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No texto A constelação da esquerda brasileira nos anos 1960 e 1970, Marcelo Ridenti
traça uma longa descrição dos movimentos de esquerda que havia antes do Golpe de 1964 e a
reestruturação que sofre a esquerda após o Golpe de 1964. Descreva como foi essa
reestruturação, como funcionavam esses grupos, suas ações práticas, dilemas e dificuldades em
alcançarem a revolução almejada.
O golpe civil-militar e a derrota sem resistência das forças ditas progressistas em 1964
marcaram profundamente ospartidos e movimentos de esquerda brasileiros. Os nacionalistas, a
POLOP e outros grupos, que já advertiam para anecessidade de resistência armada a um golpe de
direita, praticamente nada fizeram para levar adiante a resistência, enquantoo PCB e outras
forças reformistas assistiam perplexos à demolição de seus ideais. Logo se faria sentir sobre o
conjunto daesquerda o "terremoto" de 1964, com a dispersão da maior parte das forças populares
que começavam a adentrar na cenapolítica. Era hora de "autocrítica", de questionar os "erros"
que teriam levado à derrota das esquerdas em 1964.Paralelamente, eclodia uma contestação
internacional ao modelo tradicional de atuação e à organização das esquerdas, quenão se
revelavam capazes de dar conta das contradições das sociedades de classes contemporâneas,
sequer aparentemente,num processo que culminou com manifestações libertárias em todo o
mundo no ano de 1968. Nesse clima de contestaçãonacional e internacional, com o fracasso das
esquerdas brasileiras em 1964, ocorreram sangrias orgânicas irreparáveis nospartidos e
movimentos clandestinos atuantes, sobretudo no PCB, principal força das fileiras derrotadas.
As divergências em torno desses três grandes temas no interior das esquerdas tinham
como paralelo indissociável astransformações pelas quais passava a sociedade brasileira no
período. Com o golpe de 1964, reafirmado pelo AI-5 no final de1968, instaurava-se a
modernização conservadora da economia, concentradora de riquezas e considerada pelas
classesdirigentes a saída viável para superar a crise vivida em meados da década de 1960. A
política econômica adotada tinha comocontrapartida necessária a total submissão do trabalho aos
ditames do capital, o que implicou a repressão ou odesmantelamento das organizações dos
trabalhadores, como sindicatos combativos e partidos clandestinos. Já apontamos queas
esquerdas políticas ou sindicais, menos ou mais moderadas, foram vencidas em 1964 sem
resistência. Enfrentaram profundacrise de identidade, já sem contar com muitas de suas bases,
principalmente de trabalhadores, afastados por desilusão ou pelaferoz repressão. Entre 1964 e
1968, reconstituiu-se lentamente uma parcela dos movimentos sociais; por exemplo, 1968assistiu
a greves de bancários, operários e outras categorias, sendo o movimento estudantil o que mais
amplamente mobilizouse. A opção de uma parte da esquerda brasileira pelas armas deu-se nesse
contexto social, agitado, ainda, pelas manifestaçõeslibertárias em todo o mundo, da guerrilha do
Che na Bolívia à Primavera de Praga, do Maio de 68 na França à Guerra doVietnã, da
contracultura à Revolução Cultural Chinesa.
A primeira grande coordenada divisora de posições no seio das esquerdas em geral, e das
armadas em particular, referese ao caráter atribuído à programada revolução brasileira. A versão
mais tradicional e difundida a respeito ainda era, emmeados dos anos 1960, aquela do PCB, que
seguia a análise de 1928 do VI Congresso da 111 Internacional Comunista.Previa-se a revolução
em duas etapas, a primeira das quais deveria ser "burguesa", ou de "libertação nacional".
Congregandouma somatória de classes sociais progressistas, unidas para desenvolver as forças
produtivas, a revolução burguesaimplicaria superar os entraves impostos ao desenvolvimento
nacional pelas relações feudais no campo e pela presença doimperialismo na economia. Muitas
organizações que pegaram em armas mantiveram com poucas alterações esse esquemaanalítico,
como foi o caso da ALN e, também, dos grupos nacionalistas, como MNR e RAN, que,
naturalmente, eramfavoráveis a uma luta de libertação nacional.
Como se vê, não havia tanta distância entre os dois modelos de revolução; ambos
colocavam o "imperialismo" e o"latifúndio" como fatores de estagnação da economia, como
bloqueio ao desenvolvimento das forças produtivas (o mesmovale para as diferentes teses
intermediárias entre o modelo de revolução burguesa nacional e o de revolução
socialistaimediata, teses que propunham a criação de um "governo popular-revolucionário" para
superar a "crise brasileira"). De certaforma, a visão dos "socialistas" era um passo quase natural
do raciocínio dos "nacionais-democráticos", acrescentando apenasque latifundiários e
imperialistas, inibitórios do progresso social, estariam associados a uma burguesia deles
dependente.Logo, para superar o entrave ao desenvolvimento das forças produtivas, cumpriria
combater a própria burguesia, estando arevolução não mais na sua etapa democrático-burguesa, e
sim na socialista.
Para a ALN, num primeiro momento da revolução seriam necessários vários grupos
armados para abalar o aparelho"burocrático-militar" do Estado brasileiro. No final desse
processo, seria constituída a "indispensável liderança da revoluçãobrasileira". Admitia-se a
vanguarda de uma organização revolucionária num segundo momento do processo. E, no fundo,
aALN pretendia-se, ao menos, o embrião dessa futura vanguarda, por considerar-se a
organização armada mais capacitada. Se"a ação faz a vanguarda", esta deveria ser naturalmente
composta por aqueles que desempenhassem as ações com maioreficiência; no caso, a ALN:
"Ainda há quem prossiga na disputa de liderança, mas agora já se luta de armas na mão, e
éimpossível pretender exercer qualquer papel de líder apelando para discussões como as que
geralmente eram propostas, emtorno de papéis escritos, programas subjetivos e colocações
doutrinárias desligadas da realidade social brasileira"(Marighella, 1974, p.36). Para exercer a
liderança não bastariam discussões teóricas; cabia tomar as armas nas mãos, e quemo fizesse
com maior maestria conduziria o processo revolucionário, mostrando, na prática, sua verdade.
Subentende-se que aprópria ALN seria tal liderança, como organização relativamente grande,
bem-equipada e ativa militarmente, ereconhecidamente eficaz no tempo de Marighella.
Mantinha-se a ideia de uma vanguarda condutora da revolução. Seguindo aposição de Fidel
Castro, também defendida por Debray (s.d., p.77, 88), já em meados de 1967 Marighella
declarava em Cubaque "a guerrilha é - em última análise - a própria vanguarda revolucionária"
(1984, p.48). O discurso não estava centrado nomovimento da sociedade, mas na dinâmica da
vanguarda, que, no caso, deveria mostrar na prática armada cotidiana o acertode suas
concepções, sua condição de liderança revolucionária.
Uma terceira coordenada divisora das esquerdas dizia respeito às formas de luta
preconizadas para o combate à ditaduradentro do processo revolucionário. O PCB continuaria
mantendo, depois de 1964, a proposição da via pacífica para osocialismo. Aqueles que
advogavam como principal forma de luta a via armada divergiam sobre a maneira pela qual
eladeveria ocorrer. Dentre os partidários da luta armada, só o PORT prendeu-se exclusivamente à
tradição bolchevique deinsurreição das massas trabalhadoras, ficando imune às influências das
ideias guerrilheiras. O PCd B e a AP, proponentes da"guerra popular prolongada" com o "cerco
das cidades pelo campo", abstiveram-se de ações armadas nas cidades. Entre asorganizações
guerrilheiras que entraram na dinâmica das ações armadas urbanas também havia divergências
sobre o tipo deluta a ser travado. No tocante à constituição da guerrilha rural, dois eram os polos
teóricos que atraíam os grupos de esquerda:o guevarismo e o maoísmo, com várias posições
híbridas entre eles.
Existiam outras diferenças entre os proponentes da guerrilha rural: por exemplo, alguns
designavam as massas do campoque dariam base à guerrilha como "trabalhadores rurais", outros
como "campesinato". Assim, a ALA, herdeira da tradiçãoanalítica do PCB e do PCdoB,
acreditava em restos feudais no campo, de forma que os deserdados da terra que viviam nazona
rural seriam camponeses, ao passo que, na visão de grupos como o POC, não existiria um
campesinato predominante nocampo, onde as relações sociais já seriam subordinadas à lógica do
capitalismo. Havia também discordâncias sobre o pesodas massas urbanas e rurais no desenrolar
da guerrilha, maior para uns (ALA, POC, PRT, VAR, PCBR, MR-8), menor paraoutros (VPR,
ALN, REDE etc.). Dentre os que valorizavam o papel das massas, alguns privilegiavam o das
urbanas, outros odas rurais. Por exemplo, da perspectiva do POC, na trilha da POLOP, o campo
seria o local privilegiado de lutaprincipalmente por razões militares, pois ali as forças repressivas
seriam mais frágeis, o que permitiria a implantação de umpequeno grupo guerrilheiro, que
cresceria à medida que fosse obtendo suas primeiras vitórias. Contudo, um documento doPOC de
junho de 1968 era claro quanto à principal força a impulsionar a revolução: "O que nos confere
uma posição únicanas esquerdas é o papel que atribuímos à classe operária no processo
revolucionário do país" (Reis Filho; Sá, 1985, p.181).O projeto da POLOP, e depois o do POC,
era um misto de guerrilha rural e insurreição urbana, como de certo modo nãodeixavam de ser as
propostas de todos os grupos armados, pendendo mais ou para o "rural" ou para o "urbano".
Depois do fechamento político imposto pelo AI-5, no final de 1968, com as ondas de
prisões, com o cerco policial aosguerrilheiros e com a imersão geral das esquerdas na "luta
armada" e o distanciamento da implantação da almejada guerrilharural, as teses sobre o papel das
ações armadas urbanas foram deixando de vinculá-las apenas à preparação da guerrilha
nocampo. Começaram a ocorrer ações propagandísticas da violência revolucionária. Disse-nos
Renato Tapajós que, para aALA, a guerrilha urbana tinha também "uma função de agitação e
propaganda. Acreditávamos que pelas ações armadas nascidades conseguiríamos levar a notícia
da revolução ao proletariado e a outras camadas urbanas, por exemplo, colocando noar
manifestos revolucionários através da tomada de rádios, fazendo panfletagem nas portas de
fábricas por intermédio degrupos armados; isso por necessidade de autodefesa e, também, para
mostrar aos operários que havia gente empunhandoarmas"
Havia, antes de mais nada, uma série de pressupostos teóricos gerais compartilhados
pelas esquerdas. Sob determinadoponto de vista, a economia brasileira vivia um processo
irreversível de estagnação, sob a ditadura militar. Não haveriaalternativa de desenvolvimento
enquanto o país estivesse submetido ao imperialismo, cuja marca seria garantida pela forçabruta
do regime militar, único caminho de manutenção do sistema capitalista (ou imperialista) em
decomposição. Colocava-seentão, como tarefa central, derrubar a ditadura e expulsar os
imperialistas, que, aliados a setores das classes dirigentes locais,entravariam o desenvolvimento
das forças produtivas. Nessa medida, estariam dadas as condições objetivas para a
revoluçãobrasileira, faltando apenas as subjetivas. Isso implicaria a ruptura com o "imobilismo"
do PCB e de outras organizações deesquerda até 1964. Seria necessário o surgimento de uma
vanguarda de novo tipo para liderar a revolução, organizando,inicialmente, a guerrilha rural, num
processo de luta armada relativamente longo que incluiria várias etapas, contando com
amobilização das massas trabalhadoras rurais e urbanas. Ações armadas nas cidades eram
admitidas com o propósito de treinarguerrilheiros e de levantar fundos para iniciar a guerrilha
rural. Com o tempo, as ações urbanas seriam teorizadas tambémcomo forma de propaganda
armada da revolução e, implicitamente, como meio de sustentar o funcionamento clandestino
dasdiversas organizações.
Além dos pressupostos teóricos comuns inquestionáveis, as organizações armadas eram fruto de
um mesmo processohistórico, de uma conjuntura específica, marcada por um golpe de Estado
que não encontrou resistência, seguido do adventodo regime militar, implementando medidas
repressivas e de reorganização social, política e econômica que alteraram asociedade brasileira,
num processo que se convencionou chamar de "modernização conservadora". Não só a
sociedadebrasileira, mas o mundo inteiro polarizava-se, no final dos anos 1960, em torno de
posições revolucionárias e conservadoras.Surgia em toda parte uma "nova esquerda", que
procurava romper as amarras teóricas e práticas impostas pelos partidoscomunistas tradicionais,
os quais já não se mostravam capazes de dar conta das rápidas transformações sociais. É
umaconstante, nas entrevistas obtidas, os entrevistados chamarem a atenção para o fato de que a
"luta armada" brasileira nos anos1960 só pode ser entendida naquele momento histórico preciso,
o que nem sempre teria ficado claro em alguns livros dememórias de ex-guerrilheiros que, ao ver
o passado com os olhos de hoje, teriam desfigurado e tornado incompreensível amobilização de
tantas vidas naqueles projetos revolucionários.