÁRIO – Como é que está no estágio? E na faculdade? Como está o
seu CR?
ARTUR – Está bem. Eu estou tendo bastante trabalho, é como se eu
fosse efetivado, só a remuneração que é de estágio. E a faculdade está
bem também, às vezes eu fico um pouco desanimado... Às vezes parece
que não era bem isso que...
MÁRIO – O quê?
ARTUR – Não era bem isso que eu queria... Eu estou um pouco can-
sado desse meio...
MÁRIO – Está cansado, descansa e começa de novo. Você não pode
se dar ao luxo de ficar cansadinho não. Esse é o seu futuro. É o que eu
sempre digo: você tem que dar tudo de si, tem que ser o melhor no
que faz. Quando eu tinha a sua idade já ajudava em casa. Já estava me
casando e com mais dois anos montei minha própria casa com sua mãe.
Vocês hoje em dia têm tudo fácil, tudo nas mãos e não dão valor a nada.
ARTUR – Mas...
BETE – Ouve seu pai.
MÁRIO – Vocês, geração Y, receberam tudo de bandeja e acham que
a vida tem que ser como vocês imaginaram. Surpresa: as coisas não
são como a gente idealiza não. Tem que ralar muito para conseguir
ser alguém.
ARTUR – Mas, pai, eu gosto de outras coisas, não estou satisfeito.
MÁRIO – É culpa desses yuppies, hipsters, sei lá. As coisas deixam de
ser por um momento o que você sonhou e vocês querem desistir.
92 Felipe Mury

ARTUR – Eu gosto de teatro pai.


MÁRIO – Gosta de teatro, vai ganhar seu dinheiro e no tempo vago vai
assistir a peças, quem sabe você até escreve uma. Mas você quer o quê?
Quer viver dessa porra?
ARTUR – Na verdade era o que eu queria.
MÁRIO – E vai morrer de fome?
ARTUR – Não. Tem muita gente se sustentando com isso...
MÁRIO – Porra nenhuma, tudo filhinho de papai que não precisa se
preocupar com comprar apartamento, com comida, com nada. Para
trabalhar com isso, você tem que ser rico e sem contar que tem que
ter uma família no ramo. Você é filho de pobre, tem que trabalhar, não
pode viver na vagabundagem não.
ARTUR – Isso é trabalho.
BETE – Arturzinho sempre gostou de teatro, não é?
MÁRIO – Não encoraja, Bete!
ARTUR – Pai, talvez haja uma maneira de se trabalhar e de ganhar al-
gum dinheiro com isso.
MÁRIO – Não tem. Daqui a pouco esse moleque vai querer dar o cu
também.
BETE – Mário!
MÁRIO – Só falta isso. Isso é modismo, ele está vendo não sei quem
que virou ator e está querendo imitar. Imita coisa boa.
ARTUR – Pai, eu só estou falando...
MÁRIO – Estava ótimo o cozido. Essa conversa para mim está encerra-
da. (Levanta-se) Vou dormir que alguém tem que trabalhar amanhã. (Sai)
ARTUR (balbuciando) – Foge mesmo...
BETE – Tenta entender seu pai. Ele tem mais experiência que você. Só
está tentando te ajudar. (tira a mesa)

(ARTUR permanece sentado.)


(Dia seguinte, de manhã.)

ARTUR – Bom dia.


Peças teatrais 93

MÁRIO – Bom dia.


BETE – Bom dia.
MÁRIO – Sua mãe e eu conversamos e chegamos a uma conclusão.
ARTUR – Eu também cheguei a uma conclusão.
MÁRIO – Qual?
ARTUR – Vou largar o estágio.
MÁRIO – O quê? Você está ouvindo isso, Bete?
ARTUR – Não está dando mais para mim. Não gosto daquilo e estou
sendo explorado. E se dê por satisfeito de eu não largar a faculdade
também.
MÁRIO – Você deve estar de brincadeira comigo. O que eu falei on-
tem não surtiu nenhum efeito, não é?
ARTUR – Pai, eu tenho que procurar o meu caminho, a minha felici-
dade.
MÁRIO – Felicidade é dinheiro na mão! Você só fez confirmar a minha
impressão. Quero que você vá ao psiquiatra. Sua mãe já marcou.
BETE – Marquei hoje, meu filho, às 18h, no Largo do Machado.
ARTUR – Vocês estão de sacanagem.
MÁRIO – Olha essa boca, seu filho da puta.
ARTUR – Vai me esperando lá...

(Sala de espera do consultório, os três sentados, os pais leem revistas.)


(Longo tempo.)

OTÁVIO (saindo do consultório) – Vamos lá.

(Entram e sentam-se. Artur separado dos pais.)

OTÁVIO – Tudo bem? E então? Como é que eu posso ajudá-los?


MÁRIO – Deixa que eu falo. Então, Dr. Otávio, a gente já há algum
tempo tem tido alguns problemas com o Artur. Ele está no quarto pe-
ríodo de Direito, está estagiando.
OTÁVIO – Hum.
94 Felipe Mury

MÁRIO – Ele, desde o início da adolescência tem ficado muito intros-


pectivo, recluso até, respondão. Não apresenta namorada para a gente.
Não conhecemos os seus amigos.
BETE – Tem o Túlio só.
MÁRIO – É. Um amigo. Que nunca dá as caras.
ARTUR – Isso não é verdade. Eu tenho vários amigos.
MÁRIO – Não conheço nenhum. Amigo que seus pais não conhecem
não é amigo.
ARTUR – Ah, vocês têm que chancelar a minha vida agora, com quem
eu ando, o que eu faço.
MÁRIO – Está assim. Tudo que a gente fala ele rebate. Nossa opinião
não serve de nada. E por último, para completar, ele está falando em
largar o estágio. E falou ainda em largar a faculdade também.
OTÁVIO – Está contestador, está rebelde...
MÁRIO – Exatamente. Daqui a pouco eu não vou mais sustentar ele
e ele tem que se bancar. Isso que ele não entende. Essa faculdade é o
passaporte dele para a independência que ele tanto quer.
OTÁVIO – Claro. Uma faculdade de Direito não se abandona assim.
Já está no quarto período.
ARTUR – Mas eu não estou gostando. Eu queria fazer alguma coisa
com artes, com teatro.
OTÁVIO – Termina essa faculdade, que com um diploma na mão você
vai poder fazer o que quiser.
ARTUR – Mas eu já vi, posso fazer transferência para Artes Cênicas.
Poderia excluir sociologia e metodologia que já cursei. E o tempo de
conclusão seria o mesmo, porque Artes Cênicas são só oito períodos.
OTÁVIO – É, mas um diploma de Direito vale mais.
ARTUR – Mas eu tenho que investir numa formação em cima do que
eu vou fazer. Não adianta me formar em uma coisa e trabalhar em ou-
tra e ter que correr atrás do tempo perdido depois. Quem se formou
em Artes Cênicas vai ter vantagem em relação a mim.
OTÁVIO – Besteira. Você é jovem, pega qualquer coisa rápido.
MÁRIO – Mas você vai trabalhar como advogado. Quando começar a
ganhar seu dinheiro para valer, começar a se sentir útil, a ir a festas, vai
gostar. Todo mundo passa por um momento de dúvida.
Peças teatrais 95

OTÁVIO – É verdade.
MÁRIO – E pode fazer um concurso.
OTÁVIO – Tem muitos agora. Defensoria, Ministério Público, Diplo-
macia. É só escolher.
MÁRIO – Fazer uma carreira no serviço público. A prima dele é pro-
motora, está com a vida ganha. Ele sabe.
OTÁVIO – Nesse ponto seu pai tem razão.
ARTUR – Mas eu não quero. Não me compatibilizo com isso.
OTÁVIO – Mas isso você adquire com o tempo, com a prática. Em
qualquer profissão vai ter alguma coisa que você não gosta. E depois,
advogar, os tribunais, é tudo um grande teatro. É muito parecida a pro-
fissão de ator com a de advogado: nas duas você tem que convencer
alguém.
ARTUR – Mas eu não nasci para fazer isso. Eu não quero.
OTÁVIO – E as relações afetivas?
MÁRIO – Não namora ninguém. Só sai de casa para ir a esse maldito
teatro.
OTÁVIO – Eu queria ouvir a mãe falar um pouco sobre isso.
BETE – Olha, ele nunca teve problema de relacionamento não. Mas
sempre foi mais para reservado. Sempre foi muito palhaço com a gente
e tal, mas não é de sair muito não. E namorada, desde que ele entrou
para a faculdade não tem nenhuma. Já teve antes. Se lembra da Mari-
na? Da Luana?
OTÁVIO – E relacionamento em casa? Como ele é em casa? (olhando
no computador)
BETE – É o que eu falei. Não temos problemas. Só ultimamente que
ele está mais invocado, mas quieto, mas ao mesmo tempo meio nervo-
sinho de vez em quando, não pode ser contrariado.
OTÁVIO – Fuma? Bebe?
MÁRIO – Não. Não com o meu dinheiro.
ARTUR – Não.
OTÁVIO – Bom.
BETE – Mas é isso. Ele é um menino bom.
OTÁVIO – Com certeza.
96 Felipe Mury

MÁRIO – O que você diz?


OTÁVIO – Bem, essa é a minha área de estudo. Eu me especializei em
transtorno bipolar já há uma década. Eu já falava nessa doença no Brasil
quando ainda não se entendia muito bem sobre.
ARTUR – Doença?
OTÁVIO – Sim. O que você tem é uma doença.

(ARTUR ri.)

BETE – Então é coisa séria.


MÁRIO – Eu já sabia que ele não estava normal.
OTÁVIO – É muito sério, sim. A maioria das pessoas não leva muito
a sério esse transtorno, acha que é temperamento, se você fosse em
outro especialista provavelmente ele diria que você está bem e aconse-
lharia só a terapia.
ARTUR – Vocês estão loucos.
MÁRIO – Não somos bem nós.
OTÁVIO – Nós vamos começar com o tratamento medicamentoso logo.
ARTUR – Remédio?
OTÁVIO – Ele está dormindo à noite?
MÁRIO – Tarde. Vai dormir tarde.
OTÁVIO – Faz parte do quadro mesmo. A gente vai começar com o
lítio e esse outro que é para relaxar na hora que for dormir. Não é cal-
mante, ele só vai facilitar o seu sono.
ARTUR – Eu não preciso disso.
OTÁVIO – Deixa esse diagnóstico por minha conta. Muitos pacientes
têm resistência à medicação, mas, pensa que se você tivesse uma car-
diopatia, se tivesse problema nos rins, no fígado, um câncer, você não
ia se negar a tomar o remédio. É só porque você não vê a doença. Mas
ela existe.
ARTUR – Exatamente, eu não vejo a doença. Isso é muito subjetivo.
Você queira me desculpar, mas eu chego aqui, eles relatam uma situa-
ção e você já vai me receitar droga?
Peças teatrais 97

OTÁVIO – Eu tenho aqui pacientes que não se perdoam por não te-
rem começado a medicação antes. Quanto antes melhor. Fique conten-
te por termos identificado esse transtorno a tempo. Tem casos aqui que
a gente tem que internar direto. Se eu te contasse você não acreditaria.
Eu tenho um paciente que saiu distribuindo um livro que ele mesmo
escreveu na rua, já imaginou isso? Tem outro, militar reformado, que
sai por aí fazendo sexo sem camisinha em banheiros públicos com ou-
tros homens. Já imaginou a dor dessas famílias.
BETE – Meu filho, escuta ele. É para o seu bem.
MÁRIO – Então estamos acordados. Você vai fazer o tratamento.
ARTUR – Eu não sei.
BETE – Ele está acostumado a lidar com as suas questões meu filho. Já
viu isso, é experiente. É médico, ele sabe.
OTÁVIO – Está aqui a receita. Posso marcar? Daqui a quinze dias?
MÁRIO – Pode marcar.
BETE – Eu venho com você.
ARTUR – Se é pra fazer isso então que seja sozinho. Eu respondo por
mim mesmo.
BETE – Meu filho...
ARTUR – Eu já tenho 20 anos, pelo amor de Deus!
OTÁVIO – Por mim, tudo bem. (faz a receita. Entrega à mãe)
BETE – (pausa) Aqui está o cheque. (entrega ao médico)

(OTÁVIO entrega o recibo.)


(Os pais se levantam. Artur não se levanta.)
(Luzes se apagam e se acendem novamente. Quinze dias depois.)
(OTÁVIO está sentado na frente de ARTUR, atrás da mesa, com as duas mãos
apoiadas na barriga avantajada e com os dedos indicadores se tocando, assim
como os polegares, formando um triângulo.)

OTÁVIO – É o que eu estou falando para você. O seu quadro é de bipo-


laridade e se não for tratado pode evoluir ou para uma depressão severa
ou para um quadro psicótico de mania. Como nós não queremos nenhu-
ma dessas coisas, o melhor que temos a fazer é enfrentar o problema.
98 Felipe Mury

ARTUR – Vamos lá... Obviamente eu estou em um momento de vul-


nerabilidade, estou confuso, insatisfeito, mas essas coisas poderiam ser
indícios de uma questão sentimental mal resolvida, profissional, psico-
lógica. Mas não psiquiátrica.
OTÁVIO – Não. Eu tenho experiência. Esses livros e esses diplomas
que você está vendo aí não são à toa. Com a sua idade e pelo que a sua
mãe e o seu pai descreveram, você é um borderline típico. Essa é uma
consequência da modernidade. Estamos todos suscetíveis a estímulos
que podem despertar predisposições genéticas a um comportamento
esquizoide.
ARTUR – Genético?
OTÁVIO – Sim. A sua mãe estava me contando que foi depressiva por
um bom tempo na juventude.
ARTUR – Você falou com a minha mãe?
OTÁVIO – Sim. Ela ligou para cá preocupada com a sua condição.
ARTUR – E o que essa medicação vai fazer? Ou melhor, está fazendo.
OTÁVIO – O lítio vai melhorar a qualidade das suas sinapses e vai aju-
dar a regular o seu humor. O lítio é um mineral que o nosso corpo não
produz, é encontrado em fontes termais, na natureza.
ARTUR – Se não é produzido pelo nosso corpo não pode ser impor-
tante.
OTÁVIO – Aí é que você se engana. Temos que consumir uma quan-
tidade certa de lítio, algumas pessoas têm deficiência. É aí que a droga
entra.
ARTUR – Eu vou confiar no seu conhecimento, na sua experiência. Eu
vou aceitar e seguir o tratamento.
OTÁVIO – Fico feliz. Você está no caminho certo. (pausa) Você, como
um bom estudante de Direito deve gostar de política. Está acompa-
nhando as eleições americanas?
ARTUR – Sim, me interesso. Acho que vamos ter sorte; os democratas
devem ganhar.
OTÁVIO – E isso é sorte?
ARTUR – Você quer um membro do Tea Party mandando nos Estados
Unidos?
Peças teatrais 99

OTÁVIO – Aquele país precisa de homens fortes. Como é que vão


combater os terroristas? Manter as tropas no Oriente Médio?
ARTUR – Mas isso é uma questão de política externa equivocada. Não
é para manter as tropas lá. E depois, você quer uma América com mais
armas, com negação do casamento gay, com criacionismo?
OTÁVIO – Exceto pelo criacionismo, não vejo problema.
ARTUR – Eu acho melhor parar por aqui. Já vi que a gente discorda
nesses temas também.

(Olham-se fixamente.)

ARTUR – Mas e se não der certo? E se não acontecer o que você espe-
ra, e se eu, aos seus olhos, não melhorar?
OTÁVIO – É melhor você ficar na mesma sendo observado por mim
do que fora daqui.
ARTUR – Mas quanto tempo isso vai durar?
OTÁVIO – Esse é um tratamento para a vida toda. Se você tivesse hi-
pertensão ia ter que tomar remédio e acompanhar a pressão até mor-
rer. É a mesma coisa.
ARTUR – A vida toda? Você está brincando.
OTÁVIO – Não, rapaz.
ARTUR – E o que eu estou tomando? Quais são os efeitos colaterais?
OTÁVIO – Carbonato de lítio, 450 miligramas, e hemifumarato de
quietiapina, 100 miligramas. Não tem efeitos colaterais. Não se preo-
cupe com isso.
ARTUR – Todo medicamento tem um porém. O que vai acontecer?
OTÁVIO – Você vai ter um leve aumento no apetite.
ARTUR – Vou engordar?
OTÁVIO – Só se você quiser. É só se exercitar que não vai ter proble-
ma. Como estão as suas notas?
ARTUR – Estão bem. Introdução, TGE e Sociologia e Metodologia fo-
ram bem fáceis. Agora tenho Constitucional, que também é tranquilo.
Só Penal que eu não gosto tanto e Tributário e Empresarial que acho
que vai ser chato mais para a frente.
100 Felipe Mury

OTÁVIO – Está vendo. Você fala como quem gosta de Direito. Só não
diga que vai ser chato antes de acontecer.
ARTUR – Bem, eu suporto. Não é ruim. É sempre bom estudar algu-
ma coisa. Mas acho que seria melhor aproveitado se estivesse fazendo
algo que me interessasse mais.
OTÁVIO – Hum.
ARTUR – Fui assistir a Hair há um mês e achei uma obra-prima. Não
consegui parar de bater as mãos no assento acompanhando a melodia e
cheguei a chorar. Eu queria muito estar ali. Fazer parte daquilo. Sentir
aquele cheiro, aquela poeira todo dia.
OTÁVIO – É típico romantizar assim. Se você quisesse mesmo ir, já
teria ido. Nada te impediria. Mas você sabe que é muito difícil, que
tem muita gente boa no mercado. Sabe que será um bom advogado.
Você no fundo tem bom senso.
ARTUR – Eu não estou romantizando, pelo contrário, estou sendo
bem pragmático: não está bom, troca.
OTÁVIO – E as namoradas? Você já tem que dar graças a Deus por não
ser homossexual. Você não é homossexual, é?
ARTUR – Não, mas podia ser.
OTÁVIO – Mas não é. Isso facilita as coisas.
ARTUR – Pode ser.
OTÁVIO – E por que não está namorando?
ARTUR – Não apareceu ninguém. Eu também não tenho tempo, só
estudo, só trabalho. No fim de semana durmo como uma pedra.
OTÁVIO (faz a receita, entrega) – Está certo. Está se concentrando. Te
vejo daqui a quinze dias.

(ARTUR lhe entrega o cheque, ele devolve o recibo.)


(Luzes se apagam e se acendem novamente. 48ª consulta.)

OTÁVIO – Está tomando o remédio direito?


ARTUR – Sim.
OTÁVIO – É imprescindível que você tome o remédio na hora certa,
sem faltas.
Peças teatrais 101

ARTUR – OK.
OTÁVIO – Fazemos um ano juntos. Acho que você está evoluindo.
Nenhum quadro de mania. Por outro lado, você está levantando todo
dia, está cumprindo suas obrigações, não está deprimido.
ARTUR – Mas também não estou fazendo nada. Minha vida está pa-
rada.
OTÁVIO – Como parada? Está terminando seu curso. Está entrando
no mercado de trabalho. ARTUR – Semana passada conheci uma garo-
ta. Amiga de uns amigos meus. Eu tentei marcar com ela, mas a verda-
de é que estava muito cansado para sair com ela.
OTÁVIO – Está certo. Você tem outras prioridades nesse momento.
ARTUR – Mas eu saí. Mesmo assim saí.
OTÁVIO – Hum.
ARTUR – Nós fomos tomar um café.

(Silêncio)

ARTUR – Ela começou a falar da vida dela, ela é designer, já fez bas-
tante coisa legal. Conhece o mundo todo. Já morou na Lituânia, sabe o
que é isso? Lituânia.
OTÁVIO – Interessante.
ARTUR – Quando eu comecei a falar de mim, percebi que não tinha
nada de interessante para falar. Eu não me empolgava com nada do que
eu dizia, parecia que ouvia o eco das minhas palavras. Me senti burro,
vazio. Pior, me senti chato.
OTÁVIO – Essas questões você vai tratar na terapia. Como está com
a psicóloga?
ARTUR – Acho que está bem. Eu narro a minha vida para ela e ela me
ouve. Nesse sentido é um sucesso.
OTÁVIO – Arranjar alguém que nos ouça é algo dificílimo.
ARTUR – Mas eu estou pagando a ela para isso.
OTÁVIO – Seus pais, o que estão dizendo de você? Como está o rela-
cionamento em casa?
ARTUR – Tudo na mesma. Às vezes a gente discute.
102 Felipe Mury

OTÁVIO – Discute como?


ARTUR – Discute. Fala alto.
OTÁVIO – Isso é sintoma de mania. Você está apresentando essa ten-
dência de se alterar. Isso acaba mal.
ARTUR – Eu não posso ficar irritado?
OTÁVIO – Não. Você pode discordar das pessoas, mas tem que fazer
isso com calma.
ARTUR – Mas eu não estou fazendo nada de mais. Não faltei com o
respeito com ninguém.
OTÁVIO – Isso eu não sei.
ARTUR – Olha, a gente discute pelos mesmos motivos. Meu pai quer
que eu vá dormir mais cedo. Eu não quero ir a essa faculdade idiota...
OTÁVIO – De novo isso?
ARTUR – É isso que está me incomodando. Eu vou terminar essa mer-
da. Eu vou terminar e quando terminar a primeira coisa que eu vou
fazer vai ser rasgar esse diploma e entrar num curso de teatro.
OTÁVIO – Você sabe o quanto é difícil conseguir um papel em teatro
no Brasil? Aliás, difícil não é; difícil é ser pago, difícil é ganhar prêmio.
Tem uma menina aqui no consultório, ela é mais nova que você – tem
isso, você já está velho –, é linda e canta maravilhosamente. Cadê que
ela consegue papel? Tem agente, vai a audição, não consegue nada.
ARTUR – Eu quero tentar. (Pausa) Não, eu quero conseguir.
OTÁVIO – Não se iluda. O que faz você diferente dessa horda de gen-
te que não arranja emprego em teatro? Isso não é assim não, rapaz.
Você precisa trabalhar.
ARTUR – Mas eu quero trabalhar com teatro.
OTÁVIO – Qualquer imbecil faz um curso de teatro aí e se diz ator.
Isso a minha sobrinha de 5 anos faz. Você está em uma faculdade de Di-
reito, é isso que vai te levar para a frente. Teatro não dá camisa.
ARTUR – Eu preciso confirmar isso.
OTÁVIO – Eu não devia falar isso, mas na sua idade, na sua idade, eu
escrevia roteiros. Roteiros de cinema. Mas aí eu tive que trabalhar. (gri-
ta) Trabalhar, senão meus filhos não comem!
ARTUR – Eu preciso ter certeza.
Peças teatrais 103

(Luzes se apagam e acendem novamente. 60ª consulta.)

ARTUR – Eu estou engordando. Já engordei quinze quilos desde que


comecei a tomar isso.
OTÁVIO – É um exagero, não é culpa do remédio. Você não está se
exercitando.
ARTUR – Meu cabelo está caindo. Também não estou tendo vontade
de transar, está mexendo com a minha libido. Eu li na bula que isso
pode acontecer.
OTÁVIO – É, mas é muito raro. É uma coincidência. Sempre acon-
teceu e agora você está notando mais. Sabe, os fabricantes colocam na
bula esses efeitos que é para no caso de acontecer, eles estarem prote-
gidos contra processos. Em todo caso eles avisaram.
ARTUR – Mas pode estar acontecendo, não pode?
OTÁVIO – Pode.
ARTUR – Eu quero parar. Vou ficar só com a terapia.
OTÁVIO – Não é possível. Seu tratamento é para a vida toda. Se você
parar eu não me responsabilizo pelo que possa acontecer. Você vai per-
der suas funções, vai perder o ano na faculdade, vai dar problemas.
ARTUR – Eu vou correr o risco. Não está valendo a pena para mim.
OTÁVIO – Valendo a pena? Eu já te contei do meu paciente que lar-
gou a esposa depois de trinta anos de casado porque resolveu que ia
doar tudo o que tinha para os pobres e viver na rua? Uma boa parte da
população tem esse seu transtorno. Os que não são tratados estão por
aí, fazendo escândalos, se afundando em vícios, atirando em cinemas e
escolas, em depressão.
ARTUR – Eu quero ser capaz de gerir a minha própria vida, não quero
ficar dependente de um fator externo.
OTÁVIO – Fator externo que vai salvar a sua vida.Você não pode abrir
mão do remédio.

(Silêncio)

OTÁVIO – Eu tive aqui um paciente, um garoto mais novo que você.Vi-


nha aqui com a mãe.Tomou remédio durante anos. De repente ele achou
104 Felipe Mury

que estava bem e resolveu que não ia mais tomar nada. Eu falei para a
mãe dele que ele não podia deixar de tomar. Que ele ia entrar em surto
e que ia fazer uma besteira. Passaram-se alguns meses, a mãe dele veio
aqui. Ele se matou. Sabe o que eu disse para ela? Ela me perguntou o que
ela fazia agora. Eu disse: enterra. Agora é só enterrar. Eu previ a morte
desse garoto. Não posso deixar que isso aconteça com nenhum outro pa-
ciente. Eu tenho uma responsabilidade com a sua vida.

(Silêncio)

OTÁVIO – Como está o seu sono? Você sabe que tem que ter horário
para dormir, para comer, para tudo, não é?
ARTUR (atordoado) – Hum.
OTÁVIO – Olha, fique satisfeito por não estar tomando coisa mais
forte. Hoje nós temos drogas aí muito mais potentes.
ARTUR – O que me incomoda é o fato de isso poder ser uma evolu-
ção. Daqui a pouco vou estar tomando mais remédios. Daqui a pouco
você vai falar em choque.
OTÁVIO – O choque para algumas pessoas em outros estágios funcio-
na muito bem. Tem gente que pede para fazer ECT. Quando eu estava
estudando na Califórnia, conheci um homossexual que me pedia. Ele
dizia que sabia que não estava morrendo por causa dos remédios, sabia
que estava morrendo porque era pederasta.

(Silêncio)

OTÁVIO – Você não pode correr o risco de ficar psicótico e entrar em


surto. Para isso acontecer é muito fácil.
ARTUR – Você está dizendo que eu não posso ficar mais rápido, mais
ativo; senão eu vou ficar psicótico? Eu sinto que quando estou mais
acelerado rendo muito mais, eu sou melhor.
OTÁVIO – Não, esse é um grande engano. Vai começar a fazer tudo
correndo, com pressa, vai perder a paciência com as pessoas, com
qualquer coisinha que dê errado. Você precisa de calma.
Peças teatrais 105

ARTUR – Mas os grandes gênios eram assim. Tinham um tempera-


mento difícil.
OTÁVIO – Essa é a questão! Não tente ser gênio. Você vai tentar ser
o melhor e não vai conseguir. Pelo contrário, vai criar inimizades, vai
ficar pilhado, não vai conseguir se concentrar. Vai achar que é o cara, a
sensação vai ser muito boa, mas seu rendimento vai para o buraco.Você
já teve alucinações? Já ouviu vozes?
ARTUR (enojado) – Não...
OTÁVIO – É muito comum nesse tipo de circunstância. (Abre um ar-
mário ao lado e de lá caem várias caixinhas de remédios que ele recebe dos la-
boratórios. Pega um) Essa aqui é a risperidona. Eu estou pensando em
adicionar também.
ARTUR – Está falando sério?
OTÁVIO (entregando uma caixa para ele) – Olha, se Van Gogh tivesse
tido essa ajuda não teria tido a vida que teve.
ARTUR – Eu não sou Van Gogh.
OTÁVIO – É, mas tem o mesmo problema. Eu já te falei da carta que
ele escreveu para o irmão? Você precisa saber dessa história. Procure
saber, é comovente. A mesma coisa com outros grandes: Chet Baker,
James Dean... O Chet se jogou de uma janela de hotel depois de ter
cheirado tudo. Você sabe dessas coisas, eu não estou falando nenhuma
novidade para você.
ARTUR – Pode ser, mas eu não me incluo nessa lista.
OTÁVIO – Ainda bem. Amy Winehouse, Jim Morrison, Jimi Hendrix,
Janis Joplin, Cazuza, Renato Russo. Você quer fazer parte do clube dos
27 anos também?

(OTÁVIO faz a receita, entrega.)


(ARTUR entrega-lhe o cheque e médico devolve o recibo.)
(ARTUR se levanta, muda de cadeira.)
(Luzes se apagam e se acendem novamente. 70ª consulta.)

OTÁVIO – É claro que se você tem mais pessoas armadas, menos gen-
te vai querer cometer um crime à mão armada.
106 Felipe Mury

ARTUR – Os números não mostram isso. Nossa sociedade tem muitas


armas e é muito violenta.
OTÁVIO – Eu tenho o direito de tentar me defender.
ARTUR – Os especialistas afirmam que é melhor não reagir, isso só
aumenta as chances de alguém se ferir.
OTÁVIO – Olha, é cultural. Você não pode querer tirar isso dos ame-
ricanos porque a sociedade lá vê em um revólver, em uma pistola, um
símbolo de poder. É cultural.
ARTUR – As culturas mudam.
OTÁVIO – É a mesma coisa você dizer que legalizar as drogas vai fazer
a violência e o consumo caírem.
ARTUR – O consumo, eu não sei. Apesar de em quase todos os países
onde foram liberadas, ele ter caído; no Uruguai, por exemplo. Agora,
que a violência relacionada ao tráfico vai acabar, isso sim. Você acaba
com o elemento da ilegalidade, do contrabando e até cria uma econo-
mia formal complementar. O problema passa a ser de saúde pública e
não de segurança.
OTÁVIO – Não sei, não estou convencido.
ARTUR – Por que o comércio de entorpecentes não pode ser igual
ao de cerveja ou ao de cigarro? É uma questão de cuidar mais do pon-
to de vista da prevenção, da saúde do que na repressão. Nós gastamos
milhões para proibir isso e milhares de pessoas morrem. Alguma coisa
está errada.
OTÁVIO – O que está errado é que não estamos fazendo direito. Tem
que meter bala nesses bandidos mesmo e cercar as favelas todas. Nin-
guém entra, ninguém sai.
ARTUR – Bem...
OTÁVIO – E o Direito Tributário que você disse que ia ser difícil?
ARTUR – Estou tendo agora.
OTÁVIO – E aí?
ARTUR – É bem chatinho. Mas não é difícil não. Vou passar.
OTÁVIO – Que bom.
ARTUR – Você sabia que se você chegar no Actor’s Studio, em Nova
Iorque, e mostrar que é ator, pode assistir a uma aula de graça lá?
Peças teatrais 107

(OTÁVIO permanece em silêncio.)

ARTUR – Imagina. Imagina ter aula com aqueles caras. Aquilo deve
ser o máximo.
OTÁVIO – Mais de que você vai ter aula esse semestre?
ARTUR – Realismo americano. Stela Adler, Lee Strasberg, Marlon
Brando, Al Pacino. Só fera.
OTÁVIO – Empresarial? Já teve?
ARTUR – É o método Stanislavski. Constantin Stanislavski, o do Tea-
tro de Moscou. Montou muito Tchekhov. Criou todo um sistema mo-
derno para a atuação. Profissionalizou o teatro.
OTÁVIO – Acho que você deve se sair bem nessa também. É só legis-
lação, não é?
ARTUR – E Brecht? Você já assistiu à Ópera dos Três Vinténs? Ou a Baal?
Esse cara era muito bom também. Teatro épico. Ele previu tudo que ia
acontecer na Alemanha com o nazismo, sabia? Teve que sair de lá.
OTÁVIO – Você tem boa relação com seus professores? Está preparan-
do o campo para o mestrado?
ARTUR – E Grotowski? O processo. Esse era louco. O cara inventou
uns exercícios muito específicos. Ele aprimorou o trabalho do Stanis-
lavski com a memória emotiva.
OTÁVIO – Se conseguisse conciliar trabalho com o mestrado, seria o
ideal.
ARTUR – Esquece o Direito!
OTÁVIO – Esquece você essa baboseira de teatro.Você não vê que está
perdendo um tempo precioso? Você está se iludindo.
ARTUR – Então deixa eu me iludir. Isso me faz bem. É a única coisa
que me faz bem em um mar de pressão, de pasmaceira, de chatice!
OTÁVIO – É esse esforço que você tem que fazer. Está pensando que
é fácil? Que todo mundo gosta de sentar a bunda na cadeira e ficar es-
tudando? Mas tem que fazer. Tem que vencer isso, rapaz.
ARTUR – Eu tenho que fazer o esforço que eu escolher. Não é você
que vai me dizer o que fazer.
OTÁVIO – Não sou eu que estou dizendo. É a vida. Você está em uma
faculdade de Direito e é isso que você tem que estudar.
108 Felipe Mury

(ARTUR bufa.)

OTÁVIO – Não adianta fazer essa cara não. Você sabe que eu estou
certo. Seu pai está se matando de trabalhar para te dar a melhor educa-
ção e você está querendo desperdiçar essa oportunidade?
ARTUR – Pelo contrário.
OTÁVIO – Eu não vejo outro meio de você vencer na vida. Tem que
vencer esse seu bloqueio, essa sua prevenção contra o Direito. Tem que
se livrar dessas dúvidas.
ARTUR – Está certo. Eu vou me livrar dessas dúvidas.

(OTÁVIO faz a receita e entrega-lhe.)


(ARTUR entrega o cheque; OTÁVIO, o recibo.)
(OTÁVIO se levanta e vai abrir a porta para ARTUR, que sai.)
(Sala de casa)
(ARTUR ouve Chet Baker.)

BETE – Meu querido, toma esse sanduíche. Está uma delícia. Quer
suco de maracujá?
ARTUR – Obrigado, mãe. Não quero, não, obrigado. Você pode cha-
mar o meu pai, eu queria falar com vocês dois.
BETE – Mário!
MÁRIO – Oi.
ARTUR – Oi. Olha, eu queria falar com vocês dois. Eu pensei bastan-
te. Ponderei os prós e os contras e cheguei a uma decisão. Eu não vou
mais fazer a faculdade de Direito. Vou começar Artes Cênicas. Já está
decidido.
MÁRIO – Como assim já está decidido? Não está nada decidido. Você
não vai largar faculdade nenhuma.
BETE – Meu amor, pensa bem, você estudou tanto no vestibular, vai
jogar isso fora?
ARTUR – Eu não vou largar. Vou migrar para Artes Cênicas.
MÁRIO – Você não tem nada a ver com isso, você é tímido.
ARTUR – O que isso tem a ver? No palco é outra coisa.
Peças teatrais 109

MÁRIO – Eu não quero ouvir mais isso.


ARTUR – Está certo, assim você não se mete no que você não sabe.
MÁRIO – Olha como seu filho está falando comigo, Elizabete.
BETE – Meu filho, termina o Direito.
ARTUR – Mãe, eu só vou perder tempo se continuar nessa faculdade.
Eu estou me deteriorando.
BETE – Você está muito caidinho mesmo.
MÁRIO – Deve estar usando entorpecente, esse merda. Mas isso é for-
ça de vontade da pessoa. Fica trancado nesse quarto aí, dormindo em
hora errada. Vai tirar o fim de semana para passear, vai namorar. Você
está criando problema onde não tem.
BETE – Isso é verdade, meu filho, você tem que ter mais força de von-
tade.
MÁRIO – Determinação. Terminar isso e começar a trabalhar. Vai ga-
nhar seu dinheiro e fazer o que quiser. Pode ir assistir peça, filme o dia
todo.
ARTUR (gritando) – Eu não vou ganhar dinheiro com Direito! Põe isso
na sua cabeça!
MÁRIO – Está gritando por quê? Hein, seu filho da puta?
ARTUR – Porque vocês não estão querendo entender o meu lado. Vo-
cês só pensam em vocês. Como seria mais fácil ter um filho advogado,
para resolver os problemas de vocês. Como seria ruim se eu mudas-
se de faculdade, o que você ia falar para os seus amigos? Que eu estou
perdido na vida?
MÁRIO – Deixa de ser babaca.
ARTUR – É isso sim. Você não quer admitir que eu possa ter sucesso
em outra coisa. Eu não quero ser um funcionariozinho público caqué-
tico fracassado como você! Eu quero viver! Eu quero viver!

(MÁRIO dá-lhe um tapa na cara.)

MÁRIO (alterado) – Seu idiota! Você me bateu! Vai me bater todas as


vezes que a gente discordar? Fracassado, você é um fracassado! (pula e
corre de um canto para outro da casa)
110 Felipe Mury

(BETE atônita e MÁRIO se contendo para não agredi-lo.)

MÁRIO – Me dá o telefone e a agenda de telefones.

(BETE lhe dá o telefone, ele olha na agenda e disca.)

ARTUR (a zanzar) – Imbecil! Fracassado! Covarde!


MÁRIO (ao telefone) – Alô, Dr. Otávio? A gente está tendo um proble-
ma aqui com o Artur. (tempo) É, ele está agressivo, está pulando pela
casa, me xingando. Uma coisa horrível. (tempo) Santa Teresa? OK, a
gente está indo para lá. (desliga) Vamos, vamos sair.
ARTUR – Sair? Com vocês? Não vou mesmo.

(MÁRIO o pega pelo cangote e o leva até o carro.)


(Clínica)

MÁRIO – Assina essa porra!


ARTUR – Me solta! Me solta! Eu não quero ser internado! Eu não vou
assinar nada.
BETE – Assina, meu filho, vai ser bom para você. O médico mandou,
ele sabe o que está fazendo. (Põe a mão em ARTUR) Essa aqui é uma
clínica ótima, eu sei de gente que ficou internada aqui que disse que
aqui é ótimo. É para você descansar um pouco.
ARTUR – Não! (pausa. Chorando ele assina)

(ARTUR vai se encaminhando para o interior da clínica. Os pais abraçados o


olham se despedindo.)
(ARTUR está sozinho.)

ARTUR (recolhido em um canto, no chão) – Me deixa! Eu não quero to-


mar remédio, cara! Não! Me solta! Me solta! Injeção não! Não, não, na
bunda não! No braço! (em outro momento, sentado no mesmo canto no chão)
Eu não quero tomar banho agora. (tenta se desvencilhar) Tá, tá bom, eu
já vou, não precisa me bater. (fica nu, entra no banho) Não, não pega no
Peças teatrais 111

meu pau não, cara. (chora. Se encolhe, vai para o mesmo canto, recolhido, pe-
lado)
ARTUR – Eu estou gordo. (passa a mão no cabelo) Meu cabelo está cain-
do. Eu não tenho vontade de nada, não quero mais nada. (Chora. Pausa.
Sai de cena.)

(OTÁVIO está atendendo a vários telefonemas ao mesmo tempo quando ARTUR


entra.)

ARTUR – Eu vim mesmo para encerrar o tratamento.


OTÁVIO – Isso está fora de questão.
ARTUR – Eu já decidi.
OTÁVIO – Você é um perigo não só para você, mas para as outras pes-
soas. Você não pode ficar sem assistência.
ARTUR – Desde que nós começamos as coisas só pioraram.
OTÁVIO – Você nem tentou. Não se relaciona com ninguém. Deixou
suas notas caírem.
ARTUR – Eu engordei. Minha autoestima caiu. É claro que eu vou fi-
car mais quieto, deprimido na verdade. Não vou me interessar por nin-
guém e, mesmo se me interessar, não vou ter iniciativa.
OTÁVIO – Você não vai botar essa na minha conta. Você já não saía
com ninguém.
ARTUR – Você fodeu com a minha vida.
OTÁVIO – Você está maníaco. Por que você está me faltando com
o respeito? Você não é mal-educado. Você não era assim quando era
criança. Você era uma criança educada e tímida.
ARTUR – Você me conheceu quando eu era criança?
OTÁVIO – Dá para ver. Eu sei dessas coisas.
ARTUR – Você não sabe de nada, isso tudo é uma balela!
OTÁVIO – Você não pode abandonar o tratamento. Você está tendo
avanços importantes, está no meio da faculdade. Quer botar tudo a
perder? Nós estamos indo bem, você é um rapaz inteligente, sabe que
é importante o meu trabalho aqui.
ARTUR – Talvez eu procure outro profissional.
112 Felipe Mury

OTÁVIO (exaltado) – O quê? Não. Não tem nenhum outro médico


preparado como eu para cuidar do seu caso. Você vai ter que pegar um
avião e ir para São Paulo, para Nova Iorque, porque não tem ninguém
mais no Rio de Janeiro com o meu nível de especialidade. Se você for
a outro vão dizer que você está bem, que não tem nada. Eu não posso
correr esse risco.
ARTUR – Eu não posso mais conviver com esse universo! Internação,
suicídio. Não quero, não posso. Chega! (levanta-se)

(Silêncio)

OTÁVIO – Olha, vamos diminuir os remédios. Talvez isso eu possa


fazer.
ARTUR – Não. Chega. Não é mais o remédio, é tudo. Não consigo
mais vir aqui.
OTÁVIO – Você se lembra do que eu falei para você do clube dos 27?
ARTUR – Para! Isso não tem nada a ver comigo.
OTÁVIO – Ah é? Você vai pagar para ver? Eu não vou compactuar com
isso.
ARTUR – Você está me empurrando para essa realidade, está me fa-
zendo uma pessoa doente.
OTÁVIO – Esse é o mal. Está sempre transferindo a culpa para ou-
tra pessoa. Você precisa entender e aceitar que vai ter que se tratar a
vida toda.
ARTUR – Não!
OTÁVIO – Você está maníaco. Vai ser internado.

(ARTUR se levanta.)

OTÁVIO (exaltadíssimo, gritando) – Você vai se matar se você sair daqui!


Você vai se matar! ARTUR – Você é um lunático.
OTÁVIO – A sua situação está cada vez mais nebulosa. Você só está
piorando as coisas. Eu vou ligar para os seus pais. Vou ligar para o seu
pai, eu tenho o celular dele. Com ele você não folga.
Peças teatrais 113

ARTUR – Você não pode interferir desse jeito na vida dos outros.
OTÁVIO – Eu devo. Tenho essa responsabilidade.
ARTUR – Cara, por favor, chega. Seria tão melhor se você entendesse
o meu lado.
OTÁVIO – Eu tenho dois filhos um pouco mais novos que você. Estou
tentando colocá-los em uma boa universidade também. Você acha que
eu não gostaria que houvesse alguém se preocupando com eles assim
como eu estou preocupado com você?
ARTUR – Os seus filhos eu tenho certeza de que não precisam de re-
médio, não é? Devem estar por aí transando adoidado e você não sabe.
Agora os outros são todos doentes, psicóticos...
OTÁVIO – Se eles precisassem eu aceitaria, é claro. Ouça, eu te en-
tendo, na minha idade eu também tinha um pouco disso, desse incon-
formismo. Mas você não pode ser refratário à ajuda dos outros. Eu tive
outros pacientes e eu sei...
ARTUR – Você está usando as suas experiências como pessoa para me
regular e para evitar que eu pense como você pensou quando tinha a
minha idade. Mas isso é impossível, se eu não viver as questões, os me-
dos, as ansiedades da minha idade não vou me tornar um homem ma-
duro, saudável. Sim, eu romantizo. Sim, eu me espelho nos grandes gê-
nios. Sim, eu acho que posso mudar o mundo. Eu tenho que ser assim.

(OTÁVIO ri.)

OTÁVIO – Olha, eu entendo...


ARTUR – Não entende nada. Eu não sou refratário à ajuda dos outros,
só à sua.
OTÁVIO – Mas, curiosamente, eu sou o único que pode te ajudar.
ARTUR – Quem é você para dizer que eu não posso atuar? Você nem
sequer me viu atuando. Você nem sequer foi na clínica me consultar.
Você é um frustrado. Um loser que não suporta ver os outros conquis-
tando o que você nunca conseguiu.
OTÁVIO – Agora você está sendo injusto.
ARTUR – As únicas injustiças que eu estou vendo aqui são as que você
114 Felipe Mury

comete em consulta. Como você pode ser assim? Como alguém como
você pode estar ditando a vida dos outros? Você é um arrogante, acha
que sabe de tudo e nem admite a possibilidade de estar errado. Como
pode isso?
OTÁVIO – Eu sou um pusher! Um pusher! Eu sou um motivador, um
técnico, um treinador, eu quebro os limites das pessoas, eu mostro o
caminho certo. É isso que eu faço e é isso que os clientes querem quan-
do entram no meu consultório, é isso que eu dou a eles. Vocês me pa-
gam para isso.
ARTUR – Só de você pensar que existe um caminho certo eu já vejo
quem você é. Você é um domador de gente. Eu não te pago para isso.
Não mais.

(OTÁVIO faz a receita, entrega-lhe.)

OTÁVIO – Eu espero que você tome. Acredite. Não vai fazer nenhu-
ma besteira.

(ARTUR lhe entrega o cheque, OTÁVIO devolve o recibo.)


(Em algum lugar na cidade, ARTUR está sentado.TÚLIO chega, de roupa social.)

TÚLIO – E aí? Como é que você está?


ARTUR – Tudo certo. Tudo indo.
TÚLIO – Moleque, a gente está se vendo muito pouco. Daqui a pouco
a gente não se vê mais. Não pode isso não
ARTUR – É verdade.
TÚLIO – Você é como se fosse um irmão para mim. Você sabe.
ARTUR – Você é foda.
TÚLIO – A gente não sai mais, não faz aqueles programas irados de
antes. Tu tem que ir me ver pegar umas waves, cara.
ARTUR – Eu vou. Quero ir. Vou ter mais tempo agora.
TÚLIO – E a fac?
ARTUR – Terminei.
TÚLIO – Terminou? Moleque, toca aqui. Cara, isso é bom, você não
aguentava mais aquela porra. Parabéns, parabéns!
Peças teatrais 115

ARTUR – É verdade.
TÚLIO – Que irado. Você terminou essa porra...
ARTUR – Terminei.
TÚLIO – Adivinha? Eu estou trabalhando nas lojas do meu pai da Gale-
ria River. Eu trabalho no escritório. Sou gerente. Gerentaço, moleque.
ARTUR (ri) – Muito bom. Vou lá comprar uma prancha.
TÚLIO – Tu vai mesmo? Vai nada. Quando é que tu vai aprender a sur-
far, mané?
ARTUR – Vamos ver.

(Silêncio)

TÚLIO – E tua família? Como é que está, tudo certo? Estão te pertur-
bando?
ARTUR – Ah, já acostumei. Eles eu até que tiro de letra já. Acho que
eles estão conformados. Entenderam que não dá para tomarem as de-
cisões da minha vida por mim.
TÚLIO – Teu pai é durão, né?
ARTUR – Eu me entendo com ele.
TÚLIO – Sua mãe me falou que você... É verdade isso? Você foi para
uma clínica?
ARTUR – Pois é.

(TÚLIO tira do bolso e acende um baseado.)

ARTUR – Mó bad.
TÚLIO – Mó bad. Pode crer.
ARTUR – Pode crer.
TÚLIO – Mas às vezes foi necessário. Pode ter sido bom, não sei.
Como é que foi isso?
ARTUR – Discuti com meus pais, eles acharam que eu estava mal e me
mandaram para lá. O médico mandou.
TÚLIO – Médico filho da puta esse, hein.
ARTUR – Se você soubesse a raiva que eu estou desse cara.
116 Felipe Mury

TÚLIO – Você ainda está tomando alguma coisa?


ARTUR – Parei.
TÚLIO – Isso é bom. Eu acho.
ARTUR – É bom sim. Eu estava ficando na merda.
TÚLIO – Você engordou, não engordou?
ARTUR – Sim. E não foi só isso.
TÚLIO – Sei qual é...
ARTUR – Foi a época mais difícil pela qual eu já passei.
TÚLIO – Pô, cara, queria ter sabido antes.Você podia ter ficado na mi-
nha casa. Tô morando sozinho agora.
ARTUR – Acho que era para ser.
TÚLIO – Será?
ARTUR – Acho que tinha que ter essa no meu currículo.
TÚLIO – Você é doido.
ARTUR – Não fala isso.
TÚLIO – Tá certo. E a Marininha?
ARTUR – A gente voltou a se falar. Estamos saindo.
TÚLIO – Isso é foda, moleque! Muito bom.
ARTUR – É. Acho que dessa vez vou levar ela a sério. Vou tentar fazer
funcionar.
TÚLIO (levanta a mão, como em um brinde) – A fazer funcionar!
ARTUR – A fazer funcionar!
TÚLIO – Mas e aí, está de bob? Vai ficar fazendo o quê?
ARTUR – Eu me inscrevi em um curso profissionalizante em teatro.
CAL. É lá em Laranjeiras.
TÚLIO – Sei qual é. Já ouvi falar. Quer? (oferece o baseado)
ARTUR – Não. Valeu. Olha o que eu tenho aqui.

(ARTUR pega o diploma.)

TÚLIO – É o que eu estou pensando?

(ARTUR pensa em rasgar, rasga.)

TÚLIO – Uhul! Caralho, moleque, você é doido mesmo!


Peças teatrais 117

(ARTUR ri. Levanta-se. Os dois se abraçam.)

TÚLIO – Você sabe que eu te amo, não é?


ARTUR – Eu também te amo, cara.
TÚLIO – Tu é foda.
ARTUR – Não. Tu que é foda.
TÚLIO – Vai seguir teu sonho, rapá!
ARTUR – Agora sim.
TÚLIO – Tu vai ser famoso, rapá. Vai conhecer a Débora Secco, Juliana
Paes, Paola de Oliveira, Camila Queiroz... Essa é linda, você viu Ver-
dades Secretas?
ARTUR (ri) – Vi. Mas não é assim. Tem um longo caminho aí.
TÚLIO – Mas tu vai conseguir. Tu é bom. Eu me lembro daquela peça
que você apresentou na escola. Você era o quê? O galã. O galã.
ARTUR (ri) – Não era galã. Era um personagem.
TÚLIO – Mas tu é galã. Qualquer papel que tu fizer vai ser galã.
ARTUR (ri mais) – Valeu aí pelo reforço na autoestima.
TÚLIO – Você mudou.
ARTUR – Mudei.

(Sala da casa)

BETE – Vamos, está quase na hora do jantar. Hoje temos cozido!


MÁRIO – Hum, eu adoro cozido.
ARTUR – Pai, amanhã eu tenho um teste para fazer. É uma peça de
Tchekhov. Acho que eu posso ser chamado, tenho a ver com a maior
parte dos perfis.
BETE – Que bom, querido, vou torcer por você. A que horas é?
ARTUR – É às duas. Lá em Ipanema.
BETE – Você almoça meio-dia, se arruma e vai. Dá o tempo certinho.
ARTUR – E você, pai, não diz nada?
MÁRIO – Boa sorte para você. Espero que se dê bem.
ARTUR – Obrigado.
BETE – Se for para ser, você vai pegar o papel.
118 Felipe Mury

MÁRIO – Só acho que não é assim. Você não tem experiência nenhu-
ma e vai se candidatar a um papel em uma peça dessas... Tem que co-
meçar do começo.
ARTUR – Mas como é que eu vou ter experiência se eu não começar
de algum lugar. Whatever works, pai.
MÁRIO – É, mas você nem sabe se isso vai dar certo. Acabou o Direi-
to agora e...
ARTUR – Você mesmo falou que eu tenho que fazer as coisas sempre
para ser um dos melhores, fazer com gosto e com motivação.
MÁRIO – Esse aí não entendeu meus conselhos. A gente só pode colo-
car o chapéu onde a nossa mão alcança.
ARTUR – E quem falou que eu não alcanço?
MÁRIO – Bem, meu filho, se você está decidido, eu não posso fazer
nada. Só lhe dar a minha bênção.
ARTUR – Obrigado, pai. Isso é muita coisa.

(Silêncio)

BETE – Conta a novidade para ele.


ARTUR – Que novidade?
BETE – Você sabe, não esconde o jogo.
ARTUR – Ai... Bem, eu estou namorando?
MÁRIO – Namorando? Com quem? Quem é a felizarda?
ARTUR – A...
BETE – A Marininha. Lembra dela, Mário? Que gracinha de menina.
MÁRIO – Claro! Muito bom, temos que cuidar do coração mesmo.
No final, quem a gente ama é que conta. (abraça e beija Bete)
ARTUR – Vocês são felizes, não é?
MÁRIO – Somos muito. Mas nossa felicidade completa também de-
pende de você. E você? Você é feliz?
ARTUR – Eu...

(O telefone toca.)

BETE (atendendo) – Não, ele... Está bem, vou passar o recado, mas acho
que ele não precisa mais. Ele está bem. (põe o telefone no gancho)
Peças teatrais 119

ARTUR – Quem era?


BETE – Era o...
MÁRIO – Quem?
BETE – Era o Doutor Otávio. Ele ligou algumas vezes durante a sema-
na. Queria falar com você. Disse que quando você precisar, é só ligar
para ele, que ele está a sua disposição.
ARTUR – Mãe, esse cara... O que ele quer? Não dá papo para ele. Não
adianta falar com você. (Sai da sala)
BETE – Onde você vai? Já estou quase servindo.

(ARTUR pega o telefone celular.)

ARTUR – Olá, eu queria marcar uma consulta. É, pois é. OK.


ARTUR (pegando um taco de beisebol) – Esse cara me fez mal. Isso está
errado. Eu vou processar esse desgraçado.

(ARTUR vai até o consultório.)

ARTUR (cinicamente) – Posso entrar?

(Pula na cadeira e, depois, em cima da mesa do médico, com o taco de beisebol


em punho.)

OTÁVIO – Artur! Artur! Desce! Desce daí!

(ARTUR permanece ali por mais um tempo, encarando o médico, e depois desce.
Quando já está indo embora, de costas, OTÁVIO corre em sua direção, toma o
taco e começa a bater-lhe no corpo todo.)

OTÁVIO – Me dá isso aqui. Seu filho da puta! Toma! Você vai aprender!

(ARTUR permanece ali, sério, olhando para o agressor.)

OTÁVIO (gritando muito forte) – Some daqui, seu filho da puta!


120 Felipe Mury

(ARTUR o encara por mais um tempo e sai. OTÁVIO fica com o taco.)
(Passam-se três anos.)
(ARTUR está no palco encenando Hamlet.)

ARTUR – “Será mais nobre sofrer na alma


Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias –
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer – dormir –
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos pra outros que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Peças teatrais 121

Refletidas demais, saem de seu caminho,


Perdem o nome de ação.
Mas, devagar, agora!
A bela Ofélia!
Ninfa, em tuas orações
Sejam lembrados todos os meus pecados.

(OTÁVIO chega e, na plateia, canto da cena, assiste àquela apresentação. Ele


recua, sem se virar, fitando o rapaz, até sumir.)
Pêssego
PERSONAGENS

JORGE, diplomata brasileiro


GLENDA, velha dona de fazenda
AFONSO, embaixador do Brasil na Argentina, chefe de Jorge
LEONEL, filho de Glenda
IXEYA, esposa de Leonel
126 Felipe Mury

(Palácio do Itamaraty)

JORGE – Claro, mas se os russos não deixarem de apoiar Damasco


fica impossível os Estados Unidos e a Europa intervirem, ninguém vai
querer comprar essa briga. Mesmo que morram milhares. (ouve um
colega) Mas isso os russos não vão fazer, mesmo com a Arábia Saudita
rompendo com Teerã. Além do que, eles têm o problema da Crimeia
para se preocupar. (ouve outro colega) Nossa posição tem que ser a favor
de uma solução para o impasse, mas sem nos comprometermos com
uma intervenção armada. Aliás, como sempre, ficamos em cima do
muro, está na hora do Itamaraty colocar pé firme e se posicionar mais
incisivamente nessas questões estratégicas. (colega fala) Vamos, vamos
almoçar.

(JORGE almoça.)
(JORGE volta a sua sala e começa a ler pilhas de papéis.)
(JORGE adormece depois de ler por um bom tempo.)
(JORGE vai dormir. Dorme. Acorda, toma banho e toma seu café da manhã.)
(De terno e de pasta, mais um dia de trabalho.)

JORGE (sentado, escrevendo em seu computador) – “Caro embaixador cana-


dense, temos o prazer de constatar o seu interesse na produção de uvas
do vale do São Francisco, mas informamos em caráter definitivo que
nossos produtores não podem baixar mais seus preços. Continuamos
desejosos de manter essa longa parceria com o mercado canadense,
mas não isso não poderá ser feito de forma alguma. Também alertamos
para a prática reiterada dos subsídios que continuam sendo motivo de
reclamação na OMC. Atenciosamente, ...”
AFONSO (chegando à sala de JORGE) – Jorge, meu querido, é chegada
a hora.
JORGE – Afonso, como você está hoje?
AFONSO – Estou bem, Jorge. Bem.
JORGE – O que posso fazer por você?
AFONSO – Temos já a sua nova lotação.
Peças teatrais 127

JORGE – Ah, sim, que bom.


AFONSO – Você é necessário em Buenos Aires.
JORGE – Sim?
AFONSO – Como você deve saber, eu fui indicado para o posto de
embaixador na Argentina. De forma que não posso abrir mão da sua
competência. Você, ao longo destes poucos anos que está no ministé-
rio, tem mostrado um trabalho sério e, acima de tudo, um bom cará-
ter. Você vai comigo.
JORGE – Fico feliz de saber que sou útil. Vou me preparar.
AFONSO – Sim, se prepare. Quero você tomando conta principal-
mente da pasta da agricultura, os argentinos estão querendo aumentar
os preços de alguns itens. Partimos em três meses. (sai)
JORGE – Conte comigo!

(JORGE anda de um lado para outro.)

JORGE – Argentina, Argentina...

(Seu celular toca.)

JORGE (atendendo) – Alô? Querida! Sim, estou bem. E você? Tenho


uma novidade. Acho que é bom. (escuta) Você vendeu um quadro por
esse valor? Meu Deus! Estou tão contente por você. Que maravilha. E
como vai comemorar? Queria estar aí com você. Ou que você estivesse
aqui. (escuta) Não, eu ia dizer que fui reposicionado. Vou para Buenos
Aires. Sim. Isso é bom, não é? Eu também acho. Estaremos mais longe
um do outro, mas acho que não fará muita diferença. Então está bem.
Não, eu já estou saindo. OK, nos falamos mais depois. Um beijo.

(Jorge se levanta da mesa e sai do escritório com o laptop, que coloca dentro de
uma maleta de couro.)
(Chega em casa, faz a janta, come. Senta, lê, escreve.Toma banho, escova os den-
tes, limpa o ouvido com cotonetes.)
128 Felipe Mury

JORGE – Vai ser bom.

(Dorme.)

(Três meses e duas semanas depois, na embaixada em Buenos Aires.)

AFONSO – Está gostando da cidade? Não tem como não gostar, não é?
Isso aqui é civilização. Gosto muito do estilo de vida daqui.
JORGE – Estou gostando.
AFONSO – Está gostando mesmo ou está falando só para me agradar?
JORGE – Não, estou falando sério. Gosto daqui.
AFONSO – Que bom. Temos agora uma breve reunião com um fazen-
deiro de pêssegos, acho que já sei o que ele quer. É o vice-presidente
da associação de produtores. Vai querer discutir os impostos de impor-
tação. Eles estão cada vez mais abusados. Antes era só a Casa Rosada
que debatia isso diretamente, agora eles estão rotos e querem vir ne-
gociar com a gente. Nós também ficamos nessa de ser global traders, da-
mos ouvidos a empresários, dá nisso. Essa gente é oportunista. Mas vá
com tato e conseguiremos também algumas vantagens. Diminuímos os
impostos que eles pagam, mas abaixamos o preço da commodity. Fazer
contatos também é sempre bom.
JORGE – Sim.
AFONSO (pegando um interfone) – Mande entrar.
LEONEL (entrando) – Como están ustedes? És un placer estar en sus presen-
cias. Soy Leonel Mancini, represento los productores de melocotón de Argentina.
AFONSO – Encantado.
JORGE – Mucho gusto.
LEONEL – Como están pasando estes dias en Argentina, están a gustar de la
ciudad?
AFONSO – Estamos bien.
LEONEL – Estoy acá para tratar de alguns asuntos que interesan a nosotros.
AFONSO – Si, compreendo.
LEONEL – Las relaciones con el mercado brasileño son muy preciosas para
nosotros y por eso nos gustaria aprofundarlas aínda más.
Peças teatrais 129

AFONSO – Si, por supuesto.


LEONEL – Entonces poden imaginar cómo temos asuntos a hablar, no?
AFONSO – Si, ciertamente.
LEONEL – Hablaremos de precios, impuestos, volumen de cosecha, más pienso
que, además, deveríamos investir en buenas relaciones.
AFONSO – Ya son buenas nuestras relaciones.
LEONEL – Quiero invitarlos a visitar nuestra hacienda en este final de sema-
na.Vamos a hacer una grande parrillada.
AFONSO – Hum. Jorge, podrá ir.
JORGE – Eu realmente...
LEONEL – No, no puedes rechazarme. Vás y estàs decidido.
AFONSO – Él irá. Pero que más te gustaria tratar?
LEONEL – Eso és todo por ahora. Esta acá la invitación. (dá um envelope a
JORGE) Más debateremos adelante. Muchas gracias por la atención expendida.
AFONSO – De nada.
JORGE – A su disposición.

(LEONEL sai reverentemente.)

AFONSO – É claro que você vai. Temos que estar junto desses produ-
tores. Você tem que fazer esse meio de campo.
JORGE – Claro.
AFONSO – Melhore esse astral, rapaz. Você está sempre cabisbaixo.
Tem que ser mais alegre; essa festa vai lhe fazer bem.
JORGE – Claro.

(AFONSO sai.)

JORGE – Eu estou podre.

(JORGE chega em casa, deita e dorme. Um tango inteiro toca enquanto ele
dorme.)
(Levanta-se e sai.)
(JORGE chega na fazenda de pêssegos. É recebido por LEONEL.)
130 Felipe Mury

LEONEL – Hola, que tal? Que rico que pudestes venir. Están acá todos os
grandes productores de melocotón y otros productos agrícolas de Buenos Aires.
Venga acá que voy a presentarle Muñoz! Muñoz és el gran dueño del Record por
la mayor cosecha de la província.Y también controla una gran cadena indus-
trial de tratamiento de la fruta. (chama) Muñoz!
GLENDA (chegando) – Que pasa con este hidalgo, mi hijo?
LEONEL – Esta és mi madre, Glenda. Este és el gran diplomata brasileño de
que vos hablé, mamá.

(JORGE cumprimenta GLENDA. Ela fica imóvel, olhando para ele.)

JORGE – Muy buena su parillada.


GLENDA (para LEONEL) – Ya le mostró la hacienda?
LEONEL – No, mamá. Nosotros íamos hablar con Muñoz y otros.
GLENDA – Vamos comigo.Vamos a salir para una vuelta.

(GLENDA e JORGE andam pela fazenda.)

JORGE – Esta és una propriedad fantastica, como puedes mantener todo en tan
perfecta orden? Me gusta mucho la parillada. Gracias por la invitacíon.
GLENDA – Nós podemos falar em português. Eu morei um tempo em
São Paulo quando mais jovem.
JORGE – Ah, eu não sabia. Fala muito bem.
GLENDA – Você é muito educadinho.
JORGE – Educadinho?
GLENDA – E previsível.
JORGE – Desculpe, não estou entendendo.
GLENDA – “Desculpe, não estou entendendo.” Tem que ser assim tão
cordial e tão óbvio?
JORGE – Eu...
GLENDA – Você é um belo rapaz, por que está tão triste?
JORGE – Eu não estou triste.
GLENDA – Então é só a sua cara que é assim mesmo. Parece que al-
guém morreu.
Peças teatrais 131

JORGE – Eu acho que... A senhora está brincando comigo?


GLENDA – Estou falando muito sério. Não vejo uma cara de diarreia
dessas há muito tempo.

(JORGE se espanta.)

GLENDA – Não me entenda mal. Você até é bonitão, mas está com
uma nuvem cinza em cima da cabeça. Eu não tenho nada a ver com a
sua vida, mas se fosse você... Bem, deixa para lá. Quem sou eu para dar
conselhos para os outros?
JORGE – Se fosse eu o quê?
GLENDA – Acho que está precisando de alguma coisa, mas eu não sei
bem o que seria.
JORGE – Não acho que precise de nada de especial.
GLENDA – Esses pêssegos foram plantados pelo meu bisavô. Constan-
tino Mancini. Plantaram cada muda. Colheram.
JORGE – É uma bela história, com certeza.
GLENDA – “É uma bela história, com certeza.”
JORGE – Mas o que eu fiz?
GLENDA – Pare de ser educadinho, me surpreenda. Fale alguma coisa
que eu não esteja esperando.
JORGE – Mas por quê?
GLENDA – Porque sim!
JORGE – A senhora é muito esquisita.
GLENDA – Bom, já é um começo. O que mais?
JORGE – Olha, está tarde, eu devo ir.
GLENDA – Previsível de novo. Vamos, mais uma...
JORGE – A senhora está sendo inconveniente.
GLENDA – Está bom. Talvez seja. Mas prefiro ser inconveniente a ser
chata e previsível.
JORGE – A senhora é realmente uma pessoa muito estranha.
GLENDA – O que o meu filho falou para você? Ele quer vender a fa-
zenda para você também?
JORGE – Não. Eu não pretendo comprar nenhuma fazenda.
132 Felipe Mury

GLENDA – Hum. Ele quer herdar isso aqui, já está se antecipando à


minha morte.

(Silêncio.)

GLENDA – Você tem esposa, jovem cavalheiro?


JORGE – Sim. Ela mora em Londres. É artista plástica.
GLENDA – Vocês se veem muito?
JORGE – Menos do que eu gostaria.
GLENDA – Por que ela não pode morar aqui com você? Ou você lá?
JORGE – É complicado: ela tem contatos lá, expõe lá. E eu, eu vou
para onde me enviam.
GLENDA – Eu entendo. Ela pinta? Gostaria de ver os quadros dela.
Gosto de arte.
JORGE – Sim, pinta. Se procurar na internet, vai encontrar: o nome
dela é Ana Hart.
GLENDA – Que belo nome. Tem filhos?
JORGE – Não. Não temos.
GLENDA – Bem, hoje em dia isso é uma escolha. Pode não tê-los. Eu
tive um, não me arrependo. Ele vive me dando desgostos... Mas não
me arrependo.
JORGE – Pretendo tê-los.
GLENDA – Não vai se arrepender. Seus pais ainda são vivos?
JORGE – Minha mãe faleceu quando eu tinha 18 anos. Meu pai vive
no Rio.
GLENDA (pausa) – O Rio! É um belo lugar, não é? Mas não é uma bela
cidade. Quantos anos você tem?
JORGE – Eu? Trinta e cinco.
GLENDA – É um jovem. Mas precisa melhorar essa cara, pois senão
penso que tem 150 anos.
JORGE – Não sei o que viu de errado em mim.
GLENDA – Eu gosto de provocar. Me diga, sem mesuras, o que está
achando da Argentina?
JORGE – É um país interessante.
Peças teatrais 133

GLENDA – Como?
JORGE – Acho que não difere muito do Brasil. Digo, por ser latino.
GLENDA – Hum.
JORGE – Me sinto à vontade aqui.
GLENDA – Isso é bom. Somos um pouco mais tristes, eu diria.
JORGE – Se visse algumas pessoas que conheço de Brasília, não diria
isso. Não vejo tristeza nesse seu churrasco.
GLENDA – Isso é bom.
JORGE – Acho que eu tenho que ir agora.
GLENDA – Tem certeza?
JORGE – Tenho. Foi um prazer.
GLENDA – Bem, infelizmente não posso prender você aqui. (tira um
pêssego do bolso) Você não acha bonito? A polpa cresce em volta da se-
mente e, quando na terra, a semente cresce dentro da polpa.
JORGE – Nunca pensei nisso.
GLENDA – Tome, leve um. (dá-lhe o pêssego)
JORGE – Gracias.

(Ele anda e vai se afastando dela.)


(Na embaixada.)

AFONSO – Como foi a parrillada na fazenda de pêssegos?


JORGE – Foi boa.
AFONSO – Boa?
JORGE – Conversei com a dona e parece que já sei toda a vida dela e
ela, toda a minha.
AFONSO – Os antigos gostam mesmo de falar. Ela é antiga, não?
JORGE – Sim.
AFONSO – E o networking? Conheceu alguém especial?
JORGE – Ninguém mais. Passei o tempo quase todo andando pela
propriedade.
AFONSO – Não é possível que não estivesse lá alguém do agronegócio.
JORGE – Estava. Mas eu realmente não prestei atenção, acabei me
entretendo.
134 Felipe Mury

AFONSO – Bem, muito bem. Nem ao menos insinuou uma baixa de


preços do pêssego?
JORGE – Esse produto já está bem barato, abaixar seria inviável para eles.
AFONSO – Bem, muito bem. E como estão as negociações com os
produtores de carne?
JORGE – Estão caminhando, tenho me correspondido com a associa-
ção e com alguns produtores específicos. Tenho um relatório que já
mandei para você.
AFONSO – Bem, muito bem.
JORGE – Afonso.
AFONSO – Sim.
JORGE – Tenho pensado em insistir para a Ana vir morar comigo aqui.
O que acha?
AFONSO – Acho que você precisa mesmo estar perto de sua mulher.
Vai lhe fazer bem.
JORGE – Tenho pensado nisso.
AFONSO – A menos que queira se apaixonar por uma portenha. Nes-
se caso, você está no caminho certo. Aliás, vai remoçar dez anos. Veja
o meu exemplo.
JORGE – Não. Acho que não é o caso.
AFONSO – Eu, desde que larguei minha mulher, tenho vivido de ver-
dade. Agora é uma por mês. Elas custam caro, é verdade: restaurante,
champanhe, joias, mas acho que ainda estou no lucro em relação àquela
megera. Não sabe o quanto estou me sentindo vivo.
JORGE – Posso imaginar.
AFONSO – É o que aconselho.Tenha seus filhos, crie uma família e de-
pois se separe. A verdade é que ela vai continuar sendo sua mulher, vai
continuar atrás de você, mas você vai poder ter outras.
JORGE – Sei.
AFONSO – É, meu camarada. Essa é a realidade. Vamos jantar no Tor-
toni hoje?
JORGE – E enfrentar aquela fila?
AFONSO – Mas como fila? E eu não tenho os meus contatos? Entra-
mos direto, meu caro.
Peças teatrais 135

JORGE – Acho que vai ficar para a próxima. Prometi a Ana uma ses-
são de Skype.
AFONSO – Ah, se é assim... Aproveite. Vou checar esse relatório que
você disse que mandou. Bom trabalho. (sai)
JORGE – Até.

(Volta a escrever em seu laptop.)


(O celular de JORGE toca. Ele atende. É GLENDA.)

JORGE – Alô.
GLENDA – Eu vi os quadros! São lindos!
JORGE – Oi?
GLENDA – Os quadros. Os quadros da sua esposa... Eu vi na internet
e achei maravilhosos. Ela pinta muito bem. É abstrato, mas eu gosto.
(pausa) Não me diga que não está me reconhecendo?
JORGE – Glenda?
GLENDA – Isso! É claro que você se lembra de mim.
JORGE – Que surpresa.
GLENDA – Ah, mas eu tinha que ligar para você. Leonel me deu seu
telefone. Quando é que você vem aqui de novo? Estamos preparando
um festival de pêssego para outubro. Mas você vem antes, não? Eu ga-
nhei um presente, queria mostrar para meus amigos.
JORGE – Para os amigos?
GLENDA – Você vem, não vem? Te espero no sábado. Você não vai es-
tar trabalhando, pode vir até aqui.
JORGE – Eu vou ver se posso. Vou tentar.
GLENDA – Não tente. Consiga. Venha sim. Então eu vou lá. Vou usar
o meu presente. Tchauzito. Hasta. (desliga)

(JORGE fica sem entender.)

JORGE (voltando-se para o computador e terminando de escrever um e-mail)


– “Entonces creo que las relaciones entre Brasil y Argentina logran de mucho
136 Felipe Mury

suceso especialmente en respecho a las exportaciones de carne bovina. Atenta-


mente, Jorge Hart”.

(JORGE atende o telefone, conversa com a esposa.)

JORGE – Oi, meu amor. Como você está? Estou com saudades de
você também. Sim, eu sei. Mas não vou poder ir até o final do ano.
Você pensou naquilo que eu te propus? (escuta) Sim, isso. Eu acho que
é o melhor que temos a fazer. Você seria feliz aqui na Argentina, nós
ficaríamos juntos. Você pode expor aqui também. O mercado de arte
aqui não é pequeno. Eu sei, eu sei, mas... (escuta) Pensa mais um pouco
a respeito. Está tudo bem. Mais tarde eu vejo você pela internet então.
Eu vou desligar porque parece que tem alguém aqui que quer falar co-
migo, a secretária me avisou. Um beijo. (desliga)

(Passa um tempo e entra LEONEL com IXEYA.)

LEONEL – Buenos días!


JORGE – Buenos días.
IXEYA – Mas este és el diplomata de que me falaste? Por supuesto que me re-
cordo. Estava con su mamá en el campo. És guapo, muy interessante. Imagino que
és un suceso con todas las mujeres. (JORGE esboça uma resposta, ela atropela)
Ah si! És casado, por supuesto. Imagino que sea una dama encantadora, guapísi-
ma.Y como estás? Bien? Te gusta B.A.? Ah, a mi me encanta!Verás, és una ciudad
hermosa, com mucho a se hacer, muchas librerias... No que me gustem las libre-
rias, son muy traquilas. Preferisco una agitación, un bombo.Y tu, que preferes?
(JORGE esboça resposta, mas é atropelado) Imagino que sea más sereno. Tienes
cara de ópera.Te gusta la ópera? Estoy a hablar mucho? Perdón, soy así. Me gus-
ta mostrar que pienso quien soy. Estravazo con las palabras.
LEONEL – Si, querida. Eres primorosa. Jorge, esta és mi mujer, Ixeya.
IXEYA – Mucho gusto!
JORGE – Encantado. En que poso ayudarlos?
LEONEL – Muy bien, Jorge. Me voy a ser directo: como sabes estamos cerca
de cosechar em la Hacienda Mancini. Sin embargo, sabemos que los impuestos
Peças teatrais 137

para a entrada del melocotón en Brasil son muy altos aínda. Nos gustaría ne-
gociar esto.
JORGE – Los precios son parte de una política económica...
LEONEL – Mira, compreendovos plenamente. Este és un asunto tenso, tal vez. Por
que no vamos a un bueno restaurante que conozco cerca de acá y hablamos de esto?
JORGE – Infelizmiente no puedo.Tengo alguns compromisos.
IXEYA – Más es certo que él no podría. És muy ocupado. Devemos probable-
miente esperar em una cola. Mira, Jorge, nos gustaría tenerlo en nosa casa para
una cena. Que dices?
JORGE – Yo prefiero tratar de asuntos profesionales en un ambiente profesio-
nal...
IXEYA – Más vamos a tratar de vários temas, no solo este.
JORGE – Entendo.
IXEYA – Usted tiene hijos? Tenemos dos hijos maravillosos. Ellos pueden jugar
juntos!
JORGE – No tengo hijos.
IXEYA – No tiene? Más por que? Hijos son una alegria! Certamente traem un
poco de acoso, más no és un problema tan grande.
JORGE – Un momento, por favor...
IXEYA – Si... Como no...

(JORGE vai para o lado, consulta o celular e é resgatado por GLENDA.)

GLENDA – Toma esse suco. (estende-lhe o copo com suco de pêssego)


JORGE – Obrigado.

(IXEYA se ofende, mas já está fora do novo círculo.)

GLENDA – Certa vez, um grupo de ciganos esteve aqui. Eles chega-


ram e acamparam no terreno ao lado. Era um lugar encharcado, cheio
de lama. Eu os convidei para montar acampamento na fazenda, ao lado
da casa, eles vieram aqui, fizeram uma festa, um sarau. Ah, como eu
me lembro daquelas noites. Eles tocavam muito bem, e comiam bem e
festejavam. Foi algo de especial.
138 Felipe Mury

JORGE – Eu imagino. Mas você não ficou assustada com pessoas che-
gando tão perto da sua propriedade?
GLENDA – Foi melhor do que se um bando de junkies tivesse invadido
a fazenda. Às vezes a gente fica absorto nas nossas próprias alucinações
e não se dá conta das oportunidades maravilhosas que temos de conhe-
cer novas pessoas, novas culturas.
JORGE – Poderíamos aproveitar a oportunidade magnífica de conhe-
cer Ixeya.... (ri)
GLENDA – Não. Essa não é uma boa oportunidade. A única coisa que
essa mulher fez de bom foi ter meus netos. Crianças maravilhosas. Mas
ela... Ela não me passa.
JORGE – Como são seus netos?
GLENDA – Ahhh! Agora você tocou o meu coração. São dois meninos
lindos. Abel e Miguelito. Meus tesouros. Não sei como puderam sair
de dentro dessa medusa. Estão na escola ainda: Abel desenha muito
bem, será arquiteto; Miguelito quer estudar derecho. Já são dois gran-
des homens. Me enchem de orgulho.
JORGE – Imagino. Deve ser bom ver sua estirpe caminhar nas gerações.
GLENDA – Sim, me orgulho muito. Logo você terá os seus filhos.
JORGE – Quero muito. Mas não entendo como seria isso. Como me
organizaria, com a vida que tenho hoje, para acomodar novos seres
com quem eu me preocupe.
GLENDA – Simplesmente acontecerá. Quando for a hora, aconte-
cerá.
JORGE – Sua opinião vale muito para mim.
GLENDA – Eu, uma velha fazendeira de duraznos, o que tenho para
acrescentar na sua vida?
JORGE – Já faz oito meses que venho aqui quase todo fim de semana.
Eu me acostumei com você. Não quero voltar para o Brasil.
GLENDA – Não volte.
JORGE – Não voltarei. Pelo menos não agora.
GLENDA – E sua esposa?
JORGE – O suco está muito bom.
Peças teatrais 139

GLENDA – São os melhores duraznos da Argentina.


JORGE – Não duvido. Conheço alguém que adoraria prová-los.
GLENDA – Será um prazer recebê-la aqui e preparar eu mesma o
sumo. Será mais uma aqui para me defender desses dois cães em que se
transformaram meu filho e sua mulher.
JORGE – Não fale assim. Vocês se amam no fundo.
GLENDA – Somos humanos, tenho compaixão por eles. Mas amor é
uma palavra muito pesada, só uso para Leonel.
JORGE – Receio que tenha que ir.
GLENDA – Sempre saindo antes da hora...
JORGE – Saindo na hora...
GLENDA – Espere. O que você acha do terrorismo mundial?
JORGE – O que eu acho do terrorismo mundial?
GLENDA – Foi o que eu perguntei.
JORGE – Acho uma chaga. Como diplomata eu repudio atos e orga-
nizações terroristas.
GLENDA – Sim, mas o que você acha que causa esse problema tão
terrível?
JORGE – Bem, não tenho certeza, se isso fosse sabido já teríamos
resolvido. Acho que é uma questão de divergência cultural, religiosa.
Acho que há muita desesperança em muitos lugares do mundo e isso
faz com que pessoas desesperadas tenham atitudes nocivas.
GLENDA – Eu acho que eu sou uma loba solitária.
JORGE – Ha-ha-ha.
GLENDA – Sim, é verdade. Eu não falo muito sobre... Mas me consi-
dero um pouco sem esperanças às vezes. Me sinto isolada aqui. Qual-
quer dia posso fazer uma loucura.
JORGE – Se fosse uma terrorista não falaria isso.
GLENDA – Posso ser uma terrorista idiota.
JORGE – E o que você poderia fazer?
GLENDA – Poderia queimar toda a minha lavoura, levando gazes tóxi-
cos às cidades das redondezas.
JORGE – Engenhoso. Mas você não ganharia nada com isso. Aliás, se-
ria penoso.
140 Felipe Mury

GLENDA – Digamos que eu não me importe mais com as coisas ma-


teriais.
JORGE – Fique tranquila. Não vejo rastro de ódio no seu comporta-
mento. Você ficará bem.
GLENDA – Bem, eu tentei.
JORGE – Um grande beijo
GLENDA – Um grande beijo. Vá bem. E volte sempre.

(JORGE em casa em frente ao laptop.)


(JORGE vai tirando a roupa, preparando-se para dormir, só de cueca.)
(Faz contato com sua esposa, pela câmera.)

JORGE – Olá, querida. Como passou o dia?


VOZ DA ESPOSA – Passei bem. E você? Trabalhou muito?
JORGE – Estava naquela fazenda de pêssegos.
VOZ DA ESPOSA – Uma festa? Flertou com alguém?
JORGE – Uma recepção. Temos que manter boas relações com os re-
presentantes dos produtores argentinos. Os impostos serão uma questão
sensível, mais para a frente na nossa agenda. Não flertei com ninguém.
Conheci a esposa do Leonel, o filho da dona da fazenda. É uma perua.
VOZ DA ESPOSA – Sei. E eu? Eu sou perua? Como eu estou? Estou
bem-vestida?
JORGE (rindo ao ver os poucos trajes da mulher) – Sim, está muito elegan-
te. Esse sutiã está perfeito.
VOZ DA ESPOSA – É para você. E o que mais? Estou linda hoje?
JORGE (empolgando-se com a conversa) – Está ótima! Maravilhosa.
VOZ DA ESPOSA – Eu quero você, meu gatão!
JORGE – Não fala assim... Não fala assim. Sua linda, eu nem sei o que
vou fazer quando me encontrar com você.

(Telefone toca, é GLENDA.)

GLENDA – Jorge? Venha aqui amanhã.


Peças teatrais 141

JORGE – Como? Glenda?!

(GLENDA desliga.)
(No dia seguinte, JORGE vai à fazenda de GLENDA.)

GLENDA (aparecendo diante de JORGE) – Chá de jasmim?


JORGE – Sim, por favor.
GLENDA – Com pêssego.
JORGE – O que é isso?
GLENDA – Durazno desidratado. Coloque uma rodela no seu chá, vai
gostar. (coloca no chá dele)
JORGE (provando) – É bom. É muito bom.
GLENDA – Já temos nos visto faz um tempo. Tenho vontade de lhe
perguntar sobre a sua infância.
JORGE – Eu cresci nas Laranjeiras, no Rio. Tive uma boa infância.
Gostava de empinar pipas, tínhamos uma casa bastante espaçosa, com
árvores, macacos, pássaros. Eu desde sempre gostei de línguas.
GLENDA – Dá para saber muito sobre alguém sabendo como foi sua
infância.
JORGE – Meu pai me preparou para que eu seguisse a carreira diplo-
mática. Era um bom pai. Jornalista. Vivia às voltas com a seção de eco-
nomia que escrevia no Jornal do Brasil.
GLENDA – Papai era diplomata. Como você.

(GLENDA senta em frente ao piano, começa a tocar “Caboclinha”, de Villa-Lo-


bos, para o deleite de JORGE.)
(Ela para.)

GLENDA – Quando a guerra acabou, eu tinha 4 anos. Não me lembro


muito, mas lembro de ir tomar sorvete em Palermo e papai contava
histórias de parentes que vieram da Europa para cá. Dizia que essa era
uma terra prometida para eles e que nós tínhamos muita sorte de mo-
rar aqui.
JORGE – Há judeus na sua família?
142 Felipe Mury

GLENDA – Parece que não, só amigos. Papai tinha um amigo judeu


que morou por um ano conosco. Só mais tarde vim a saber o que era
ser judeu.
JORGE – Se seu pai era diplomata, quem tomava conta da fazenda?
GLENDA – O irmão dele, meu tio Ricardo. Era uma pessoa bem se-
vera. Casou-se com a filha de um alemão que chegou aqui depois da
guerra. Eram chamados de nazistas.
JORGE – Hum.
GLENDA – Mas ele fez muito por esta lavoura. Sabia de administração.
Mas não teve filhos. Ficou tudo para mim. (pausa) Não está com frio?
Eu estou congelando.
JORGE – Não. Estou bem.

(GLENDA pega uma garrafa de uísque e adiciona ao seu chá.)

GLENDA – Eu me permito algumas indulgências. Esquenta a alma.


(coloca uísque na xícara de JORGE)
JORGE – Eu não bebo.
GLENDA – Como não bebe? Todo diplomata bebe. Se não bebia, co-
meçou hoje.

(JORGE bebe.)

GLENDA – Sabe, às vezes me sinto cansada. Mas há tanta coisa que


ainda quero fazer.
JORGE – Como o quê?
GLENDA – Como ver meus netos crescerem. Como participar de um
reality show. Como conhecer o Mick Jagger.

(JORGE ri.)

GLENDA – Eu já fiz bastante coisa na minha vida. Mas há sempre mais.


O que você ainda não fez que gostaria de fazer?
JORGE – Eu? (ri) Não sei.
GLENDA – Ora, vamos. Não me enrole. O quê?
Peças teatrais 143

JORGE – Bem, talvez saltar de paraquedas.


GLENDA – Hum. Um pouco previsível, mas tudo bem. O que mais?
JORGE – Talvez... Sair pelado no Carnaval.

(Os dois riem.)

GLENDA (rindo) – Agora você me surpreendeu.


JORGE – Não sei. Foi uma ideia.
GLENDA – Uma ideia muito boa. Vamos fazer um carnaval aqui.

(Ele ri.)

GLENDA – Sim, vamos. Você sabia que o Sol está chegando perto de
nós? Que um dia vamos ser engolidos por chamas?
JORGE – Ouvi dizer.
GLENDA – Então temos que aproveitar o agora.
JORGE – E fazer o quê?
GLENDA – Vamos soltar fogos de artifício!
JORGE – Ha-ha-ha.
GLENDA – É sério! Os fogos de artifício serão nossa resposta ao Sol.
Não vamos conseguir pará-lo, mas pelo menos morreremos com honra.
JORGE – Claro. E você guarda fogos de artifício na sua propriedade,
naturalmente...
GLENDA – Sobraram do último réveillon.
JORGE – E fazem festa de ano-novo aqui?
GLENDA – Sim, claro. Com que outra desculpa vou receber meus ne-
tinhos que quase não me veem.
JORGE – Deixemos então para o próximo dia 31 de dezembro.
GLENDA – Mas você é muito parado mesmo... Se eu te contasse mi-
nhas histórias... Cada coisa por que passei nessa vida, você ficaria de
boca aberta.
JORGE – Eu não duvido, Glenda. Eu não duvido. E de música? O que
ouviremos hoje?
GLENDA – Gosta de fado português?
JORGE – Conhece a Carminho?
144 Felipe Mury

GLENDA – Mas é claro! Adoro esta menina.


JORGE – Tenho na minha playlist. Onde tem uma caixa de som aqui?
GLENDA – À sua esquerda.
JORGE – Temos de tudo aqui. Rock, indie rock...
GLENDA – Gosto da música brasileira.
JORGE (colocando a música) – Aí está. Ela me faz pensar no passado.
GLENDA – O passado... Não fale nele.
JORGE – Qual seu ano preferido?
GLENDA – 1968. Foi o ano... Foi o ano em que tudo parecia possível.
Eu não era hippie, mas meu amor era livre. Já adorava Caetano antes
de todo mundo saber que ele existia. Meu gosto musical se formou ali.
João Gilberto, Gil, Simonal... Os brasileiros são os melhores. Me lem-
bro do primeiro Rock in Rio muito bem: 85... Bem antes do Brizola
ser o seu governador. Era tudo lama. Mais de um milhão de pessoas.
Marijuana...
JORGE – Você foi?
GLENDA – Se fui? (pausa) Eu fui a alma daquele furacão. Já tinha algu-
ma idade. Mas eu experimentei de tudo, revivi minha juventude.
JORGE – Você viveu coisas bastante intensas. Me conta como foi o
show do Queen. Teve Iron Maiden também.
GLENDA – Teve de tudo. Teve Ney Matogrosso também. Um amor
ele. Foi fantástico. O Queen foi a cereja do bolo. Todos cantando “Love
of My Life”... Eu estava bem perto do palco na verdade. Deu para
ver tudo. Carlos, meu amigo, me levantava nos ombros. Foi realmente
mágico. Baby, Pepeu, Erasmo. As bandas nacionais ainda estavam bem
aquém dos gringos, mas mesmo assim fizeram um bom espetáculo. Foi
mesmo memorável.
JORGE – Eu imagino. Só não imagino muito bem você reagindo a isso
tudo. É tão serena.
GLENDA – Querido... Eu era uma pilha só. Botei fogo naquele lugar.

(A música para de tocar.)


(JORGE ri.)
Peças teatrais 145

JORGE – Vamos fazer alguma coisa animada hoje?


GLEDA – Um passeio!
JORGE – Por que não?!
GLENDA – Mas você deve estar cansado de dirigir...
JORGE – Não, não me incomodo.
GLENDA – Vamos a Buenos Aires então. Me leve para ver as modas.
JORGE – Recoleta? Palermo? Porto Madero?
GLENDA – Vamos ver os museus. E tomaremos um chocolate com
churros.
JORGE – Ok. Toca para o Museu de Belas Artes.

(Pegam o carro e estão em Buenos Aires, no Museu de Belas Artes. Passeiam pe-
las galerias.)

GLENDA – Essas paredes carmim me fazem pensar em coisas tão boas.


Cada obra desse museu é uma história para mim. Cada uma delas re-
presenta um esforço do autor para pintá-la, tem um contexto na his-
tória nacional e teve um percurso, muitas vezes tortuoso, até chegar
aqui.
JORGE – É verdade. Eu gosto dessa.
GLENDA – A ninfa surpreendida, Manet, 1871.
JORGE – Uma mulher de formas voluptuosas, em uma pose singela,
simpática.
GLENDA – É um deleite para quem olha, porque a imagem oferece
pouca resistência, não está encarando o apreciador. Ela se deixa mirar,
mas ao mesmo tempo está em uma mudança de posição, dado que se
depara com o fato de estar sendo observada.
JORGE – O menino que lê.
GLENDA – Joshua Reynolds, 1777.
JORGE – É bem exata a apreensão das formas. O vermelho está bem
registrado. Acho muito agradável de olhar.
GLENDA – Sim. Para mim é um menino que está na verdade folhean-
do um livro à procura de algo proibido. De uma gravura pornográfica,
de uma escritura mal-educada, talvez.
146 Felipe Mury

JORGE – Não tinha pensado nisso.


GLENDA – E de certa forma foi também surpreendido.
JORGE – Com certeza.
GLENDA – Vamos ao anexo.
JORGE – Sim. Depois poderíamos ir ao MALBA...
GLENDA – Vamos direto ao chocolate com churros.
JORGE – Como quiser.
GLENDA – Eu sei que quereria apreciar o Abaporu, mas acho que por
um dia um museu já é o bastante.
JORGE – Claro.
GLENDA – Você me parece ser uma pessoa que tem sensibilidade apu-
rada. Devia criar algum tipo de arte.
JORGE – Às vezes eu escrevo qualquer coisa. Contos principalmente.
GLENDA – Por que não publicá-los? Tenho certeza de que conseguiria
uma editora facilmente.
JORGE – Acho um pouco de pretensão. Escrevo para me entreter.
Não quero ser um escritor.
GLENDA – Se você escreve, já é um escritor. Só precisa deixar o mun-
do ver o que você faz.
JORGE – Pode ser. Agora devo ficar em São Paulo um tempo. Rever
minha esposa.

(Almoçam em um restaurante chique. No final, tomam chocolate quente com


churros.)

GLENDA – Meu marido era um homem bom. Mas em uma determi-


nada época, eu já não era mais feliz com ele. Me separei. Foi um escân-
dalo. Na época ninguém se separava.
JORGE – Deve ter sido um grande passo. Por que você fez isso?
GLENDA – Sabe, se eu fosse seguir todos os sinais, tudo o que falavam
ao meu redor, eu não o faria. Mas era uma necessidade interna. Uma
vez eu vi o Gunter Grass dando uma entrevista no Charlie Rose sobre
o quão nazista ele era quando jovem. Acho que é uma situação pare-
cida... Todos eram nazistas, essa era a regra. Ele e milhões de alemães
Peças teatrais 147

deixaram de se perguntar certas coisas e se deixaram levar pela cor-


rente. Eu não, eu estava sendo levada pela corrente, mas me indaguei
se estava satisfeita com aquilo. E não estava.
JORGE – Acho que entendo.Você tinha tudo para ser uma nazista con-
victa, ou uma senhora com anos de casada orgulhosa, mas pulou fora
do barco a tempo.
GLENDA – Não que todo casamento seja um regime nazista...
JORGE – Acho que o meu não chega a isso.
GLENDA – Não posso opinar sobre isso, mas pelo jeito que você fala
dela, acho que não está muito para Hitler... Talvez Mussolini...
JORGE – Boa. Mas não, não... Ela é uma pessoa doce.
GLENDA – Este bife de chorizo estava estupendo.
JORGE – Muito bom mesmo. Eu gosto dos legumes no vapor.

(Terminam de comer em silêncio.)

GLENDA – Agora, a cereja do bolo!


JORGE – Sim! O chocolate com curros.

(Chocolate quente com churros.)

GLENDA – Já estamos lanchando... Ou seja, não precisamos nos preo-


cupar com comida por um bom tempo.
JORGE – Não, quando for de tardinha, vamos a um lugar onde ven-
dem o melhor pão de queijo de Buenos Aires. Eu convido.
GLENDA – Ah! Que saudades do pão de queijo.

(O telefone de JORGE toca.)

JORGE – Amor? (escuta) Sim, estarei aí em breve. (escuta) Sim, vou


comprar para você. (escuta) Sim, um beijo!
GLENDA – Você a ama de verdade.
JORGE – Acho que sim.
GLENDA – É o que eu sempre digo...
148 Felipe Mury

JORGE – O que é que você sempre diz?


GLENDA – Me esqueci.
JORGE – O que faremos agora, então?
GLENDA – Você falou em ir ao MALBA... E depois comeremos o pão
de queijo.
JORGE – OK. Tenho que checar com o Afonso, meu chefe, os tópicos
de uma reunião na segunda-feira.
GLENDA – Trabalho? Eu também tenho muito a fazer; mas agora não
pensarei em nada. Você deveria fazer o mesmo.
JORGE – Está certo.
GLENDA – Também prometo que não falarei do meu filho, da minha
nora ou dos meus netos. Quero falar só sobre amenidades.
JORGE – Todo assunto pode ser uma amenidade ou um tema sério,
tudo é o ponto de vista que você escolherá para abordá-lo.
GLENDA – Eu escolho o ponto de vista mais cor-de-rosa possível. Va-
mos falar sobre as Olimpíadas do Rio.
JORGE – Não tivemos atentados. Isso é um ganho.
GLENDA – Sim, mas aquela cerimônia de abertura estava meio caída.
JORGE – O que poderíamos fazer? Estávamos no meio de uma crise
econômica e... Depois... Somos o Brasil. No Brasil tudo é um pouco
reciclável, é roots. O Fernando Meirelles, responsável pela cerimônia,
já tinha dito, no dia em que foi escolhido para o cargo, que seria um
espetáculo com um orçamento e um tamanho proporcionais às condi-
ções do país. Não poderíamos fazer uma festa igual à da China ou à de
Londres.
GLENDA – Sim, estamos falando do Brasil. Mas até quando vocês vão
fazer as coisas mais ou menos? Um dia vocês precisam acordar e fazer
o melhor. Não se consegue ser uma grande civilização sem se fazer o
melhor.
JORGE – Acho que fazemos o melhor em vários aspectos. Mas o nosso
melhor não é a mesma coisa do melhor de outros países. Somos muito
particulares.
GLENDA – Desculpa! Isso é desculpa.
JORGE – Bem, pode ser. Mas eu não posso me comprometer, por toda
Peças teatrais 149

a nação, a ser a maior potência do mundo... Acho que temos um longo


caminho até lá.
GLENDA – Não sei se a maior potência do mundo, mas certamente
vocês poderiam ser a mais original que já existiu. O nível de inovação
e de vivacidade que a população brasileira tem... Vocês poderiam ser a
nova Grécia, a nova Roma, os novos Estados Unidos.
JORGE – É... Mas nós somos o Brasil mesmo.
GLENDA – Graças a Deus.

(Escritório de JORGE. Ele recebe a visita de LEONEL e IXEYA.)


(JORGE está de frente para seu laptop. Atende o interfone.)

JORGE – Mande entrarem.

(Entram LEONEL e IXEYA.)

IXEYA – Hola, que tal? Como estás, Jorgito, maravilloso!


LEONEL – Jorge! Una vez más nos encontramos! Que gusto!
JORGE – És siempre un placer recebirlos. Como poso ayudarlos hoy?
IXEYA – És un asunto muy delicado.
LEONEL – Supemos que usted está muy prósimo de nosotros.
IXEYA – Está prosimo de Glenda...
LEONEL – Mamá no estás bien de la cabeza.
IXEYA – No está bien de nada.
JORGE – No comprendo.
IXEYA – No debes confiar en todo que ella habla...
LEONEL – No debes confiar en nada que ella habla.Todo que concerner a la
hacienda debes tratar conmigo.

(AFONSO entra na sala.)

AFONSO – Jorge, sua ida a São Paulo está confirmada. Pode arrumar
suas coisas, você parte o mais cedo possível. (olhando o casal) No sabia
que estavam acá. Do que tratam?
150 Felipe Mury

LEONEL – Como estás, Afonso?


IXEYA – Hola, Afonso.
AFONSO – Hola.
LEONEL – Viemos tratar de la hacienda... Nos sembra que Jorge esta muy
fidado de mi madre. Nos gustaria clarificar que ella no responde más por la
hacienda...
AFONSO – Traten conmigo. No necesitan hablar con Jorge. Él está muy ocu-
pado, vá a São Paolo ahora.Yo estaré acá para atenderlos.
LEONEL – Ah, si?
AFONSO – Si.
IXEYA – Queremos vender la hacienda!
JORGE – Entonces me voy ahora. Hasta a ustedes. Hasta.

(JORGE sai.)
(JORGE está em São Paulo e se encontra com a esposa.)

JORGE – Querida? Querida? Estou de volta.


VOZ DA ESPOSA – Jorge? Estou aqui. Aqui dentro. Vem cá.
JORGE – Está aí. Sua linda. (entra no quarto e já não se pode ver os dois)
VOZ DA ESPOSA – Ai, meu amor. Que saudades.
JORGE – Eu é que senti saudades!
VOZ DA ESPOSA – Eu esperei tanto por você...
JORGE – Estou aqui.
(Fazem sexo.)

(De volta à Argentina, JORGE chega à fazenda para visitar GLENDA.)


(Lá estão também LEONEL, IXEYA e AFONSO.)

(IXEYA morre de rir de alguma coisa.)

GLENDA, a AFONSO – Ela riu do que eu pensei! Eu acredito em lei-


tura de pensamento. Eu pensei na piada dos três tomates atravessando
a rua e ela riu.
AFONSO, para LEONEL – No te preocupes porque estamos en la embajada
haciendo todo para que sus productos sean los más competitivos en Brasil.
Peças teatrais 151

LEONEL – Estamos contando con eso, Afonso.


IXEYA – Pero esta hacienda, vamos venderla.
GLENDA – Venderla? Como?
LEONEL – Si, mamá. Pensamos en venderla.
GLENDA – Yo decido estas cosas. No me voy a vender nada. Están locos.
IXEYA – Usted está loca! És una vieja loca!
GLENDA – Eu vou meter a mão na cara dessa mulher!

(JORGE se põe na frente de GLENDA e LEONEL se põe na frente de IXEYA.)

IXEYA – Venga!Venga!
AFONSO, no meio – Chega! Ninguém vai vender fazenda nenhuma. E
ninguém vai bater em ninguém. Chega.
LEONEL – Mis queridas, vamos entendernos.
JORGE – Está tudo entendido. Vocês não são bem-vindos aqui. Vocês só
criam problemas para sua mãe! Ela não merece isso. Cuidou de vocês e
de sua família, carrega esta propriedade e os negócios da família nas cos-
tas e vocês querem apunhalá-la pelas costas? Por favor, tenham dó.
LEONEL – Mamá, mira lo que él nos habla!
GLENDA – É isso mesmo. Saiam daqui. Me deem espaço, me deem
sossego. Saiam, vamos!
IXEYA (saindo junto com LEONEL) – Você vai pagar caro! Nunca mais vai
ver seus netos! Você vai pagar caro!
LEONEL – Vamos. (saem)
GLENDA – Eu sabia que ela falava português... Essa víbora.
AFONSO – Fiquem bem vocês dois. Eu vou ver se posso minimizar os
impactos. Até já. (sai também)
GLENDA – Estava farta desses dois. Você foi ótimo, obrigada.
JORGE – Não fiz nada que não faria por uma amiga.

(Os dois se acalmam.)

GLENDA – Preciso relaxar.

(Ela liga o som e toca a Valsa nº 2 de Dmitri Shostakovich.)


152 Felipe Mury

(GLENDA e JORGE começam a dançar.)

GLENDA – A vida sem amigos é como café descafeinado, leite desna-


tado, cerveja sem álcool; existe mas não surte o efeito desejado, não
é bom.
JORGE – Nós somos.
GLENDA – Somos.

(Dançam, colados.)
(GLENDA muda o som para uma música da Madonna.)

GLENDA – Os anos oitenta foram um lixo, o que teve de bom? Bem,


eu não sou pessimista, mas aquele pop todo... Foi a euforia do deses-
pero pela década perdida na economia.
JORGE – Bem, eu gosto de Madonna e Michael Jackson. Acho que foi
a primeira vez que você falou mal de alguma coisa e eu bem. Acho que
estou aprendendo com você. Eu aprendi muito com você, Glenda.
GLENDA – Fico feliz. É melhor mesmo gostar das coisas. Dá menos
trabalho. Desgostar é uma perda de tempo. Dá rugas quando franzimos
a testa. Olha. (franze a testa)
JORGE – É sério. Aprendi.

(Ela coloca as mãos nas faces dele. Se olham.)


(Eles se afastam.)

GLENDA – Olha!

(Ele se vira para ela.)

GLENDA – Nada, esqueci o que eu ia dizer.


JORGE – Acho que você é uma mulher muito interessante. Ainda
pode ter um companheiro.
GLENDA – Ah, são 75 anos. Acho que isso não é mais possível. Não
seria muito belo.
Peças teatrais 153

JORGE – Ora, vamos... Você é uma grande fazendeira, uma mãe cari-
nhosa, sabe tocar piano.
GLENDA – Eu não tenho nada. Eu estou podre.

(Ela chora e cai nos braços dele.)

GLENDA – Às vezes eu acho que não construímos nada na vida, só


destruímos o que nos foi dado.
JORGE – Por que você está falando isso? Você tem tanta coisa, é uma
pessoa tão boa.
GLENDA – Você devia ter me visto quando mais nova. Eu era me-
lhor. A quem eu estou enganando? Vivo só aqui nesta casa. Não criei
bem meu filho. Fui omissa. Ele é uma pessoa insensível e quer que
eu morra.
JORGE – Não diga isso, ele não quer que você morra.
GLENDA – Pois ele vai ter o que quer.
JORGE – Eu não acredito que tenha errado na criação do seu filho.
As pessoas têm seus defeitos, fazem escolhas erradas às vezes. Mas
acho que ele tem qualidades. E você, você com certeza as tem; ain-
da hoje.
GLENDA – Acho que você é o meu melhor amigo. (pausa) Pelo menos
nesse momento.

(Os dois riem.)

GLENDA – O que eu quero dizer é que tem um buraco na minha vida.


Um buraco negro.
JORGE – (pausa) Eu também sinto isso.

(Silêncio.)

GLENDA – Você é jovem, tem a glória pela frente. Para mim ela está
no passado.
154 Felipe Mury

JORGE – Nós temos que viver gloriosamente o agora.

(GLENDA sorri levemente, como se tivesse atingido seu objetivo.)

JORGE – Mas a verdade é que me sinto assim já há um bom tempo.


Me sinto só. Você tem amenizado isso. Eu estive com a minha esposa
em São Paulo.
GLENDA – Você mudou...
JORGE – Hã?
GLENDA – Você mudou desde a última vez que esteve aqui. Definiti-
vamente. Olha para você. O que aconteceu?

(JORGE sorri.)

JORGE (entregando-lhe um maço de papéis) – Quero que você leia. É meu


livro. Enviei a uma editora e eles aceitaram publicar.
GLENDA – Que surpresa! Você finalmente teve coragem. Dê-me aqui.
Acho que vou ter tempo de ler.
JORGE – Tive. É sua cópia. Vou dormir aqui hoje.
GLENDA – Sim, ia te pedir isso. Fique à vontade, a casa é sua, você sabe.

(JORGE dorme em um quarto separado.)


(Amanhece, GLENDA está lá, na sala, a fitar o sol que nasce.)

JORGE – Oi.
GLENDA – Jorge! O que você está fazendo aqui tão cedo? Vá dormir.
Hoje é sexta-feira.
JORGE – Eu perdi o sono. Aliás, você também parece não ter dormido.
GLENDA – Claro.
JORGE – Algum problema?
GLENDA – Não. É só que hoje eu vou ter que sair. Vou a Buenos Aires.
JORGE – Bem, que pena: tinha pensado em passar o fim de semana
aqui. Mas, de qualquer forma, eu posso levá-la à cidade.
GLENDA – Não. Eu acho melhor não.
JORGE – Faço questão. Aonde vai lá?
Peças teatrais 155

GLENDA (pausa) – Ao hospital.


JORGE – Ao hospital? Vai visitar alguém?
GLENDA – Vou me tratar.

(JORGE faz silêncio.)

GLENDA – Eu não tenho tido sorte. Eles me pegaram. Vou fazer qui-
mioterapia.
JORGE (pausa) – Eu sinto muito.

(Chegam ao hospital.)

GLENDA – Lá vou eu. Lá vou eu tomar mais um pouquinho do meu ve-


neno. Se a doença não me matar, isso vai. (tira a peruca, vê-se a sua careca)
JORGE – Há quanto tempo está se tratando?
GLENDA – Não mais que um ano. Não vá falar nada para meu filho.
JORGE – Ele não sabe? Não reparou?
GLENDA – Ele não repara muito em mim. Só vai à fazenda para festas,
quando há gente importante, de preferência.
JORGE – Eu acho que você deveria...
GLENDA – Obrigada pela carona. Pode ir agora.
JORGE – Eu espero você aqui.
GLENDA – Não! Vai fazer o que você tem que fazer. Todo mundo tem
sempre alguma coisa para fazer.
JORGE – Eu tenho que ficar aqui e te esperar. Eu te levo de volta.
GLENDA – Meu querido. Não faça isso. (entra para a sessão)

(JORGE se senta e espera. Passa um bom tempo, GLENDA foi colocada em um


quarto, depois da sessão de quimioterapia. Ele entra no quarto, sem fazer barulho.)

GLENDA – Você?
JORGE – Sim, vou levá-la de volta.
GLENDA (muito cansada, mas tentando ser otimista) – Você tem que co-
nhecer a Argentina. (pega um mapa do país e o abre na frente de JORGE)
Está vendo? Vamos começar por Luján!
JORGE – Vamos começar?
156 Felipe Mury

GLENDA – Sim. Já é um fato, nós vamos viajar.


JORGE – Está bem.
GLENDA (apontando no mapa) – Então vamos para Rosário, então San-
ta Fé, Corrientes, Resistência, Tucumán, Salta, Córdoba, Mendoza,
Neuquén, San Carlos de Bariloche, Ushuaia, Comodoro Rivadávia,
Baía Blanca, Mar del Plata e estamos de volta à capital.
JORGE – Parece um bom roteiro.
GLENDA – Sim, é. Você vai ver como é o interior, a Patagônia. Vai co-
mer carnes e legumes da terra, provar os melhores vinhos. Vai se en-
cantar.
JORGE – Não duvido.
GLENDA – Às vezes é preciso mais. É preciso ter a alma disponível.

(GLENDA observa o semblante de JORGE.)

GLENDA – Casamento é assim. A verdade é que escolhemos uma pes-


soa para brigar constantemente de maneira mais tranquila e segura.
Um parceiro para implicâncias, batalhas íntimas.
JORGE – Não é assim.
GLENDA – Com o meu foi. Quando vi estávamos brigando mais do
que fazendo amor. Ele era muito controlador, autoritário. Pelo menos
para mim. Mas você não quer saber dessas coisas...
JORGE – Não me importo em ouvir.

(O telefone dele toca e ele sai do quarto de hospital para atender.)

JORGE – Grávida?! Não. Isso é ótimo! Está bem, mas me dê notícias.


Isso é ótimo! Um beijo!

(Ele vai até o quarto de GLENDA.)

JORGE – Glenda, Glenda!

(Ela está morta.)


(Ele reage à perda, sem palavras.)
(JORGE repousa um pêssego no colo do corpo.)
Gutural
158 Felipe Mury

ATO I

(som de didjeridu)

Quarto
– Voltar atrás, se arrepender, chorar as pitangas, o leite derramado. O
que podia ter sido e não foi. O meu avô foi cremado, me lembro de ter
espirrado muito no funeral simbólico dele. Aliás, espirrei sempre que vi
aquela urna na casa da minha avó. Devo ter inalado um pouco das cinzas
e espirrado. Aliás, que costume besta esse de queimar. Não sei se é me-
lhor ou pior que enterrar. Bem, o que eu sei é que, enterrando, o morto
vira terra, que vira comida, que se come, e que cremando o morto vira
pó, que vira ar que a gente inala: de qualquer forma o ciclo natural da
morte chega até nós, os vivos.
– Uma vez, pequeno, eu estava fazendo uma prova, de matemática –
longuíssima, trabalhosíssima –, e dei um espiro – sim, algumas pes-
soas choram muito, outras falam, reclamam, ficam inquietas, roem as
unhas, até tossem, eu, eu espirro; espirro e coço a garganta. Assustei a
turma toda.
– A verdade é que a gente não pode fazer muito na vida... Não dá para
escolher se vou morrer das pontas para o centro ou do centro para as
pontas. Uma hora as coisas acabam.

(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)


(som gutural, estilo heavy metal)

Festa
(segurando um copo de uísque) – Ele me olhou de cima a baixo e, com o
maior desdém possível, soltou uma expiração forte pelas ventas, tor-
cendo o nariz... Babaca. O cara foi até a festa só para me sacanear, que
filho da puta. Ainda me pergunto se eu devia mesmo ter ignorado. Às
vezes fico imaginando desfechos diferentes para aquela noite, um soco
É peça para um ator só. Alterna momentos falando para a plateia, como em stand-up, para si mesmo,
para a namorada, o pai e para o universo/Deus. Achar os momentos certos de falar para cada interlo-
cutor, e das transições.
Peças teatrais 159

na cara, sei lá. Preferi manter a paz, mas talvez o que a Laura quisesse
ver fosse porrada, ia transar com mais violência depois de tudo.
– Fala, Lucas, seu veado! Como é que você está, cara? Está com a Ra-
quel ainda? Ah, vocês dois... Está trabalhando no Andrade & Vieira ain-
da? Ganhando baldes, né? O contencioso de vocês é foda. Bem, vai lá,
não quero te prender não. Abraço, cara. Tudo de bom.
(põe o copo na mesa; começa a dar socos, encenando uma briga) – Eu não que-
ro insistir no assunto, mas pelo menos um processo por injúria eu tinha
que ter metido nesse filho da puta. Enfim, vontade de comer um jamón
pata negra, com um merlot, sei lá que uva combina com presunto.
– E ela não vem... Já esperei uma hora e meia. Ela não vem.
– Na época da faculdade, o que eu mais queria era trabalhar logo, o que
de certa forma aconteceu. Fui efetivado até que rápido, queria traba-
lhar mais com internacional, mas tributário tá bom, como eu já disse,
tem coisa que não dá para ficar escolhendo. Época boa... Peguei a sala
toda. Ha-ha-ha! Bem, boa parte. Aline no fundo da biblioteca; Aninha
no banheiro do lado da xerox; nas chopadas perdi a conta, putaria ge-
neralizada; contando churrasco, festinhas, acho que deu para o gasto.
– Ela me deixou plantando aqui, disse que vinha e deu bolo. (celular
toca, ele atende) Putz, estou aqui, você não vem? Não, está legal aqui,
chega aí. Poxa, não vou me deslocar para a Barra agora. Tudo bem, a
gente marca outra. Mas você está me devendo. Beijo. Uma lambida no
Cox. Ha-ha-ha! Tchau, beijo. (desliga o celular e pega novamente o copo de
uísque)
– Com essa eu caso.
– Meu escritório fica no 4o andar, todos os dias eu me viro para a as-
censorista e repito “quarto, por favor”, o que, todos os dias, despertava
na operadora daquele cubículo uma paixão incontrolável que a impe-
lia a sorrir e a dizer alguma gracinha – “quarto é?”, “esse tempo ma-
luco...”. Em outros momentos do dia, eu enfrentava duplos sentidos,
trocadilhos, piadas tortas e situações por si sós embaraçosas; tinha me-
nos complacência. Era sorte daquela ascensorista estar tão próxima do
meu trabalho e eu ter que vê-la todos os dias, pois senão eu já a teria
mandado pastar. Nunca tive muitas travas com gente sem graça não.
160 Felipe Mury

– Aliás, que profissão é essa de ascensorista? Acharam que os “passa-


geiros” não saberiam entrar no elevador e apertar o andar ao mesmo
tempo? Veja: é menos uma pessoa para se entrar, em todas as viagens,
ou seja, no final do dia o elevador deixou de fazer algumas viagens.
É uma das típicas funções inventadas pra evitar o desemprego, assim
como ...lanterninha, concièrge, maître, eu diria até trocador de ôni-
bus, mas este ainda tem sua função porque o motorista não consegue
dirigir e dar troco ao mesmo tempo. Mas, ascensorista... Ah, agora eu
vou descontar tudo aquilo que não falei pra mulher nos dez anos que
eu trabalho lá. Eu tenho o direito de ter raiva, preconceito, reservas,
medo de ascensorista!

Quarto
– Uma vez eu fiquei na maior dúvida entre duas garotas. Não sabia
mesmo com quem ficava. Era como se você estivesse comendo um ca-
napé com foie gras numa mão e tomando uma taça de porto na outra,
você tem que escolher o que vai terminar por último: se você quer fi-
car sentindo o gostinho salgado e saciante do foie gras ou se você quer
aquela madeira com álcool descendo a goela e lavando o paladar. Talvez
essa seja uma escolha impossível.
– Tradição. Ela serve para muita coisa; serve para não nos perdermos
através dos séculos; para lembrarmo-nos de onde viemos; a tradição,
em última instância, une as gerações num sentimento único de espécie,
de humanidade.
– Tradição de cu é rola! Quanta baboseira: a única maneira de prospe-
rarmos como espécie, de vencermos a corrida da sobrevivência é que-
brar as tradições, é inovar e inovar. Só a evolução, a “re-volução” traz
o progresso real. Os que se prendem no aconchego e na debilidade da
mentalidade de outro tempo são os fracos e esses sim têm de perecer!
– Uma questão se apresenta então: existe um limite para a evolução?
Tipo, conseguimos só melhorar nossos atributos genéticos até um cer-
to ponto e, a partir daí, temos que partir para a reprodução? Estou
muito achando que é isso. Eu, hoje, não consigo ficar mais alto, mais
Peças teatrais 161

musculoso, enxergar melhor, cheirar melhor etc. Mas eu consigo ter


um filho... Enfim, será que eu sou obrigado a ter um filho? Tipo, pela
lei divina, pela lei da natureza... Eu tenho que formar uma família? Se
não, vou ter fracassado? Espero que as coisas aconteçam sem muita
dificuldade, espero que a minha ação quotidiana seja o suficiente para
cumprir as etapas da vida. Meus pais eram uns filhos da puta, como é
que eles conseguiram? A verdade é que não é uma coisa fácil ter filhos.
Criá-los, menos ainda.

Enterro do pai

(um coro cantando “Let it shine” e os convidados, imaginários)

– Ele queria um funeral do tipo americano, aliás, do tipo americano


não: do tipo missa da juventude carismática. Ele me fez prometer que
teria um coro cantando hinos especiais que ele tinha numa playlist pre-
parada, se ele tivesse especificado também que os coristas deveriam ser
mulheres negras gordas que gritam, talvez desse menos trabalho levar
o corpo para um culto pentecostal em Montgomery, Alabama; com a
Odetta Franklin cantando “Let it shine” no início.
– Esse era um gosto especial da mamãe – música gospel americana –,
nunca entendi bem, mas papai resolveu adotá-lo no final da vida. Pas-
sou o último ano ouvindo Ella Fitzgerald, Odetta, Louis Armstrong –
esse era clássico –, Chet Baker. Ouvia os mais pop music, rock, mais
mainstream e mais novos também, tipo Phil Collins, Dire Straits, James
Taylor, as grandes bandas inglesas e Elton John – que hoje já são preté-
rito para a garotada.
– O meu pai! Ah, que figura que era o meu pai. Conta a minha mãe
que certa vez, quando eu era pequeno, ele chegou a me perder na pra-
cinha porque encontrou um velho amigo e começaram a falar de fute-
bol; se esqueceu de mim e só quando vinha pra casa é que se lembrou.
Voltou, me procurou, não achou, foi à polícia, só quando chegou em
casa, que contou a mamãe que me esqueceu, é que ela disse que eu já
tinha chegado em casa fazia horas, que tinha voltado sozinho depois do
pai ter sumido.
162 Felipe Mury

– Foi um episódio interessante e dúplice, pois ao mesmo tempo que


me emputeço por ter sido esquecido, tenho grande orgulho de ter
conseguido voltar pra casa sozinho, independente.
– Papai me forçou uma independência precoce: nunca esteve muito
presente, sempre trabalhou muito, sempre viajou muito. E, quando
estava por perto, parecia uma esfinge, distante, austera: eu não conse-
guia decifrá-lo. (vai falando e consolando a mãe e irmã no enterro que segue)
– Não possuía muita habilidade, sentimentalidade, para lidar com as
sutilezas de uma criança. Não tinha temperamento para o paparico.
Quando bebê, ele não conseguia me pegar direito nos braços. (transi-
ção) Não tinha a ver com nenhum machismo, obscurantismo ideológi-
co, era simplesmente o jeito desajeitado de ser dele. Talvez ele achasse
que ia causar mais males se envolvendo com um bebê do que trazer
algo de bom: talvez fosse humildade da parte dele. Que contrassenso,
meu pai humilde!
(recebendo os pêsames) – Obrigado.
– Obrigado.
– “Meus sentimentos. Seu pai falava muito de você, não poupava elo-
gios, falava que você era um advogado brilhante, ficou louco de feli-
cidade quando foi avô. Ele tinha muito orgulho de você.” Pois sim...
– Será que quando eu me for vai ter gente chorando a minha falta? Des-
culpe o egoísmo, pai, de estar pensando em mim no seu funeral, mas é
rápido, prometo. Será que ao longo da minha vida eu serei alguém que
vai juntar muitos amigos, que meus familiares vão sentir de verdade?
Se sim, espero que meu filho seja um desses, espero que me admire,
quero ser imprescindível ao meu filho. (vira para o pai) Você foi im-
prescindível para mim, pai.
(chora, abraça o corpo, a mãe o acode) – Eu te amo. Não falamos quando
tínhamos tempo, mas ainda posso falar: eu te amo.
– Quando eu conheci a Laurinha, ele me deu a maior força para eu
continuar com ela. Dizia que era uma boa menina.
(O funeral vai se desfazendo à medida que ele vai se encontrar com Laura.)
– Laura me disse que fui um bom filho e ele foi um bom pai. “Live and
let die.”
Peças teatrais 163

(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)

ATO II

Viagem à Croácia
– Vou fazer um concurso aí... vou ter estabilidade... vou atuar só para
me divertir. Pago as contas como advogado ou servidor público e ga-
nho fama como ator. Porra nenhuma. O mundo te exige excelência e
dedicação exclusiva. Se não for para ir com tudo, não será. É...
– Ganhar dinheiro ou ganhar saúde, fama e prestígio? Parece que ter
saúde, fama e prestígio deveria vir em primeiro lugar. Acontece que
muitas vezes quem tem o dinheiro, o meio de troca, é que domina
aqueles que buscam saúde, fama e prestígio. Assim, quem só mira na
saúde, fama e prestígio, acaba à mercê de quem controla o dinheiro,
em uma sociedade em que a moeda é a única maneira de contratar bens
e serviços, e, às vezes, de se ter amor. Eu sei, eu sei... “Amor por di-
nheiro não é amor.” Mas, para muita gente, o sorriso da moça do Rei
do Mate ao pagar 5 reais pelo cafezinho ou os gemidos falseados da
prostituta são a coisa mais próxima de amor que terão na vida adulta.
– O dilema de ser ator e não ganhar um tostão é uma coisa séria. É
uma opção que parece glamorosa, mas traz muitos ônus. Eu vi cole-
gas que têm que aturar dura do guarda do metrô por tocar Vivaldi no
transporte público. Não sei bem. Não ter dinheiro implica, na socie-
dade do capital e do mercado, não ter dignidade. Isso é inaceitável.
– Alguns têm falado em mudarmos para uma sociedade do espetáculo,
onde o belo impera e quem dita as regras é a Arte. Os artistas são os
reis. Acho bom. Mas e aí? E os operários, os camponeses e, até, os in-
felizes hodiernos, políticos e burocratas? Morrerão à míngua? Não sei
bem se o destino dos artistas é tornarem-se ditadores de um povo ca-
rente de luz, som e sonho. Sim, a plebe precisa do circo, mas não pre-
cisa só dele. Algumas vezes penso que, de fato, existem profissões que
ficam melhor monopolizadas, restritas a certa elite. Não que essa elite
não se renove ou que não aceite membros de outra classe social, mas
que sejam poucos a dominar a comunicação e o privilégio de transgre-
dir com graça e como instituição.
164 Felipe Mury

– Então está decidido, serei ator, agora. Não mais advogado ou funcio-
nário público. O máximo que pode me acontecer é eu ter que dar aulas
em uma boa faculdade de artes cênicas. Isso não é ruim, pelo contrário.
Mas é um longo caminho. Uso meu DRT para elevar-me enquanto ser
e, se for necessário, minha OAB para resolver os problemas mundanos
e triviais que a civilização e o Estado me impõem.
– Ator de tipos ou ator-pessoa física? O tempo todo aquele diretor fi-
lho da puta me provocava, agia como se fosse eu que estava criando
aquela atmosfera infernal no ensaio. Me deixou com fama de desequili-
brado. Me enchia a paciência, fazia eu sentir dor e posava de santo para
o produtor e para o resto do elenco. Sem falar que só ele levou a fama
pelo espetáculo. Não dei nenhuma entrevista, nem nada. Só ele divul-
gou a peça, só ele ficou com os louros. Que merda, cara.
– Meu pai e minha mãe... Agora eu tenho que ajudá-los. Não sei até
que ponto eu tenho a obrigação de acompanhá-los nos seus últimos
dias. Ainda não é para agora. Eles estão novos...
– Mas já dá para sentir que uma hora ou outra eles me deixarão. Pelo
menos materialmente. Eu não acredito muito em espíritos. Sou cató-
lico e no catolicismo só se vive uma vez. Mas existe o paraíso. Espe-
ro que eles possam ir para lá. Eles não sofreram durante as suas vidas.
Foram felizes e saudáveis. Mas tem tantas pequenas coisas que aborre-
cem. Uma hora a gente tem que descansar mesmo. Que seja daqui a
muito tempo.
– Por exemplo, as contas, ajudar pessoas da família, esperar a gente
quando chegávamos tarde em casa. Se preocupar, se importar. Foram
bons pais. Hoje, não são tanto, mas provavelmente é porque eu já sei
me cuidar sozinho. Não preciso tanto deles.
– Mas são tantas pequenices que atrapalham a gente, por aqui...
– Papai era racista – que horrível dizer isso, não é?, mas ele era. Muito
sutil, mas tinha certas opiniões que ele não precisava externar. E era as-
sim com tudo, com a gordura das minhas tias-avós, com o jogo, vício do
meu tio, com os políticos. Ele era implacável em alguns comentários.
– Olha o que ele escreveu no diário de viagens, sobre um passeio que
fizemos à Índia: “Voltamos de Londres e nos inquietamos com aquela
Peças teatrais 165

gente cor de marmelada, suada, uma gente cozinhada pelo calor, pelas
bactérias livres em suspensão no ar. A terra batida encarde, a água salo-
bra desintegra, a superpopulação diminui a importância do indivíduo e,
logo, são todos uns feijões pretos se desfazendo, criando uma verdadei-
ra sopa de nutrientes entre os caroços, que, neste caso, são os corpos se
abraçando, quase unidos por uma camada oleosa, de visco humano.”
– Vinicius dizia que a beleza era fundamental, mas papai ia além: disse
que a única lei a que o Universo realmente se submetia era a da beleza,
segundo a qual os objetos, coisas, criações divinas se alternavam em es-
téticas mais ou menos belas conforme razão incalculável. Apesar de os
gregos e renascentistas terem dado um número a essa razão áurea, na
verdade, a atribuição de grandeza à beleza, pela matemática, para pa-
pai, vinha sempre depois, para traduzir em linguagem compreensível
o que passou a existir de maneira miraculosa, divina. Dizia ainda que
aquela razão de Da Vinci corresponde tão somente ao universo que a
cognição podia alcançar, pois ele tinha razão para acreditar que exis-
tiam então outros tantos que são indecifráveis por quaisquer lingua-
gens que tenhamos descoberto. E dizia: só é belo mesmo aquele que
mostra o seu lado mais feio e ainda assim é aceito e amado.
– Para Laura era um lirismo dele. “Seu pai tinha um dom, que você
puxou, para a poesia, para dizer as coisas com cores e não com sons.”
(para Laura) – Mas chega, chega, vamos falar sobre outras coisas: você
sabia que o outro nome de Dubrovnik é Ragusa, em italiano? Eu não
vejo a hora de andar por aquela cidadezinha, olhar aquele mar verde-
-esmeralda.
(para Laura) – Você escolheu bem o destino dessa vez. (dá o bilhete para
o fiscal do trem furar)
(sentados um de frente para o outro, no trem) – Acho que trem é algo seguro.
Eu confio em trens. Se não estiverem cheios, principalmente.

(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)

– Em algum momento Laura resolveu falar de política e da sociedade


brasileira. Um outro casal de brasileiros – até então despercebidos e
166 Felipe Mury

bem disfarçados em sua fantasias de europeus de segunda classe – en-


trou na conversa e passamos alguns momentos a debater sobre a situa-
ção do Brasil. Cansativo. Mas eu não reclamo, principalmente porque
às vezes é bom ter contato com gente que conhece a sua realidade e
que fala sua língua materna, por melhor que você fale inglês, francês
ou servo-croata.
– “Em um momento de descrença na política, talvez fosse a oportuni-
dade de criarmos uma sociedade de cultos, doutos, intelectuais e ar-
tistas. Talvez seja este o momento de crise que antecede a boa ideia e a
solução de muitos problemas. Pode ser a porta para a bonança.” Che-
gamos a esta conclusão.
– Via pessoas tão belas, tão longilíneas e cheias de belos tecidos e
gadgets. Via pessoas tão superavitárias de dignidade e afetos. Cheguei
a ter raiva dos mais necessitados. Por que o mundo não é todo belo?
Por que o mundo também comporta e a gente suporta a dor, a misé-
ria, a doença, a feiura?
– “O mal do mundo são esses velhos barrigudos, que a gente vê e nem
acredita, desses que dão nojo e a gente reza em silêncio o pai-nosso pra
nunca ficar igual... Aquilo é a raiva que de tão ruminada hipertrofia as
vísceras. Raiva que podia ser utilizada pra trabalhar, pra bater em al-
guém, pra foder...”

(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)

– Evite espelhos. Não há nada mais maléfico do que se olhar por muito
tempo, ou repetidas vezes no espelho. Lembre-se de que a única pessoa
que pode te derrotar é você mesmo. Então, é melhor não se enfrentar
muito. Acredite, você está bem, você tem boa aparência, não precisa
ficar se olhando. As outras pessoas é que têm que olhar para você, e
você, olhar para as outras pessoas. Ficar se encarando muito é morte
certa. Muita gente, no teatro e em apresentações para públicos, treina
no espelho primeiro. Acho isso perigosíssimo.
– Enfim. Estou amando essa cidade. A Croácia é um lugar realmente
belo. Dá para morar aqui. O casal de brasileiros foi embora, desceu
Peças teatrais 167

em um vilarejo na volta de Dubrovnik. Passamos então a nos comu-


nicar com grupos de jovens. Jovens alegres, festeiros e alguns bader-
neiros mesmo. A juventude europeia que senta no chão das estações
e aeroportos. Um deles, nós pudemos perceber, era gay. Tipicamente
mais calado que os demais, mais contido, tímido ou retraído, confor-
me queira chamar. Laura me disse depois que ele ainda estava em fase
de assumir-se. Não percebi de imediato. Ela sim. Tanto que cheguei a
contar uma história, um causo, no vagão-restaurante, para vários pe-
quenos adultos. Era uma história com moral, para significar o valor que
damos às coisas na vida e até que ponto viemos para ajudar o outro. Na
hora, tudo bem, mas depois me arrependi, pois pode ser que eu tenha
sacaneado o rapaz. Foi sem querer. Mas não conto para mais ninguém.
– É o seguinte... (começa a contar a história)
– O cara chegou ao céu e foi recebido por um anjo que apresentou a
ele o seu melhor amigo na Terra. O anjo disse: “Você tem que escolher:
ou você chupa esse inimigo antigo seu até ele gozar na sua boca ou você
decepa o pinto dele com esse machado aqui; se escolher a primeira op-
ção, vai para o céu, porque você preferiu fazer um sacrifício para não
ver um irmão sofrer, mas se preferir a segunda opção, vai para o infer-
no, pois não foi bom o bastante para perdoar o seu inimigo e preferiu
vê-lo sofrer a pagar um boquetezinho inofensivo.”
– O cara pegou o machado e bang. O anjo fez a vontade dele e o man-
dou para o inferno. Lá foi informado de que seria carcado todos os dias
pelo seu pior inimigo e por todos os outros moradores do inferno.
– Moral da história: às vezes a gente tem que fazer certas concessões
para não ser fodido de verdade.
– Vaidades, até que ponto a estima que temos por nós mesmos e a von-
tade de ser melhores do que já somos pode atrapalhar nossa convivên-
cia com os demais? No tribunal e no palco, se você quiser um trabalho
bem-feito, não pode sucumbir às vaidades. No teatro, principalmente,
lá é lugar de trabalhar em conjunto. O que não quer dizer que fora da-
quele espaço ou daquela função, as pessoas não se digladiem para ver
quem tem a melhor voz, quem é mais bonito, tem o pinto maior, quem
tem mais dinheiro. Nesse ponto há correção, as relações humanas e
168 Felipe Mury

suas rusgas vão aparecer uma hora ou outra, em algum lugar, por mais
que escondamos os nossos traços e atitudes e sensações feias. Manter
um ambiente ou espaço relativamente livre dessas feiuras requer esfor-
ço e atenção especial. A todo tempo o que é ruim tenta entrar.
– Sabe aquela frase “A Arte existe porque a vida não basta”? Eu só sei
que a vida é o mais importante, sempre, mas se nela não houver beleza
e arte, não tem mais graça. Não estou defendendo eutanásia, aborto,
ou o que for. Até porque, acho que podemos estar em estágios transi-
tórios de feiura e de infelicidade, mais tarde podemos recobrar a be-
leza e a energia e a alegria. Mas um bom parâmetro para se saber por
onde caminhar é levar em conta a beleza e a sensação de prazer. Estas
são inerentes a uma vida bem vivida.
– Mas disso todo mundo sabe, não é? Não estou inventando nenhuma
roda. Só estou fixando em voz alta uma consideração que acho impor-
tantíssima. Apesar de pouco pararmos para contemplar essa questão.
A questão da vida.
– Eu acho então que, dentro da vida, a coisa mais relevante que alguém
pode fazer, depois de ser pai ou mãe, é dedicar-se a alguma forma de
arte. Por vezes, transformar seu ofício em arte. Contudo, a única arte
que me parece real e válida – para mim – é a Arte Dramática ficcional,
onde a farsa é declarada e sabida. As demais profissões são engodo justa-
mente por se pretenderem verdadeiras. Todo mundo pode fazer arte em
suas atividades, se as faz com esmero e ali expressa alguma identidade
sua, porém, não são todos que podem viver fazendo uma chamada arte
pura, onde os meios e o objeto são inteiramente desprovidos de trivia-
lidades ou funções óbvias. Levar a alcunha de artista, com A maiúsculo,
não é para qualquer um.
– Fazer e discutir arte deve ser a principal atividade do homem civili-
zado, depois do sexo. Os outros temas e atividades serviriam só para
não deixar os debates artísticos caírem na monotonia.
– Debater é bom. Coisa de ágora, coisa de pólis, coisa da Grécia... De-
mocracia e tal. Entretanto, alguns discutem os fatos como se fossem
reais, como se pudessem chegar a uma narrativa definida e inequívoca.
O que há são versões, e tão só. Não admitimos isso em nossas batalhas
Peças teatrais 169

cotidianas, pois deve haver algum parâmetro para definir quem está
certo e quem está errado, mas que a verdade é que estamos ainda, no
estado de natureza, sob a lei da selva, isso é certo. Vence o mais astuto.
Há que se ter força, há que se ter coragem, há que ser mais que o ou-
tro. Senão, nada marcha.
– Talvez assumir que há infinitos caminhos seja um rumo para a per-
dição. Se eu encarar que só há um caminho, não terei a dor da escolha
e a agonia da dúvida. Melhor considerar que as coisas são como são,
e que sempre serão assim. Sem mudanças. As mudanças servem quase
sempre para confundir a gente. No final, a gente quer uma coisa só, e
a mesma coisa. O resto é alternativa, é fuga, é distração.
– Eu estou me acabando. Mas quem não está?
– Brincando de ser a gente acaba sendo. Eu não consigo ser uma pes-
soa má, mas também não consigo ser um trouxa. Outro dia, eu peguei
um ônibus até Ipanema. Dei o dinheiro pensando que estava dando
duas notas de dois, que são azuis. Só quando cheguei em casa e mexi
na carteira de novo percebi que tinha dado uma de dois e uma de cem.
Ambas as notas são azuis. O cara não falou nada...Talvez não tenha per-
cebido também... Sei... Finjo que foi isso. Em todo caso, devia chegar
para pegar ônibus agora e contar essa história. Acho que daria umas
vinte viagens. Mas o meu lado trouxa me obriga a esquecer e conti-
nuar pagando.
– É impressionante. Não sei se é a recessão ou o que, mas todo mundo de
repente passou a querer se dar bem. Em todos os serviços.Você pega um
táxi, o taxista puxa assunto para saber que tipo de pessoa você é, e anda
devagar, pega as vias mais congestionadas; você vai ao banco ou tenta re-
solver um problema da TV a cabo pelo telefone, sai com outro problema
maior ainda. As ondas estão bravias.
– O mar está revolto e nossa canoinha furada, furada com a mesma
facilidade inexplicável e mágica com que foi construída. Acho que é a
velhice que começa a se apresentar para mim. Acho que ser velho deve
ser isso – ter as pretensões sucessivamente negadas até você desistir.
Desistir você mesmo, para ninguém ter culpa da sua morte. Não ofi-
cialmente.
170 Felipe Mury

– A burocracia causa mortes, a falta de capricho no seu trabalho causa


mortes. E, infelizmente, elas acontecerão em algum momento. Será
que, pelo menos, há algum valor artístico nos atos da burocracia esta-
tal e nos serviços que nos prestam? Acho que eu já disse que sim. Em
algum pensamento supramencionado.
– Ao mesmo tempo, algo bom pode acontecer de repente, se você se
mantiver receptivo e aberto ao bem. Não confie em ninguém que ten-
te te convencer de que mágica não existe. A mágica é a base da vida.
Vida é matéria e energia, mas é mais que isso. Eu chamo esse algo a
mais, inexplicável, de mágica. Alguns chamam de Deus, mas para mim
Deus comportaria ainda as coisas que não são vivas e o espaço entre
elas e tudo mais que existir.
(sacaneando) – Café filosófico agora, com Leandro Karnal e Mário Sér-
gio Cortella.
– Uma vez, eu fui demitido. Era uma repartição pública. Eu era con-
cursado e fazia tudo perfeitamente, do jeito que o meu superior ime-
diato pedia. Meu rendimento era bom, minha relação com os colegas
de trabalho era ótima, mas, mesmo assim, certo dia eu tomei um berro
no meio da cara e fui demitido pelo responsável pela agência onde eu
estava lotado. Não houve explicação nem nada e ele ainda escreveu na
minha ficha que eu não estava cumprindo as minhas tarefas. Mentiroso
desgraçado. Eu fiquei tão desgostoso. E parecia que não importava para
quem eu pedisse ajuda, nada ia adiantar. Caí na depressão e só melhorei
quando voltei para o teatro. Alguns psicólogos acham que atacar é uma
maneira de pedir socorro, algumas vezes, mas quem é atacado é que
tem que pedir socorro. De fato, os bandidos estão por aí e eles podem
ser qualquer pessoa que te faça mal.
– Às vezes não basta falar a língua, às vezes não basta ser bonito e saudá-
vel, às vezes não basta nem ser humano. Às vezes a rejeição vem mesmo
e vem sem dó. E a gente nunca está preparado. “É trem-bala parceiro, e
a gente é só passageiro...” (deixa a plateia completar)
– Se você suportar a compressão, você envelhece. Se não suportar,
será esquecido antes da hora. E isso é que é a morte plena. É o esque-
cimento. A morte é um evento externo tanto quanto interno. Você só
Peças teatrais 171

morre mesmo quando os outros te consideram morto. Uma vez eu vi


em um documentário uma neurocientista falando que antigamente en-
terravam-se muitas pessoas que, pela tecnologia e medicina de hoje,
seriam absolutamente curáveis ou ressuscitáveis. Acho que isso ainda
deve acontecer, levando em conta que nossa tecnologia e medicina de
hoje são obsoletas em relação às do futuro.
– Então é isso. Sou ator, artista. Mais uma vez afirmo isso. Como te-
nho que afirmar e provar todos os dias. A advocacia ou o funcionalismo
público ficam em segundo plano. Até dá para fazer duas coisas simulta-
neamente, mas não dá para ser duas coisas ao mesmo tempo.
– Sendo artista eu faço o mundo mais bonito. E me faço mais bonito.
E isso é o que importa.
– Outra coisa: ser bom, generoso, honesto e decente. Isso importa
muito na vida em coletividade. Não é ser trouxa, como eu já disse. É
ser alguém iluminado, útil aos demais e fiel a si mesmo. Se for bom, o
bem que você faz volta a você. Isso é certo como o Sol.
– Trabalho. Posso dizer que o seu sucesso nas artes cênicas se resume a
sua capacidade de refletir a luz e de emitir som envolvente. Tem muita
gente boa por aí. Mas não dá para fazer nada pensando nos outros. Faça
o seu melhor, para você e para os que te amam.
– Eu só quero viver e ser vivido.
– Não se pode fazer nada que diminua as dores da vida, mas se nada for
feito, elas aumentarão. Elas têm que ser enfrentadas e transformadas em
movimento, energia, beleza. É muito fácil sucumbir. Quando estamos
bem, tendemos a não perceber, simplesmente estamos, somos. E quando
estamos mal, igualmente, pode ser que não nos demos conta do quanto
definhamos e então continuemos a definhar. Esse é o maior perigo.
– Nós morremos ou somos mortos a todos os instantes. E, a todos os
instantes, nós ressuscitamos dentro de nós mesmos. Até que um mo-
mento as pessoas percebem que naquele corpo já não há mais nada e
simplesmente o descartam.
(pergunta para a plateia) – Quem te matou? (grande silêncio)
– Como eu disse, a todo momento morremos; morri quando fui demi-
tido, morri quando casei, morri quando meu filho nasceu, morri quan-
172 Felipe Mury

do paguei as contas e fiz o imposto de renda ano passado. Morro toda


vez que gozo. O restinho de vida que vai sobrando na nossa matéria é
que diz quanto mais tempo de consideração pela coletividade temos.
Eu acredito que devemos ser proativos, que devemos tentar transfor-
mar o mundo para melhor – ou para o que entendemos ser o melhor –,
que devemos transgredir – na medida do benéfico –, contudo, não bas-
ta aumentarmos nossa presença no mundo, o mundo tem que aumen-
tar sua presença em nós. É desse equilíbrio de que estou falando, saca?
Abertura e fechamento, progressismo e conservadorismo, esquerda e
direita, claro e escuro, expansão e contração. Quanto melhor esse soft-
ware estiver instalado em nós, e atualizado, melhor vamos viver e, acho,
mais tempo vamos viver.
– Vou dormir bem que amanhã tem. (vai deitar-se)
– A importância de se ter um corpo bom. Um corpo que funciona.
Tenho que escrever sobre isso qualquer dia. Os ratos de academia é
que estão certos. Para nós, nessa vivência material, não há nada mais
importante que cuidar do corpo. Do nosso e do dos demais. O sono é
importantíssimo. Boa noite. (black-out)

(Volta a luz, lentamente, como o alvorecer.)


(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)

– No final, tudo se resume a se você quer ter ou ser a coisa que você
contempla: você cobiça ou admiras?
– Minha terapeuta falou que os meus sonhos, os de todo mundo, são
manifestações do subconsciente, ou inconsciente – não lembro bem –,
e que a memória é a base dos sonhos. Mas eu sonho com tanta coisa
que ainda não aconteceu. Para mim o sonho é manifestação do pensa-
mento, é como se continuássemos pensando, só que de olhos fechados,
e com menos controle dos pensamentos. A parte do cérebro responsá-
vel por guiar os pensamentos – deve ser o lóbulo frontal – passa a bola
para outras partes do sistema nervoso central. Não sei, mas a impres-
são que eu tenho é a de que os sonhos são uma preparação psicológica
Peças teatrais 173

para o que está por vir, para o dia que se seguirá, mais do que uma ma-
nifestação de memórias do passado.
– Vou entrar de novo no campo da filosofia e dos porquês: por que e
para que fomos feitos? Ou, nos fizemos... O que é essa porra toda? É
só para procriar? É só para ter prazer? É para fazer o que se quer? Ou
para seguir as normas? Aliás, que normas?
– Cheguei à conclusão de que o ser humano não foi feito para ser en-
ganado pelos sinais do mundo, foi feito para continuar sendo e para ter
prazer em ser. E para isso o afeto é o principal material dessa brinca-
deira toda.
– Amor é morrer sem dor.
– Meu pai tinha medo que o teatro me transformasse em gay; mal sabe
ele que foi a Arte que me fez homem. Pensei alto.
– Queria agora ver meu filho crescer e ser um grande homem. Ser um
grande ator, um grande diretor, o que ele escolher. Mas que seja belo
e honesto.
– Já tenho uma família linda, tenho conforto e dinheiro suficiente para
ter os pequenos prazeres da vida. Acho que agora é isso mesmo... Es-
perar, torcer para que meu rebento seja alguém especial e que conti-
nue as coisas boas que eu ensinei a ele, ou que ele aprendeu sozinho.
– “O que você procura já está procurando você.”
– Se papai se preocupava com ela, mamãe era a própria beleza. A per-
sonificação de uma deusa dos anos 70 ou 80. Do mesmo jeito que
Laura é a encarnação de uma deusa hipster. Não procurei o que via na
mamãe em Laura, mas o universo me presenteou com doçura parecida
e um aconchego, conforto, tão especial quanto. São duas coisas dife-
rentes, é claro. Mas eu prometo que cuido da Laurinha para sempre.
Eu prometo que cuido do meu filho como a coisa mais importante do
universo. Eu quero muito fazer essas pessoas felizes. Do jeito que tanta
gente me fez feliz.
(canta) – Yo te quiero! Tu me quieres!Vamos hacer un poquito de amor!
Yo te quiero! Tu me quieres una outra vez vamos hacer un poquito de amor!
– Estou compondo essa música. Será que essa melodia já existe? Eu
fico sempre com medo de pensar em uma melodia, falar para os outros
174 Felipe Mury

que eu inventei e chegar alguém dizendo que já a tinha criado. Aliás, eu


não envio mais peças e composições minhas para ninguém. Se bobear,
nem fico lançando ideias novas em mesa de bar. Neguinho vai lá, diz
que vai ler, nunca dá uma resposta e passa um tempo e a minha peça
está sendo encenada, minha música está tocando na rádio e minhas
ideias estão em algum artigo acadêmico de algum professor. O domí-
nio público hoje é um segundo depois de pronta a obra...
– Às vezes me sinto cansado.
– Às vezes me pergunto para que levantar de manhã.
– Daí vejo o sorriso deles. Daqueles que estão aqui por mim.
– Não é possível parar. Só dá para ir para a frente. “Ao infinito e...”
– “Você já está nu, não há razão para não seguir seu coração”, disse Ste-
ve Jobs. Então se você acha que seus problemas são grandes demais,
olhe para você. Você é maior do que qualquer coisa. O que você perde
em não tentar será sempre muito maior do que o que você pode vir a
perder tentando. Obs.: sejam razoáveis, não vão apostar todas as suas
economias na Mega-Sena e me culpar amanhã por isso.
– Mas se você não estiver prejudicando alguém, se estiver fazendo o
que julga ser o melhor para si e para o próximo, acho que tudo é váli-
do. Dizia, com outras palavras, Fernando Pessoa.
– É como a parábola. O homem que pensou que não poderia ficar à
mercê das vontades dos outros e que deveria empenhar seu esforço
para nunca depender de ninguém e para tampouco ter de fazer esfor-
ços braçais. Deus lhe concedeu o pedido que fez; o tempo passou e não
dependia de ninguém e trabalhava muito pouco, quase só dando or-
dens – ganhou uma bela voz inclusive. Mas em contrapartida, ganhou
muitos quilos a mais que aqueles que eram agora seus subalternos,
vassalos, dependentes e, ao contrário destes, passou a ter um corpo
pequeno, enferrujado, cheio de dores e suava ao menor esforço. Foi
maldição cominada à benção, que lhe acompanhou pelos anos. Passou
a não saber mais o que era mais valioso e, mesmo, passou a se pensar
prisioneiro e alienado agora por motivos ainda mais fortes.
– Mas e o Bruce Jenner, hein? Que merda. Como é que o cara faz isso,
com mais de 60 anos. Bem, quem sou eu para julgar, né?
Peças teatrais 175

– (pausa) Sem seu pai ali, sem a lembrança constante dele lhe cobrando
as coisas da vida, sem isso não teria se prendido a nada e teria sido maior,
sido um homem verdadeiramente grande. Mas, sem seu pai, seria esse
homem grande para ninguém. Ninguém torcendo, ninguém aplaudindo.
Seria sim um grande ninguém: filho de ninguém, muito prazer. Hoje, ao
menos tinha a sua constituição, a sua identidade conservada.
– É foda! É foda a nossa hipocrisia também. A hipocrisia do homem
heterossexual moderno. Eu vejo neguinho falando mal, esculachando
nas rodinhas, nos círculos fechados, os veados: que dá a bunda, que está
errado, que não quer que o filho seja... Mas é só colocar um microfone
na cara de uma figura dessas que começa a falar que a diversidade tem
que ser respeitada, que não tem nada a ver a agressão contra os gays.
Bem, é melhor do que se defendessem publicamente a homofobia,
com certeza... Mas não é curioso? Não é cruel essa dualidade? Porque,
mal ou bem, esse repúdio ao diferente está na nossa formação como
cidadão de uma certa categoria, aí do nada a gente se vê achando tudo
aquilo que nos disseram que estava errado, mas que agora não está
mais... E então eu não posso pichar... Pelo menos, não publicamente.
– Eu deveria, mas não vou. Eu deveria mesmo. Mas, deixa para lá. Eu
deveria criticar aqui o feminismo. Mas vou levar porrada... Eu não
ouso falar de feminismo. É tabu, assunto proibido. Só fala dessa porra
quem quiser ser bombardeado. Eu não vou falar que essas mulheres
fortes de hoje estão criando uma horda de homens fracos, submissos
e sem atitude. Não vou falar que muitas mulheres estão cometendo o
mesmo erro que os homens cometeram no passado, querendo centrar
a vida em comunidade na experiência de um só sexo (no caso, o delas).
Não vou falar que eu tenho medo de viver uma vida toda com medo do
olhar e das palavras da minha esposa, porque ela aprendeu a ser mais
esperta que eu e usa seus superpoderes para me inferiorizar, me ridi-
cularizar. Eu não vou falar nada, principalmente porque essa não é uma
discussão que caiba nessa nossa era e esses são só devaneios e preocu-
pações minhas, pessoas. Vai ver que a maioria da população ainda é de
mulheres submissas e a minha observação poderia causar uma catarse
176 Felipe Mury

em um macho potencialmente violento que vai subjugar e até matar a


sua mulher.
– Aliás, violência contra mulher é outra coisa que eu não entendo
como funciona. Tem que ser muito filho da puta para bater em uma. A
verdade é que elas podem tirar você do sério. De verdade. Mas o que
você tem que fazer nessa situação é sair de perto. Se afasta. Até ela per-
ceber que o comportamento inadequado dela pode fazê-la perder você
de vez. Se ela não se importar em perder você, você também não esta-
rá perdendo nada na ausência dela.
– Essa era provavelmente a hora em que eu faria um enquadramento
do capitalismo, do socialismo, falaria mal de como a gente lida com a
propriedade e com o dinheiro. Diria que a sociedade deveria ser mais
justa e que é possível unir a concorrência e a livre inciativa de Adam
Smith com o bem comum e a distribuição de riqueza de Marx. Mas eu
estou cansado dessa baboseira. Política, sociedade... Essa bosta toda vai
se ajeitando à medida que nós vamos encontrando melhores meios de
sermos felizes enquanto pessoas, enquanto pais, mães, filhos e irmãos.
– Eu deveria falar mal do totalitarismo e enaltecer os regimes demo-
cráticos. Mas eu estou cansado desse papo de primeiro período da fa-
culdade. É claro que é melhor a liberdade, é claro que é melhor poder
decidir o próprio futuro e que o povo deve ser ouvido em vez de pe-
quenas elites. É claro que o Estado de bem-estar social é melhor do que
o estado de austeridade. Mas a verdade é que estas formas de poder e
de organização institucional se alternam de forma que não pereçamos
em um extremo ou em outro. Há um equilíbrio natural no universo e
isso significa revezamento de forças, significa algumas mudanças, sig-
nifica algum movimento. Quando não conseguimos mais lidar com o
movimento é porque estamos mortos.
– Até quando eu vou fazer o que é mais fácil? Só fazer o que eu já sei
fazer... Tem alguma coisa nova, a life-changing experience, um turning
point nessa porra?
– No final, você é o que você julga ser aquilo que está na sua frente. Na
verdade, o que eu acho que você é é o que eu sou. Saca? Se você é um
mentiroso, vai olhar para quem você vê e achar que a pessoa está men-
tindo para você. Se você se acomodou em só sugar os outros, vai achar
Peças teatrais 177

que quem se aproxima de você quer te sugar. Enfim, é um padrão. A


gente se enxerga nos outros, na verdade. E parece que isso não muda.
– Quem é que manda de verdade? É o homem ou a mulher? O jovem
ou o velho? O que se faz de forte e ativo ou o que se faz de inteligente
e sedentário? Não tem essa porra... Cada um manda na sua existência e
pronto. Temos controle sobre nosso próprio corpo e, às vezes, a gente
consegue possuir um outro corpo. Mas aí é sob a autorização e concor-
dância do dono real daquele outro corpo. A gente não tem nada mais
do que o que somos. Isso é uma realidade. E essa realidade faz todas as
conquistas e experiências da vida serem mais saborosas. Adiciona va-
lor àquilo que vem extra. Com esse pensamento, só há o que se somar.
– Mas enfim, tem gente que quer mandar, tem gente que quer exercer
o poder sobre os outros. Aí é que está o problema. Alguns cientistas
perceberam que em tribos isoladas e nas sociedades modernas manda-
va mais quem tinha a voz mais grave, ou, quem tinha a voz mais grave
mandava mais. Gutural.

(Fazendo flexões, abdominais e agachamentos.)

– Certas vezes tinha que me convencer de que escolhera o lado certo.


Me custou aprender a mentir e, então, me custará mais ainda ensinar a
mentir, quando for pai.
– Não fode!
– A morte apaga o malfeito, mas também leva consigo o bem que pos-
sa haver.
– Eu tive um amigo. Thiago. Meu melhor amigo. Disparado. Ele era
gay. Foi a pessoa que mais me entendeu na vida. Depois dos meus pais,
claro. Mas ele era muito inteligente, sabia tudo de mim, sem eu lhe
falar nada. Eu é que não sabia tanto dele. Falha minha. Acho que eu
cheguei a confrontá-lo uma vez com o fato de ser gay. Tentei demo-
vê-lo da “ideia de ser gay”. Eu não entendia na verdade essa condição.
Não entendia nada. Sigo não entendendo, na verdade. Eu achava que
ser gay, para ele, era uma tentativa de viver sem tantos riscos, de ter
uma existência social café com leite, já que não formaria uma famí-
178 Felipe Mury

lia, não enfrentaria os problemas de se levar adiante uma relação com


uma mulher, não viveria os desencontros da criação de um filho. Tentei
transformá-lo em hétero em certo ponto; achei que isso era possível. A
verdade é que ele enfrentou bem mais que qualquer um. Morreu cedo.
Mas viveu. Que Deus o tenha.
– Aqueles sábados eram inigualáveis. Foram a melhor fase da minha
vida. Não que eu ainda não vá viver coisa melhor. Mas, até agora, nada
barra aqueles sábados. Papai falava: “divirta-se”. Por que será que de-
pois de um “divirta-se” eu sinto sempre agora um frio na barriga? Será
porque eu sei que depois de um desses vem sempre um “se esforce”,
“empenhe-se”, “estude”, “trabalhe”?
– Pode ter certeza de que TUDO vai acontecer com você.
– Tem gente que usa GH e outros hormônios para se manter forte, jo-
vem, coisa e tal... Disso eu sou a favor. Acho que é um recurso da me-
dicina, especialmente para as pessoas mais velhas. Alguém falou para
mim que é “triste” ver tanta gente recorrendo a hormônios para retar-
dar a velhice e que isso pode dar câncer. Eu acho que, tudo bem, se a
pessoa tem predisposição ao câncer, tem casos na família, não é uma
boa arriscar – especialmente se for jovem. Agora, um senhor que está
nos seus 80 anos, que uma hora ou outra vai morrer, do que quer que
for, se puder pagar, não vai tomar algo que melhore sua vida e seu bem-
-estar? Claro que vai. Tem que tomar.
– Isso me leva a outra consideração: sobre a eutanásia. Até que ponto
podemos e devemos manter uma pessoa que está vegetando, sente do-
res etc., viva? Eu responderia: até quando for possível. Mas tem gen-
te que diz que não quer vegetar, depender dos outros, dar trabalho...
Bem, minha opinião é de que a vida de uma pessoa vale todos os sacrifí-
cios e é a coisa mais importante a ser mantida. Se não nos esforçarmos
para manter uma vida humana, vamos nos esforçar para quê?
– Até os 30 a gente vive para lutar contra o establishment, contra os dog-
mas e as convenções. A partir dos 30 a gente percebe que não dá para
mudar as coisas, pelo menos não só com nossa vontade e luta, e aí a
gente passa a se adaptar e a gastar as energias entrando em conformi-
dade com o mundo e seguindo o script da vida.
Peças teatrais 179

ATO III

– É quando você percebe que a vida é fora da caixa. Às vezes, até, a vida
é fora da norma, fora da lei. Quem tem coragem vive. É aventura, é
assumir riscos. E você encontra gente querendo ser gente. Às vezes de
um jeito antigo. Às vezes, desesperada tentando encontrar uma nova
forma de ser gente.
– Quando eu ainda não era maduro e ainda na faculdade de Direito, me
diziam que existiam três verdades: a de uma parte, a da outra e a verda-
de real. Hoje tenho certeza de que só há uma verdade, a do vencedor. A
verdade de quem se impõe é a que ganha a prerrogativa de ser conside-
rada real, não existindo nenhum meio-termo, ou circunstâncias neutras,
imparciais ou mais verdadeiras. Quem vence é que conta a história, e é
isso aí. Das versões, só uma vinga.
– O ator, o ator às vezes se perde no “quem sou eu?”... É foda, ficar
trocando de personalidade pode dar uma danificada... Pode fazer você
ficar meio perdido por alguns instantes, talvez até por um tempo con-
siderável. Grotowski, em Apocalypsis cum figuris, falava da sensação de
morte no final de cada processo. Eu me formei como ator – sim, as
pessoas se formam como técnicos em teatro, existe escola para isso,
mas não existe escola para ser artista –, e pensei: e agora? Que porra é
essa? Que que vai acontecer? Quem vai me pagar agora? Quem vai me
bancar? Puta que pariu. Eu fiz minha primeira e última apresentação
no teatro profissional e não fui chamado pra nenhuma peça da Broad-
way, do West End, não fiz novela, não entrei em nenhuma rede de te-
levisão, nem para reality show eu fui chamado. Que meeeerda. Mas, sé-
rio, houve oportunidades; eu é que passei por uma crise de ceticismo
comigo mesmo. Pensei: será que vale a pena, todos os dias me desnu-
dar, me expor para pessoas, muitas das quais eu nunca vi, sem receber
dinheiro, só bebendo a água do bebedouro, só para receber uns elogios
no final da noite? Naquele momento, não sei. Mas hoje, está valendo.
– O problema é quando você começa a se comparar com os outros...
Principalmente com quem está na estrada há mais tempo que você.Tipo,
você pensa: ah, eu deveria estar recebendo o que o Porchat recebe, eu
180 Felipe Mury

deveria estar comendo o tanto de mulher que o Rafinha Bastos come, eu


deveria ter o cabelo tipo o do Rabin... Mas, enfim, se você não resolver
se foder, e não resolver ser o seu próprio inimigo, vale a pena sim. É só
deixar o sol entrar, como eles dizem no musical... “Let the sunshine in” e
fica tudo mais fácil. Pensar em soluções, não nos problemas.
– É o dasein do Heidegger. Ser no mundo.

(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)

– Eu curto aliens. Sério, acho que eles estão entre nós. Eu chamo de
aliens as pessoas diferentes, que têm algo que nós chamamos de defi-
ciência ou que simplesmente pensam diferente de nós. Eles são pro-
fessores, médicos, padres, advogados, economistas, mulheres, goys,
gays, surdos-mudos, rockeiros, hippies, hipsters, góticos, românticos,
nerds, geeks, transexuais, donas de casa, chefes de família... Qualquer
um que julguemos ser diferentes de nós. Que meu filho tenha a cora-
gem de conhecer aliens antes de recrudescer. Que viva com eles. Que
seja um deles.
– É o novo que imita o velho ou o velho que imita o novo? (pausa) A
vida é uma combinação... a combinação das combinações. Um nasce
para que o outro descanse e, ao mesmo tempo, para vingar e dar se-
quência ao que o outro era ou fazia. Um revezamento. Lindo. Lindo.
– “A vida é uma peça de teatro que não admite ensaios”, Charles Chaplin.
– Acho que uma das piores coisas do mundo é perceber que nem todo
mundo é seu amigo. De fato, conforme a gente vai crescendo, deixando
de ser criança, a gente percebe que tem gente disposta a te matar, inclu-
sive. Às vezes, por um carro, por uma joia, por um cargo público, por
uma herança, por um papel no cinema. Isso é que é o mais escroto. Essa
espécie de selva é uma realidade para muita gente. E matar não é só pegar
uma arma e atirar na cabeça de alguém. Palavras matam, textos matam,
olhares matam. Acho que já falei sobre isso. Estou me repetindo.
–Só há uma coisa eterna no mundo. (silêncio)
– Sociedade fingida. Grande parte dos sorrisos são armas que usam
para te tirar 30% a mais na conta do hotel, para arranhar seu carro sem
você ver, ou para simplesmente não ser pego em suas mentiras e mal-
Peças teatrais 181

feitos. Sorriso verdadeiro está raro. (pausa) Lutamos, cada um, para ser
a pessoa mais amada do mundo.
– Em cada país essa mesma lógica se repete. Somos iguais nesse ponto.
No ponto de encarar a vida como uma briga e ter sempre que declarar
um vencedor e um perdedor; no ponto de querer sempre levar algu-
ma vantagem. Certamente, fica difícil dizer que em tal país as pessoas
são assim ou assado, que determinado povo age, pensa, comporta-se
de um jeito determinado e que há características absolutas, ou mesmo
fortes, que definam uma sociedade em particular e a diferenciem de
outra. Cada vez menos acredito nas etnias, ou nas culturas nacionais ou
nas fronteiras. Ou em qualquer coisa.
– Estamos sendo abatidos e não nos damos conta. E a culpa não é de
ninguém. Se você conseguir conviver com as cicatrizes, você pode ir
até o final. A voz de Deus é grave, vem da garganta, é gutural.
– A vida acontece no erro, na burla, no crime: o espermatozoide só
fecundou o óvulo porque fez um furo nele de tanto forçar a entra-
da. O omelete só é feito quando os ovos são roubados do ninho e são
quebrados.
– Todos seremos dessacralizados em algum momento. Menos a vida. E
eu só quero viver e ser vivido.
– O que nos mata são as pequenas verdades reveladas todos os dias.
Vida é sinônimo de inocência. Quanto mais nós sabemos, mais mortos
estamos. Veja uma criança e veja um velho. O que mais sabe, que mais
tem experiência, é o que está mais próximo da morte. O frescor neu-
ral é que é mais importante para continuar vivendo. A morte é a reve-
lação suprema, não há mais o que aprender. Ao morrer, a gente vai para
onde a gente imaginar, ao fechar os olhos, mesmo quando vivos, tudo
é possível. Assim, a carne se desfaz, vira outra coisa – terra, planta, ga-
ses no ar, e a alma, aquilo imaterial que há dentro de nós e nos guia, vai
para onde quisermos.
– Eu assisti ao Tio Vânia do Tchekhov. A montagem do Galpão. Muito
boa. Alguém que desperdiçou a vida pensando nos outros e nunca vai
ter recompensa à altura. Nenhum agradecimento, de ninguém, vale o
descartar de uma vida. Não jogo a minha fora não.
182 Felipe Mury

– A realidade é uma invenção nossa, que a gente combina a cada geração,


para ser ensinada na escola, dita em casa, para que ninguém resolva des-
cobrir o grande nada. (pausa) É o tal do zeitgeist. É o nosso zeitgeist. Esta-
mos fadados a correr riscos e a nos julgarmos melhores do que aqueles
que vieram antes de nós. É o espírito da geração dos arrogantes.
– Eu não sei morrer. (pausa longa) Não sei como é que é, como é que
faz. Tenho medo de chegar lá, na hora da morte, e eu não ir, não vou
saber como é que faz. Se vai para a luz, se vai para o escuro, se é só fi-
car parado e deixar os outros me enterrarem, se eu sinto dor ou se não
sente-se nada. Vai chegar na hora e eu vou desistir, vai dar menos tra-
balho continuar vivo.
– Tem uma coisa que eu queria experimentar... Ser o homem mais alto
do mundo. Vocês já viram? Ter um troço na glândula pituitária, hipófi-
se, e ficar gigante, maior que todo mundo... Acho que o nome do mais
alto do mundo é Sultan Kösen. É turco. Mas tem um chinês, tem nos
Estados Unidos, na Polônia. Imagina uma pica proporcional à altura.

(Lava as mãos em um bowl de porcelana e faz um gargarejo.)

– A alma deve saber tocar o corpo. Os corpos têm a forma como


amam. As vozes são o som como amam. Somos moldados por nossos
afetos e isso é a única coisa certa. Nem a morte é mais certa que isso.

(toca o didjeridu)
(Deita-se no piso do palco e morre. Fica o cadáver ali estendido até que toda a
plateia se retire.)

PANO

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