Você está na página 1de 6

Uma Concepção Cibernética da Inteligência

Renan Nery Porto

Apresentação realizada no Festival PICNIC Brasil em novembro de 2018, sob o título


“A Infecção Alienígena nos Hologramas do Real”.

Para começar a pensar nisto devemos partir de uma concepção do corpo humano
enquanto organismo cibernético. Quando falamos de cibernética talvez as primeiras
imagens que nos vêm à mente sejam sistemas eletrônicos e ao pensar em ciborgues logo
imaginamos um robô ou alguma outra espécie de inteligência artificial. Mas a cibernética
não está apenas relacionada a computadores e sistemas eletrônicos. Ela é um campo de
conhecimento dedicado a analisar o funcionamento e comportamento de diferentes tipos
de sistemas – inclusive sistemas biológicos – e o modo como se operam as trocas de
informações entre sistemas diferentes ou entre um sistema e seu ambiente externo. Além
de pensar também os modos de controle e organização destes sistemas.
Um sistema, por sua vez, é um conjunto de elementos correlacionados entre si,
funcionando a partir de um código interno comum, a partir do qual o sistema se diferencia
do seu ambiente e de outros sistemas. Seu modo de comunicação se dá pela recepção de
inputs de informação e estímulos externos que são decodificados e traduzidos conforme
seu código interno, gerando outputs como reação ou resposta. A teoria sistêmica de
autores como Francisco Varela e Humberto Maturana considera que os sistemas são
autopoiéticos. O que quer dizer que eles são capazes de produzirem a si próprios de modo
autônomo. Mas iremos trabalhar aqui com um outro conceito que é o de sympoiese. Dizer
que os sistemas são sysmpoiéticos quer dizer que eles evoluem e se produzem em
interação com outros sistemas que também se transformam através desta relação. Como
descreve a pesquisadora Beth Dempster, da Universidade de Waterloo (Canadá), os
sistemas “sympoéticos”:

“Em contraste com os sistemas autopoiéticos, são caracterizados por qualidades


cooperativas e amorfas. Os sistemas simpoiéticos produzem recorrentemente um padrão
de relações auto-similar através de interações complexas contínuas entre seus muitos
componentes diferentes. Em vez de delinear limites, as interações entre os componentes
e as capacidades de auto-organização de um sistema são reconhecidas como qualidades
definidoras. "Systemhood" não depende da produção de fronteiras, mas das contínuas
relações complexas e dinâmicas entre componentes e outras influências. O conceito
enfatiza vínculos, feedback, cooperação e comportamento sinérgico ao invés de limites”
(DEMPSTER, 2000, tradução nossa).

Na definição da filósofa e bióloga Donna Haraway, da Universidade da


Califórnia-Santa Cruz (EUA):

Sympoiesis é uma palavra simples; significa "fazer-com". Nada se faz sozinho;


nada é realmente autopoiético ou auto-organizado. Nas palavras do "jogo mundial" do
computador Inupiat, os terráqueos nunca estão sozinhos. Essa é a implicação radical da
sympoiesis. A Sympoiesis é uma palavra própria de sistemas complexos, dinâmicos,
sensíveis, historicamente situados. É uma palavra para “worlding-with”, em companhia.
Sympoiesis envolve a autopoiese e a desdobra e estende generativamente (HARAWAY,
2016, p. 58, tradução nossa).

Portanto, vamos considerar que o corpo humano é também um sistema


sympoiético. É um conjunto de sistemas acoplados formando um outro sistema que por
sua vez também existe interagindo e compondo outros sistemas. Nessas interações
recebemos estímulos do ambiente e estamos sempre reagindo, o que pode moldar nossa
subjetividade e determinar nossas ações. Nosso corpo é também um dispositivo que está
constantemente se acoplando a vários outros objetos e ferramentas. Podemos lembrar, por
exemplo, do filme Videodrome, de David Cronenberg, em que o personagem principal
entra numa simbiose com vários objetos técnicos, como a tela da televisão que o
personagem do Professor Brian O’Blivion diz ter se tornado a nova retina do olho da
mente, sendo, portanto, parte da estrutura física do cérebro.
É interessante lembrar aqui um texto publicado nos anos 80 pela Donna Haraway,
que é o Manifesto Ciborgue. Nesse texto, ela observa que a figura do ciborgue não é algo
que está num futuro distante. Nós já somos ciborgues; nós já fazemos grandes esforços
para melhorar o rendimento do nosso corpo, a eficácia da nossa inteligência, para
aumentarmos a concentração. Já dispomos de diferentes técnicas e suplementos a fim de
superar os nossos próprios limites corporais e dar conta do ritmo cada vez mais acelerado
de nossas rotinas nas cidades. Porém, nessa correria para atender às exigências que nos
são impostas, temos a nossa subjetividade moldada de maneira heterônoma.
Nossos desejos são constantemente incitados com as imagens e histórias mais
fantásticas. Inclusive imagens de toda essa maquinaria explodindo e voando pelos ares.
No nosso ‘eu profundo’ cultivamos memórias que espreitam uma chance de impulsionar
os motores do corpo numa nova expressão. Mas as exigências da vida social e suas
demandas, que requerem de nós um outro corpo, aquele que foi talhado pelos pequenos
ou grandes suplícios desta mesma vida, nos impelem a suprimir essas emoções profundas.
Para dar conta da vida acelerada nas cidades, é necessário reproduzir a regularidade dos
hábitos de forma mais rápida possível; nossas expressões ficam presas à uma cadeia de
associações mecânicas. Se nos submetemos a tudo isso certamente não é meramente por
uma coerção infligida sobre nós, mas porque desejamos realmente as possibilidades que
nos são dadas pela sociedade. Nossos atos não são menos voluntários que forçados.
As formas de dominação nas sociedades contemporâneas passam por essas
múltiplas pressões cotidianas que vão formatando nossa memória, nossas capacidades de
imaginação, sonho, associação e criação, encapsulando nossa expressão em modelos
mecânicos e burocráticos. Colocar o problema da liberdade hoje deve passar pelo próprio
modo como toda sociedade está agenciada, montada, como uma máquina; suas formas de
repressão são as mais sutis, moldando as bases de nossa expressão e comportamento, que
são os signos que compõem nossa memória, nossa linguagem, nosso modo de perceber e
associar diferentes imagens e falar sobre elas.
Haraway propõe no Manifesto Ciborgue a criação de alianças interespecíficas,
alianças entre diferentes espécies, inclusive com as máquinas, mas não só com elas,
também com os animais e as plantas. Ela percebeu que a natureza já não podia mais ser
ontologicamente neutralizada como algo inocente e passivo, ainda mais quando já estava
atravessada intensamente pela biologia molecular, manipulações genéticas, implantes de
próteses, combinações de corpos com tecnologias. A partir dessa relação hibridizante
entre animais, plantas e máquinas, Haraway enxergou a possibilidade de superar a própria
condição humana e assim lidar com a criação de outros seres, de outros arranjos entre
corpos, técnicas e objetos. Pois, segundo a autora, quando nos colocamos em relação com
circuitos heterogêneos, ampliamos as nossas possibilidades de conhecimento e ação.
Imagine a si mesmo como um fluxo circulando num determinado circuito com as suas
aberturas e limites, passagens subterrâneas e translações. Enquanto a corrente ficar
circunscrita às mesmas vias, com as mesmas ligações supostamente “naturais”, a
tendência é sempre repetir uma rotina, num automatismo recorrente. Mas quando há um
desarranjo, uma anomalia, quando salta uma conexão inesperada, digo, quando se entra
em relação com o heterogêneo e díspar, quando aí se estabelece uma aliança antinatural,
com outros circuitos imprevistos, abrem-se outros caminhos, constroem-se hábitos novos
e o futuro se abre à invenção.
Podemos considerar essa concepção do corpo também como uma concepção
maquínica. Uma propriedade fundamental das máquinas é a possibilidade de serem
acopladas com outros mecanismos e outras máquinas formando outra máquina. Uma
máquina é sempre feita de um conjunto de outras máquinas menores que conseguem se
juntar a outras sem perderem as suas funções específicas, mas ganhando novas funções.
Mark Fisher, que foi um filósofo e crítico cultural que teve uma interessante
pesquisa sobre cibernética, num dos seus posts no seu blog k-punk, comentou o seguinte
sobre Norbert Wiener, um dos criadores da cibernética:

“Sua principal descoberta é o “feedback”, a retroalimentação — a capacidade de


um sistema de refletir e agir sobre a própria performance. [...] toda questão da
cibernética é que não existem coisas ‘mais cibernéticas’ que outras. Só existem sistemas
com mais ou menos feedback, e diferentes tipos de feedback.
[...] Todos os organismos são já cibernéticos. O que importa é a organização
geral das partes. As partes operam ou como “órgãos” hierarquicamente organizados e
com funções específicas numa interioridade cibernegativamente construída ou operam
como potências desterritorializantes, forçando esse interior na direção do Fora, do
exterior?”

Podemos entender uma construção cibernegativa como o processo pelo qual um


sistema se diferencia do entorno estabelecendo limites, demarcando fronteiras, e voltando
para si mesmo, produzindo uma interioridade, o que pode ser característico de um sistema
autopoiético. Quando para Fisher o que importa é a capacidade do sistema se desenvolver
a partir das relações que consegue estabelecer com o que lhe é exterior, num processo
sympoiético.
Para pensar como estamos inseridos em redes que determinam nossos hábitos e
reações, imagine que toda as coisas ao nosso redor guardem uma íntima relação mútua
entre elas e funcionassem empurrando umas às outras e nós mal soubéssemos que estamos
acoplados nessa engrenagem e somos arrastados por ela como o personagem de Chaplin
em Tempos Modernos e seus problemas de TOC. Fisher se dedicou ao problema de liberar
o corpo dessas terminações nos ligam a um determinado sistema e seu ciclo de repetições.
O problema da liberdade aparece em sua obra não tanto como um confronto com
restrições e constrangimentos externos à subjetividade, mas como problema imbricado
nos próprios modos de funcionamento do corpo, na capacidade de conseguir escapar a
um ciclo de repetições, hábitos e vícios que condicionam a capacidade de agir. Numa
concepção cibernética do corpo não há mais um Eu delimitado pela sua consciência de
si, mas um conjunto de conexões em que estamos inseridos e que geram relações de
causalidade e determinação recíproca, e é nisto que devemos refletir e agir para aumentar
nossa liberdade.
Dito tudo isto, gostaria de abordar o problema da inteligência artificial, que parece
uma espécie de tecnovírus vindo do futuro, que invade a nossa realidade e nosso tempo
causando algumas perturbações, como no filme The Terminator. Algo interessante de
observar nestes filmes distópicos de ficção científica é que a inteligência artificial é
sempre apresentada em oposição aos seus criadores humanos. A máquina é apresentada
como o oposto do humano. Porém, algo curioso que percebi quando estava pesquisando
algumas coisas sobre inteligência artificial para preparar essa apresentação, é que o modo
como a inteligência artificial é apresentada por alguns desenvolvedores, como por
exemplo o finlandês Harri Valpola, me fazia pensar mais sobre mim mesmo e meu
próprio processo de conhecimento, do que sobre a inteligência artificial em si. A
explicação do modo de funcionamento da inteligência artificial me fazia entender minhas
próprias capacidades cognitivas enquanto humano.
Isto me trazia uma perspectiva sobre a minha própria natureza humana como algo
que também pode ser produzido. Me fez pensar sobre a possibilidade de técnicas de si
que possibilitem a otimização da minha própria inteligência. Isto poderia então
desencadear um processo de artificialização e desnaturalização do que nós somos,
borrando as fronteiras entre natural e artificial, humano e máquina. É necessário pensar
isto para além dessas oposições porque a partir daí é possível perceber a existência de
todos esses seres e objetos ao nosso redor como um conjunto de conexões, diferentes
sistemas interagindo entre si, sistemas orgânicos e inorgânicos, vivos e não-vivos, que
funcionam de forma conectada.
Sendo a inteligência uma faculdade que tem uma disposição fundamental de
resolver problemas, principalmente os problemas de ordem prática, no sentido
matemático e lógico, uma inteligência acostumada a objetos que são exteriores entre si,
que são especializados e geométricos, digo, é possível não perceber a inteligência
artificial como algo oposto ao humano que vai eliminar esse humano e os seus limites
biológicos mas como algo que funciona em conexão e interação com o humano, com o
qual nos acoplamos, suplementando nossa inteligência e otimizando sua capacidade de
resolver problemas. Com isto podemos ter um conceito não mais subjetivo da
inteligência, como algo essencial a um sujeito, ancorada num sujeito, mas um conceito
cibernético de uma inteligência que funciona em rede, de modo sympoiético. Um sistema
multiagente de inteligência distribuída do qual nós também fazemos parte.

Referências bibliográficas

ASHBY, W. Ross. Introdução à Cibernética. São Paulo: Editora Perspectiva, 1970.

DEMPSTER, Beth. Sympoietic and autopoietic systems: A new distinction for self-
organizing systems. In: Proceedings of the World Congress of the Systems Sciences and
ISSS 2000, J.K. Allen and J. Wilby (eds.). Presented at the International Society for
Systems Studies Annual Conference, Toronto, Canada, July 2000.

FISHER, Mark. Spinoza, K-punk, Neuropunk. In: http://k-


punk.abstractdynamics.org/archives/003875.html. Tradução disponível em:
https://medium.com/@ababeladomundo/ser-espinosista-%C3%A9-ao-mesmo-tempo-
coisa-mais-f%C3%A1cil-e-a-mais-dif%C3%ADcil-do-mundo-9a9a1db3da1d

HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista


no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do ciborgue: as
vertigens do pós-humano.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, 2. Ed.

HARAWAY, Donna. Staying with the trouble. Durham: Duke University Press, 2016.

Você também pode gostar