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Mury
© Felipe Mury
Gramma Editora
Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo
Tadeu Monteiro, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha, Lúcia
Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida, Mirian
Goldenberg e Silene de Moraes Freire.
M966p
Mury, Felipe
Peças teatrais [recurso eletrônico] / Felipe Mury. - 1. ed. - Rio de Janeiro :
Gramma, 2019.
recurso digital
Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9788559685763 (recurso eletrônico)
09/01/2019 09/01/2019
Gramma Editora
Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel./Fax: (21) 2224-1469
E-mail: contato@gramma.com.br
Site: www.gramma.com.br
Celina Sodré
Professora e diretora de teatro
APRESENTAÇÃO
Com este livro, queremos oferecer ao leitor caminhos para levar estas
peças aos palcos, ou ao menos o prazer da leitura. Trata-se de um óti-
mo conteúdo para exercícios cênicos, seleção de cenas e falas, e pode
ser utilizado em variadas situações. Assim, o trabalho de um eventual
diretor e de eventuais atores será mais determinante que o meu pró-
prio.
Faço votos de que esta obra se espalhe e dedico a primeira publi-
cação à minha tia Marli, entusiasta eterna do meu trabalho. Ofereço os
mais emotivos abraços aos que mergulharem nestes escritos.
Isabel 1
Assembleia Geral 47
Em consulta 85
Pêssego 123
Gutural 157
ISABEL
PERSONAGENS
1
A peça traz letras de músicas que devem ser musicadas; de outra forma, devem ser encaradas como
poesia.
4 Felipe Mury
ATO I
Música 1
Marche, marche
CENA 1
(Aos 8 anos Isabel está prestes a ter sua primeira aula. Luísa, a
condessa de Barral, sua tutora, a encaminha para a aula com o
professor republicano que a ensinará a ler.)
(Enquanto o professor se virava, ela pegara a pena, a folha e escrevera seu nome
completo.)
PROFESSOR – Ah, vejo que meu trabalho aqui já está feito. (Lendo.)
“Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonza-
ga”. É você!
ISABEL – Quem mais, professor? (Escrevendo e falando.) “Sapo, alfinete,
cortinas, degrau (pronunciando bem o “a-u”), professor, quadro, jar-
dim, camélia. É minha preferida dentre as flores!
LUÍSA (deixando a leitura na antessala ao lado e colocando o pé no cômodo)
– Duas orelhas e uma boca: ouça, não vocifere, princesa!
PROFESSOR – A menina está se comportando, não se preocupe, con-
dessa. E, mais, ela deve já ter alguma voz.
LUÍSA – Não discutiremos os modos que devem se impor à realeza. O
imperador, pessoalmente, me incumbiu de lhe dar maneiras e é assim
que é.
Peças teatrais 7
ISABEL – “Não tenho certeza... Se um dia puder ajudar... Esse dia vai
chegar. Se um dia puder ajudar. Vou fazer, tenho que fazer, tenho que
fazer! Algo tem que mudar. Minha missão eu cumprirei, sem duas ve-
zes pensar. Não tenho certeza, não tenho certeza do que devo fazer,
mas eu sei... Eu sei que algo vou mudar!”
PROFESSOR – Vai mudar!
LUÍSA – Vai mudar!
1862
CENA 2
CENA 3
(ISABEL entra em uma roda de pessoas de sua idade. Começa a rir com o que o
rapaz mais eloquente do grupo fala.)
CENA 4
MAYARA – Nós temos é que fugir daqui. Esse lugar não é para nós.
ALBERTO – Para onde vamos fugir, estamos ilhados.
MAYARA – Para a cidade. Lá, ninguém nos conhece, não seremos es-
cravizados.
ALBERTO – Não sei...
MAYARA – É isso! Vamos para a cidade. Hoje à noite! Quando todos
estiverem dormindo.
ALBERTO – Oi?!
MAYARA – Sim, é o único caminho.
ALBERTO – Está bem. Estou com você. Hoje à noite. Quando todos
estiverem dormindo.
CENA 5
(Trovão.)
CENA 6
(D. PEDRO II olha carinhosamente para ela e para uma caixa enorme, púrpura,
com um laço bem grande em cima.)
(TODOS que estão na cena passam a circundar ISABEL, que levanta o animal-
zinho nas mãos.)
Desconhecido da pátria
Um desgosto inteiro
Um profundo pecado
CENA 7
ABÍLIO – Não aguento mais essa gente real! Ter que bajulá-los... Em
breve será minha vez de ser bajulado! Vou mandar nesse país inteiro!
Vou ter muito mais dinheiro! Vou convencer o chato do imperador
a derrubar mais florestas para plantar mais café! E então, o golpe de
mestre... A empreitada derradeira, que me levará à riqueza suprema!
Eu... Eu... (UBIRATÃ esbugalha os olhos e aguarda com atenção e curiosida-
de) me casarei com a princesa!!! (Gargalha)
18 Felipe Mury
CENA 8
1864, O CASAMENTO
CENA 9
(GASTÃO e ISABEL se olham. Suspense. Ele inclina a cabeça como a indicar que
esperava por mais, mas não desdenha a princesa.)
(ISABEL se intimida, mas logo retoma o interesse no olhar. )
(Ambos ficam rentes um ao rosto do outro. As respirações se confundem. Afastam-
-se bruscamente.)
(Simultaneamente, LEOPOLDINA e LUDOVICO tiveram o mesmo tipo de en-
contro.)
20 Felipe Mury
GASTÃO – Humm...
LUDOVICO – E então, o que achaste?
GASTÃO – Achei-a meio durona, difícil de dobrar. Será que me caso
hoje e amanhã acordo do lado de uma megera?
LUDOVICO – Que é isso, rapaz! Ela te adorou! E tu a adoraste...
Eu vi.
GASTÃO – É...
LUDOVICO – O que achaste da minha?
GASTÃO – Achei? Não sei não, não vi... Estava entretido.
LUDOVICO – Não viste? Como não viste?
GASTÃO – Não vi, ué! (tempo) Está bem: acho que a tua vai ser pior
do que a minha! Aliás, que tipo de casal vocês serão com esses nomes,
Ludovico e Leopoldina?
LUDOVICO – Ha-ha-ha! Não vai não ser pior não... Eu já tenho aque-
la ali no papo. Vamos ser Lelu, Lulê!
Peças teatrais 21
CENA 10
ISABEL (cantando) – “Essa terra, esse trono são minha vida, certamente
tu terás muito o que aprender! Mas se escutares o ruído da água, se se-
guires a luz do astro rei, vais crescer, vais viver o sonho, eu sei!”
SERVIÇAL (aparece do nada) – “Foi, foi, foi, foi, foi; foi eeele!”
(ISABEL e GASTÃO continuam se beijando. BRILHANTINA e seus novos ami-
guinhos micos param de brincar e ficam olhando o casal, suspirando, dentro de
uma vitória-régia.)
O mar gentil
Florestas
O céu anil
Carnaval
Não se faz um arco-íris
Com uma só cor
Ou sinfonia
De nota só
Hoje em dia
Poderá um semelhante pertencer?
Sujeito de tal verbo
Ninguém com alma pode ser
Peças teatrais 23
CENA 11
(ISABEL olha com dengo para o pai. D. PEDRO II pondera, mexe a cabeça, alisa
o queixo barbado.)
CENA 12
ALBERTO – Viu! Eu disse que devíamos fugir... Eu passei por um, pas-
sei por dois e “tibum”, ninguém nos pegou.
MAYARA – Mas a ideia de fugir foi... Ah, deixa pra lá. Esse lugar é
incrível!
ALBERTO – Quanta coisa nessas, nessas...
MAYARA – Lojas! É para quem ganha dinheiro, eles ganham e vão lá e
compram o que querem. E tem o restaurante, aonde se vai e eles te ser-
vem a comida! Tem o tílburi, uma carruagem de um só cavalo e duas ro-
das – daqui a pouco vão inventar uma que anda sozinha, com gasolina...
Tem empregados livres, que trabalham nas casas!
ALBERTO – Tem capanga de farda. Cuidado!
MAYARA – Eles são policiais, estão aqui para proteger a todos, até a
Peças teatrais 25
(ALBERTO vai se afastando à medida que segue uma baiana com um tabuleiro
de doces e cocadas.)
(Separam-se, momentaneamente, entretidos com as coisas da cidade.) (Tempo)
(UBIRATÃ chega com mais capangas e consegue pegar MAYARA. ALBERTO per-
cebe que se perdeu de MAYARA e começa a buscá-la, vê que os capangas a pega-
ram. Começa a lutar com os capangas para livrar a amada. Consegue pegá-la de
volta. Os capangas restam desnorteados. Os escravos fogem.)
(MAYARA e ALBERTO chegam à porta de uma Igreja. Há uma cruz bem grande
há na frente. Um padre-monge aparece e resolve abrigar o casal.)
CENA 13
(Tempestade se forma.)
O corvo acompanha
O chacal não vai errar
Na tormenta, enxurrada, deslizamento
Na curva do breu não vai escapar!
Peças teatrais 27
O corvo acompanha
O chacal não vai errar
Na tormenta, enxurrada, deslizamento
Na curva do breu não vai escapar!
Seus Pobres!
ATO II
(Abrem-se as cortinas.)
CENA 14
CENA 15
D. TERESA – Tenha calma, minha filha. Tudo a seu tempo. Vou ver
como está tua irmã.
(Do lado de fora, ISABEL e os imperadores cruzam com o casal de escravos que
busca sua liberdade.)
CENA 16
A que me entreguei
Agora o brinde, põe aqui mais dois dedos
Vem aí o malandro (desfila o trovador-narrador)
Sem um tostão
Mais na beca que do que ando
É um bon-vivant.
CENA 17
Festaaa...
Festaaa...
Um tico-tico aqui,
Um tico-tico lá
A verdadeira magia vem do que é popular!
É a dança que te faz feliz! (capoeiras dançando)
E a música te tira do chão
Vale a pena cruzar o país
Com um berimbau na mão
CENA 18
CENA 19
ATO III
CENA 20
CENA 21
(ISABEL já tem seus filhos. LUÍS com 13, PEDRINHO com 10, e
ANTÔNIO com 7 anos. ISABEL lê a carta do pai.)
(Uma ventania terrível entra batendo as portas e toma o Palácio. Entra histrio-
nicamente ABÍLIO com os seus capatazes.TODOS se arrepiam.)
ISABEL (proclamando) – Eu decreto que estes dois não são mais escra-
vos de ninguém! (acariciando o rosto de MAYARA – cantando) “Meu bem,
estás livre. Tens agora aquilo com que sonhaste! Tua vida pertence a ti.
Vais viver teu grande amor!” De hoje em diante, marquem a data, nin-
guém será feito escravo neste império!
ABÍLIO – Mas... Vais botar o trono a perder!
É hora
Menina
Se o Sol brilha sempre igual
Igualdade vai reinar
É hora agora
Menina
Se o Sol brilha sempre igual
Igualdade vai reinar
(ISABEL segura uma pena dourada e assina, em letra, também de ouro, a Lei.
[tempo] Aplausos dos presentes.)
LUÍS – Vá embora!
4
Fala real de Rui Barbosa sobre o fim da escravidão. Trecho do discurso “Aos abolicionistas baianos”,
em Obras completas de Rui Barbosa. v. 15, t. 1, 1888, p. 140.
Peças teatrais 41
(ABÍLIO vai andando de costas, como se fosse sair, mas tira um punhal do bolso
do paletó e se lança na direção de MAYARA, com o fim de matá-la.)
(ISABEL, rapidamente, empurra MAYARA e se coloca em seu lugar. ABÍLIO com
o punhal levantado para rente a princesa.)
(Chegam o imperador e a imperatriz em plena regalia: ele com a mais bela co-
roa, manto e o cetro, e ela com uma fabulosa coroa e impressionante vestido.
Holofotes.)
(D.TERESA traz consigo a coroa que cabe a ISABEL e, com todo o sentimento,
a coloca em sua filha.TODOS se ajoelham ao seu redor.)
D. TERESA – A redenção.
CENA 22
(ISABEL sobe com cuidado as escadas da torre do castelo da Ilha Fiscal. Não
sabe, mas é seguida por ABÍLIO. Na sacada da torre, se debruça e canta.)
soube o paradeiro do vilão. Dizem que perdeu a memória, passou a ser pedinte,
como na baía não há tubarão.)
CENA 23
Deixe ser
Deixe estar
Alguma paz
Para poder recomeçar
Juntos em Paris
Da mocidade, vou sentir saudades
Foi por um triz
Porém a boa magia continua na cidade
Peças teatrais 45
Levo e deixo
Muito daquilo que importou
No começo do final
A felicidade não cessou
Juntos em Paris
Milhões de súditos,
Estão alguns tupiniquins
Deixa ser, deixa estar
Levo e deixo
Muito daquilo que importou
No começo do final
A felicidade não cessou
Levo e deixo
Muito daquilo que importou
No começo do final
A felicidade não cessou.
REIN
RAÍNA
DEPUTADO DA FRANÇA
DEPUTADO DA ALEMANHA
DEPUTADO DA GRÉCIA
DEPUTADO DA INGLATERRA
DEPUTADA DA ESPANHA
DEPUTADO DA TCHÉQUIA
DEPUTADA DA HUNGRIA
MENDIGO, BLACK-BLOCK, SEGURANÇA, PRESIDENTE DA
UGANDA – feitos pelo mesmo ator
PRESIDENTE DA YAKUTIA, PRESIDENTE DOS ESTADOS
UNIDOS, NEONAZISTA – feitos pelo mesmo ator
50 Felipe Mury
ATO I
(Trombetas)
(Discursos)
que nos assola, perseguimos suspeitos por todo o globo e gastamos mi-
lhões em prevenção, mas não parece ser suficiente. Tivemos essa sema-
na o chefe do Estado Islâmico divulgando um vídeo onde afirma que
haverá um ataque em solo euronpeu e estadunidense, mas não conse-
guimos rastrear os responsáveis. Estamos cansados de carnificina, mas
não conhecemos outro modo de resolver nossos impasses. Com a zona
Schengen e o fim das fronteiras dentro do reino, ficou mais dificulto-
so o patrulhamento e o controle do trânsito de pessoas e cargas, em
especial as ilegais: o número de malotes de cocaína, maconha e haxixe
apreendidos tem se multiplicado e cremos que há muito mais todas as
semanas que escorre pela peneira da fiscalização. Droga é bom? É...
Mas nossa juventude está condenada ao vício. Não temos perspectiva
de mudança. Infelizmente, trago más notícias, mas espero que possa-
mos reviver algum dia nossos dias de glória.
TODOS – SED LIBERA NOS A MALO.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Vai lá, arrasa, bee!
DEPUTADA DA ESPANHA – Meus queridos! Vivemos tempos de
mudanças nos costumes e nas interpretações e conceitos de justiça.
Está para nascer questão mais controversa que a do aborto, e falando
em nascer, reconhecemos o direito do nascituro, a partir da concep-
ção, como pessoa física. É claro que em situações como o estupro, ou
a anencefalia, temos exceções; contudo, não podemos permitir que
haja a violação da gestação, simplesmente porque não, por mais que
a mulher se ache dona de seu próprio corpo, o que não é. A proprie-
dade continua sendo a base de nosso sistema jurídico, o patrimônio é
intocável e a sua usurpação vedada. Outro ponto sensível é a noção de
família, que vem sofrendo sérios ataques. Casamento continua sendo
a união de macho e fêmea para fins de procriação, por mais que plúri-
mas formas de sacanagem sejam admitidas. Imagina se dois veados pu-
dessem casar, que zona que seria... E também não podem adotar, pois
não podem criar filhos descentemente. Também, quanto a inseminação
artificial e barriga de aluguel, temos que é permitida tão somente se
fizermos o controle de qualidade, devendo os embriões ser seleciona-
dos de forma que só nasçam loiros ou ruivos com olhos verdes, azuis
54 Felipe Mury
(Todos dançam.)
grande povo. São profundos os laços que nos unem e muitas as priori-
dades que alinham nossos governos. Em primeiro lugar, gostaria de so-
brelevar a questão da independência de nossa nação da Federação Rus-
sa. Há anos lutamos acirradamente para nos desvencilhar deste gigante
que suga nossas forças. Gostaríamos de contar com o apoio formal da
Euronpa nessa empreitada. Em segundo lugar, temos a mineração de
ouro, diamantes e urânio, a pesca e a criação de renas. Sobre o urânio
temos muito a dialogar, pois é um material de que precisam e que te-
mos em abundância. Nosso apoio para operações no oceano Ártico,
assim como nossa cooperação para assuntos climáticos, é fundamental.
Endossamos as políticas externas mantidas pela Euronpa e nos como
mantemos seus aliados. Muito obrigado pela atenção, caros bacanas.
Até a próxima vez.
RAÍNA – Insta...
REIN – Caros amigos estadunidenses, é com muito amor que venho
ter convosco. Os laços que unem nossas pátrias são robustos e indelé-
veis. As contribuições de sua nação para o mundo são notáveis e nossas
parcerias ultrapassam a mera casualidade. Tenho orgulho de ser o Rein
que mais visitou seu território, em especial nos condados de Orlan-
do e de Hollywood, onde mantenho investimentos e atenção especial.
Hoje, 13 de abril, é o dia do desembarque das tropas americanas na
Normandia...
REIN – Plebeus! Nunca antes na história deste país, tantas famílias ti-
veram acesso à TV a cabo. Nunca estivemos tão presentes no cenário
internacional, nunca nossos lares estiveram tão abastecidos com cham-
panhe e caviar. Comemoramos hoje, 8 de junho, o aniversário do par-
lamento europeu, e nesta preciosa data devemos relevar os avanços de
nossa administração no que tange à economia, às conquistas sociais e
à projeção internacional. Neste pronunciamento em rede nacional de
TV, gostaria de demonstrar minha solidariedade para com as vítimas
da imigração desenfreada. Sim, aqueles cujas famílias são obrigadas a
conviver com imigrantes têm o meu mais profundo sentimento e serão
indenizados por tal inconveniente.
REIN – Grrr.
RAÍNA – Oreeeeeeeestes!
DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de infor-
mar a todos que o deputado de Portugal foi encontrado morto, car-
bonizado, depois da explosão de seu carro, com um vibrador enfiado
no cu.
ATO II
(Jantar)
(Todos sentados ao longo de uma grande mesa, comem e bebem, falam alto, e o
REIN, na cabeceira, observa tudo calma e furtivamente.)
(Todos comemoram.)
(Todos jogam.)
(Jogam.)
(Jogam.)
Peças teatrais 65
(Entra a RAÍNA.)
(Discurso da RAÍNA.)
(O cofre.)
(Todos riem.)
mar a todos que o deputado da Noruega foi encontrado morto com uma
mordida profunda na jugular e uma cenoura enfiada no cu.
(Euros na cueca.)
(Todos riem.)
RAÍNA – Estava muito ansiosa para esta peça, disseram que o ator
principal é hermafrodita... Mas ele é Schweepsch! He’s Schweepsch.
DEPUTADA DA TCHÉQUIA (estourando plástico-bolha) – O que é
Schweepsch?
Peças teatrais 71
REIN – Estamos aqui hoje reunidos para conferir a este nobre cidadão
a medalha Hermann Goering por honra e serviços prestados à nação.
Este jovem, desde muito cedo, se mostrou comprometido com a cau-
sa da raça ariana pura e empreendeu neste intuito diversas ações no
sentido de minimizar os efeitos das migrações de raças inferiores e ju-
deus em nosso vasto território. É justo tratar este bravo guardião dos
valores e costumes da Europa como um herói, já que comandou grupo
paramilitar que agiu eliminando indivíduos indesejados em todos os
estados da Federação e esteve ele mesmo em campo usando pessoal-
mente de força e propagando a mensagem de hegemonia que nossa pá-
tria deve preconizar. Não podemos medir esforços para que esta gran-
de mãe gentil seja limpa de toda e qualquer ameaça de contaminação
étnica, religiosa e ideológica. Outro inimigo enfrentado pelo grupo de
Wilhem Steinenmeyer foi o câncer do socialismo. Não é de hoje que as
ideias soviéticas tentam se entranhar em nossa sociedade, de forma que
72 Felipe Mury
devemos levantar nossas mais eficazes armas contra este flagelo. Não
podemos esmorecer na luta contra aqueles que não valorizam o livre
mercado e a supremacia do capital; o comunismo só trouxe miséria e
vergonha aos lugares onde se implantou e aqui não seria diferente. Há
que falar também no perigo vindo do Subsaara, os dunduns. Os negros
representam um insulto a tudo que é humano e de bom gosto. Não há
palavras para classificar a chaga da miscigenação, que devastou países
como o Brasil ou Cuba. Políticas sérias estão sendo costuradas para ga-
rantir o branqueamento de nossa população e para afastar os dissemi-
nadores da feiura espiritual concernente à negritude. Senhor Wilhem
Steinenmeyer, o Reino Federado da Europa lhe concede o título de ba-
rão e a condecoração com a medalha Hermann Goering. Que a partir
desta data mais louros sua atuação possa nos trazer.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Já comprei minhas passagens para
a Lua, viajo mês que vem. Passeio completo, trilhas nas crateras e tudo.
DEPUTADO DA ALEMANHA – Menino, você vai para a Lua é?
DEPUTADA DA ESPANHA – Dizem que faz frio lá. Aliás, você deve
ter desembolsado uma boa quantia. A Lua está pela hora da morte.
DEPUTADO DA INGLATERRA – Pois é, mas eu mereço umas férias.
Isso aqui está me saturando, sabe. Preciso de uma massagem com ro-
chas lunares, uma gravidade zero...
DEPUTADA DA HUNGRIA (entrando) – Tenho o desprazer de informar
a todos que o deputado de Luxemburgo foi encontrado morto eletrocu-
tado em uma banheira, com um secador de cabelo enfiado no cu.
(Um homem maltrapilho adentra a câmara e causa horror nos deputados. Co-
meça a pedir esmola a cada um.)
(Os deputados indignam-se e vão retirando suas facas lentamente, até cercá-lo
e esfaqueá-lo, matando-o.)
Peças teatrais 73
(Madonna/PhatellWilliams)Watch this
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it (what?)
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it (what?)
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it (what?)
Get stupid, get stupid, get stupid
Don’t stop it
Get stupid, get stupid, get stupid, don’t stop it
(To the left, to the right, to the left, to the right)
Get stupid, get stupid, get stupid, don’t stop it
(To the left, to the right, to the left, to the right)
Get stupid, get stupid, get stupid, don’t stop it
(To the left, left, right, right, left, left, right, right) Get stupid, stupid, stupid,
stupid, stupid, stupid
(Left, left, right, right, left, left, right, right)
Don’t stop me now
Don’t need to catch my breath I can go on and on and on
When the lights go down
And there’s no one left I can go on and on and on
Give it to me, yeah
No one’s gonna show me how
Give it to me, yeah
No one’s gonna stop me now
You’re only here to win
Get what they say?
You’re only here to win
Get what they do?
They’d do it too
If they were you
You done it all before
It ain’t nothing new
You’re only here to win
76 Felipe Mury
(Cercam o segurança.)
SEGURANÇA – Eu? Eu não. Não fiz nada. Imaginem vocês. Meu de-
ver é servir e proteger os deputados. Jamais faria o contrário.
DEPUTADO DA TCHÉQUIA – Ele está mentindo!
SEGURANÇA – Eu sou mais um trabalhador que tem que se sacrificar
pela educação de seus filhos, pelo pão de cada dia. Eu...
DEPUTADO DA GRÉCIA – Peguem-no!
ATO III
(Todos riem.)
(Todos riem.)
Peças teatrais 79
(Todos se entreolham.)
(REIN chega.)
(Trombetas.)
Peças teatrais 81
REIN – Eu tinha que chupar todo mundo. Primeiro foi o rei da Dina-
marca. Ele enfiou aquele peru enrugado na minha boca, eu não po-
dia fazer nada, ele detinha o eleitorado. Então começou oficialmente
a chupação no congresso. Até o rei da Indonésia eu tive que chupar.
Aquele peruzinho pequenininho, não dava para nada. Mas eu tinha que
fazer cara de que estava gostando. Agora vou chupar todo mundo e
todo mundo vai me chupar!
RAÍNA – Ele é um baluarte da moral! Só teve uma vida conturbada.
É o fruto de gerações que lutaram para que todos tivessem direito à
ilustração, à vida. Ele é o rein! Contra o rein nada e, ao povo tudo!!!
(Dúvida.)
(O REIN sai atrás de cada um dos deputados a fim de fazer sexo com cada um.
E faz.Todos estão cansados da orgia, menos o rein.)
(Apagam-se as luzes.)
ARTUR
BETE, mãe de Artur
MÁRIO, pai de Artur
TÚLIO, amigo de Artur
OTÁVIO DE CARVALHO, psiquiatra
88 Felipe Mury
ARTUR – Meu Deus, isso é muito idiota. Eu tenho que ficar escreven-
do nesse registro, isso é ridículo: “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz
da Comarca da Capital; Fulano da Silva vem, por meio desta, mover
ação de Danos Morais em face de Beltrano Cavalcanti... Desta feita,
pede deferimento. Rio, 12 de agosto de 2015.” Eu tenho mais o que
fazer do que escrever isso e ir a audiência ver juiz esculachar testemu-
nha... Não é possível, eu não nasci para isso. Quando é que eu vou fazer
o que gosto e ter algum prestígio, alguma fama por isso? Essa faculda-
de está me matando... E esse estágio... Prova de administrativo II na
sexta, trabalho de tributário, dez petições para terminar até amanhã.
Assim eu não vivo.
TÚLIO – E aí, moleque? Como é que você está?
ARTUR – Túlio? O que você está fazendo aqui? E de bermuda...
TÚLIO – Resolvi dar uma passadinha, eu estava por aí. Moleque, você
não vai acreditar nas ondas de hoje. Moleque... Moleque...
ARTUR – Eu não surfo.
TÚLIO – Ah é, esqueço disso às vezes. Mas fala, sábado vou a Búzios
com a Clarinha, não está a fim de ir com a gente?
ARTUR – Não vai dar. Vou ter prova na semana seguinte. Estou meio
ferrado de nota.
TÚLIO – Eu hein, Artur, você sofre com essa faculdade. Se eu fosse
você, já tinha largado. Iria fazer um mochilão pela Europa, intercâmbio
na Austrália, sei lá, desopilar.
ARTUR – É... Eu tenho que terminar essa merda. Meus pais estão me
pressionando. Eu me sinto pressionado, mais do que tudo.
TÚLIO – Você tem que deixar rolar, Hakuna Matata. Deixa de ser pre-
go e vai fazer alguma coisa que você goste. E o teu teatro? Nunca mais?
ARTUR – Pois é... Queria estar fazendo teatro. É uma das coisas que
eu mais gosto.
TÚLIO – Então. Mergulha nisso. Não tem jeito, a gente não vai ser
feliz se não fizer o que gosta e se não se sentir útil no que faz. E, pelo
visto, você não está feliz nem se sentindo útil...
Peças teatrais 89
ARTUR – Não...
TÚLIO – Enfim, fica a dica. A Marininha ainda está te dando aquele
mole?
ARTUR – Sei lá, cara, não ligo para ela não...
TÚLIO – Para quem tu liga? Cara, você é muito sério, muito amargo.
Não pode ser assim não.
ARTUR – Eu sou do meu jeito, me deixa. Mas ultimamente tem sido
pior, eu admito. Mas o que eu vou fazer?
TÚLIO – Mude.
ARTUR – Vou mudar, vou mudar.
(Em casa)
(Sentam-se à mesa)
(Silêncio)
(Todos comem.)
OTÁVIO – É verdade.
MÁRIO – E pode fazer um concurso.
OTÁVIO – Tem muitos agora. Defensoria, Ministério Público, Diplo-
macia. É só escolher.
MÁRIO – Fazer uma carreira no serviço público. A prima dele é pro-
motora, está com a vida ganha. Ele sabe.
OTÁVIO – Nesse ponto seu pai tem razão.
ARTUR – Mas eu não quero. Não me compatibilizo com isso.
OTÁVIO – Mas isso você adquire com o tempo, com a prática. Em
qualquer profissão vai ter alguma coisa que você não gosta. E depois,
advogar, os tribunais, é tudo um grande teatro. É muito parecida a pro-
fissão de ator com a de advogado: nas duas você tem que convencer
alguém.
ARTUR – Mas eu não nasci para fazer isso. Eu não quero.
OTÁVIO – E as relações afetivas?
MÁRIO – Não namora ninguém. Só sai de casa para ir a esse maldito
teatro.
OTÁVIO – Eu queria ouvir a mãe falar um pouco sobre isso.
BETE – Olha, ele nunca teve problema de relacionamento não. Mas
sempre foi mais para reservado. Sempre foi muito palhaço com a gente
e tal, mas não é de sair muito não. E namorada, desde que ele entrou
para a faculdade não tem nenhuma. Já teve antes. Se lembra da Mari-
na? Da Luana?
OTÁVIO – E relacionamento em casa? Como ele é em casa? (olhando
no computador)
BETE – É o que eu falei. Não temos problemas. Só ultimamente que
ele está mais invocado, mas quieto, mas ao mesmo tempo meio nervo-
sinho de vez em quando, não pode ser contrariado.
OTÁVIO – Fuma? Bebe?
MÁRIO – Não. Não com o meu dinheiro.
ARTUR – Não.
OTÁVIO – Bom.
BETE – Mas é isso. Ele é um menino bom.
OTÁVIO – Com certeza.
96 Felipe Mury
(ARTUR ri.)
OTÁVIO – Eu tenho aqui pacientes que não se perdoam por não te-
rem começado a medicação antes. Quanto antes melhor. Fique conten-
te por termos identificado esse transtorno a tempo. Tem casos aqui que
a gente tem que internar direto. Se eu te contasse você não acreditaria.
Eu tenho um paciente que saiu distribuindo um livro que ele mesmo
escreveu na rua, já imaginou isso? Tem outro, militar reformado, que
sai por aí fazendo sexo sem camisinha em banheiros públicos com ou-
tros homens. Já imaginou a dor dessas famílias.
BETE – Meu filho, escuta ele. É para o seu bem.
MÁRIO – Então estamos acordados. Você vai fazer o tratamento.
ARTUR – Eu não sei.
BETE – Ele está acostumado a lidar com as suas questões meu filho. Já
viu isso, é experiente. É médico, ele sabe.
OTÁVIO – Está aqui a receita. Posso marcar? Daqui a quinze dias?
MÁRIO – Pode marcar.
BETE – Eu venho com você.
ARTUR – Se é pra fazer isso então que seja sozinho. Eu respondo por
mim mesmo.
BETE – Meu filho...
ARTUR – Eu já tenho 20 anos, pelo amor de Deus!
OTÁVIO – Por mim, tudo bem. (faz a receita. Entrega à mãe)
BETE – (pausa) Aqui está o cheque. (entrega ao médico)
(Olham-se fixamente.)
ARTUR – Mas e se não der certo? E se não acontecer o que você espe-
ra, e se eu, aos seus olhos, não melhorar?
OTÁVIO – É melhor você ficar na mesma sendo observado por mim
do que fora daqui.
ARTUR – Mas quanto tempo isso vai durar?
OTÁVIO – Esse é um tratamento para a vida toda. Se você tivesse hi-
pertensão ia ter que tomar remédio e acompanhar a pressão até mor-
rer. É a mesma coisa.
ARTUR – A vida toda? Você está brincando.
OTÁVIO – Não, rapaz.
ARTUR – E o que eu estou tomando? Quais são os efeitos colaterais?
OTÁVIO – Carbonato de lítio, 450 miligramas, e hemifumarato de
quietiapina, 100 miligramas. Não tem efeitos colaterais. Não se preo-
cupe com isso.
ARTUR – Todo medicamento tem um porém. O que vai acontecer?
OTÁVIO – Você vai ter um leve aumento no apetite.
ARTUR – Vou engordar?
OTÁVIO – Só se você quiser. É só se exercitar que não vai ter proble-
ma. Como estão as suas notas?
ARTUR – Estão bem. Introdução, TGE e Sociologia e Metodologia fo-
ram bem fáceis. Agora tenho Constitucional, que também é tranquilo.
Só Penal que eu não gosto tanto e Tributário e Empresarial que acho
que vai ser chato mais para a frente.
100 Felipe Mury
OTÁVIO – Está vendo. Você fala como quem gosta de Direito. Só não
diga que vai ser chato antes de acontecer.
ARTUR – Bem, eu suporto. Não é ruim. É sempre bom estudar algu-
ma coisa. Mas acho que seria melhor aproveitado se estivesse fazendo
algo que me interessasse mais.
OTÁVIO – Hum.
ARTUR – Fui assistir a Hair há um mês e achei uma obra-prima. Não
consegui parar de bater as mãos no assento acompanhando a melodia e
cheguei a chorar. Eu queria muito estar ali. Fazer parte daquilo. Sentir
aquele cheiro, aquela poeira todo dia.
OTÁVIO – É típico romantizar assim. Se você quisesse mesmo ir, já
teria ido. Nada te impediria. Mas você sabe que é muito difícil, que
tem muita gente boa no mercado. Sabe que será um bom advogado.
Você no fundo tem bom senso.
ARTUR – Eu não estou romantizando, pelo contrário, estou sendo
bem pragmático: não está bom, troca.
OTÁVIO – E as namoradas? Você já tem que dar graças a Deus por não
ser homossexual. Você não é homossexual, é?
ARTUR – Não, mas podia ser.
OTÁVIO – Mas não é. Isso facilita as coisas.
ARTUR – Pode ser.
OTÁVIO – E por que não está namorando?
ARTUR – Não apareceu ninguém. Eu também não tenho tempo, só
estudo, só trabalho. No fim de semana durmo como uma pedra.
OTÁVIO (faz a receita, entrega) – Está certo. Está se concentrando. Te
vejo daqui a quinze dias.
ARTUR – OK.
OTÁVIO – Fazemos um ano juntos. Acho que você está evoluindo.
Nenhum quadro de mania. Por outro lado, você está levantando todo
dia, está cumprindo suas obrigações, não está deprimido.
ARTUR – Mas também não estou fazendo nada. Minha vida está pa-
rada.
OTÁVIO – Como parada? Está terminando seu curso. Está entrando
no mercado de trabalho. ARTUR – Semana passada conheci uma garo-
ta. Amiga de uns amigos meus. Eu tentei marcar com ela, mas a verda-
de é que estava muito cansado para sair com ela.
OTÁVIO – Está certo. Você tem outras prioridades nesse momento.
ARTUR – Mas eu saí. Mesmo assim saí.
OTÁVIO – Hum.
ARTUR – Nós fomos tomar um café.
(Silêncio)
ARTUR – Ela começou a falar da vida dela, ela é designer, já fez bas-
tante coisa legal. Conhece o mundo todo. Já morou na Lituânia, sabe o
que é isso? Lituânia.
OTÁVIO – Interessante.
ARTUR – Quando eu comecei a falar de mim, percebi que não tinha
nada de interessante para falar. Eu não me empolgava com nada do que
eu dizia, parecia que ouvia o eco das minhas palavras. Me senti burro,
vazio. Pior, me senti chato.
OTÁVIO – Essas questões você vai tratar na terapia. Como está com
a psicóloga?
ARTUR – Acho que está bem. Eu narro a minha vida para ela e ela me
ouve. Nesse sentido é um sucesso.
OTÁVIO – Arranjar alguém que nos ouça é algo dificílimo.
ARTUR – Mas eu estou pagando a ela para isso.
OTÁVIO – Seus pais, o que estão dizendo de você? Como está o rela-
cionamento em casa?
ARTUR – Tudo na mesma. Às vezes a gente discute.
102 Felipe Mury
(Silêncio)
que estava bem e resolveu que não ia mais tomar nada. Eu falei para a
mãe dele que ele não podia deixar de tomar. Que ele ia entrar em surto
e que ia fazer uma besteira. Passaram-se alguns meses, a mãe dele veio
aqui. Ele se matou. Sabe o que eu disse para ela? Ela me perguntou o que
ela fazia agora. Eu disse: enterra. Agora é só enterrar. Eu previ a morte
desse garoto. Não posso deixar que isso aconteça com nenhum outro pa-
ciente. Eu tenho uma responsabilidade com a sua vida.
(Silêncio)
OTÁVIO – Como está o seu sono? Você sabe que tem que ter horário
para dormir, para comer, para tudo, não é?
ARTUR (atordoado) – Hum.
OTÁVIO – Olha, fique satisfeito por não estar tomando coisa mais
forte. Hoje nós temos drogas aí muito mais potentes.
ARTUR – O que me incomoda é o fato de isso poder ser uma evolu-
ção. Daqui a pouco vou estar tomando mais remédios. Daqui a pouco
você vai falar em choque.
OTÁVIO – O choque para algumas pessoas em outros estágios funcio-
na muito bem. Tem gente que pede para fazer ECT. Quando eu estava
estudando na Califórnia, conheci um homossexual que me pedia. Ele
dizia que sabia que não estava morrendo por causa dos remédios, sabia
que estava morrendo porque era pederasta.
(Silêncio)
OTÁVIO – É claro que se você tem mais pessoas armadas, menos gen-
te vai querer cometer um crime à mão armada.
106 Felipe Mury
ARTUR – Imagina. Imagina ter aula com aqueles caras. Aquilo deve
ser o máximo.
OTÁVIO – Mais de que você vai ter aula esse semestre?
ARTUR – Realismo americano. Stela Adler, Lee Strasberg, Marlon
Brando, Al Pacino. Só fera.
OTÁVIO – Empresarial? Já teve?
ARTUR – É o método Stanislavski. Constantin Stanislavski, o do Tea-
tro de Moscou. Montou muito Tchekhov. Criou todo um sistema mo-
derno para a atuação. Profissionalizou o teatro.
OTÁVIO – Acho que você deve se sair bem nessa também. É só legis-
lação, não é?
ARTUR – E Brecht? Você já assistiu à Ópera dos Três Vinténs? Ou a Baal?
Esse cara era muito bom também. Teatro épico. Ele previu tudo que ia
acontecer na Alemanha com o nazismo, sabia? Teve que sair de lá.
OTÁVIO – Você tem boa relação com seus professores? Está preparan-
do o campo para o mestrado?
ARTUR – E Grotowski? O processo. Esse era louco. O cara inventou
uns exercícios muito específicos. Ele aprimorou o trabalho do Stanis-
lavski com a memória emotiva.
OTÁVIO – Se conseguisse conciliar trabalho com o mestrado, seria o
ideal.
ARTUR – Esquece o Direito!
OTÁVIO – Esquece você essa baboseira de teatro.Você não vê que está
perdendo um tempo precioso? Você está se iludindo.
ARTUR – Então deixa eu me iludir. Isso me faz bem. É a única coisa
que me faz bem em um mar de pressão, de pasmaceira, de chatice!
OTÁVIO – É esse esforço que você tem que fazer. Está pensando que
é fácil? Que todo mundo gosta de sentar a bunda na cadeira e ficar es-
tudando? Mas tem que fazer. Tem que vencer isso, rapaz.
ARTUR – Eu tenho que fazer o esforço que eu escolher. Não é você
que vai me dizer o que fazer.
OTÁVIO – Não sou eu que estou dizendo. É a vida. Você está em uma
faculdade de Direito e é isso que você tem que estudar.
108 Felipe Mury
(ARTUR bufa.)
OTÁVIO – Não adianta fazer essa cara não. Você sabe que eu estou
certo. Seu pai está se matando de trabalhar para te dar a melhor educa-
ção e você está querendo desperdiçar essa oportunidade?
ARTUR – Pelo contrário.
OTÁVIO – Eu não vejo outro meio de você vencer na vida. Tem que
vencer esse seu bloqueio, essa sua prevenção contra o Direito. Tem que
se livrar dessas dúvidas.
ARTUR – Está certo. Eu vou me livrar dessas dúvidas.
BETE – Meu querido, toma esse sanduíche. Está uma delícia. Quer
suco de maracujá?
ARTUR – Obrigado, mãe. Não quero, não, obrigado. Você pode cha-
mar o meu pai, eu queria falar com vocês dois.
BETE – Mário!
MÁRIO – Oi.
ARTUR – Oi. Olha, eu queria falar com vocês dois. Eu pensei bastan-
te. Ponderei os prós e os contras e cheguei a uma decisão. Eu não vou
mais fazer a faculdade de Direito. Vou começar Artes Cênicas. Já está
decidido.
MÁRIO – Como assim já está decidido? Não está nada decidido. Você
não vai largar faculdade nenhuma.
BETE – Meu amor, pensa bem, você estudou tanto no vestibular, vai
jogar isso fora?
ARTUR – Eu não vou largar. Vou migrar para Artes Cênicas.
MÁRIO – Você não tem nada a ver com isso, você é tímido.
ARTUR – O que isso tem a ver? No palco é outra coisa.
Peças teatrais 109
meu pau não, cara. (chora. Se encolhe, vai para o mesmo canto, recolhido, pe-
lado)
ARTUR – Eu estou gordo. (passa a mão no cabelo) Meu cabelo está cain-
do. Eu não tenho vontade de nada, não quero mais nada. (Chora. Pausa.
Sai de cena.)
(Silêncio)
(ARTUR se levanta.)
ARTUR – Você não pode interferir desse jeito na vida dos outros.
OTÁVIO – Eu devo. Tenho essa responsabilidade.
ARTUR – Cara, por favor, chega. Seria tão melhor se você entendesse
o meu lado.
OTÁVIO – Eu tenho dois filhos um pouco mais novos que você. Estou
tentando colocá-los em uma boa universidade também. Você acha que
eu não gostaria que houvesse alguém se preocupando com eles assim
como eu estou preocupado com você?
ARTUR – Os seus filhos eu tenho certeza de que não precisam de re-
médio, não é? Devem estar por aí transando adoidado e você não sabe.
Agora os outros são todos doentes, psicóticos...
OTÁVIO – Se eles precisassem eu aceitaria, é claro. Ouça, eu te en-
tendo, na minha idade eu também tinha um pouco disso, desse incon-
formismo. Mas você não pode ser refratário à ajuda dos outros. Eu tive
outros pacientes e eu sei...
ARTUR – Você está usando as suas experiências como pessoa para me
regular e para evitar que eu pense como você pensou quando tinha a
minha idade. Mas isso é impossível, se eu não viver as questões, os me-
dos, as ansiedades da minha idade não vou me tornar um homem ma-
duro, saudável. Sim, eu romantizo. Sim, eu me espelho nos grandes gê-
nios. Sim, eu acho que posso mudar o mundo. Eu tenho que ser assim.
(OTÁVIO ri.)
comete em consulta. Como você pode ser assim? Como alguém como
você pode estar ditando a vida dos outros? Você é um arrogante, acha
que sabe de tudo e nem admite a possibilidade de estar errado. Como
pode isso?
OTÁVIO – Eu sou um pusher! Um pusher! Eu sou um motivador, um
técnico, um treinador, eu quebro os limites das pessoas, eu mostro o
caminho certo. É isso que eu faço e é isso que os clientes querem quan-
do entram no meu consultório, é isso que eu dou a eles. Vocês me pa-
gam para isso.
ARTUR – Só de você pensar que existe um caminho certo eu já vejo
quem você é. Você é um domador de gente. Eu não te pago para isso.
Não mais.
OTÁVIO – Eu espero que você tome. Acredite. Não vai fazer nenhu-
ma besteira.
ARTUR – É verdade.
TÚLIO – Que irado. Você terminou essa porra...
ARTUR – Terminei.
TÚLIO – Adivinha? Eu estou trabalhando nas lojas do meu pai da Gale-
ria River. Eu trabalho no escritório. Sou gerente. Gerentaço, moleque.
ARTUR (ri) – Muito bom. Vou lá comprar uma prancha.
TÚLIO – Tu vai mesmo? Vai nada. Quando é que tu vai aprender a sur-
far, mané?
ARTUR – Vamos ver.
(Silêncio)
TÚLIO – E tua família? Como é que está, tudo certo? Estão te pertur-
bando?
ARTUR – Ah, já acostumei. Eles eu até que tiro de letra já. Acho que
eles estão conformados. Entenderam que não dá para tomarem as de-
cisões da minha vida por mim.
TÚLIO – Teu pai é durão, né?
ARTUR – Eu me entendo com ele.
TÚLIO – Sua mãe me falou que você... É verdade isso? Você foi para
uma clínica?
ARTUR – Pois é.
ARTUR – Mó bad.
TÚLIO – Mó bad. Pode crer.
ARTUR – Pode crer.
TÚLIO – Mas às vezes foi necessário. Pode ter sido bom, não sei.
Como é que foi isso?
ARTUR – Discuti com meus pais, eles acharam que eu estava mal e me
mandaram para lá. O médico mandou.
TÚLIO – Médico filho da puta esse, hein.
ARTUR – Se você soubesse a raiva que eu estou desse cara.
116 Felipe Mury
(Sala da casa)
MÁRIO – Só acho que não é assim. Você não tem experiência nenhu-
ma e vai se candidatar a um papel em uma peça dessas... Tem que co-
meçar do começo.
ARTUR – Mas como é que eu vou ter experiência se eu não começar
de algum lugar. Whatever works, pai.
MÁRIO – É, mas você nem sabe se isso vai dar certo. Acabou o Direi-
to agora e...
ARTUR – Você mesmo falou que eu tenho que fazer as coisas sempre
para ser um dos melhores, fazer com gosto e com motivação.
MÁRIO – Esse aí não entendeu meus conselhos. A gente só pode colo-
car o chapéu onde a nossa mão alcança.
ARTUR – E quem falou que eu não alcanço?
MÁRIO – Bem, meu filho, se você está decidido, eu não posso fazer
nada. Só lhe dar a minha bênção.
ARTUR – Obrigado, pai. Isso é muita coisa.
(Silêncio)
(O telefone toca.)
BETE (atendendo) – Não, ele... Está bem, vou passar o recado, mas acho
que ele não precisa mais. Ele está bem. (põe o telefone no gancho)
Peças teatrais 119
(ARTUR permanece ali por mais um tempo, encarando o médico, e depois desce.
Quando já está indo embora, de costas, OTÁVIO corre em sua direção, toma o
taco e começa a bater-lhe no corpo todo.)
OTÁVIO – Me dá isso aqui. Seu filho da puta! Toma! Você vai aprender!
(ARTUR o encara por mais um tempo e sai. OTÁVIO fica com o taco.)
(Passam-se três anos.)
(ARTUR está no palco encenando Hamlet.)
(Palácio do Itamaraty)
(JORGE almoça.)
(JORGE volta a sua sala e começa a ler pilhas de papéis.)
(JORGE adormece depois de ler por um bom tempo.)
(JORGE vai dormir. Dorme. Acorda, toma banho e toma seu café da manhã.)
(De terno e de pasta, mais um dia de trabalho.)
(Jorge se levanta da mesa e sai do escritório com o laptop, que coloca dentro de
uma maleta de couro.)
(Chega em casa, faz a janta, come. Senta, lê, escreve.Toma banho, escova os den-
tes, limpa o ouvido com cotonetes.)
128 Felipe Mury
(Dorme.)
AFONSO – Está gostando da cidade? Não tem como não gostar, não é?
Isso aqui é civilização. Gosto muito do estilo de vida daqui.
JORGE – Estou gostando.
AFONSO – Está gostando mesmo ou está falando só para me agradar?
JORGE – Não, estou falando sério. Gosto daqui.
AFONSO – Que bom. Temos agora uma breve reunião com um fazen-
deiro de pêssegos, acho que já sei o que ele quer. É o vice-presidente
da associação de produtores. Vai querer discutir os impostos de impor-
tação. Eles estão cada vez mais abusados. Antes era só a Casa Rosada
que debatia isso diretamente, agora eles estão rotos e querem vir ne-
gociar com a gente. Nós também ficamos nessa de ser global traders, da-
mos ouvidos a empresários, dá nisso. Essa gente é oportunista. Mas vá
com tato e conseguiremos também algumas vantagens. Diminuímos os
impostos que eles pagam, mas abaixamos o preço da commodity. Fazer
contatos também é sempre bom.
JORGE – Sim.
AFONSO (pegando um interfone) – Mande entrar.
LEONEL (entrando) – Como están ustedes? És un placer estar en sus presen-
cias. Soy Leonel Mancini, represento los productores de melocotón de Argentina.
AFONSO – Encantado.
JORGE – Mucho gusto.
LEONEL – Como están pasando estes dias en Argentina, están a gustar de la
ciudad?
AFONSO – Estamos bien.
LEONEL – Estoy acá para tratar de alguns asuntos que interesan a nosotros.
AFONSO – Si, compreendo.
LEONEL – Las relaciones con el mercado brasileño son muy preciosas para
nosotros y por eso nos gustaria aprofundarlas aínda más.
Peças teatrais 129
AFONSO – É claro que você vai. Temos que estar junto desses produ-
tores. Você tem que fazer esse meio de campo.
JORGE – Claro.
AFONSO – Melhore esse astral, rapaz. Você está sempre cabisbaixo.
Tem que ser mais alegre; essa festa vai lhe fazer bem.
JORGE – Claro.
(AFONSO sai.)
(JORGE chega em casa, deita e dorme. Um tango inteiro toca enquanto ele
dorme.)
(Levanta-se e sai.)
(JORGE chega na fazenda de pêssegos. É recebido por LEONEL.)
130 Felipe Mury
LEONEL – Hola, que tal? Que rico que pudestes venir. Están acá todos os
grandes productores de melocotón y otros productos agrícolas de Buenos Aires.
Venga acá que voy a presentarle Muñoz! Muñoz és el gran dueño del Record por
la mayor cosecha de la província.Y también controla una gran cadena indus-
trial de tratamiento de la fruta. (chama) Muñoz!
GLENDA (chegando) – Que pasa con este hidalgo, mi hijo?
LEONEL – Esta és mi madre, Glenda. Este és el gran diplomata brasileño de
que vos hablé, mamá.
JORGE – Esta és una propriedad fantastica, como puedes mantener todo en tan
perfecta orden? Me gusta mucho la parillada. Gracias por la invitacíon.
GLENDA – Nós podemos falar em português. Eu morei um tempo em
São Paulo quando mais jovem.
JORGE – Ah, eu não sabia. Fala muito bem.
GLENDA – Você é muito educadinho.
JORGE – Educadinho?
GLENDA – E previsível.
JORGE – Desculpe, não estou entendendo.
GLENDA – “Desculpe, não estou entendendo.” Tem que ser assim tão
cordial e tão óbvio?
JORGE – Eu...
GLENDA – Você é um belo rapaz, por que está tão triste?
JORGE – Eu não estou triste.
GLENDA – Então é só a sua cara que é assim mesmo. Parece que al-
guém morreu.
Peças teatrais 131
(JORGE se espanta.)
GLENDA – Não me entenda mal. Você até é bonitão, mas está com
uma nuvem cinza em cima da cabeça. Eu não tenho nada a ver com a
sua vida, mas se fosse você... Bem, deixa para lá. Quem sou eu para dar
conselhos para os outros?
JORGE – Se fosse eu o quê?
GLENDA – Acho que está precisando de alguma coisa, mas eu não sei
bem o que seria.
JORGE – Não acho que precise de nada de especial.
GLENDA – Esses pêssegos foram plantados pelo meu bisavô. Constan-
tino Mancini. Plantaram cada muda. Colheram.
JORGE – É uma bela história, com certeza.
GLENDA – “É uma bela história, com certeza.”
JORGE – Mas o que eu fiz?
GLENDA – Pare de ser educadinho, me surpreenda. Fale alguma coisa
que eu não esteja esperando.
JORGE – Mas por quê?
GLENDA – Porque sim!
JORGE – A senhora é muito esquisita.
GLENDA – Bom, já é um começo. O que mais?
JORGE – Olha, está tarde, eu devo ir.
GLENDA – Previsível de novo. Vamos, mais uma...
JORGE – A senhora está sendo inconveniente.
GLENDA – Está bom. Talvez seja. Mas prefiro ser inconveniente a ser
chata e previsível.
JORGE – A senhora é realmente uma pessoa muito estranha.
GLENDA – O que o meu filho falou para você? Ele quer vender a fa-
zenda para você também?
JORGE – Não. Eu não pretendo comprar nenhuma fazenda.
132 Felipe Mury
(Silêncio.)
GLENDA – Como?
JORGE – Acho que não difere muito do Brasil. Digo, por ser latino.
GLENDA – Hum.
JORGE – Me sinto à vontade aqui.
GLENDA – Isso é bom. Somos um pouco mais tristes, eu diria.
JORGE – Se visse algumas pessoas que conheço de Brasília, não diria
isso. Não vejo tristeza nesse seu churrasco.
GLENDA – Isso é bom.
JORGE – Acho que eu tenho que ir agora.
GLENDA – Tem certeza?
JORGE – Tenho. Foi um prazer.
GLENDA – Bem, infelizmente não posso prender você aqui. (tira um
pêssego do bolso) Você não acha bonito? A polpa cresce em volta da se-
mente e, quando na terra, a semente cresce dentro da polpa.
JORGE – Nunca pensei nisso.
GLENDA – Tome, leve um. (dá-lhe o pêssego)
JORGE – Gracias.
JORGE – Acho que vai ficar para a próxima. Prometi a Ana uma ses-
são de Skype.
AFONSO – Ah, se é assim... Aproveite. Vou checar esse relatório que
você disse que mandou. Bom trabalho. (sai)
JORGE – Até.
JORGE – Alô.
GLENDA – Eu vi os quadros! São lindos!
JORGE – Oi?
GLENDA – Os quadros. Os quadros da sua esposa... Eu vi na internet
e achei maravilhosos. Ela pinta muito bem. É abstrato, mas eu gosto.
(pausa) Não me diga que não está me reconhecendo?
JORGE – Glenda?
GLENDA – Isso! É claro que você se lembra de mim.
JORGE – Que surpresa.
GLENDA – Ah, mas eu tinha que ligar para você. Leonel me deu seu
telefone. Quando é que você vem aqui de novo? Estamos preparando
um festival de pêssego para outubro. Mas você vem antes, não? Eu ga-
nhei um presente, queria mostrar para meus amigos.
JORGE – Para os amigos?
GLENDA – Você vem, não vem? Te espero no sábado. Você não vai es-
tar trabalhando, pode vir até aqui.
JORGE – Eu vou ver se posso. Vou tentar.
GLENDA – Não tente. Consiga. Venha sim. Então eu vou lá. Vou usar
o meu presente. Tchauzito. Hasta. (desliga)
JORGE – Oi, meu amor. Como você está? Estou com saudades de
você também. Sim, eu sei. Mas não vou poder ir até o final do ano.
Você pensou naquilo que eu te propus? (escuta) Sim, isso. Eu acho que
é o melhor que temos a fazer. Você seria feliz aqui na Argentina, nós
ficaríamos juntos. Você pode expor aqui também. O mercado de arte
aqui não é pequeno. Eu sei, eu sei, mas... (escuta) Pensa mais um pouco
a respeito. Está tudo bem. Mais tarde eu vejo você pela internet então.
Eu vou desligar porque parece que tem alguém aqui que quer falar co-
migo, a secretária me avisou. Um beijo. (desliga)
para a entrada del melocotón en Brasil son muy altos aínda. Nos gustaría ne-
gociar esto.
JORGE – Los precios son parte de una política económica...
LEONEL – Mira, compreendovos plenamente. Este és un asunto tenso, tal vez. Por
que no vamos a un bueno restaurante que conozco cerca de acá y hablamos de esto?
JORGE – Infelizmiente no puedo.Tengo alguns compromisos.
IXEYA – Más es certo que él no podría. És muy ocupado. Devemos probable-
miente esperar em una cola. Mira, Jorge, nos gustaría tenerlo en nosa casa para
una cena. Que dices?
JORGE – Yo prefiero tratar de asuntos profesionales en un ambiente profesio-
nal...
IXEYA – Más vamos a tratar de vários temas, no solo este.
JORGE – Entendo.
IXEYA – Usted tiene hijos? Tenemos dos hijos maravillosos. Ellos pueden jugar
juntos!
JORGE – No tengo hijos.
IXEYA – No tiene? Más por que? Hijos son una alegria! Certamente traem un
poco de acoso, más no és un problema tan grande.
JORGE – Un momento, por favor...
IXEYA – Si... Como no...
JORGE – Eu imagino. Mas você não ficou assustada com pessoas che-
gando tão perto da sua propriedade?
GLENDA – Foi melhor do que se um bando de junkies tivesse invadido
a fazenda. Às vezes a gente fica absorto nas nossas próprias alucinações
e não se dá conta das oportunidades maravilhosas que temos de conhe-
cer novas pessoas, novas culturas.
JORGE – Poderíamos aproveitar a oportunidade magnífica de conhe-
cer Ixeya.... (ri)
GLENDA – Não. Essa não é uma boa oportunidade. A única coisa que
essa mulher fez de bom foi ter meus netos. Crianças maravilhosas. Mas
ela... Ela não me passa.
JORGE – Como são seus netos?
GLENDA – Ahhh! Agora você tocou o meu coração. São dois meninos
lindos. Abel e Miguelito. Meus tesouros. Não sei como puderam sair
de dentro dessa medusa. Estão na escola ainda: Abel desenha muito
bem, será arquiteto; Miguelito quer estudar derecho. Já são dois gran-
des homens. Me enchem de orgulho.
JORGE – Imagino. Deve ser bom ver sua estirpe caminhar nas gerações.
GLENDA – Sim, me orgulho muito. Logo você terá os seus filhos.
JORGE – Quero muito. Mas não entendo como seria isso. Como me
organizaria, com a vida que tenho hoje, para acomodar novos seres
com quem eu me preocupe.
GLENDA – Simplesmente acontecerá. Quando for a hora, aconte-
cerá.
JORGE – Sua opinião vale muito para mim.
GLENDA – Eu, uma velha fazendeira de duraznos, o que tenho para
acrescentar na sua vida?
JORGE – Já faz oito meses que venho aqui quase todo fim de semana.
Eu me acostumei com você. Não quero voltar para o Brasil.
GLENDA – Não volte.
JORGE – Não voltarei. Pelo menos não agora.
GLENDA – E sua esposa?
JORGE – O suco está muito bom.
Peças teatrais 139
(GLENDA desliga.)
(No dia seguinte, JORGE vai à fazenda de GLENDA.)
(JORGE bebe.)
(JORGE ri.)
(Ele ri.)
GLENDA – Sim, vamos. Você sabia que o Sol está chegando perto de
nós? Que um dia vamos ser engolidos por chamas?
JORGE – Ouvi dizer.
GLENDA – Então temos que aproveitar o agora.
JORGE – E fazer o quê?
GLENDA – Vamos soltar fogos de artifício!
JORGE – Ha-ha-ha.
GLENDA – É sério! Os fogos de artifício serão nossa resposta ao Sol.
Não vamos conseguir pará-lo, mas pelo menos morreremos com honra.
JORGE – Claro. E você guarda fogos de artifício na sua propriedade,
naturalmente...
GLENDA – Sobraram do último réveillon.
JORGE – E fazem festa de ano-novo aqui?
GLENDA – Sim, claro. Com que outra desculpa vou receber meus ne-
tinhos que quase não me veem.
JORGE – Deixemos então para o próximo dia 31 de dezembro.
GLENDA – Mas você é muito parado mesmo... Se eu te contasse mi-
nhas histórias... Cada coisa por que passei nessa vida, você ficaria de
boca aberta.
JORGE – Eu não duvido, Glenda. Eu não duvido. E de música? O que
ouviremos hoje?
GLENDA – Gosta de fado português?
JORGE – Conhece a Carminho?
144 Felipe Mury
(Pegam o carro e estão em Buenos Aires, no Museu de Belas Artes. Passeiam pe-
las galerias.)
AFONSO – Jorge, sua ida a São Paulo está confirmada. Pode arrumar
suas coisas, você parte o mais cedo possível. (olhando o casal) No sabia
que estavam acá. Do que tratam?
150 Felipe Mury
(JORGE sai.)
(JORGE está em São Paulo e se encontra com a esposa.)
IXEYA – Venga!Venga!
AFONSO, no meio – Chega! Ninguém vai vender fazenda nenhuma. E
ninguém vai bater em ninguém. Chega.
LEONEL – Mis queridas, vamos entendernos.
JORGE – Está tudo entendido. Vocês não são bem-vindos aqui. Vocês só
criam problemas para sua mãe! Ela não merece isso. Cuidou de vocês e
de sua família, carrega esta propriedade e os negócios da família nas cos-
tas e vocês querem apunhalá-la pelas costas? Por favor, tenham dó.
LEONEL – Mamá, mira lo que él nos habla!
GLENDA – É isso mesmo. Saiam daqui. Me deem espaço, me deem
sossego. Saiam, vamos!
IXEYA (saindo junto com LEONEL) – Você vai pagar caro! Nunca mais vai
ver seus netos! Você vai pagar caro!
LEONEL – Vamos. (saem)
GLENDA – Eu sabia que ela falava português... Essa víbora.
AFONSO – Fiquem bem vocês dois. Eu vou ver se posso minimizar os
impactos. Até já. (sai também)
GLENDA – Estava farta desses dois. Você foi ótimo, obrigada.
JORGE – Não fiz nada que não faria por uma amiga.
(Dançam, colados.)
(GLENDA muda o som para uma música da Madonna.)
GLENDA – Olha!
JORGE – Ora, vamos... Você é uma grande fazendeira, uma mãe cari-
nhosa, sabe tocar piano.
GLENDA – Eu não tenho nada. Eu estou podre.
(Silêncio.)
GLENDA – Você é jovem, tem a glória pela frente. Para mim ela está
no passado.
154 Felipe Mury
(JORGE sorri.)
JORGE – Oi.
GLENDA – Jorge! O que você está fazendo aqui tão cedo? Vá dormir.
Hoje é sexta-feira.
JORGE – Eu perdi o sono. Aliás, você também parece não ter dormido.
GLENDA – Claro.
JORGE – Algum problema?
GLENDA – Não. É só que hoje eu vou ter que sair. Vou a Buenos Aires.
JORGE – Bem, que pena: tinha pensado em passar o fim de semana
aqui. Mas, de qualquer forma, eu posso levá-la à cidade.
GLENDA – Não. Eu acho melhor não.
JORGE – Faço questão. Aonde vai lá?
Peças teatrais 155
GLENDA – Eu não tenho tido sorte. Eles me pegaram. Vou fazer qui-
mioterapia.
JORGE (pausa) – Eu sinto muito.
(Chegam ao hospital.)
GLENDA – Você?
JORGE – Sim, vou levá-la de volta.
GLENDA (muito cansada, mas tentando ser otimista) – Você tem que co-
nhecer a Argentina. (pega um mapa do país e o abre na frente de JORGE)
Está vendo? Vamos começar por Luján!
JORGE – Vamos começar?
156 Felipe Mury
ATO I
(som de didjeridu)
Quarto
– Voltar atrás, se arrepender, chorar as pitangas, o leite derramado. O
que podia ter sido e não foi. O meu avô foi cremado, me lembro de ter
espirrado muito no funeral simbólico dele. Aliás, espirrei sempre que vi
aquela urna na casa da minha avó. Devo ter inalado um pouco das cinzas
e espirrado. Aliás, que costume besta esse de queimar. Não sei se é me-
lhor ou pior que enterrar. Bem, o que eu sei é que, enterrando, o morto
vira terra, que vira comida, que se come, e que cremando o morto vira
pó, que vira ar que a gente inala: de qualquer forma o ciclo natural da
morte chega até nós, os vivos.
– Uma vez, pequeno, eu estava fazendo uma prova, de matemática –
longuíssima, trabalhosíssima –, e dei um espiro – sim, algumas pes-
soas choram muito, outras falam, reclamam, ficam inquietas, roem as
unhas, até tossem, eu, eu espirro; espirro e coço a garganta. Assustei a
turma toda.
– A verdade é que a gente não pode fazer muito na vida... Não dá para
escolher se vou morrer das pontas para o centro ou do centro para as
pontas. Uma hora as coisas acabam.
Festa
(segurando um copo de uísque) – Ele me olhou de cima a baixo e, com o
maior desdém possível, soltou uma expiração forte pelas ventas, tor-
cendo o nariz... Babaca. O cara foi até a festa só para me sacanear, que
filho da puta. Ainda me pergunto se eu devia mesmo ter ignorado. Às
vezes fico imaginando desfechos diferentes para aquela noite, um soco
É peça para um ator só. Alterna momentos falando para a plateia, como em stand-up, para si mesmo,
para a namorada, o pai e para o universo/Deus. Achar os momentos certos de falar para cada interlo-
cutor, e das transições.
Peças teatrais 159
na cara, sei lá. Preferi manter a paz, mas talvez o que a Laura quisesse
ver fosse porrada, ia transar com mais violência depois de tudo.
– Fala, Lucas, seu veado! Como é que você está, cara? Está com a Ra-
quel ainda? Ah, vocês dois... Está trabalhando no Andrade & Vieira ain-
da? Ganhando baldes, né? O contencioso de vocês é foda. Bem, vai lá,
não quero te prender não. Abraço, cara. Tudo de bom.
(põe o copo na mesa; começa a dar socos, encenando uma briga) – Eu não que-
ro insistir no assunto, mas pelo menos um processo por injúria eu tinha
que ter metido nesse filho da puta. Enfim, vontade de comer um jamón
pata negra, com um merlot, sei lá que uva combina com presunto.
– E ela não vem... Já esperei uma hora e meia. Ela não vem.
– Na época da faculdade, o que eu mais queria era trabalhar logo, o que
de certa forma aconteceu. Fui efetivado até que rápido, queria traba-
lhar mais com internacional, mas tributário tá bom, como eu já disse,
tem coisa que não dá para ficar escolhendo. Época boa... Peguei a sala
toda. Ha-ha-ha! Bem, boa parte. Aline no fundo da biblioteca; Aninha
no banheiro do lado da xerox; nas chopadas perdi a conta, putaria ge-
neralizada; contando churrasco, festinhas, acho que deu para o gasto.
– Ela me deixou plantando aqui, disse que vinha e deu bolo. (celular
toca, ele atende) Putz, estou aqui, você não vem? Não, está legal aqui,
chega aí. Poxa, não vou me deslocar para a Barra agora. Tudo bem, a
gente marca outra. Mas você está me devendo. Beijo. Uma lambida no
Cox. Ha-ha-ha! Tchau, beijo. (desliga o celular e pega novamente o copo de
uísque)
– Com essa eu caso.
– Meu escritório fica no 4o andar, todos os dias eu me viro para a as-
censorista e repito “quarto, por favor”, o que, todos os dias, despertava
na operadora daquele cubículo uma paixão incontrolável que a impe-
lia a sorrir e a dizer alguma gracinha – “quarto é?”, “esse tempo ma-
luco...”. Em outros momentos do dia, eu enfrentava duplos sentidos,
trocadilhos, piadas tortas e situações por si sós embaraçosas; tinha me-
nos complacência. Era sorte daquela ascensorista estar tão próxima do
meu trabalho e eu ter que vê-la todos os dias, pois senão eu já a teria
mandado pastar. Nunca tive muitas travas com gente sem graça não.
160 Felipe Mury
Quarto
– Uma vez eu fiquei na maior dúvida entre duas garotas. Não sabia
mesmo com quem ficava. Era como se você estivesse comendo um ca-
napé com foie gras numa mão e tomando uma taça de porto na outra,
você tem que escolher o que vai terminar por último: se você quer fi-
car sentindo o gostinho salgado e saciante do foie gras ou se você quer
aquela madeira com álcool descendo a goela e lavando o paladar. Talvez
essa seja uma escolha impossível.
– Tradição. Ela serve para muita coisa; serve para não nos perdermos
através dos séculos; para lembrarmo-nos de onde viemos; a tradição,
em última instância, une as gerações num sentimento único de espécie,
de humanidade.
– Tradição de cu é rola! Quanta baboseira: a única maneira de prospe-
rarmos como espécie, de vencermos a corrida da sobrevivência é que-
brar as tradições, é inovar e inovar. Só a evolução, a “re-volução” traz
o progresso real. Os que se prendem no aconchego e na debilidade da
mentalidade de outro tempo são os fracos e esses sim têm de perecer!
– Uma questão se apresenta então: existe um limite para a evolução?
Tipo, conseguimos só melhorar nossos atributos genéticos até um cer-
to ponto e, a partir daí, temos que partir para a reprodução? Estou
muito achando que é isso. Eu, hoje, não consigo ficar mais alto, mais
Peças teatrais 161
Enterro do pai
ATO II
Viagem à Croácia
– Vou fazer um concurso aí... vou ter estabilidade... vou atuar só para
me divertir. Pago as contas como advogado ou servidor público e ga-
nho fama como ator. Porra nenhuma. O mundo te exige excelência e
dedicação exclusiva. Se não for para ir com tudo, não será. É...
– Ganhar dinheiro ou ganhar saúde, fama e prestígio? Parece que ter
saúde, fama e prestígio deveria vir em primeiro lugar. Acontece que
muitas vezes quem tem o dinheiro, o meio de troca, é que domina
aqueles que buscam saúde, fama e prestígio. Assim, quem só mira na
saúde, fama e prestígio, acaba à mercê de quem controla o dinheiro,
em uma sociedade em que a moeda é a única maneira de contratar bens
e serviços, e, às vezes, de se ter amor. Eu sei, eu sei... “Amor por di-
nheiro não é amor.” Mas, para muita gente, o sorriso da moça do Rei
do Mate ao pagar 5 reais pelo cafezinho ou os gemidos falseados da
prostituta são a coisa mais próxima de amor que terão na vida adulta.
– O dilema de ser ator e não ganhar um tostão é uma coisa séria. É
uma opção que parece glamorosa, mas traz muitos ônus. Eu vi cole-
gas que têm que aturar dura do guarda do metrô por tocar Vivaldi no
transporte público. Não sei bem. Não ter dinheiro implica, na socie-
dade do capital e do mercado, não ter dignidade. Isso é inaceitável.
– Alguns têm falado em mudarmos para uma sociedade do espetáculo,
onde o belo impera e quem dita as regras é a Arte. Os artistas são os
reis. Acho bom. Mas e aí? E os operários, os camponeses e, até, os in-
felizes hodiernos, políticos e burocratas? Morrerão à míngua? Não sei
bem se o destino dos artistas é tornarem-se ditadores de um povo ca-
rente de luz, som e sonho. Sim, a plebe precisa do circo, mas não pre-
cisa só dele. Algumas vezes penso que, de fato, existem profissões que
ficam melhor monopolizadas, restritas a certa elite. Não que essa elite
não se renove ou que não aceite membros de outra classe social, mas
que sejam poucos a dominar a comunicação e o privilégio de transgre-
dir com graça e como instituição.
164 Felipe Mury
– Então está decidido, serei ator, agora. Não mais advogado ou funcio-
nário público. O máximo que pode me acontecer é eu ter que dar aulas
em uma boa faculdade de artes cênicas. Isso não é ruim, pelo contrário.
Mas é um longo caminho. Uso meu DRT para elevar-me enquanto ser
e, se for necessário, minha OAB para resolver os problemas mundanos
e triviais que a civilização e o Estado me impõem.
– Ator de tipos ou ator-pessoa física? O tempo todo aquele diretor fi-
lho da puta me provocava, agia como se fosse eu que estava criando
aquela atmosfera infernal no ensaio. Me deixou com fama de desequili-
brado. Me enchia a paciência, fazia eu sentir dor e posava de santo para
o produtor e para o resto do elenco. Sem falar que só ele levou a fama
pelo espetáculo. Não dei nenhuma entrevista, nem nada. Só ele divul-
gou a peça, só ele ficou com os louros. Que merda, cara.
– Meu pai e minha mãe... Agora eu tenho que ajudá-los. Não sei até
que ponto eu tenho a obrigação de acompanhá-los nos seus últimos
dias. Ainda não é para agora. Eles estão novos...
– Mas já dá para sentir que uma hora ou outra eles me deixarão. Pelo
menos materialmente. Eu não acredito muito em espíritos. Sou cató-
lico e no catolicismo só se vive uma vez. Mas existe o paraíso. Espe-
ro que eles possam ir para lá. Eles não sofreram durante as suas vidas.
Foram felizes e saudáveis. Mas tem tantas pequenas coisas que aborre-
cem. Uma hora a gente tem que descansar mesmo. Que seja daqui a
muito tempo.
– Por exemplo, as contas, ajudar pessoas da família, esperar a gente
quando chegávamos tarde em casa. Se preocupar, se importar. Foram
bons pais. Hoje, não são tanto, mas provavelmente é porque eu já sei
me cuidar sozinho. Não preciso tanto deles.
– Mas são tantas pequenices que atrapalham a gente, por aqui...
– Papai era racista – que horrível dizer isso, não é?, mas ele era. Muito
sutil, mas tinha certas opiniões que ele não precisava externar. E era as-
sim com tudo, com a gordura das minhas tias-avós, com o jogo, vício do
meu tio, com os políticos. Ele era implacável em alguns comentários.
– Olha o que ele escreveu no diário de viagens, sobre um passeio que
fizemos à Índia: “Voltamos de Londres e nos inquietamos com aquela
Peças teatrais 165
gente cor de marmelada, suada, uma gente cozinhada pelo calor, pelas
bactérias livres em suspensão no ar. A terra batida encarde, a água salo-
bra desintegra, a superpopulação diminui a importância do indivíduo e,
logo, são todos uns feijões pretos se desfazendo, criando uma verdadei-
ra sopa de nutrientes entre os caroços, que, neste caso, são os corpos se
abraçando, quase unidos por uma camada oleosa, de visco humano.”
– Vinicius dizia que a beleza era fundamental, mas papai ia além: disse
que a única lei a que o Universo realmente se submetia era a da beleza,
segundo a qual os objetos, coisas, criações divinas se alternavam em es-
téticas mais ou menos belas conforme razão incalculável. Apesar de os
gregos e renascentistas terem dado um número a essa razão áurea, na
verdade, a atribuição de grandeza à beleza, pela matemática, para pa-
pai, vinha sempre depois, para traduzir em linguagem compreensível
o que passou a existir de maneira miraculosa, divina. Dizia ainda que
aquela razão de Da Vinci corresponde tão somente ao universo que a
cognição podia alcançar, pois ele tinha razão para acreditar que exis-
tiam então outros tantos que são indecifráveis por quaisquer lingua-
gens que tenhamos descoberto. E dizia: só é belo mesmo aquele que
mostra o seu lado mais feio e ainda assim é aceito e amado.
– Para Laura era um lirismo dele. “Seu pai tinha um dom, que você
puxou, para a poesia, para dizer as coisas com cores e não com sons.”
(para Laura) – Mas chega, chega, vamos falar sobre outras coisas: você
sabia que o outro nome de Dubrovnik é Ragusa, em italiano? Eu não
vejo a hora de andar por aquela cidadezinha, olhar aquele mar verde-
-esmeralda.
(para Laura) – Você escolheu bem o destino dessa vez. (dá o bilhete para
o fiscal do trem furar)
(sentados um de frente para o outro, no trem) – Acho que trem é algo seguro.
Eu confio em trens. Se não estiverem cheios, principalmente.
– Evite espelhos. Não há nada mais maléfico do que se olhar por muito
tempo, ou repetidas vezes no espelho. Lembre-se de que a única pessoa
que pode te derrotar é você mesmo. Então, é melhor não se enfrentar
muito. Acredite, você está bem, você tem boa aparência, não precisa
ficar se olhando. As outras pessoas é que têm que olhar para você, e
você, olhar para as outras pessoas. Ficar se encarando muito é morte
certa. Muita gente, no teatro e em apresentações para públicos, treina
no espelho primeiro. Acho isso perigosíssimo.
– Enfim. Estou amando essa cidade. A Croácia é um lugar realmente
belo. Dá para morar aqui. O casal de brasileiros foi embora, desceu
Peças teatrais 167
suas rusgas vão aparecer uma hora ou outra, em algum lugar, por mais
que escondamos os nossos traços e atitudes e sensações feias. Manter
um ambiente ou espaço relativamente livre dessas feiuras requer esfor-
ço e atenção especial. A todo tempo o que é ruim tenta entrar.
– Sabe aquela frase “A Arte existe porque a vida não basta”? Eu só sei
que a vida é o mais importante, sempre, mas se nela não houver beleza
e arte, não tem mais graça. Não estou defendendo eutanásia, aborto,
ou o que for. Até porque, acho que podemos estar em estágios transi-
tórios de feiura e de infelicidade, mais tarde podemos recobrar a be-
leza e a energia e a alegria. Mas um bom parâmetro para se saber por
onde caminhar é levar em conta a beleza e a sensação de prazer. Estas
são inerentes a uma vida bem vivida.
– Mas disso todo mundo sabe, não é? Não estou inventando nenhuma
roda. Só estou fixando em voz alta uma consideração que acho impor-
tantíssima. Apesar de pouco pararmos para contemplar essa questão.
A questão da vida.
– Eu acho então que, dentro da vida, a coisa mais relevante que alguém
pode fazer, depois de ser pai ou mãe, é dedicar-se a alguma forma de
arte. Por vezes, transformar seu ofício em arte. Contudo, a única arte
que me parece real e válida – para mim – é a Arte Dramática ficcional,
onde a farsa é declarada e sabida. As demais profissões são engodo justa-
mente por se pretenderem verdadeiras. Todo mundo pode fazer arte em
suas atividades, se as faz com esmero e ali expressa alguma identidade
sua, porém, não são todos que podem viver fazendo uma chamada arte
pura, onde os meios e o objeto são inteiramente desprovidos de trivia-
lidades ou funções óbvias. Levar a alcunha de artista, com A maiúsculo,
não é para qualquer um.
– Fazer e discutir arte deve ser a principal atividade do homem civili-
zado, depois do sexo. Os outros temas e atividades serviriam só para
não deixar os debates artísticos caírem na monotonia.
– Debater é bom. Coisa de ágora, coisa de pólis, coisa da Grécia... De-
mocracia e tal. Entretanto, alguns discutem os fatos como se fossem
reais, como se pudessem chegar a uma narrativa definida e inequívoca.
O que há são versões, e tão só. Não admitimos isso em nossas batalhas
Peças teatrais 169
cotidianas, pois deve haver algum parâmetro para definir quem está
certo e quem está errado, mas que a verdade é que estamos ainda, no
estado de natureza, sob a lei da selva, isso é certo. Vence o mais astuto.
Há que se ter força, há que se ter coragem, há que ser mais que o ou-
tro. Senão, nada marcha.
– Talvez assumir que há infinitos caminhos seja um rumo para a per-
dição. Se eu encarar que só há um caminho, não terei a dor da escolha
e a agonia da dúvida. Melhor considerar que as coisas são como são,
e que sempre serão assim. Sem mudanças. As mudanças servem quase
sempre para confundir a gente. No final, a gente quer uma coisa só, e
a mesma coisa. O resto é alternativa, é fuga, é distração.
– Eu estou me acabando. Mas quem não está?
– Brincando de ser a gente acaba sendo. Eu não consigo ser uma pes-
soa má, mas também não consigo ser um trouxa. Outro dia, eu peguei
um ônibus até Ipanema. Dei o dinheiro pensando que estava dando
duas notas de dois, que são azuis. Só quando cheguei em casa e mexi
na carteira de novo percebi que tinha dado uma de dois e uma de cem.
Ambas as notas são azuis. O cara não falou nada...Talvez não tenha per-
cebido também... Sei... Finjo que foi isso. Em todo caso, devia chegar
para pegar ônibus agora e contar essa história. Acho que daria umas
vinte viagens. Mas o meu lado trouxa me obriga a esquecer e conti-
nuar pagando.
– É impressionante. Não sei se é a recessão ou o que, mas todo mundo de
repente passou a querer se dar bem. Em todos os serviços.Você pega um
táxi, o taxista puxa assunto para saber que tipo de pessoa você é, e anda
devagar, pega as vias mais congestionadas; você vai ao banco ou tenta re-
solver um problema da TV a cabo pelo telefone, sai com outro problema
maior ainda. As ondas estão bravias.
– O mar está revolto e nossa canoinha furada, furada com a mesma
facilidade inexplicável e mágica com que foi construída. Acho que é a
velhice que começa a se apresentar para mim. Acho que ser velho deve
ser isso – ter as pretensões sucessivamente negadas até você desistir.
Desistir você mesmo, para ninguém ter culpa da sua morte. Não ofi-
cialmente.
170 Felipe Mury
– No final, tudo se resume a se você quer ter ou ser a coisa que você
contempla: você cobiça ou admiras?
– Minha terapeuta falou que os meus sonhos, os de todo mundo, são
manifestações do subconsciente, ou inconsciente – não lembro bem –,
e que a memória é a base dos sonhos. Mas eu sonho com tanta coisa
que ainda não aconteceu. Para mim o sonho é manifestação do pensa-
mento, é como se continuássemos pensando, só que de olhos fechados,
e com menos controle dos pensamentos. A parte do cérebro responsá-
vel por guiar os pensamentos – deve ser o lóbulo frontal – passa a bola
para outras partes do sistema nervoso central. Não sei, mas a impres-
são que eu tenho é a de que os sonhos são uma preparação psicológica
Peças teatrais 173
para o que está por vir, para o dia que se seguirá, mais do que uma ma-
nifestação de memórias do passado.
– Vou entrar de novo no campo da filosofia e dos porquês: por que e
para que fomos feitos? Ou, nos fizemos... O que é essa porra toda? É
só para procriar? É só para ter prazer? É para fazer o que se quer? Ou
para seguir as normas? Aliás, que normas?
– Cheguei à conclusão de que o ser humano não foi feito para ser en-
ganado pelos sinais do mundo, foi feito para continuar sendo e para ter
prazer em ser. E para isso o afeto é o principal material dessa brinca-
deira toda.
– Amor é morrer sem dor.
– Meu pai tinha medo que o teatro me transformasse em gay; mal sabe
ele que foi a Arte que me fez homem. Pensei alto.
– Queria agora ver meu filho crescer e ser um grande homem. Ser um
grande ator, um grande diretor, o que ele escolher. Mas que seja belo
e honesto.
– Já tenho uma família linda, tenho conforto e dinheiro suficiente para
ter os pequenos prazeres da vida. Acho que agora é isso mesmo... Es-
perar, torcer para que meu rebento seja alguém especial e que conti-
nue as coisas boas que eu ensinei a ele, ou que ele aprendeu sozinho.
– “O que você procura já está procurando você.”
– Se papai se preocupava com ela, mamãe era a própria beleza. A per-
sonificação de uma deusa dos anos 70 ou 80. Do mesmo jeito que
Laura é a encarnação de uma deusa hipster. Não procurei o que via na
mamãe em Laura, mas o universo me presenteou com doçura parecida
e um aconchego, conforto, tão especial quanto. São duas coisas dife-
rentes, é claro. Mas eu prometo que cuido da Laurinha para sempre.
Eu prometo que cuido do meu filho como a coisa mais importante do
universo. Eu quero muito fazer essas pessoas felizes. Do jeito que tanta
gente me fez feliz.
(canta) – Yo te quiero! Tu me quieres!Vamos hacer un poquito de amor!
Yo te quiero! Tu me quieres una outra vez vamos hacer un poquito de amor!
– Estou compondo essa música. Será que essa melodia já existe? Eu
fico sempre com medo de pensar em uma melodia, falar para os outros
174 Felipe Mury
– (pausa) Sem seu pai ali, sem a lembrança constante dele lhe cobrando
as coisas da vida, sem isso não teria se prendido a nada e teria sido maior,
sido um homem verdadeiramente grande. Mas, sem seu pai, seria esse
homem grande para ninguém. Ninguém torcendo, ninguém aplaudindo.
Seria sim um grande ninguém: filho de ninguém, muito prazer. Hoje, ao
menos tinha a sua constituição, a sua identidade conservada.
– É foda! É foda a nossa hipocrisia também. A hipocrisia do homem
heterossexual moderno. Eu vejo neguinho falando mal, esculachando
nas rodinhas, nos círculos fechados, os veados: que dá a bunda, que está
errado, que não quer que o filho seja... Mas é só colocar um microfone
na cara de uma figura dessas que começa a falar que a diversidade tem
que ser respeitada, que não tem nada a ver a agressão contra os gays.
Bem, é melhor do que se defendessem publicamente a homofobia,
com certeza... Mas não é curioso? Não é cruel essa dualidade? Porque,
mal ou bem, esse repúdio ao diferente está na nossa formação como
cidadão de uma certa categoria, aí do nada a gente se vê achando tudo
aquilo que nos disseram que estava errado, mas que agora não está
mais... E então eu não posso pichar... Pelo menos, não publicamente.
– Eu deveria, mas não vou. Eu deveria mesmo. Mas, deixa para lá. Eu
deveria criticar aqui o feminismo. Mas vou levar porrada... Eu não
ouso falar de feminismo. É tabu, assunto proibido. Só fala dessa porra
quem quiser ser bombardeado. Eu não vou falar que essas mulheres
fortes de hoje estão criando uma horda de homens fracos, submissos
e sem atitude. Não vou falar que muitas mulheres estão cometendo o
mesmo erro que os homens cometeram no passado, querendo centrar
a vida em comunidade na experiência de um só sexo (no caso, o delas).
Não vou falar que eu tenho medo de viver uma vida toda com medo do
olhar e das palavras da minha esposa, porque ela aprendeu a ser mais
esperta que eu e usa seus superpoderes para me inferiorizar, me ridi-
cularizar. Eu não vou falar nada, principalmente porque essa não é uma
discussão que caiba nessa nossa era e esses são só devaneios e preocu-
pações minhas, pessoas. Vai ver que a maioria da população ainda é de
mulheres submissas e a minha observação poderia causar uma catarse
176 Felipe Mury
ATO III
– É quando você percebe que a vida é fora da caixa. Às vezes, até, a vida
é fora da norma, fora da lei. Quem tem coragem vive. É aventura, é
assumir riscos. E você encontra gente querendo ser gente. Às vezes de
um jeito antigo. Às vezes, desesperada tentando encontrar uma nova
forma de ser gente.
– Quando eu ainda não era maduro e ainda na faculdade de Direito, me
diziam que existiam três verdades: a de uma parte, a da outra e a verda-
de real. Hoje tenho certeza de que só há uma verdade, a do vencedor. A
verdade de quem se impõe é a que ganha a prerrogativa de ser conside-
rada real, não existindo nenhum meio-termo, ou circunstâncias neutras,
imparciais ou mais verdadeiras. Quem vence é que conta a história, e é
isso aí. Das versões, só uma vinga.
– O ator, o ator às vezes se perde no “quem sou eu?”... É foda, ficar
trocando de personalidade pode dar uma danificada... Pode fazer você
ficar meio perdido por alguns instantes, talvez até por um tempo con-
siderável. Grotowski, em Apocalypsis cum figuris, falava da sensação de
morte no final de cada processo. Eu me formei como ator – sim, as
pessoas se formam como técnicos em teatro, existe escola para isso,
mas não existe escola para ser artista –, e pensei: e agora? Que porra é
essa? Que que vai acontecer? Quem vai me pagar agora? Quem vai me
bancar? Puta que pariu. Eu fiz minha primeira e última apresentação
no teatro profissional e não fui chamado pra nenhuma peça da Broad-
way, do West End, não fiz novela, não entrei em nenhuma rede de te-
levisão, nem para reality show eu fui chamado. Que meeeerda. Mas, sé-
rio, houve oportunidades; eu é que passei por uma crise de ceticismo
comigo mesmo. Pensei: será que vale a pena, todos os dias me desnu-
dar, me expor para pessoas, muitas das quais eu nunca vi, sem receber
dinheiro, só bebendo a água do bebedouro, só para receber uns elogios
no final da noite? Naquele momento, não sei. Mas hoje, está valendo.
– O problema é quando você começa a se comparar com os outros...
Principalmente com quem está na estrada há mais tempo que você.Tipo,
você pensa: ah, eu deveria estar recebendo o que o Porchat recebe, eu
180 Felipe Mury
– Eu curto aliens. Sério, acho que eles estão entre nós. Eu chamo de
aliens as pessoas diferentes, que têm algo que nós chamamos de defi-
ciência ou que simplesmente pensam diferente de nós. Eles são pro-
fessores, médicos, padres, advogados, economistas, mulheres, goys,
gays, surdos-mudos, rockeiros, hippies, hipsters, góticos, românticos,
nerds, geeks, transexuais, donas de casa, chefes de família... Qualquer
um que julguemos ser diferentes de nós. Que meu filho tenha a cora-
gem de conhecer aliens antes de recrudescer. Que viva com eles. Que
seja um deles.
– É o novo que imita o velho ou o velho que imita o novo? (pausa) A
vida é uma combinação... a combinação das combinações. Um nasce
para que o outro descanse e, ao mesmo tempo, para vingar e dar se-
quência ao que o outro era ou fazia. Um revezamento. Lindo. Lindo.
– “A vida é uma peça de teatro que não admite ensaios”, Charles Chaplin.
– Acho que uma das piores coisas do mundo é perceber que nem todo
mundo é seu amigo. De fato, conforme a gente vai crescendo, deixando
de ser criança, a gente percebe que tem gente disposta a te matar, inclu-
sive. Às vezes, por um carro, por uma joia, por um cargo público, por
uma herança, por um papel no cinema. Isso é que é o mais escroto. Essa
espécie de selva é uma realidade para muita gente. E matar não é só pegar
uma arma e atirar na cabeça de alguém. Palavras matam, textos matam,
olhares matam. Acho que já falei sobre isso. Estou me repetindo.
–Só há uma coisa eterna no mundo. (silêncio)
– Sociedade fingida. Grande parte dos sorrisos são armas que usam
para te tirar 30% a mais na conta do hotel, para arranhar seu carro sem
você ver, ou para simplesmente não ser pego em suas mentiras e mal-
Peças teatrais 181
feitos. Sorriso verdadeiro está raro. (pausa) Lutamos, cada um, para ser
a pessoa mais amada do mundo.
– Em cada país essa mesma lógica se repete. Somos iguais nesse ponto.
No ponto de encarar a vida como uma briga e ter sempre que declarar
um vencedor e um perdedor; no ponto de querer sempre levar algu-
ma vantagem. Certamente, fica difícil dizer que em tal país as pessoas
são assim ou assado, que determinado povo age, pensa, comporta-se
de um jeito determinado e que há características absolutas, ou mesmo
fortes, que definam uma sociedade em particular e a diferenciem de
outra. Cada vez menos acredito nas etnias, ou nas culturas nacionais ou
nas fronteiras. Ou em qualquer coisa.
– Estamos sendo abatidos e não nos damos conta. E a culpa não é de
ninguém. Se você conseguir conviver com as cicatrizes, você pode ir
até o final. A voz de Deus é grave, vem da garganta, é gutural.
– A vida acontece no erro, na burla, no crime: o espermatozoide só
fecundou o óvulo porque fez um furo nele de tanto forçar a entra-
da. O omelete só é feito quando os ovos são roubados do ninho e são
quebrados.
– Todos seremos dessacralizados em algum momento. Menos a vida. E
eu só quero viver e ser vivido.
– O que nos mata são as pequenas verdades reveladas todos os dias.
Vida é sinônimo de inocência. Quanto mais nós sabemos, mais mortos
estamos. Veja uma criança e veja um velho. O que mais sabe, que mais
tem experiência, é o que está mais próximo da morte. O frescor neu-
ral é que é mais importante para continuar vivendo. A morte é a reve-
lação suprema, não há mais o que aprender. Ao morrer, a gente vai para
onde a gente imaginar, ao fechar os olhos, mesmo quando vivos, tudo
é possível. Assim, a carne se desfaz, vira outra coisa – terra, planta, ga-
ses no ar, e a alma, aquilo imaterial que há dentro de nós e nos guia, vai
para onde quisermos.
– Eu assisti ao Tio Vânia do Tchekhov. A montagem do Galpão. Muito
boa. Alguém que desperdiçou a vida pensando nos outros e nunca vai
ter recompensa à altura. Nenhum agradecimento, de ninguém, vale o
descartar de uma vida. Não jogo a minha fora não.
182 Felipe Mury
(toca o didjeridu)
(Deita-se no piso do palco e morre. Fica o cadáver ali estendido até que toda a
plateia se retire.)
PANO