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SUMÁRIO

I- Considerações gerais........................ 2
1- Conceito de exegese................................. 2
2- Importância da exegese.............................. 2
3- Perigos da exegese.................................. 3
II-A leitura do Antigo Testamento.............. 4
1- Os níveis de leitura................................ 4
2- Dificuldades na leitura do Antigo Testamento........ 5
3- Erros hermenêuticos freqüentes...................... 5
4- Tradução e uso de traduções......................... 8
III – Os textos “originais”.................... 12
1- O texto do Antigo Testamento........................ 12
2- O texto massorético................................. 15
3- O pentateuco samaritano............................. 24
4- Qumran.............................................. 24
5- O Antigo Testamento em grego........................ 29
IV- Crítica textual do Antigo Testamento....... 34
1- Texto "original".................................... 34
2- A edição crítica da Bíblia.......................... 34
3- Trabalhando com uma edição crítica.................. 35
4- Considerações prévias............................... 38
5- Crítica textual..................................... 39
V- A delimitação do texto...................... 47
1- Os limites do texto................................. 47
2- Critérios para a delimitação do texto............... 48
VI – Metodologia da exegese do A.T............. 54
1- Diacronia........................................... 54
2- Sincronia........................................... 66
3- Hermenêutica e pragmática........................... 85
4- A leitura fundamentalista...........................100
VII- A prática exegética.......................104
1- a exegese e o texto original........................104
2- O texto.............................................104
3- A tradução..........................................112
4- O contexto histórico................................116
5- O contexto literário................................119
6- A forma.............................................121
7- A estrutura.........................................123
8- Os dados gramaticais................................126
9- Dados lexicais......................................133
10- Contexto bíblico...................................136
11- Teologia...........................................139
12- Literatura secundária..............................141
13- Aplicação..........................................143
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VIII- Referências Bibliográficas...............146


I- CONSIDERAÇÕES GERAIS
1- Conceito de Exegese
D. A. CARSON

Exegese é a interpretação crítica de algum


texto. A exegese bíblica está relacionada à real
interpretação das Escrituras. Uma interpretação
critica deve possuir justificação lexical,
gramatical, cultural, teológica, histórica,
geográfica, etc.
A exegese crítica é contrária a opiniões
pessoais, reivindicações de autoridades
ilegítimas, interpretações arbitrárias e pontos de
vista especulativos. Nem mesmo a piedade e o dom
do Espírito Santo garantem interpretações
infalíveis.
Há uma necessidade de se fazer uma disjunção
entre exegese e hermenêutica. Muito embora as duas
disciplinas estejam intimamente relacionadas, a
hermenêutica diz respeito à natureza do processo
interpretativo (técnicas, pressuposições, etc.). A
exegese está relacionada à real interpretação do
texto. A exegese diz: "esta passagem significa
isto". Nesse sentido, a hermenêutica não tem um
fim em si mesma, ela serve à exegese.
Por último é preciso lembrar que um
"distanciamento" para o exercício da exegese é de
fundamental importância.

2- A Importância da Exegese
A exegese é importante para:
* Interpretar corretamente a Palavra de Deus.
* Identificar as falácias exegéticas, ou seja,
erros de interpretação correntes.
* Rejeitar justificativas infundadas.
* Avaliar interpretações tradicionais de
terceiros.
* Enfrentar aos que se opõem à autoridade das
Escrituras, alegando problemas de ordem
hermenêutica ou exegética.
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3- Os perigos da exegese
São perigos da exegese:
* O negativismo contínuo, ou seja, a constante
procura por erros de outros.
* Relacionado ao perigo anterior, o sentimento de
superioridade espiritual é outro perigo que
ronda o exegeta.
* Temor de não estar interpretando corretamente as
Escrituras.
* Conclusões contrárias às suas convicções
pessoais.
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II - A LEITURA DO ANTIGO TESTAMENTO


1- Os vários níveis de leitura
CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA

A competência de uma leitura depende


diretamente da capacidade que o leitor tem de
formar um quadro abrangente dos diversos fatores
que concorreram para a formação do texto.
Dependendo da intenção da leitura, nossa
interpretação do texto bíblico e nossa
sensibilidade ao que ele nos sugere pode variar.
Silva aponta os seguintes níveis de leitura:
* Oração - busca no texto bíblico respostas para
nossos anseios e luz para as decisões. Serve como
instrumento para falarmos com Deus.

* Liturgia - esse nível requer o conhecimento dos


fatos bíblicos. Está ligado à reflexão e tem como
objetivo relacionar o texto à nossa situação
presente ou à situação do povo de Deus.

* Ensino - nesse nível há necessidade de


conhecimento doutrinário, além dos fatos. Ele
serve para solidificar nossa fé e direcionar nosso
intelecto e vontade.
* Teologia - o objetivo desse nível é articular
uma reflexão mais racional. Requer o conhecimento
da Teologia dos autores bíblicos e da reflexão
teológica posterior.

* Exegese - busca-se nesse nível, compreender o


texto bíblico em si mesmo: as idéias, as
intenções, a forma literária de um texto
específico e suas relações formais com outros
textos. Para tanto, utiliza-se métodos,
pressupostos e critérios altamente elaborados ao
longo de séculos. Enquanto nos níveis anteriores a
importância se dá na síntese, na exegese a
preocupação está na análise.
5

2- As dificuldades objetivas na leitura do


Antigo Testamento
JEAN LOUIS SKA

Ska resume as questões mais discutidas pelos


leitores do Antigo Testamento a três problemas
principais: a moralidade das grandes figuras
bíblicas, a dureza manifestada por Deus em algumas
narrativas e a insuficiente teologia referente ao
além. Ele, após analisar o caráter dessas
dificuldades, as propostas de interpretação
possíveis e expor uma tentativa de resposta às
interrogações que surgem dos textos, conclui que
os relatos do Antigo Testamento não respondem
inteiramente as nossas perguntas, não oferecem
produtos acabados, mas oferecem pistas apropriadas
para partir em busca das respostas, colocam em
nossas mãos instrumentos necessários para que
forjemos no laboratório da leitura uma nova
experiência de fé.

3- Lista de erros hermenêuticos freqüentes


DOUGLAS STUART

a)- Personalização: Assumir que alguma ou todas as


partes da Bíblia aplicam-se a você de uma forma
que não se aplicam a ninguém mais. ("O que a mula
de Balaão diz a mim é que eu falo demais.") Erro
também conhecido como individualização.

b)- Universalização: Assumir que uma coisa única


ou incomum na Bíblia aplica-se a todos igualmente.
('Todos nós temos nossos Getsêmanis.") Erro também
conhecido como generalização.

c)- Espiritualização: Assumir que eventos e


fatores têm sua aplicação concreta em alguma
verdade religiosa além do que eles realmente
dizem. ("A adorável estrutura do templo de
Jerusalém nos encoraja a ter nossa própria vida
bem ordenada.")
6

d)- Moralização: Assumir que princípios para a


vida diária podem ser derivados de qualquer
passagem. ("Podemos aprender muito sobre criação
de filhos observando como o pai do filho pródigo
tratou com seu filho teimoso.") ("Os egípcios se
afogaram no mar Vermelho porque vacilaram. Você
não pode vacilar e ainda esperar ter sucesso nesta
vida.")

e)- Exemplarização: Assumir que porque alguém fez


alguma coisa na Bíblia, isso seja um exemplo para
nós seguirmos. ("Para aprender como contar
histórias no sermão, vamos examinar como Jesus
contava histórias.") ("Vejamos como Jesus chamou
os discípulos e que isso seja um modelo para nosso
evangelismo.") ("O que podemos aprender sobre
adversidade a partir de como os israelitas
suportaram seu tempo de escravidão no Egito?")

f)- Alegorização: Assumir que os componentes de


uma passagem têm significado somente como símbolos
de verdades cristãs. ("O 'amado' é Cristo; a
'amada' é a Igreja; as 'filhas de Jerusalém' são
as Escrituras.")

g)- Tipologização: Assumir que algumas personagens


ou coisas concretas são mencionadas para
prenunciar outras personagens ou coisas concretas
e mais importantes. ("Josué tinha o mesmo nome de
Jesus, como um conquistador ele aponta para 'O
Conquistador'.") ("Esdras veio ao seu povo de
longe; entrou em Jerusalém montado em um jumento;
orou nas ocasiões de crise; ensinou o que para
muitos era uma nova lei; purificou a nação etc.
Sua vida aponta diretamente para o Salvador.")

h)- Falácia da raiz: Assumir que o/um significado


original de uma palavra acompanha seu uso. ("Ser
santo significa ser separado.") [cf. amor =
sentimento/amante = parceiro sexual/amador = não-
profissional]

i)- Confusão de gênero: Assumir que as regras de


interpretação para um gênero literário aplicam-se
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a outro. ("A parábola de Jesus dos trabalhadores


na vinha contém sete perspectivas úteis sobre o
valor do trabalho duro.") ("O salmo 23 nos ensina
como cuidar daqueles que estão sob nossa
autoridade.") ("De acordo com Deuteronômio 33, se
nós confiamos em Deus nunca teremos falta de
nada.") ("Mas Provérbios promete que se honrarmos
a Deus seremos bem quistos por todos!")

j)- Transferência de totalidade: Assumir que todos


os significados possíveis de uma palavra ou frase
a acompanham sempre que ela é usada, ("cabeça
[kephale], é claro, significa 'fonte' aqui, assim
como em uma referência de Xenofonte à fonte de um
rio.")

k)- Argumento a partir do silêncio: Assumir que


tudo que é relevante para uma questão é mencionado
na Bíblia toda vez que a questão é mencionada.
("Note que Paulo não condena o sexo pré-nupcial em
nenhum lugar em suas cartas.")

l)- Argumento a partir da autoridade: Assumir que


as opiniões de "especialistas" ou de grande parte
deles deve ser correta. ("Smith, que dedicou sua
vida ao estudo de Rute, deve estar correto...")
("Já que isso é sustentado por poucos eruditos,
não parece defensável.")

m)- Confusão Israel—Igreja: Assumir que aquilo que


se aplica ao Israel bíblico também se aplica à
igreja. ("Podemos aprender como disciplinar
crianças impertinentes a partir dessa lei sobre
apedrejar filhos desobedientes.")

n)- Confusão Israel—nações modernas: Assumir que


coisas que se aplicam ao Israel bíblico também se
aplicam às nações modernas ("De acordo com
2Crônicas 7.14, se orarmos e nos arrependermos
Deus sarará o Brasil.")

o)- Confusão Israel bíblico—Israel atual: Assumir


que o Estado secular atual chamado de Israel no
Oriente Médio é o Israel mencionado na Bíblia.
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("Como podemos apoiar os sauditas se eles são


inimigos do povo escolhido de Deus?")

p)- Falsa combinação: Juntar duas passagens ou


afirmações de forma a produzir uma conclusão
híbrida. ("Em Mateus 25 Jesus chama o inferno de
trevas exteriores e também de fogo, então o fogo
do inferno deve ser algum tipo de fogo divino
especial que não emite nenhuma luz. E possível
senti-lo mas não vê-lo.")

q)- Confusão de figura de linguagem: Incapacidade


de entender as muitas expressões não-literais na
linguagem humana, especialmente as metáforas.
("Imagine a massiva escala de criação de gado
leiteiro e apicultura cananitas que levou Canaã a
ser chamada de terra que mana leite e mel.")

r)- Equívoco: Confundir um termo ou conceito com


outro termo ou conceito não entendendo assim seu
significado. ("I Tessalonisenses 5 diz para
'abster-se de toda aparência do mal' então não
podemos nem pedir informações sobre endereços para
uma prostituta.")

s)- Falsa pressuposição: Basear todo ou parte de


um argumento ou conclusão sobre pressuposições
incorretas. ("A mente hebraica pensava de forma
concreta; a mente grega era abstrata. É por isso
que o AT tem mais rituais e o NT mais símbolos.")

4- Tradução e uso de traduções


CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA

Caso trabalhemos com as línguas bíblicas


(grego e hebraico), antes de qualquer procedimento
exegético, devemos traduzir o texto que estamos
por analisar. O resultado deste ato é a primeira
objetivação de nosso esforço em compreender o
texto. Nenhuma tradução substitui o original, mas
quando se traduz, já se fazem opções e
interpretações, que podem, é claro, ser
modificadas ao longo do trabalho. Comparar a nossa
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versão com traduções já existentes pode ser útil


para verificarmos a reta compreensão do original,
ou como auxilio para evidenciar e superar
eventuais impasses.
Se não estivermos capacitados para trabalhar
com os textos em hebraico e em grego, a comparação
de diversas traduções pode nos ajudar a perceber
as dificuldades presentes na língua original. E,
ainda que nosso objetivo seja preparar uma
homilia, algum tipo de artigo ou comentário, é
aconselhável tomar como base a tradução mais fiel
e literal (se não for possível no original).
Jamais partamos, porém, de uma paráfrase
popular(ou tradução do lecionário ou folheto),
ainda que depois esta seja usada na celebração ou
na catequese.
Esta última recomendação deriva do Seguinte
fato: há dois tipos de tradução, a saber. (1)
formal ou literal e (2) funcional ou dinâmica.
Compreendamos a problemática de base: qualquer
tradução deve contemplar dois elementos, o
significado da frase e sua forma (ou expressão)
lingüística.
A tradução formal preocupa-se em respeitar a
forma lingüística do original. Por isso, sem
deixar, de ser compreensível, renuncia à
compreensão imediata, para manter a fidelidade ao
original. O resultado é uma versão mais pesada e
mais cheia de redundâncias do que a tradução
funcional. Por isso, algumas vezes articula as
idéias de maneira pouco comum ao padrão coloquial
da língua de chegada. Isso não significa que ela
deva ser incompreensível.
Aliás, toda versão formal deve ter a mesma
força que o original tem, a fim de produzir os
mesmos efeitos e as mesmas emoções no leitor. Com
efeito, versar palavra por palavra do Hebraico (ou
do grego) para o português, sem levar em
consideração as particularidades de cada língua e
o sentido do texto em seu conjunto, não significa
fazer uma tradução formal. É apenas "escrever"
hebraico (ou grego) com palavras portuguesas.
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Um exemplo curioso do texto hebraico: ISm


25,22.

Jysi)y hkov4 dv9dA ybey4xol; Myhilox<


hW,f3y1-hKo
Rq,Boha-dfa Ol-rw,x3-lKAmi ryxiw;xa-Mxi
:ryqiB; NyTiw;ma
Literalmente seria: "Assim faça Deus aos
inimigos de Davi e assim continue, se eu deixar,
de tudo o que é dele, até amanhã, UM 'MIJADOR' DE
MURO".
Risadas à parte, e descontando o neologismo, o
problema reside exatamente na expressão
ryqiB; NyTiw;ma, literalmente "mijador de
muro, aquele que urina no muro". Trata-se de um
eufemismo para "varão, macho", seja ele um homem
ou um cão. Uma tradução que optasse por "varão" e
apresentasse a seguinte versão "assim aja Deus com
os inimigos de Davi e o faça ainda mais, se eu
deixar com vida, até amanhã, algo de tudo o que
pertence a ele, mesmo um só VARÃO", não deixaria
de ser considerada formal. No entanto, seria
apropriado que, ao longo de toda a tradução, fosse
sempre utilizado o mesmo vocabulário.
Mas isso nem sempre acontece. A Bíblia -
Tradução Ecumênica, mais conhecida por TEB (sigla
para Tradução Ecumênica da Bíblia), uma tradução
considerada formal, infelizmente, apresenta
inconstâncias. Em ISm 25,22.34, traz literalmente
"o que urina contra o muro". Contrariamente, em
IRs 14,10; 16,11; 21,21 e 2Rs 9,8, traz "varão". A
nota de ISm 25,22 explica que o sentido é incerto:
Seria um cão, um homem ou um menino? Além disso,
notemos que todos esses textos falam de exterminar
a família de alguém. Portanto, nada impediria que
os editores da TEB tivessem adotado o termo
"varão" para traduzir ryqiB; NyTiw;ma [o que
urina no muro} e, mantendo a nota explicativa de l
11

Sm 25,22, nos demais textos, remeter a esta


primeira ocorrência da expressão.
Quase todas as edições brasileiras podem ser
consideradas formais. Algumas, é claro, com um
cuidado maior do que as outras quanto ao
vocabulário da versão. São claramente eruditas A
Bíblia de Jerusalém e a TEB. Esta última adota,
para os nomes próprios, a transliteração dos menos
conhecidos e a forma abrasileirada para os mais
usados. A Bíblia Sagrada traduzida por João
Ferreira de Almeida possui duas edições em nossa
língua: a publicada em Portugal e a publicada no
Brasil. Destas, a edição portuguesa é mais formal
que a edição brasileira.
Por sua vez, a tradução funcional visa superar
a dificuldades que o leitor hodierno tem em
compreender a Sagrada Escritura. Para eliminar as
tensões, modifica as estruturas frasais, utiliza
palavras mais simples e articula as idéias de
forma a tornar o texto imediatamente
compreensível. Tanto quanto a formal, a tradução
funcional busca reproduzir, na língua de chegada,
a força do texto na língua original (qual a
expressão correspondente e que produz os mesmos
efeitos), mas sem a preocupação de manter a forma
do texto. Tal é o caso da Bíblia - Edição
Pastoral, da Bíblia na Linguagem de Hoje, da
Bíblia Viva e da Bíblia Fácil.
Só para termos uma idéia das transformações de
forma e de sentido que operam as traduções
funcionais, o mesmo texto usado como exemplo
anteriormente, l Sm 25,22, foi assim versado na
Bíblia - Edição Pastoral: "que Deus castigue Davi,
se até amanhã cedo eu deixar vivo qualquer um de
Nabal que urina na parede". Vemos que a
preocupação com o entendimento imediato fez surgir
o nome "Nabal", que não aparece no hebraico. Além
disso, parece que a ameaça de extermínio refere-se
tão-só aos "mijadores" de muro.
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III – OS TEXTOS “ORIGINAIS”


1- O texto do Antigo Testamento
STEPHEN PISANO

O texto do Antigo Testamento transmitiu-se ao


longo de séculos sob a forma de manuscritos. É
natural, portanto, que durante esse longo período
de transmissão tenham-se introduzido erros de
transcrição. O texto também foi objeto, antes do
séc. I de nossa era, de mudanças e acréscimos que
espelhavam diversas tradições. Sua fluidez sugere
que a preocupação de conservar o texto numa única
forma pura passou a ser valorizada somente por
volta do séc. I. O resultado dessa outra
mentalidade é que existem diversas formas do
texto, que se evidenciam, por exemplo, no texto
massorético, na tradução grega dos LXX e no
Pentateuco Samaritano.

1.1- Problemas introdutórios

1.1.1- A crítica textual em geral


Pode-se atribuir à crítica textual dupla
finalidade: restaurar o texto danificado para
chegar à lição do próprio autor, ou pelo menos à
que mais se lhe aproxima, e determinar a história
da transmissão e do desenvolvimento do texto
escrito de que temos várias formas hoje (trata-se
aqui de textos não necessariamente danificados,
mas cuja forma sofreu mudanças ao longo da
história).
O texto hebraico do Antigo Testamento conheceu
longa história evolutiva. Aquele que se tornou o
texto "oficial" pelos fins do séc. I de nossa era
é o "texto massorético" (TM), fruto do trabalho
dos massoretas e de seus antepassados. Os mesmos
massoretas, trabalhando do século VI ao séc. X
d.C. para estabelecer os pontos vocálicos e as
diversas observações da masorah, eram herdeiros de
um texto hebraico já em uso antes de seu tempo. De
seu tempo em diante, o texto permaneceu estável,
mas o que se tornou o texto massorético era, ao
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que tudo indica, um texto escolhido entre outros.


Uma parte de nosso trabalho é então determinar a
história do texto antes do período dos massoretas.
E possível fazê-lo valendo-se dos testemunhos do
texto no hebraico e nas várias traduções antigas.
Por meio desses testemunhos pode-se fazer a
pergunta sobre a relação entre o TM e a forma
original dos escritos do AT.
Analisando a história do texto do AT, podem-se
determinar até quatro ramos que indicam formas
diversas do texto: 1) o (proto)massorético; 2) o
Pentateuco Samaritano; 3) as várias formas do
texto encontradas entre os documentos do mar Morto
(sobretudo em Qumran); 4) as traduções gregas, a
começar pela Septuaginta (= LXX), a tradução grega
feita em torno dos sécs. III e II a.C., que leva a
supor um texto hebraico de base (muitas vezes
chamado pelo termo alemão Vorlage) diverso do TM.
Entre os testemunhos de um texto
"protomassorético", além dos manuscritos
hebraicos, há traduções feitas do séc. II ao séc.
VII d.C.: os targumim, tradução aramaica baseada
no texto massorético que remonta ao séc. II d.C.,
pelo menos em sua forma oral; a versão siríaca,
iniciada por volta do séc. II d.C.; as traduções
gregas de Áquila, Símaco e Teodocião (do séc. II
d.C., ainda que a situação de Teodocião seja mais
complexa, como veremos em seguida); a versão
latina de são Jerônimo (a Vulgata), do séc. IV
d.C.; as revisões feitas na tradução grega da
Septuaginta que a aproximam do TM (por exemplo, em
parte, as Hexapla de Orígenes do séc. in d.C.,
conhecidas parcialmente pela Siro-hexaplar,
tradução siríaca da obra de Orígenes feita no séc.
VII d.C.).
O Pentateuco Samaritano conhecido hoje é o
herdeiro do texto dos samaritanos que se separaram
dos judeus no séc. IV a.C.
Em Qumran encontra-se variedade bastante
grande de formas do texto. Esses textos, que
remontam ao período que vai do séc. I d.C. ao séc.
III a.C., espelham o TM ou a Septuaginta, mas
também outras formas até agora desconhecidas.
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Quanto à Septuaginta, há traduções (por exemplo, a


Vetus latina do séc. II d.C.; a versão copta do
séc. III d.C.) que permitem às vezes tornar mais
exato nosso conhecimento do texto grego da LXX.
Os manuscritos de todas essas formas do texto
(e também de outras) indicam freqüentemente certa
influência de um texto sobre o outro, e parte do
trabalho da crítica textual é reencontrar as
lições "originais" das diversas formas acima
mencionadas, para poder, primeiro, examinar a
natureza de cada texto em particular e, depois,
determinar a história do desenvolvimento das
várias formas. Além disso, uma vez que se trata de
uma história manuscrita, ou seja, de textos
escritos à mão, é preciso ter presente a
possibilidade de erros introduzidos ali. O estudo
de todos os manuscritos disponíveis e das diversas
formas do texto pode ajudar a reparar os textos
que se suspeita estarem prejudicados.

1.1.2- Sobre as origens do texto hebraico


Não se sabe precisamente qual seja a origem do
texto hebraico do AT. Há pelo menos quatro teorias
a esse respeito, contraditórias entre si. A
primeira, que se pode chamar de teoria do "texto
único original", é proposta por P. A. de Lagarde.
Segundo esse autor, na origem havia um texto único
e todas as formas do texto existentes hoje são
desdobramentos daquele único texto original. A
segunda, a teoria dos "textos vulgares", de P.
Kahle, afirma que em vez de um texto original
havia diversos textos populares em diversas
localidades, que só foram unificados em tempo
muito posterior ao de sua formação. Uma terceira
teoria, a dos "textos locais" de W. F. Albright e
F. M. Cross, propõe que o texto talvez se tenha
desenvolvido em três regiões: Babilônia, Palestina
e Egito. Segundo essa teoria, o massorético seria
o texto lido na Babilônia, o Pentateuco Samaritano
seria da Palestina, e o da versão grega teria sido
elaborado no Egito com base em texto exportado da
Palestina para lá. Uma quarta teoria é de S.
Talmon, que sustenta que das múltiplas formas do
texto em circulação só se teriam conservado as que
15

eram próprias a determinada comunidade


sociorreligiosa.

1.1.3- Fases de desenvolvimento


É possível falar de quatro fases no
desenvolvimento do texto hebraico. A primeira
seria a da produção escrita (e oral) do texto, que
remonta aos "autores originais" ou aos "textos
originais". Já não existem "autógrafos" que seriam
testemunhos diretos dessa fase do texto. Quando
muito se pode chegar a ela apenas pela análise
literária, para tentar reconstruir os textos em
que se pensa que os testemunhos originais tenham
sofrido transformações. Uma segunda fase é a da
forma mais antiga (ou das formas mais antigas) a
que se pode remontar por meio dos testemunhos
existentes, diretos ou indiretos. Em geral é essa
a fase em que se concentra a aplicação da crítica
textual. A terceira fase é a do texto hebraico
consonântico, que se tornou normativo pelo fim do
séc. I de nossa era. Uma vez que é a forma aceita
pelos massoretas e sobre a qual eles trabalharam,
pode-se chamar essa fase de "protomassorética". A
quarta seria a do texto massorético, o texto com a
vocalização escrita e com o conjunto das
observações elaboradas pelos estudiosos do texto
(os massoretas e os soferim [escribas] antes
deles), que se encontram nos manuscritos hebraicos
a partir do séc. X d.C.

2- O texto massorético
No estudo do texto massorético (TM), convém
iniciar a exposição a partir dos estudos críticos
modernos para, depois, remontar na história de
modo a entender a natureza dos estudos feitos
sobre o texto massorético e por fim indagar sobre
suas origens e sua idade.

2.1- Período dos críticos (séc. XVI até hoje)


Depois da invenção da imprensa, um dos
primeiros livros impressos foi a Bíblia. Também o
texto hebraico foi muito cedo objeto dessa nova
invenção. A primeira Bíblia completa impressa
(editio princeps) foi publicada em 1488 no norte
16

da Itália, em Soncino, por R. Joshua. Sempre na


Itália, em Veneza, houve intensa atividade gráfica
por parte do holandês Daniel Bomberg. Em 1516-1517
ele publicou, em quatro volumes, a primeira edição
da Bíblia Rabínica, assim chamada porque traz não
só o texto bíblico mas também alguns comentários
medievais sobre o texto, por exemplo os de Rashi,
de Ibn Ezra e de Qimhi. O editor desse grande
empreendimento é conhecido pelo nome cristão que
adotou depois da conversão, Félix Pratensis.
Depois do sucesso dessa obra, Bomberg publicou uma
segunda edição dela, em 1524-1525, sob a direção
de Jacó ben Chayim. Essa edição traz não só os
comentários rabínicos mas também a masorah,
preparada por Ben Chayim segundo os manuscritos
que ele consultou. Vê-se que essa edição obteve
grande autoridade pelo fato de seu texto hebraico
permanecer em uso comum até a publicação da
terceira edição da Bíblia Hebraica de R. Kittel em
1937.
Entrementes, na Espanha, o cardeal Xismenes de
Cisneros, arcebispo de Toledo, publicou sua Bíblia
Polyglota Complutensia, reunindo vários
estudiosos, também judeus, para preparar uma
edição integral da Bíblia. Quanto ao AT, o texto
foi disposto em três colunas segundo as línguas
hebraica, grega e latina. Os seis volumes foram
preparados entre 1514 e 1517, mas por vários
motivos só se publicou a obra em 1522.
Em certo sentido o texto hebraico da
Complutense é preferível ao de Ben Chayim. Mas
eles não se deram conta de que alguns desses
manuscritos eram de proveniência babilônica e,
portanto, de outra tradição vocálica. O resultado
foi que a edição complutense trazia um texto um
tanto misto, impresso com os sinais vocálicos, mas
sem os sinais dos acentos, que os autores não
encontraram em seus manuscritos mais antigos. Ben
Chayim estava convencido de que seu texto era fiel
à tradição de Ben Asher, mas utilizava manuscritos
mais recentes que os utilizados pela Complutense e
por Félix Pratensis.
17

2.2- Debate sobre o valor das vogais no texto


massorético:
Já no séc. XVI e depois no séc. XVII discutia-
se sobre as origens das vogais no TM. Tratava-se
de discussão hermenêutico-teológica para saber:
a) a que época remontava o uso dos pontinhos para
expressar as vogais e,
b) se as vogais gozavam da mesma inspiração que
as consoantes.
Elias Levita publicou um comentário sobre a
masorah (Massoreth Ha-Massoreth [Veneza, 1538])
mostrando que nem o Talmud nem o Midrash conheciam
o sistema massorético de vocalização e assim
concluindo que os pontinhos eram posteriores
àquelas obras. Além disso, mostrava que os nomes
dos pontinhos eram de origem babilônica e aramaica
e, portanto, introduzidos depois do exílio da
Babilônia.
Johannes Buxtorf, Sr., em seu Tíberias sive
commentarius masorethicus (Basiléia, 1620), tentou
mostrar a origem divina dos pontinhos vocálicos.
Queria demonstrar que não eram invenção dos
massoretas, mas tinham a mesma autoridade divina
que as consoantes por ter sido inseridos no texto
no tempo de Ezra (séc. IV a.C.). L. Cappel
rebateu-o em sua obra, Critica sacra (Paris,
1650), sustentando que o texto hebraico devia ser
submetido a um estudo crítico análogo à crítica de
qualquer obra antiga. Servindo-se dos comentários
marginais dos massoretas e também do texto da
Septuaginta, dos Targumim e da Vulgata, tentou
mostrar a origem meramente humana desses
pontinhos. J. Buxtorf Jr. deu seqüência ao debate
em sua Anticrítica seu vindiciae veritatis
hebraicae (Basiléia, 1653), tentando mostrar, ao
contrário, sua origem divina.

2.3- Coletâneas de variantes nos manuscritos


hebraicos:
Examinando o texto hebraico, os estudiosos
perceberam que nem todos os manuscritos eram
iguais. Ainda que os escribas copiassem os
manuscritos com grande exatidão, havia pequenas
divergências no texto. B. Kennicott (Vetus
18

Testamentum Hebraicum cum variis lectionibus, 2


vols., Oxford 1776 e 1780), publicou um estudo de
615 manuscritos hebraicos e de 51 edições
impressas para recolher as variantes
consonânticas. Sua conclusão foi de que todos os
manuscritos apresentavam o mesmo texto, com
pouquíssimas variantes que poderiam servir para
corrigir eventualmente o TM. G. B. de Rossi
(Variae lectiones Veteris Testamenti, 4 vols. +
supp., Farina, 1784-1788) consultou 1.418
manuscritos e 374 edições impressas para completar
o trabalho de Kennicott. Apontou também as
divergências vocálicas. As indicações de variantes
nos manuscritos hebraicos no aparato crítico da
Bíblia Hebraica Stuttgartensia (publicada pela
Sociedade Bíblica Universal em Stuttgart em 1976)
provêm dessas duas obras.
As obras de Kennicott e de De Rossi fornecem
muitas informações sobre as variantes, mas nota-se
que todos os manuscritos consultados eram da
tradição massorética e, portanto, pouco úteis para
sugerir eventuais correções ao texto. Em geral as
divergências encontradas nos manuscritos são meros
erros de escrita que confirmam a unidade da
tradição massorética. Às vezes, porém, as
variantes sugerem que se introduziram em alguns
manuscritos modificações que não seguem o texto
massorético tradicional. Por exemplo, em ISm 9,1,
em que o versículo começa com "e havia um homem",
existem nove manuscritos que acrescentam o
adjetivo "um", como se encontra na frase
semelhante de ISm 1,1, acréscimo que se acha
também no targum e na versão siríaca. Não parece,
porém, que haja manuscritos que sigam
sistematicamente tradição diversa da massorética.
Vê-se nascer nesse período um espírito crítico que
entendia a necessidade de confrontar o TM com
outros manuscritos hebraicos e com as versões
antigas a fim de chegar a texto mais fiel ao
original. Os primeiros estudos nesse sentido são
os de L. Cappel (Commentarii et notae criticae in
Vetus Testamentum, Amsterdam, 1684) e C. F.
Houbigant (Bíblia Hebraica cum notis criticis et
19

versione latina ad notas criticas /betas, 4 vols.,


Paris, 1753).

2.4- Período dos massoretas (sécs. VI-X)


Vamos agora dar um salto na história, deixando
de lado os trabalhos dos exegetas hebreus
medievais, como Abulvalid e Ibn Ezra, que
escreveram comentários, sobretudo gramaticais, ao
texto hebraico. Seu texto já estava estabelecido
no que diz respeito aos sinais vocálicos e às
acentuações pelos massoretas e pela transmissão do
texto consonântico pelos escribas que os tinham
precedido.
Os massoretas (o nome provém provavelmente da
palavra hebraica masorah, "tradição") eram
estudiosos que desenvolviam dois tipos de trabalho
sobre o texto: punham os sinais vocálicos no texto
e faziam observações sobre palavras e frases em
particular. O conjunto dessas observações, a
masorah, acha-se nas margens dos manuscritos ou em
listas no fim do texto bíblico. Os massoretas, que
quase sempre eram da mesma família, trabalhavam
nos grandes centros do judaísmo, na Babilônia e na
Palestina. As duas famílias mais famosas foram a
de Ben Naftali e a de Ben Asher. Os manuscritos
feitos por essa última são considerados os mais
fiéis à tradição autorizada de leitura do texto
bíblico.
Os grandes manuscritos dessa época (em forma
de códice e não de rolo, e portanto não destinados
ao uso litúrgico na sinagoga) contêm o texto da
família Ben Asher, da tradição tiberiense dos
massoretas:
• Códice dos Profetas do Cairo [C]: 895/896
d.C., provavelmente transcrito por Moisés ben
Asher, pai de Aarão ben Asher. Esse códice contém
os "profetas anteriores" (Josué, Juizes, 1-2
Samuel, 1-2 Reis) e os "profetas posteriores"
(Isaías, Jeremias, Ezequiel, Profetas Menores).

• Códice de Alepo [A]: 925/930 d.C. (em parte


destruído: começa com Dt 28,17 e faltam algumas
outras partes do texto). E considerado por muitos
o manuscrito mais fiel à escola de Ben Asher,
20

porque, segundo a tradição, sua masorah foi


composta por Aarão ben Moisés ben Asher e é o
manuscrito utilizado pelo texto de "The Hebrew
University Bible" (até agora foi publicado Isaías
1—44).

• Códice de Leningrado B 19A [L]: 1008/1009 d.C. É


o mais antigo manuscrito da Bíblia hebraica
inteira e foi utilizado para o texto da Bíblia
Hebraica (3a ed.) de Kittel (1937) e da Bíblia
Hebraica Stuttgartensia (1966-1976). No final, o
copista, Samuel ben Jacó, escreve que copiou o
texto de exemplar escrito por Aarão ben Moisés ben
Asher.

O sistema de vocalização que se acha nesses


manuscritos é o tiberiense. Havia também outros
sistemas, pré-tiberienses, porém desaparecidos sob
a influência da popularidade do sistema
tiberiense. Manuscritos com essa vocalização foram
encontrados no fim do século passado na "Guenizá"
de Cairo. A Guenizá era um esconderijo para
manuscritos usados ou não mais adequados para o
uso, e no século passado a da sinagoga do Cairo,
construída em 882 d. C., foi reencontrada cheia de
manuscritos bíblicos e não-bíblicos, um milhar de
manuscritos e fragmentos. Entre os textos mais
importantes estão os fragmentos do texto de Ben
Sirac em hebraico. Em geral os manuscritos
encontrados aí são do séc. VI ao séc. IX d.C. e,
ao passo que o texto consonântico é o massorético,
eles têm dois tipos diversos de vocalização:
"oriental", da Babilônia, e "ocidental", da
Palestina. Ambos são sistemas supralineares.
Os acentos, introduzidos nesse período, são
indicações para a leitura do texto. Podem servir
também para encaminhar o leitor a determinada
exegese dos textos15. Por exemplo, Is 56,9:
"Animais todos dos campos, vinde comer, vós todos
os animais da selva". Lido assim esse versículo
abre a seção da profecia que denuncia os chefes
ineptos do povo. Mas, nos códices leningradense e
cairense, depois desse versículo há um espaço e
também a indicação de uma pausa (o acento atnah)
21

sob a palavra "campos". Assim o versículo é


traduzido: "Animais todos dos campos, vinde comer
todos os animais da floresta". Com essa pontuação
o versículo é lido unido com os w. 1-8, ou seja,
com o que precede e não com o que segue. Lida
dessa maneira, a promessa de prêmio para aqueles
que conservam a justiça e observam o sábado (w. 1-
8) vem seguida de outra promessa, a de que os
animais dos campos (os fracos) comerão os da
floresta (os fortes), ou seja, os justos
prevalecerão sobre os maus. Dessa maneira, a
acentuação posta pelos massoretas proporciona
outra maneira de compreender o texto.

2.5- Período dos escribas (soferim) (séc. I a séc.


VI)
Os soferim (literalmente, "contadores") contavam o
número de palavras e versículos do texto bíblico
para controlar a autenticidade do texto nos
manuscritos. Por exemplo, Lv 8,8, em cuja margem
vem escrito h'si hatõrah tfpesuq, "a metade da
torah segundo os versículos", para indicar o
versículo central da Torah. Além disso, faziam
observações acerca de alguns textos difíceis para
estabelecer a leitura "correta" e ortodoxa:
• pontos extraordinários: em quinze passagens da
Bíblia são indicados pontinhos sobre algumas
letras ou palavras para assinalar que os soferim
tinham dúvidas sobre a forma ou a doutrina. Por
exemplo, em Is 44,9 há pontinhos sobre as letras
da palavra hemmah para indicar uma ditografia, ou
seja, um erro de um es-criba que tinha repetido as
últimas letras da palavra precedente, we'dehem.

• nun inverso: em nove passagens encontra-se a


letra hebraica nun escrita de maneira inversa no
fim de um versículo. Por exemplo, em Nm 10,34-36
encontra-se essa indicação para sugerir que é
preciso transpor os w. 34 e 36.

• sebir: da palavra aramaica para "supor". Há


mais ou menos 350 passagens em que se acha essa
nota para indicar que a forma presente no texto
não é a esperada, assinalando na margem a
22

considerada correta. Por exemplo, em Gn 19,8


encontra-se a palavra ha 'êl, "Deus"; o aparato
crítico põe ha'èlleh, "estes", com a indicação
"Seb" para assinalar a leitura correta dessa
palavra.

• qere-ketib: "dito" e "escrito". A leitura


qofcom um pontinho em cima posta na margem indica
que uma palavra está escrita de um modo, mas deve-
se pronunciar de outro. Por exemplo, em Gn 6,7 a
primeira palavra é escrita com as consoantes que
indicam "e disseram", no plural, mas vocalizada
como se estivesse no singular; na margem encontra-
se o [ ] com a forma escrita no singular.

• "não há outro": a letra lamed com um pontinho


em cima na margem é abreviação para lõ' 'et ("não
há outro"), indicando palavras ou combinações de
palavras que aparecem uma só vez na Escritura.

Todos esses comentários textuais tendiam a


explicar, ou pelo menos indicar, palavras ou
expressões que criavam dificuldades, ou propunham
leituras alternativas, deixando intacto o texto
consonântico. Indicações posteriores dos soferim
parecem indicar modificações e emendas ao texto,
algumas delas visando evitar falta de respeito
para com Deus. São ao todo dezoito passagens com
essas características, denominadas tiqqunê
soferim, ou seja, emendas dos escribas16. Por
exemplo, em Gn 18,22 se lê "Abraão estava ainda
diante do Senhor". No elenco dos tiqqunê soferim
vem indicado, nesta passagem, uma mudança que nos
leva a supor que houve um tempo em que se lia "O
Senhor estava diante de Abraão", cujo significado
suscitava problemas, pois o "superior" estaria
diante do "inferior".
Desse mesmo período, do séc. II ao séc. IV
d.C,, existem também outros testemunhos
contemporâneos da situação do texto bíblico
consonântico. Há um manuscrito hebraico dos Doze
Profetas proveniente de wadi Murabbacat (cerca de
135 d.C.)17 em que há um texto que se pode dizer
igual ao maso-rético. Há em vários lugares
23

indicações ou correções que indicariam


divergências menores (por exemplo, a presença de
uma mater lectionis em Gl 4,5 para indicar a
vocalização de uma palavra). Em Gl 3,2 a palavra
hahem foi corrigida por hâhêmmãh para concordar
com o TM. Além disso, há as traduções gregas do
séc. II d.C. de Áquüa, Símaco e Teodocião (ainda
que a deste último pareça antes a revisão de uma
tradução grega mais antiga; cf. a discussão sobre
as traduções gregas).
Desse mesmo período fazem parte os targumim,
traduções aramaicas das Escrituras hebraicas.
Ainda que existam em formas um pouco diversas, os
targumim foram traduzidos do texto massorético e,
portanto, não constituem testemunho que lhe seja
independente. Uma vez que surgiram como traduções
orais, pode-se notar certa fluidez em suas formas
antes de terem sido colocados por escrito18.
A Vulgata de são Jerônimo (séc. IV d.C.) — sua
tradução latina baseada no texto hebraico, a
veritas hebraica — reconduz-se a esse mesmo
período. Também essa tradução é testemunho do
texto massorético. Por sua tradução e por seus
comentários nota-se, porém, que Jerônirno conhecia
o texto da Septuaginta e também as diversas
recensões gregas do séc. II ao séc. IV.
O estudo destes três períodos leva-nos a
concluir que o texto massorético, no que diz
respeito ao sistema de vocalização e, em parte, à
gramática, é obra da escola massorética de Ben
Asher. O texto consonântico, porém, remonta
provavelmente ao séc. IL, ou talvez ao séc. I d.C.
Segundo Gordis19, o manuscrito escolhido como
normativo para o texto hebraico foi adotado no
tempo de R. Aquiba (cerca de 100 d.C.), se não
antes.

2.6- Período anterior à estabilização do texto (do


séc. I d.C. para trás)
No que diz respeito ao tempo antecedente ao
séc. I d.C., observa-se notável variedade na forma
do texto bíblico, como se encontra nos manuscritos
hebraicos e gregos de Qumran, no texto da LXX e no
texto do Pentateuco Samaritano. As relações entre
24

esses textos e o texto "protomassorético"


constituem em boa parte o objeto do trabalho da
crítica textual do AT.

3- O Pentateuco Samaritano
O Pentateuco Samaritano é a Bíblia da
comunidade samaritana antes e depois do cisma dos
judeus (séc. IV a.C.). Os samaritanos conservaram
o Pentateuco como o único corpo de Escritura
inspirada, enquanto os judeus acrescentaram os
livros dos profetas e os hagiográficos.
Confrontando o Pentateuco Samaritano com o TM,
encontram-se mais ou menos 6.000 variantes, das
quais cerca de 1.600 concordam com a LXX. Em geral
as variantes são de tipo ortográfico (por exemplo,
matres lectionis) ou morfológico. Há, todavia,
algumas que indicam os interesses teológicos dos
samaritanos (por exemplo, em Ex 20,17 e Dt 5,21
encontramos uma longa interpelação de Dt ll,29s;
27,2-7, que traz as palavras do povo depois da
entrega dos dez mandamentos). A construção de um
altar sobre o monte Garizim torna-se uma parte do
decálogo. Às vezes a forma do texto é diversa em
comparação com a do TM e da LXX (por exemplo, as
cronologias de Gn 5 e 11 existem em três formas:
TM, LXX, Pentateuco Samaritano).
Notou-se, de mais a mais, que alguns
manuscritos de Qumran contêm lições "samaritanas"
(por exemplo, HQpaleoExod™). Isso sugere que houve
uma forma própria palestinense do texto pré-
massorético.

4- Qumran
Sem dúvida a descoberta entre 1947 e 1956, dos
manuscritos de Qumran, localidade na margem
noroeste do mar Morto, foi o maior acontecimento
deste século no que se refere ao texto do Antigo
Testamento, enriquecendo de maneira notável nossos
conhecimentos do texto bíblico hebraico dos
primeiros séculos antes de Cristo. Antes disso, os
manuscritos bíblicos mais antigos disponíveis
datavam do séc. V d.C. A maior parte dos
documentos do mar Morto remontam provavelmente ao
25

séc. I a.C., e alguns datam do séc. II e até mesmo


III a.C. Tem-se assim uma visão direta sobre o
estado do texto naquele período. A importância
desse descobrimento não se atem somente ao texto
bíblico, porque foram encontrados também outros
escritos da comunidade religiosa lá residente.
Aqui, porém, só levamos em consideração os
escritos bíblicos. Cerca de um milhar de
manuscritos, em geral muito fragmentários,
encontrados em onze grutas mostraram como o texto
era lido naquele período. Outros manuscritos que
datam do mesmo período e de uma época um pouco
posterior foram encontrados nas vizinhanças de
Qumran: Wadi Murabbacat, Masada, Enguedi, Kirbet
Mird, Wadi Khabra.

4.1- Inventário dos manuscritos bíblicos


Os manuscritos encontrados nas diversas grutas
de Qumran e vizinhanças, e identificados até
agora, trazem textos de todos os livros da Bíblia
hebraica, exceto Ester. Na 1a gruta: Pentateuco,
Jz, Sm, Is, Ez, SI, Dn; nas "grutas menores" (2,3,
5-10): Pentateuco, Rs, Jr, Am, SI, Jz, Jó, Rt, Ct,
Lm, Dn, Sr; na 4a gruta: Pentateuco, Js, Jz, Sm,
Rs, Is, Jr, Ez, Profetas Menores, SI, Jó, Pr, Qo,
Lm, Dn, Esd, Cr; e na 11a gruta: Dt, Lv, Ez, SI.
Além dos hebraicos, foram encontrados
manuscritos gregos e aramaicos. Quanto aos gregos,
encontraram-se fragmentos de Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio. Em geral o texto grego é o
da LXX ou muito próximo a ela, com algumas
variantes.
Em aramaico há partes dos livros de Daniel e
Tobias e também fragmentos dos targumim do
Levítico e de Jó.
Quanto aos livros deuterocanônicos, foram
encontrados fragmentos do Sirácida e da carta de
Jeremias em grego e de Tobias em aramaico e
hebraico. Estão representados também outros
livros, não-canônicos, como Henoc, em aramaico e
hebraico, e o Livro dos Jubileus em hebraico.
Em suma, pode-se dizer que, no que diz
respeito ao cânon hebraico, todos os livros,
exceto Ester, estão representados. Entre os livros
26

deuterocanônicos faltam Macabeus, Judite, Baruc e


Sabedoria. Os livros não-canônicos como Henoc e
Jubileus estão, porém, bem representados. Da
presença desses escritos não podemos chegar a
conclusões absolutas com referência ao cânon da
sagrada Escritura próprio dos moradores de Qumran.
Eles conheciam e liam livros tirados do cânon
hebraico (a partir da ausência de Ester não se
pode concluir de maneira definitiva que esse livro
fosse desconhecido) e em parte também os que não
foram considerados canônicos pelas correntes
principais do judaísmo do séc. I a.C.

4.2- Variedade dos textos de Qumran e seu valor


para a crítica
Alguns exemplos podem mostrar a variedade e o
valor dos textos para a crítica textual do AT:
a. Isaías (IQIs" e QIsb)22
Confrontando as 1.400+ variantes de IQIs3, do
séc. I a.C., com o TM, um estudo recente concluiu
que só nove foram consideradas válidas pelos
tradutores recentes de Isaías para sugerir uma
correção do TM23. A maior parte dessas 1.400
variantes concernem à ortografia ou são erros de
copistas e, portanto, não-pertinentes para
correção do texto. Ainda que o número das
variantes pareça bastante elevado, o texto de
IQIs3 mostra-se muito próximo ao do TM: as
divergências mais notáveis do TM encontram-se
somente em Is 53,12-13, onde lQIsb segue a LXX.

b. Samuel (4QSama'b'c); 4QSama'c do séc. I a.C.;


4QSamb do séc. II ou III a.C.
Os três textos em geral parecem mais próximos
à LXX que ao TM. Quanto a 4QSama, do séc. I a.C.,
os estudos de F. M. Cross24 e de E. C. Ulrich25
mostraram as semelhanças com o texto da LXX. Mas
contém variações que não se encontram noutra parte
e que poderiam indicar diversas tradições ou
desenvolvimentos posteriores do texto. Em ISm
1,11, por exemplo, o texto de 4QSama traz a
palavra nazir na descrição que Ana faz do filho
que ela pede ao Senhor. Quanto a 4QSamb, segundo
dois estudiosos, Anderson e Freedman, o texto
27

mostra, do ponto de vista de certos fenômenos


ortográficos, semelhança com o TM, ainda que do
ponto de vista das lições variantes venha posto em
relação com a Vorlage da LXX.

c. O Pentateuco
Foram encontrados cerca de 30 manuscritos do
Pentateuco, semelhantes a um dos três tipos
textuais conhecidos antes do descobrimento de
Qumran: a) "protomassorético" (a maioria dos
manuscritos); b) tipo LXX: por exemplo, 4QExoda27;
c) tipo "samaritano": por exemplo, HQpaleoExod™.
Essa variedade mostra que não havia para o
texto hebraico lido em Qumran traduções textuais
"sectárias" (ou pelo menos não somente sectárias).
Muitos dos textos, inclusive 4QExodf (de cerca de
250 a.C.), são do tipo TM, ou foram corrigidos
para aproximá-los do TM. Entre os textos
considerados próximos da LXX, somente 4QJerb (que
contém o texto mais breve de Jeremias como se acha
na LXX) parece pode ser posto em estreita relação
com a Vorlage da LXX28.

4.3- Conclusões
Os manuscritos que concordam com o TM indicam
que o "protomassorético" já existia entre os sécs.
I-III a.C., e seu número majoritário indica certa
preferência por esse tipo de texto. Isso é provado
também pela presença de manuscritos do tipo TM
fora de Qumran. Pela presença desses textos, vê-se
que o termo "protomassorético" é apenas convenção
e talvez fosse mais justo relacionar aquele texto
mais tardio com os textos do mar Morto.
De um estudo das variantes do TM conclui-se
que não existia uma forma única e sectária do
texto em Qumran. Além disso, as formas do texto
conhecidas de outras fontes (por exemplo, LXX,
Pentateuco Samaritano) são testemunhadas também em
Qumran. Enfim, as lições de Qumran divergentes do
TM nem sempre são superiores a ele. Há muitos
erros de co-pistas e também indícios de elaboração
posterior do texto. É preciso julgar cada caso por
si mesmo.
28

Quanto a nosso conhecimento da história do


texto bíblico, a multiplicidade de formas em
Qumran abre a questão das fronteiras entre a
crítica textual e a crítica literária. Além disso,
o uso de expressões como "tipo textual" e
"recensão" deve ser repensado com base nessa
variedade de formas textuais.
Recentemente, E. Tov sugeriu um modo diferente
de considerar os "tipos textuais", à luz da
diversidade dos textos descobertos em Qumran29.
Tov põe em questão o método clássico de falar de
dois "tipos textuais" (TM, LXX) (ou três, se
acrescentado o Pentateuco Samaritano). Um
manuscrito como HQpaleoLev, cujo texto é acorde em
parte com o TM, em parte com a LXX, em parte com o
Pentateuco Samaritano, e em parte com nenhum dos
três tipos clássicos, sugere que um manuscrito
pode ser independente, ou seja, não refletir
nenhuma dependência de qualquer dos três tipos.
Uma conseqüência dessas observações de Tov é
que devemos repensar eventualmente nossa concepção
do desenvolvimento do texto antes de sua
estabilização, para reconhecer talvez maior
liberdade por parte dos escribas e dos estudiosos
do texto antes do séc. I de nossa era. Seria
preciso pôr em questão também a "teoria dos textos
locais" de F. M. Cross, segundo a qual, a partir
dos três grandes testemunhos do texto bíblico, se
poderia remontar à existência de três centros de
elaboração do texto (TM: Babilônia; Qumran:
Palestina; LXX: Egito)30.
Da variedade dos textos encontrados em Qumran
comprova-se uma dupla atitude dos escribas. Uma,
"livre", verifica-se sobretudo nos manuscritos
produzidos em Qumran com características
ortográficas e lingüísticas próprias (vemo-lo
também nos textos que se aproximam mais do
Pentateuco Samaritano). A segunda atitude é mais
"conservadora" e observa-se nos manuscritos que,
por um lado, são próximos ao TM e, por outro,
próximos à LXX. Tomam-se aqui em consideração
também os textos "independentes" que, juntamente
com os que se aproximam do TM e da LXX,
29

provavelmente refletem a tentativa de conservar um


texto antigo.
O estudo dos manuscritos de Qumran está longe
de ser definitivo, de forma que qualquer conclusão
é ainda provisória.

5- O Antigo Testamento em grego

5.1- A Septuaginta (LXX)


A diáspora judaica suscitou a necessidade de
ter as sagradas Escrituras em língua compreensível
aos hebreus residentes no Egito, sobretudo em
Alexandria, onde havia uma importante comunidade
judaica. Essa tradução, em primeiro lugar da Torah
— o Pentateuco —, ocorreu provavelmente em fins do
séc. III a.C., ainda que suas origens sejam
bastante obscuras.
a. O que é a LXX?
Segundo a tradição descrita na Carta de Aristéias,
foram setenta ou setenta e dois estudiosos (seis
escolhidos de cada uma das doze tribos de Israel)
que traduziram a Torah para o rei Ptolomeu III
Filadelfos (séc. III a.C.) e, sendo assim, o nome
"Setenta" aplica-se antes de tudo à tradução grega
da Lei. Em seguida veio a ser usado para a
tradução grega de todas as sagradas Escrituras.
Parece, porém, que seja antes uma tradução feita
pelos próprios judeus para os que já não liam o
hebraico. O Prólogo do livro de Ben Sirac afirma a
existência de tradução grega não só da Torah más
também "dos profetas e dos outros livros de nossos
pais".

b. As origens da LXX
De modo a entender as teorias propostas para
explicar as origens da LXX, é importante notar a
existência de várias formas do texto grego. Por um
lado, a partir da desigualdade da tradução,
reconhecível às vezes no mesmo livro, pode-se
concluir que não se trata de trabalho feito por
uma só pessoa e reconduzível a um só período. As
variantes no texto mostram, também, que ele
conheceu ao longo do tempo diversas revisões, que
tornam difícil a busca da forma original (ou das
30

formas originais). As duas teorias principais


sobre a origem da LXX podem ser denominadas como a
do "targum grego" e da "versão única".
• "Targum grego": segundo P. Kahle, as origens da
LXX devem-se a várias traduções parciais do Antigo
Testamento usadas nas sinagogas helenísticas
sobretudo para a liturgia e, depois, assumidas e
unificadas pelos cristãos31.

• "Versão única original": segundo essa teoria,


pelos testemunhos existentes pode-se remontar ao
texto "arquétipo"32. Baseando-se em informação
dada por são Jerônimo no Prólogo à sua tradução
latina do livro das Crônicas acerca de três formas
diversas do texto (recensões; cf. abaixo, pp. 59-
61), P. de Lagarde pensava que, se se pudesse
determinar essas formas e eliminar as
características próprias às recensões, poder-se-ia
reencontrar a forma original da LXX. Ainda que sua
tentativa de reencontrar a forma "luciana" (de
Luciano de Antioquia) não tenha tido êxito33, a
maior parte dos estudiosos está de acordo em dizer
que a Septuaginta constituiu em suas origens uma
tradução única.
Vê-se que as teorias propostas por esses dois
autores assemelham-se a suas teorias sobre as
origens do texto hebraico (veja acima). Se se
partir da segunda teoria, poder-se-á esperar
reencontrar o texto único arquétipo (que poderia
ser útil para emendar o texto hebraico onde está
corrompido); partindo da primeira, porém, isso não
seria possível.

c. A importância da LXX
A tradução grega do AT constitui evento importante
na história da Bíblia e também para o conhecimento
de seu texto. Por meio dessa única tradução,
possuímos uma forma do texto anterior à sua
estabilização. Além disso, o texto grego do AT foi
a Bíblia do NT: toda a pregação primitiva e as
citações do AT no NT provêm da Bíblia grega. Para
o estudo dos inícios da teologia cristã, essa
tradução é muito significativa porque foi a Bíblia
dos Padres da Igreja (também dos Padres latinos
31

mediante a "Vetus Latina"). Sendo assim, o


pensamento teológico dos primeiros séculos
cristãos e seu vocabulário foram influenciados
pela formulação grega das Escrituras. Por fim,
sendo tradução feita do texto hebraico no séc. II
a.C. (ou talvez já iniciada no séc. ni a.C.), pode
ser útil para emendar o texto hebraico do AT.
Ainda que hoje se utilize com mais discrição para
essa última finalidade, respeitando o fenômeno de
tradução e também a possibilidade de que o texto
hebraico subjacente a essa tradução fosse diverso
em não poucas passagens daquele que se tornou o
texto massorético, a versão grega antiga continua
a ser mina muito rica para entender o texto do AT.

d. Natureza da tradução da LXX


A LXX é uma tradução do hebraico, mas de uni texto
hebraico que às vezes diverge do TM. Por exemplo,
o Livro de Jeremias em grego é cerca de 1/8 mais
breve que o TM. Portanto, ainda que sua tradução
seja bastante literal, é claro que o texto
hebraico de que foi traduzido era diverso do TM.
Às vezes a tradução demonstra a mentalidade ou a
sensibilidade do ambiente alexandrino. Por
exemplo, em Ex 3,14, quando Deus se apresenta a
Moisés dizendo: "eu sou o que sou", a tradução
grega é evgw eivmi ov wvn .
Pode-se concluir a variedade de tradutores a
partir da diversidade de traduções para as mesmas
palavras ou para os mesmos termos. Por exemplo, a
palavra qahãl, "assembléia", é traduzida por
sunagwgh em Gn, Ex e Lv e nos profetas, mas por
Evkklhsiva em Dt e nos livros históricos.
Vê-se às vezes que a tradução grega é
resultado de uma falta de compreensão do texto
hebraico, ou de uma divisão das palavras hebraicas
diversa da tradicional. Por exemplo, no SI 4,3 o
texto hebraico é d mh kbwdy Iklmh, "Até quando
será humilhada a minha glória?"; a LXX traduziu:
Evwz povte barukavrdioi ivna ti..., "Até quando serás
taciturno? Porque...". Vê-se que é tradução das
consoantes cd mh kbdy Ib Imh, trocando k e ò (que
têm quase a mesma forma em hebraico) e dividindo
32

Iklmh em duas palavras: Ib Imh34. As vezes a


divisão representada pela LXX pode testemunhar um
texto melhor; por exemplo, em ISm 1,24, onde no
texto massorético se lê "juntamente com três
vitelos", é provável que a LXX tenha conservado
uma lição melhor dizendo "juntamente com um vitelo
de três anos", que reflete um hebraico bpr mslsy
em vez de bpryrn slsh do texto massorético. Esse
último exemplo é confirmado pelo texto de ISm de
Qumran, 4QSama, que tem bqr rnsls.
Nos manuscritos cristãos da LXX, traduz-se o
nome divino por Cuvrioz. Vê-se, porém, que o uso
dos hebreus era deixar o tetragrama não-traduzido
e em geral escrevê-lo com letras paleo-hebraicas.
O manuscrito dos Profetas Menores de Nahal Hever35
e os fragmentos dos Livros dos Reis na Guenizá do
Cairo (do séc. V ou VI d.C.), que contêm a
tradução de Aquila, confirmam esse uso36.

5.2- Traduções gregas do séc. II d.C.


Parece que o fato de os cristãos utilizarem a
LXX como sua Escritura provocou, no séc. II d.C.,
outras traduções gregas por parte dos hebreus. Há
três traduções, ou pelo menos reelaborações de
traduções já existentes, que remontam a esse
período.
• Aquila (cerca de 130): foi estudante do rabino
Aquiba e fez uma tradução literalíssima (por
exemplo, 'et, que pode significar "com" mas também
pode ser o sinal de objeto de um verbo, é
traduzido sistematicamente por oúv).

• Símaco (cerca de 170): fez uma tradução fiel ao


hebraico mas em bom grego. Não se sabe muito dele,
mas por informações fornecidas por Orígenes parece
que foi samaritano convertido ao judaísmo. Talvez
tenha sido ebionita, e provavelmente deve ser
identificado com um tal de Sümkhôs, discípulo do
rabino Meir37.

• Teodocião (cerca de 150/160): não fez nova


tradução, mas antes uma revisão que aproximava o
texto ao hebraico. Há testemunhos de uma tradução
"prototeodociana" (por exemplo, no NT, Barnabé,
33

Clemente, Hermas), que talvez fosse uma tradução


grega da Bíblia diversa da tradução alexandrina
(LXX) já existente antes da era cristã38.
Note-se também a existência de uma recensão
grega do séc. II d.C., feita por judeus, que
poderia estar na base das traduções daquele
século. Essa recensão foi observada, para os
Profetas Menores, por D. Barthélemy ("Redé-
couverte d'un chaínon manquant de rhistoire de Ia
Septante", em RB 60 [1953], pp. 18-29), que a
verificou em seguida em outras partes da Bíblia39.
As relações dessa recensão com a tradução grega
antiga ainda são discutidas40, mas fica claro que
o texto grego foi modificado para aproximar-se a
um texto hebraico consonântico que era o
protomassorético. Assim, pelo menos para seções da
Bíblia que atestam esse trabalho de recensão, vê-
se que foi tentativa feita por hebreus de
conformar o texto da Septuaginta ao
protomassorético. Barthélemy chamou os editores
dessa recensão de os deuanciers de Aquila, porque
eram mestres da exegese rabínica palestinense da
primeira metade do séc. I d.C. que modificaram o
texto segundo os princípios de tal exegese41.
Barthélemy chamou-a de "recensão xatye" segundo a
tradução literalíssima de garn e vfgam por Kccíye.

5.3- As recensões gregas do séc. II ao séc. IV


d.C.
Podemos definir a recensão, pelo menos
genericamente, como o texto que foi mudado de modo
consciente (e sistemático) segundo princípios
precisos e para uma finalidade desejada. Pode-se
pensar, por exemplo, num texto grego modificado
para torná-lo mais semelhante ao texto hebraico,
ou num texto em que a gramática ou o vocabulário
foram mudados para torná-lo mais "moderado" ou
"adaptado" a determinada época.
34

IV- CRÍTICA TEXTUAL DO ANTIGO


TESTAMENTO
1- Texto "original"?
CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA

Não podemos fazer trabalho sério em exegese ou


em teologia bíblica se não partirmos do texto
"original". O termo "original" deve ser colocado
entre aspas já que o "verdadeiro texto original"
não existe. Isto é, ninguém possui a primeira
edição do Livro dos Números, ou mesmo do evangelho
de Lucas. O primeiro manuscrito de qualquer texto
bíblico perdeu-se no tempo e no espaço. Em outras
palavras, como se já não fosse pouco o fato de
termos de trabalhar com os textos em grego, em
hebraico e, eventualmente, em aramaico, temos o
seguinte complicador: a primeira redação, tal qual
saiu das mãos do autor, já não existe mais. Negá-
lo, seria ingenuidade nossa. Tudo o que nos resta
são cópias, por vezes, defeituosas, incompletas,
ou mesmo muito tardias.
Como, então, podemos ousar fazer afirmações do
tipo "Tal texto quer dizer tal coisa", se nem
podemos "jurar de pés juntos" que o texto é
exatamente aquele?
Por isso, é necessário reconstruir o texto
"original", isto é, o texto que provavelmente
tenha saído das mãos do autor. Para tanto,
trabalha-se sobre os manuscritos disponíveis.
Claro que não precisamos fazer tudo sozinhos. Só
isso seria a tarefa de toda uma vida... e muitas
mais.

2- Uma edição diferente da bíblia: a edição


crítica
Sem nenhuma dúvida, houve um texto que podemos
chamar de "original". Este, no entanto, sofreu re-
elaborações e mais re-elaborações. Além disso, não
podemos nos esquecer que, antes de serem escritos,
muitos relatos pertenciam à tradição oral. A
fixação por escrito, o texto estável, é apenas
parte de um processo mais amplo, pois um novo
35

contexto é sempre ocasião para a re-leitura e a


re-elaboração de um texto do passado. Em outras
palavras, um texto fixado e amadurecido pode
tornar-se a base para uma nova re-elaboração.
Muitas vezes, o próprio texto oferece indícios que
permitem reconstruir as etapas da redação que hoje
possuímos.
Como veremos em breve, a ciência bíblica
desenvolveu certos critérios, a fim de refazer o
caminho "que o texto percorreu até chegar às
nossas mãos. O resultado desse trabalho de
reconstruçao é encontrado nas chamadas "edições
críticas". São edições dos textos do Antigo e do
Novo Testamentos (em hebraico, em grego, em
aramaico e, ainda, em latim) que trazem, no
rodapé, o "aparato crítico", isto é, o elenco das
principais leituras variantes e os tipos textuais.
Nas margens laterais, encontramos outras
observações e anotações a respeito do texto. Para
economizar espaço, quase todas as informações do
aparato crítico e das margens estão abreviadas ou
codificadas em símbolos, cuja decodificação
encontramos nas introduções e nos apêndices de
cada edição crítica.
As variantes decorrem, em parte, por erro de
transcrição e, em parte, por correções
intencionais dos copistas. Sobre isso, falaremos
mais à frente.
Cada edição crítica é o resultado de anos de
dedicação em consultar TODOS os manuscritos
existentes (textos bíblicos, Targumim, Midrashim,
lecionários, fragmentos, inscrições, comentários,
textos patrísticos, e outros mais).

3- Trabalhando com uma edição crítica


As edições críticas publicadas em Stuttgart,
na Alemanha, pela Deutsche Bibelgesellschaft,
acabaram se impondo como padrão. Cada uma delas é
o resultado de muitos anos dedicados à pesquisa e
à atualização de edições anteriores. Além disso,
têm o mérito de poderem ser adquiridas com muita
facilidade e por um preço relativamente acessível.
36

Vejamos o elenco destas publicações:

Texto Massorético(TM): ELLIGER,K.& RUDOLPH, W. Bí-


blia Hebraica Stuttgartensia
Setenta(Septuaginta ou LXX): RAHLFS,A. Septuaginta
Novo Testamento: NESTLE, E. & ALAND, K. Novum
Testamentum Graece
UNITED Bible Societies, The
Greek New Testament
Vulgata: WEBER, R. Bíblia Sacra Vulgata

3.1- Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS)


Precisamos, pois, aprender a manusear essas
edições da Bíblia. A seguir, vamos tratar
brevemente do Antigo Testamento em hebraico e,
posteriormente, do Novo Testamento Grego.
Acabamos de afirmar que tornou-se padrão
utilizar a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Ela
traz o chamado "Texto Massoretíco" (TM), a versão
escrita do Antigo Testamento hebraico que acabou
se impondo como padrão. Os massoretas
estabeleceram um sistema altamente elaborado e
complexo de vocalização (supra e infra-linear) e
acrescentaram ao texto uma série de sinais
disjuntivos, para indicar a pontuação (vírgulas,
pontos etc.) e a entonação (acentuação, pausas,
cantilenação) com que deve ser lido o texto.
Além da vocalização e dos sinais disjuntivos,
a fim de se evitar a corrupção e a perda de
palavras no texto, os escribas massoretas
desenvolveram um sistema para garantir a
integridade da Escritura. É a chamada "massorah".
Não queremos aborrecer o leitor e, por isso,
não vamos expor com minúcias a massorah. A modo de
ilustração, daremos apenas dois exemplos.
a) A Massorah Final: ao final de cada livro,
encontraremos uma nota que nos informa quantos
versos e quantos sedarim aquele livro possui e
onde está o seu meio. Por exemplo: ao final de Dt,
é-nos dada a seguinte informação: o livro possui
955 versículos, seu meio está em £yPi-lfa
tAyWifAv4 [agirás conforme] (17,10) e são 31 os
sedarim. Além disso ficamos também informados que
37

o conjunto da Torah possui 5.845 versículos, 167


sedarim, 79.856 palavras e 400.945 letras.

b) A Massorah Marginal: trata-se, como o nome


diz, do conjunto de notas que os massoretas
colocaram às margens do texto. Nessas notas, eles
fazem comentários a respeito do texto, preservam
tradições não textuais, identificam palavras ou
frases raras, indicam o meio dos livros e das
grandes seções, dão-nos outras informações
estatísticas e uma espécie de concordância.
Devemos destacar o chamado Qerê/Ketîb (o que deve
ser lido / o que está escrito), um recurso dos
massoretas para esclarecer dificuldades com a
vocalização, quando esta é incompatível com as
consoantes. Ou seja, quando o texto apresenta
consoantes de uma palavra com vogais de outra. E
sempre indicado da seguinte forma: no texto
(Ketîb), aparece um pequeno círculo sobre a
palavra em questão; na margem (Qerê), as
consoantes corretas estão impressas sobre um q
encimado por um ponto. Um bom exemplo podemos
encontrar em 2Rs 20,4. O Ketíb traz as consoantes
ryfh com a seguinte vocalização ryfehA. O Ketîb
tem as consoantes da expressão "a cidade", mas a
vocalização é totalmente outra. Tal discrepância
só fica esclarecida ao consultarmos o Qerê, que
propõe as consoantes rcH, que não significa
"cidade", mas "pátio". Ou seja, os massoretas
propõem que "aquilo que está escrito" (Ketíb)ryfh
[a cidade], "seja lido" (Qerê) rcH [pátio]. Mas,
como não podem alterar o texto (que possui só as
consoantes), vocalizam-no segundo a correção
indicada na margem lateral.
E, por fim, o aparato crítico. No texto
hebraico, aparecem pequenos caracteres
latinos(a,b,c...) que remetem ao fundo da página.
Aí, encontramos as principais variantes do texto e
a referência dos manuscritos ou das versões que
lêem tais variantes. Essas informações são dadas
por meio de numerosas abreviações em latim e/ou
símbolos. Um breve exemplo: Dt 32,35. O Texto
38

Massorético lê ML.ewiv4 Mq!n! yli[para mim a


vingança e a recompensa]; já o Pentateuco
Samaritano e a Septuaginta lêem ML.ewiv4 Mq!n!
MOyli [para o dia da vingança e da recompensa].
4- Últimas considerações prévias
Um bom começo é tomar as edições críticas e
ler as páginas introdutórias, nas quais, além das
informações expostas anteriormente, vamos
encontrar muitas outras, que nos serão muito
úteis, tais como um histórico da presente edição
crítica e suas particularidades: os critérios e as
siglas adotados, os manuscritos consultados, os
apêndices.
Cada livro desses é uma verdadeira
enciclopédia sobre o texto bíblico. A Bíblia
Hebraica Stuttgartensia (BHS) possui "prolegomena"
em alemão, inglês, francês, espanhol e latim, mas
a lista completa dos sinais e dos manuscritos
utilizados possui sua explicação somente em
latim!... Quem não tem intimidades com essa língua
pode consultar a seguinte obra: SCOTT, William R.
A Simplified Guide to BHS. Berkeley, Bibal, 1987.
Nesta publicação, além da tradução, em inglês, das
abreviaturas e das siglas utilizadas no aparato
crítico, pode-se encontrar informações adicionais
sobre as duas messarot, as pausas e os acentos, e
muito mais. Em português, um breve elenco com as
principais abreviações e termos latinos pode ser
encontrado em MAINVILLE, O. A Bíblia à luz da
História. Guia de exegese-histórico-crítica. São
Paulo, Paulinas, 1999. pp. 147-152.
Por fim, apenas um comentário.
Para quem usa os recursos da informática,
recomendamos tomar contato com o excelente
programa BibleWorks for Windows, atualmente na
versão 4.0, em CD-ROM. Embora o aparato crítico
completo para a Bíblia Hebraica, a Septuaginta e o
Novo Testamento Grego ainda seja uma promessa,
este programa é de extrema utilidade, pois, as
mesmas fontes requeridas pelo Windows para a
visualização dos textos grego e hebraico podem ser
utilizadas por qualquer programa de elaboração de
39

textos e nos permite escrever diretamente nas


línguas bíblicas. Além disso, o BibleWorks possui
vários outros recursos que podem ser acionados
durante o uso do programa: léxicos em grego e
hebraico, concordâncias, estatísticas, análise
morfológica, versão grega (LXX) para o AT, versão
latina (Vulgata), e muitas versões em línguas
modernas, até em português (três edições da
clássica tradução de João Ferreira de Almeida:
corrigida, revista e atualizada; revista e
corrigida).

5- Crítica textual
Agora que já sabemos o que é uma edição
crítica, precisamos saber para que serve. Para
responder a tal pergunta, devemos lembrar que uma
edição crítica apresenta as lições ou lectiones
variantes para um mesmo texto. Não há dois
manuscritos perfeitamente idênticos e as
diferenças são apresentadas no aparato crítico.
Quando encontramos uma divergência nas tradições
de um texto bíblico, ou quando é difícil sua
leitura, pode-se pensar em uma eventual emendação,
baseada sobre as várias lições, ou, em casos mais
raros, sobre conjecturas (quando o contexto ou a
gramática exigem mudanças não atestadas em
manuscritos).
Como os estudiosos chegaram à conclusão de que
o texto mais próximo do original é este e não
aquele? E como explicam as mudanças?
Reconstruir a (provável) redação original a
partir dos manuscritos atualmente conhecidos supõe
realizar um trabalho crítico em duas direções, a
crítica externa e a crítica interna. A crítica
externa toma em consideração o aspecto físico dos
manuscritos: quantidade, qualidade, datação. Por
sua vez, a crítica interna analisa o texto
propriamente dito: articulação das idéias, uso das
palavras, estilo, teologia. Cada uma dessas duas
críticas (externa e interna)" possui seus próprios
critérios.

São critérios para a crítica externa:


a) múltipla atestação;
40

b) manuscritos antigos e confiáveis;


c) manuscritos independentes entre si (genealogia
e geografia);

São critérios para a crítica interna:


a) a lição mais difícil é preferível à mais fácil
(lectio difficilior);
b) a lição mais breve é preferível à mais longa
(lectio brevior);
c) estilo e teologia do autor;
d) não influência de passos paralelos.

Claro que uma conclusão guiada pelos critérios


externos pode divergir daquela baseada nos
internos. Para superar tal impasse, uma vez
estabelecida a forma original, deve-se explicar o
porquê das diferenças, reconstruindo a genealogia
das variantes.
Mas, devemos levar em consideração que o
trabalho de reconstrução do texto a partir dos
manuscritos já está realizado por estudiosos que
dedicaram toda sua vida a isso. Ou seja, não
precisamos partir do zero. Por isso, tendo em mãos
uma edição crítica, que nos fornecerá as
principais variantes para cada versículo, nossa
tarefa será tentar entender as razões que levaram
os críticos textuais a tal veredicto. Para tanto,
nosso trabalho deve se pautar nos seguintes
critérios:
a) a lição mais difícil é preferível à mais fácil
(lectio difficilior);
b) a lição mais breve é preferível à mais longa
(lectio brevior),
c) a lição divergente em lugar paralelo é
preferível à concordante;
d) é genuína a lição que explica a origem das
demais.

Aliás, esse último critério exige não só


sensibilidade, mas também certa dose de intuição.
Quanto à sua origem ou à sua causa, as mudanças
podem ser inconscientes ou conscientes. Os
exemplos a seguir vão nos ajudar a classificar tal
problemática.
41

5.1 - Crítica textual do Antigo Testamento


5.1.1 - Mudanças inconscientes
Consideradas erros de escritura (quase sempre
anteriores ao I d.C.).
a) Erro de ouvido:
Para se multiplicar os textos, um dos escribas
ditava e os demais transcreviam. Em alguns casos,
podia acontecer de o copista compreender mal a
leitura e confundir alguma letra. Tal é o caso de
SI 28,8. A versão hebraica do TM lê

Aml'-z[o hw"hy> YHWH é força para eles

Mas outras versões, tal como a siríaca, apresentam


AM[!l.-z[o hw"hy> YHWH é força para seu
povo

seguindo a LXX (Septuaginta):


ku,rioj kratai,wma tou/ laou/ auvtou/
o Senhor é força de seu povo

O leitor pode ter pronunciado não muito


claramente o f (que possui um som gutural, mas
alguns o pronunciam mudo ou levemente aspirado),
provocando uma alteração na cópia.

b) Haplografia (haplos = simples):


Quando determinada palavra, sílaba ou letra,
que ocorre mais de uma vez, é escrita somente uma.
Assim acontece em Is 26,3-4. O TM e, com ele, o
Targum e a Vulgata lêem

hw"hyb; Wxj.Bi `x;WjB' ^b. yKi


porque em Ti ela confia. Confiai em YHWH

Em Qumran, no entanto, temos outra lição,


semelhante à LXX:

hw"hyb; Wxj.Bi `x;WjB' hk!b. yKi


porque em Ti . Confiai em YHWH
Neste caso, é preferível a versão do TM.
42

Outro exemplo: SI 17,10. Caso se trate de uma


haplografia, é muito antiga, pois já está presente
na LXX.

c) Ditografia (ditto = duplo):


É o inverso do erro anterior. Palavra, sílaba
ou letra, que ocorre uma só vez, é duplicada. Em
Is 40,12, o TM e a LXX lêem, respectivamente,

~yIm; Al[\v'B. dd;m'-ymi


Quem mediu com a palma da mão as águas

ti,j evme,trhsen th/| ceiri. to. u[dwr


Quem mediu com a palma da mão as águas

Em Qumran, porém, o manuscrito da primeira

gruta duplica o y de ~yIm; [águas] e lê

My! Yme Al[\v'B. dd;m'-ymi


Quem mediu com a palma da mão as águas do mar

d) Paráblepsis:
Quando a mesma palavra ou frase se repete e o
copista, por ter saltado da primeira para a
segunda ocorrência, omitiu tudo o que estava entre
elas. Isso ocorre em Js 21,35-38: devido a um
fenômeno de paráblepsis, os vv. 36-37 (entre
colchetes) estão ausentes em vários manuscritos e
em várias edições impressas do TM, bem como em
manuscritos do Targum e da Vulgata. Entretanto, o
TM pode ser reconstituído em base à LXX e à lista
paralela de ICr 6,63-64.

h'v,r'g>mi-ta,w> ll'h]n:-ta, h'v,r'g>mi-


ta,w> hn"m.DI-ta, 35
`[B;r>a; ~yrI['
43

hc'h.y:-ta,w> h'v,r'g>mi-ta,w> rc,B,-


ta, !beWar> hJeM;miW]36
`h'v,r'g>mi-ta,w>
h'v,r'g>mi-ta,w> t[;p'yme-ta,w>
h'v,r'g>mi-ta,w> tAmdeq.-ta, 37
[`[B;r>a; ~yrI['
dg"-hJeM;miW 38
35 Dimná com suas pastagens, Nahalal com suas
pastagens: quatro cidades,
36 [ Da tribo de Rúben: Bétzer com suas pastagens,
lahtzah com suas pastagens;
37 Qdemot com suas pastagens, Mefáat com suas
pastagens: quatro cidades. ]
38 Da tribo de Gad

e) Metátese (transposição de letras):


Ocorre quando o copista transcreve as letras
corretas, mas em ordem trocada, tal como em IRs
7,45. O Ketîb traz

hf'[' rv,a] lh,aoh' ~yliKeh;-lK' taew>


e todos os vasos a tenda que fez

mas é corrigido pelo Qerê (e, com este, a versão


siríaca e a LXX [7,31]).

hf'[' rv,a] hL,aeh' ~yliKeh;-lK' taew>


e todos aqueles vasos que fez

f) Confusão de letras
Isso pode se dar, seja no alfabeto quadrático
(r / d; h / H / t), seja no paleohebraico (t / x; c / y;
44

n / p / n).Um exemplo encontramos em Gn 14,14, com


as letras r e d. O TM lê

wyk'ynIx]-ta, qr,Y"w:
ele armou (?) seus seguidores

enquanto no Pentateuco Samaritano temos

wyk'ynIx]-ta, qd,Y"w:
ele esmagou (?) seus seguidores

5.1.2- Mudanças conscientes


Ocorrem quando o copista altera
propositadamente o texto. Isso pode ser feito em
virtude de o texto estar ainda vivo: as mudanças
não traem a fidelidade à sua transmissão. Para o
AT vemos, por exemplo, as diferenças de ortografia
entre os Manuscritos do Mar Morto e o Texto
Massorético, bem como as lições da LXX.
a) Glosa:
Trata-se de um acréscimo para ...
aa) ... corrigir:
Em Jr 10,25, o TM diverge da LXX. Respectivamente
temos:

WhLuk;y>w: Whluk'a]w: bqo[]y:-ta,


Wlk.a'-yKi
Pois devoraram Jacó, devoraram-no e aniquilaram-no

o[ti kate,fagon to.n Iakwb kai. evxanh,lwsan auvto.n


Pois devoraram Jacó e aniquilaram-no

Neste caso, pode-se explicar o TM assim: 1) um

escriba teria escrito Whluk'a]w: [e

devoraram-no] em lugar de WhLuk;y>w: [e


45

aniquilaram-no]; 2) posteriormente, a fim de


corrigir, ele mesmo ou outro teria inserido

WhLuk;y>w: [e aniquilaram-no], sem apagar a


forma errada.

bb) ... esclarecer palavras obsoletas:


No TM de Is 51,22, temos duas palavras que se
referem ao mesmo objeto:

ytim'x] sAK t[;B;qu-ta,


a taça do cálice do meu furor

Este texto pode ser assim explicado: t[;B;qu


[taça] é um termo raro (só ocorre na Bíblia

Hebraica) e foi glosado por sAK


[cálice], termo
mais comum para o mesmo objeto. Cf. Is 51,17.

cc) ... explicar textos teologicamente difíceis:


O texto hebraico de Ex 24,10 apresenta uma
dificuldade:

laer'f.yI yhel{a/ tae War>YIw:


E eles viram o Deus de Israel

Como é possível contemplar a Deus diretamente?


Os tradutores da LXX, para eliminar tal problema,
acrescentam alguns vocábulos:

kai. ei=don[to.n to,pon ou- ei`sth,kei evkei/]o` qeo.j tou/


Israhl
E eles viram [o lugar onde parou] o Deus de Israel

Ninguém pode ver a Deus, mas não há nenhum


problema quanto a se ver o lugar onde Deus se
posiciona.

b) Mudanças por razões teológicas:


46

Algumas alterações ocorrem para substituir


palavras ou expressões que "ofendem"
teologicamente:

aa) Alterações antipoliteístas:


Segundo ICr 8,33 e 9,39, o nome do quarto
filho de Saul é lfaBaw;x,['Eshbba'al\. A
vocalização parece ser uma pequena variante de
lfaBa-wyxi['Ish-ba'al = homem de Ba'al]. No
entanto, o infante recebe outro nome no Texto
Massorético de 2Sm 2,8.10.12.15; 3,8.14-15;
4,5.8.12: tw,Bo-wyxi['Ish-bosheth = homem da
vergonha]. Embora Crônicas tenha sido composto
depois de Samuel, seus manuscritos preservam,
neste caso particular, antigas tradições textuais,
as quais, por sua vez, refletem um tempo em que o
elemento teofórico lfaBa [Ba'al] deve ter sido
comum em nomes próprios. Em outras palavras, o
nome original é encontrado em Crônicas, e a forma
corrigida em Samuel.
De fato, uma antiga recensão da LXX, o texto
antioqueno (normalmente chamada "recensão de
Luciano" e que parece reportar uma versão pré-
massorética do texto hebraico) lê diferentemente o
livro de Samuel: o rapaz é denominado 'Eisbaal.
[Eisbaal = homem de Ba'al] .

bb) Alterações eufemísticas:


No TM, termos pesados são substituídos por
outros mais brandos, tal como em Jó 2,9. Se o
texto hebraico dá ares de ironia

`tmuw" ~yhil{a/ %reB' Abençoa a Deus e


morre!

a versão da LXX é ainda mais neutra

eivpo,n ti r`h/ma eivj ku,rion kai. teleu,ta


Diga uma palavra ao Senhor e morre!
47

Ao invés de jrb[abençoar], o verbo que melhor se


encaixaria aqui é seu oposto, rrx [amaldiçoar], mas
que foi evitado por respeito a Deus.

V- A DELIMITAÇÃO DO TEXTO

1- Os limites do texto
CASSIO MURILO DIAS DA SILVA

Uma das qualidades de um texto é a sua


delimitação, isto é, ele precisa ter começo, meio
e fim. Delimitar um texto, portanto, significa
estabelecer limites para cima e para baixo, ou
seja, onde ele começa e onde ele termina. O trecho
da Escritura resultante dessa delimitação recebe o
nome de “perícope”.
Em geral, nossas edições da Bíblia já trazem
os livros divididos em perícopes, cada uma delas
ostentando um título. No entanto, nem o título nem
a divisão constam no original: ambos, divisão e
título, são definidos pelos editores. Em tal
trabalho editorial, podem ocorrer dois fenômenos.
No primeiro, pode-se quebrar uma unidade textual,
isto é, pode haver uma má delimitação das
perícopes, e, em conseqüência, isolam-se
versículos de seu contexto. O segundo fenômeno é
oposto ao primeiro: perícopes que, claramente,
deveriam ter sido separadas encontram-se agrupadas
sob o mesmo título. Se compararmos várias edições
48

da Bíblia, sentiremos que, por vezes, faltou um


maior cuidado quanto à delimitação dos textos. Em
decorrência, os títulos são infelizes e
insustentáveis. Três casos pinçados e
confrontados:
a) Ecl 4,1-5,8. As divisões e os títulos
atribuídos ao livro do Eclesiastes são muito
insólitos e genéricos. Quanto aos versículos do
exemplo ora proposto, a Bíblia de Jerusalém os
considera como uma única perícope sob o título "a
vida em sociedade", embora a nota d, referente ao
título, apresente as várias "misérias da vida em
sociedade: opressão pelo abuso do poder e
desamparo do homem isolado (4,1-12); maquinações
políticas (32, 1 3-16); religiosidade motivada
pelo espírito de massa e abuso na prática de fazer
promessa (4,17-5,6); tirania do poder (5,7-8)".
Apesar da imprecisão, por que apresentar essa
divisão na nota e não no texto? A João Ferreira de
Almeida é ainda mais problemática. A primeira
discrepância refere-se à própria numeração dos
versículos. Seu versículo 5,1 corresponde ao 4,17
das outras duas bíblias comparadas. Quanto à
divisão em perícopes e respectivos títulos, temos:
4,1-16 ("os males e as tribulações da vida"); 5,1-
20 ("vários conselhos práticos"). Por sua vez, a
TEB apresenta um trabalho mais acurado quanto à
divisão em perícopes, mas os títulos continuam
questionáveis: 4,1-3 ("a sorte dos oprimidos");
4,4-6 ("o trabalho e seus riscos"); 4,7-12 ("a
solidão e os seus incovenientes"); 4,13-16 ("o
poder político e seus riscos"); 4,17-5,6 ("o gesto
ritual e seus riscos"); 5,7-8 ("a autoridade
necessária e seus abusos").
Os exemplos poderiam se multiplicar
indefinidamente, quer confrontando outras
traduções, quer comparando outros textos. Esse
exemplo, porém, basta para nos deixar claro quanto
as divisões e os títulos que aparecem nas
traduções da Bíblia carecem de critérios sólidos e
demonstram-se, por vezes, aleatórios.
Ora, é verdade que os autores bíblicos não
dividiram explicitamente suas obras. No entanto,
não nos abandonaram "no mato sem cachorro". Antes,
49

deixaram alguns indícios, a fim de evidenciar onde


começa e onde termina determinada perícope. Tais
indícios divisores de texto não devem se limitar
apenas à língua original, mas devem, igualmente,
fazer parte da tradução.

2- Critérios para a delimitação do texto

2.1- Elementos que indicam um novo início


Ao iniciar um novo relato ou um novo
argumento, o autor precisa chamar a atenção do
leitor para esse fato. Para tanto, lança mão de
alguns recursos de abertura ou de focalização:
a) Tempo e espaço:
Como todo episódio narrado se desenvolve
dentro dessas coordenadas, tempo e espaço são
indícios importantes. O tempo pode indicar o
início, a continuação, a conclusão ou a repetição
de um episódio. O espaço, por sua vez, localiza
fisicamente a ação e dá a noção de movimento (2Sm
11,1; 2Rs 4,38; Mt 2,1; 4,1; 8,5; Mc 16,1; Lc
1,5).

b) Actantes ou personagens:
Em textos narrativos, a nova ação pode se
iniciar com a chegada, a percepção ou a mera
aparição de um novo personagem, ou com a atividade
de alguém que até agora estava inativo (Ex 2,1;
2Rs 4,42; Mc 7,1; Lc 1,26).

c) Argumento:
Podemos identificar uma nova perícope pela
mudança de assunto, muitas vezes, introduzido por
fórmulas de passagem: "finalmente...", "quanto
a...", "a propósito de...", "por essa razão..."
(ICor 12,1; 2Tm 4,6). Às vezes não acontece uma
mudança de argumento, mas apenas de perspectiva.
Nas cartas paulinas, é muito comum o uso da
diatribe (o argumentador introduz um interlocutor
fictício, com o qual mantém uma discussão e
responde a questões que tal personagem propõe)
para assinalar essa passagem (Rm 7,13; 11,1).

d) Anúncio de tema:
50

Alguns textos retóricos, ao término de uma


parte da argumentação, introduzem ou antecipam os
assuntos que serão tratados a seguir. Um bom
exemplo é Hb 2,17-18, que anuncia o próximo tema,
Jesus Cristo como Sumo Sacerdote fiel e
misericordioso, que será tratado em 3,1-5,10.

e) Título:
Alguns autores deixaram explicitamente o
título que demarca uma parte importante de seu
escrito (Is 21,1.11.13; Ap 2,1.8.12).

f) Vocativo e/ou novos destinatários:


Um novo oráculo profético ou uma nova mensagem
podem ser demarcadas por um vocativo que explicita
a quem tais palavras são dirigidas. Esses
destinários podem ser os mesmos de até então (Gl
3,1; Uo 4,1.7), ou destinatários novos (Os 5,1; Jl
1,13; Ap 2,1.8.12). Esses mesmos indícios podem
evidenciar uma nova fase da argumentação (Ef
5,22.25; 6,1.4.5.9).

g) Introdução ao discurso
Como o próprio nome diz, introduz a fala de um
dos personagens (Jó 6,1; 8,1). Mas, algumas vezes,
pode funcionar como separação entre algo ocorrido
ou contado pelo personagem e o comentário que este
mesmo personagem faz a respeito (Lc 15,7.10;
18,6.14).

h) Mudança de estilo:
O texto pode sofrer uma ruptura quando o autor
mescla dois tipos diferentes de exposição. É o que
acontece quando se passa do discurso para a
narrativa (Mt 10,4-5), da prosa para a poesia (Jz
5,1; Fl 2,5-6), ou da poesia para a prosa (Jz
5,31; Mt 11,1-2; Fl 2,11-12).

2.2- Elementos que indicam o término


Ao término do episódio ou do argumento, outros
indícios nos informam que a conclusão está
próxima.
a) Actantes ou personagens:
51

O número de personagens pode ser multiplicado,


de modo a obscurecer o foco (Mc 1,45; Lc 5,15), ou
mesmo reduzido, de modo a provocar uma mudança na
focalização (Mt 17,19; Mc 9,28).

b) Espaço:
A narrativa pode ficar igualmente desfocada
por causa de um deslocamento do tipo partida (2Sm
19,40; At 12,17) ou de uma extensão (Mc 1,39; At
14,6-7).

c) Tempo:
Informações temporais também podem indicar que
a ação narrada está acabando. Pode acontecer a
expansão do tempo, que dispersa nossa atenção (Nm
20,29; IRs 10,25; At 10,48), bem como o chamado
"tempo terminal", com o qual o autor dá a
narrativa por concluída (Gn 32,22; Jo 13,30; At
4,3).
d) Ação ou função do tipo partida:
Trata-se daquela ação ou função expressa por
verbos como sair, despachar, expulsar: alguém
(normalmente o personagem pivô dos acontecimentos
narrados) sai de cena, separando-se dos demais
(ISm 16,23; Mc 8,13; At 9,25).

e) Ação ou função terminal:


Terminais são aquelas ações ou funções do tipo
morrer, sepultar, bem como as reações decorrentes
do episódio narrado, tais como rezar, admirar-se,
ficar angustiado, converter-se, temer, glorificar
a Deus etc. (Gn 49,33; At 5,5-6; Mt 9,8).

f) Ruptura do diálogo.
Muito freqüente em relatos que envolvem uma
controvérsia, o último a falar é o herói (profeta,
Jesus, apóstolo). Isso ocorre porque chegamos ao
clímax da discussão. O protagonista do episódio
profere uma palavra tida como final. Pode ser uma
questão retórica que ficará em aberto, uma citação
da Escritura, ou um dito ao estilo sapiencial. Às
vezes, o autor somente acrescenta uma breve
conclusão redacional (Lc 14,5-6; At 11,17-18).
52

g)Comentário:
O narrador pode interromper sua exposição para
fazer algumas observações que dão o sentido do
relato (Jo 2,21-22; 20,30-31), ou para expor o
sentimento dos personagens (Jo 2,24-25).

h) Sumário
Típico do expediente redacional do hagiógrafo,
o sumário pode ser considerado, em si mesmo, uma
breve perícope, na qual o autor interrompe a
narrativa para apresentar, de modo resumido,
aquilo que acabou de expor (Lc 3,18; Jo 8,20), ou
para abreviar o tempo e, assim, chegar logo ao
episódio que interessa (Lc 2,51-52).

2.3- Elementos que aparecem ao longo do texto


Neste último grupo, arrolamos elementos cuja
função não se reduz a assinalar o início ou o fim,
mas a imprimir ao texto certo ritmo ou dinâmica.
Podem aparecer simultaneamente no início e no fim
da perícope, ou mesmo ao longo do seu
desenvolvimento.
a) Ação:
Normalmente constituída por princípio, meio e
fim, a ação é o núcleo de qualquer narrativa.
Novas indicações de tempo, espaço e personagens,
geralmente, são completadas com o início de uma
nova ação (Gn 18,16; Jz 2,6; ISm 19,11; Mc 6,17).

b) Campo semântico:
Grupo de palavras cujos significados estão de
alguma forma relacionados, normalmente por terem
uma referência comum (tema, idéia, ambiente). Numa
perícope, pode funcionar como pano de fundo para o
relato ou o argumento, mesmo que não seja
utilizado explicitamente. Gênesis 22,6-10, utiliza
palavras do campo semântico "sacrifício": lenha,
fogo, cutelo, cordeiro, altar.

c) Intercalação:
Às vezes, uma ação iniciada pode ser
interrompida para ser retomada mais na frente. Em
decorrência, temos um episódio dentro do episódio,
como se fosse um sanduíche. É uma técnica muito
53

comum em Marcos (3,l-3.4-5a.5b-6; 5,21-24.25-


34.35-43), às vezes para preencher o arco de tempo
entre dois acontecimentos (Mc 3,21.22-30.31: os
parentes de Jesus partem de Nazaré no v. 21, mas
só chegam a Cafarnaum no v. 31; nesse meio tempo,
Jesus entabula uma controvérsia com as autoridades
judaicas, nos vv. 22-30).

d) Inclusão:
Uma palavra, uma frase ou um conceito presente
no início reaparece no fim e funciona como um
enquadramento, que delimita e encerra tudo o que
ficou "incluído" entre elas (SI 8,2.10; Am 1,3.5;
Mt 5,3.10).

e) Quiasmo:
Quando uma seqüência de palavras, frases ou
idéias reaparece em forma invertida (Is 6,10).
Também perícopes podem estar agrupadas em forma
quiástica (2Sm 21,l-14[a]; 21,15-22[b]; 22[c];
23,l-7[c']; 23,8-39[b']; 24[a']). Por vezes, no
centro do quiasmo, encontra-se um elemento
isolado, sem outro correspondente (Is 53,4-5a). A
técnica do quiasmo pode servir para evidenciar a
importância do(s) elemento(s) que está(ão) no
centro (Lc 4,16c-20a). No entanto, há outro uso do
quiasmo: assinalar a reversão da situação inicial.
Neste caso, o que realmente importa não é o que
está no centro, mas a mudança ocorrida. O elemento
central é apenas o fator que provoca ou explica
tal processo (Lc 11,8).
54

VI – METODOLOGIA DA EXEGESE DO ANTIGO


TESTAMENTO

1- Diacronia: os métodos histórico-crítícos


HORÁCIO SIMIAN-YOFRE

1.1- Problemas introdutórios


Geralmente, designa-se o método histórico-
crítico como "diacrônico". Como veremos, essa
denominação somente em parte é correta e carece de
esclarecimentos.

1.2- Os conceitos
Precisemos o sentido dos termos "método",
"histórico" e "crítico".
"Método" designa um conjunto de procedimentos
que permitem acesso mais objetivo a um objeto de
pesquisa. Deve ser transmissível, é preciso que
possa ser ensinado e aprendido. Uma exegese, por
mais bela que seja, e eventualmente também
verdadeira, que não se possa aprender ou repetir
não é um método, mas, quando muito, leitura livre,
que pode ser mais ou menos rica. Os Padres da
Igreja, ou os autores antigos, em particular
quando desenvolvem a exegese alegórica, no sentido
negativo habitual da palavra, mas também certas
55

interpretações "espirituais" modernas, dão muitas


vezes a impressão de uma exegese que pode ser
aceita ou rejeitada sem argumentos intrínsecos à
interpretação. O "método" então deve ser
compreensível, imitável e controlável com
elementos ao alcance das mãos de quantos têm certa
familiaridade com a disciplina a que se dedicam.
O termo "histórico" implica reconhecer que os
textos bíblicos foram concebidos e compostos em
tempos idos, que se desenvolveram num processo
histórico e que, por conseguinte, a relação com
aquele tempo tem provavelmente algo a dizer sobre
o sentido de tais textos, embora possam ter ainda
vida e sentido atuais.
A palavra "crítico", tal como se costuma
interpretar, significa estabelecer distinções e
com base nelas poder julgar os diversos aspectos
do texto ligados à história: o processo de
constituição do texto, a identidade do autor, o
tempo da composição, a relação com outros textos
contemporâneos, e a referência do conteúdo do
texto à realidade extratextual (por exemplo, a
história política, social e religiosa que o texto
subentende).
Esse aspecto "crítico" está ligado, talvez
necessariamente, a aspectos ideológicos. Certos
pressupostos políticos ou religiosos, gerais ou
próprios de determinado período da história,
favorecem determinada interpretação dessas
realidades. A descoberta, na metade do século
passado, de textos do Oriente Próximo antigo, em
que também se fala da criação e do dilúvio, levou
exegetas como Loisy, professor do Institut
Catholique de Paris, a concluir que a inspiração
ou a inerrância da Bíblia eram conceitos
definitivamente superados. Suas conclusões não
eram resultados da aplicação do método histórico-
crítico, mas de certa tendência racionalista da
época, que ele compartilhava. Não obstante essas
conclusões ilegítimas, a aplicação do método
histórico-crítico obrigou a teologia a repensar as
próprias concepções sobre a verdade e a inspiração
da Bíblia, repensamentos que foram atingindo
progressiva clareza nos documentos da Igreja, até
56

chegar à Constituição dogmática Dei verbum do


Concilio Vaticano II.
Com base nessas observações, podem-se
descrever os métodos histórico-críticos como
aqueles que, de um ponto de vista histórico,
buscam explicar todo texto a partir de seus
pressupostos e entender sua intenção original. De
um ponto de vista crítico, buscam entender os
textos da maneira mais diferenciada possível, seja
no que diz respeito à sua compreensão original,
seja no que diz respeito às interpretações
sucessivas que o texto — ainda em seu processo de
crescimento — foi recebendo.

1.3- Os limites dos métodos histórico-críticos


Entre os limites do método não se deveria
mencionar, como acontece muitas vezes, a
dependência de determinada situação histórica e
cultural em que as pessoas se tornam, a partir do
século XVI, conscientes da historicidade do ser
humano. Este fato em si é positivo e significa
avanço no amadurecimento da consciência humana —
ainda que esse processo nos tire a segurança
espiritual oferecida pela concepção segundo a qual
o ser humano move-se, sempre igual a si mesmo, na
esfera provisória e reduzida de sua existência
pessoal antes de se confrontar, na morte, com as
realidades eternas do céu e do inferno.
A consciência da história confere densidade
espiritual à vida sobre a terra. É lógico então
que se reflita e se queira saber acerca do devenir
do ser humano e sobre tudo o que o envolve, assim
como também acerca do devenir de sua fé, de sua
imagem de Deus, das próprias sagradas Escrituras
sobre as quais suas convicções se apoiam.
Também não se deveria considerar limite
decisivo certa maneira de conceber a história e os
métodos para chegar a seu conhecimento. Todo
método, em qualquer campo, nasce ligado ao cordão
das pré-compreensões culturais. Apenas é preciso
tornar-se progressivamente conscientes, para poder
controlá-lo e educá-lo.
57

Gostaríamos de mencionar três limites que deve


levar em conta o exegeta que usa o método
histórico-crítico:
• O primeiro é a dificuldade de estabelecer
relação objetiva entre o método histórico-crítico
e outros resultados válidos obtidos por outras
interpretações, como, por exemplo, pela
interpretação tipológica que o NT faz de certas
passagens do AT, pela exegese alegórica dos
Padres, ou pela leitura teológica do Magistério da
Igreja. De que forma o método histórico-crítico,
que em Is 7—8 descobre uma mensagem político-
religiosa do profeta Isaías ao rei Acaz, põe-se de
acordo com a interpretação que faz da passagem Mt
1,23 ("Eis que a virgem conceberá e dará à luz um
filho") aplicando o texto ao nascimento de Jesus,
que depois se retoma como formulação teológica da
Igreja?

• O segundo limite, próprio de qualquer método


exegético, é a contra-parte teológica e espiritual
do primeiro. É sua incapacidade de nos fazer
atingir certas verdades teológicas ou de fé,
verdades de salvação, que a Escritura nos quer
transmitir. Essas, com efeito, absolutamente não
dependem do conhecimento histórico, nem da
interpretação que dele se deriva. Como passar da
leitura histórico-crítica de Gn 2—3 às formulações
teológicas do pecado original? Em que nível deve-
se colocar a integração dos resultados dos
diversos métodos, neste caso o método exegético e
o método teológico? Talvez se deva afirmar que o
método histórico-crítico atinge negativamente a
verdade histórico-salvífica, na medida em que nos
protege do perigo de entrar por caminhos errôneos,
de depositar nossa confiança em hipóteses
insustentáveis.

• O terceiro limite é a incapacidade de o método


histórico-crítico abrir-se a uma interpretação
atual do texto, superando assim a distância entre
texto e leitor. Uma solução parcial dessa
dificuldade vem da aplicação do método não apenas
a uma fase do texto — a primeira e originária —,
58

mas também às fases sucessivas, pelo menos no


interior da própria Escritura. Há, contudo, um
último passo rumo ao leitor atual que o método
histórico-crítico não está em condições de dar,
devendo deixá-lo por conta dos métodos
hermenêuticos. Mas essa dificuldade os métodos
histórico-críticos compartilham com outros métodos
exegéticos (criticismo retórico, estruturalismo,
narratologia).

1.4- A prática dos métodos histórico-críticos


A apresentação dos métodos histórico-críticos
inicia-se freqüentemente com uma introdução à
crítica textual. Este é na verdade o primeiro
passo para decidir sobre a "constituição", os
limites, a unidade e a forma de um texto. Que
texto escolher para leitura válida da sagrada
Escritura? Uma tradução qualquer (como faz o
estruturalismo), uma tradução eclesiástica
autorizada, como, por exemplo, a de uma
Conferência episcopal, o texto massorético (TM),
ou seja, o texto hebraico vocalizado, o texto
consonântico, a tradução grega dos Setenta (LXX),
uma reconstrução do texto hebraico a partir do
grego, ou a versão latina chamada Vulgata? E, no
seio dessa escolha, como resolver os problemas das
ambigüidades?
Falamos de "métodos histórico-críticos", no
plural, porque vários métodos coincidem com a
descrição geral proposta acima. Cada um deles tem
suas técnicas próprias e uma finalidade
particular, mas se vinculam estreitamente. Tanto
que se poderia falar de diversos momentos ou
etapas do mesmo método, não fosse o fato de que
nem sempre nem necessariamente podem ser
desenvolvidos todos os momentos do método a
respeito de todo texto. É, finalmente, problema de
nomes, que não é preciso discutir em particular.
Esses métodos, ligados estreitamente entre si,
não permitem total liberdade de escolha (eu
utilizo este, eu aquele outro), nem toleram ser
usados em ordem arbitrária (eu começo daqui, eu de
lá).
59

Uma ordem bastante lógica de apresentar os


métodos histórico-críticos, ou os momentos do
método histórico-crítico (como tentaremos
justificar em seguida), é a seguinte. Por um lado,
temos:
a) a "crítica da constituição do texto" (que
corresponde ao conceito alemão de Literarkritik).
A palavra alemã Literar- não qualifica o tipo de
Kritik, mas designa o objeto sobre o qual se
exerce a crítica, ou seja, um "texto literário" no
sentido geral de "texto que encontrou forma
escrita", e isso em oposição à Traditionskritik
que trabalha sobre prováveis tradições orais
subjacentes ao texto. A tradução do conceito
alemão muitas vezes usada, "crítica literária",
exige especificação de sentido, uma vez que faz
pensar, nas línguas românicas, em estudo no
interior da ciência da literatura, sentido que não
se faz presente na expressão alemã;

b) a crítica da redação e da composição, que na


terminologia alemã se chamam Redaktionskritik e
Kompositionskritik;
c) a crítica da tradição e das fontes do texto
(Überlieferungskritik e Quellenkritik).

Por outro lado, temos:


a') a crítica da forma (Formkritik);
b') a crítica do gênero literário
(Gattungskritik)',
c') a crítica das tradições (Traditionskritik).

Evitamos usar aqui termos freqüentes como


"história das formas" (Formgeschichte) ou
"história da tradição" (Traditionsgeschichté), que
são muitas vezes empregados como sinônimos dos
termos precedentes, mas designam realidades
derivadas das anteriores. Esses termos, com
efeito, não designam métodos, mas os eventuais
resultados da aplicação dos métodos histórico-
críticos. Quando uma forma literária foi
identificada, é possível determinar a história
dessa forma literária no interior de uma
literatura.
60

A necessidade de distinguir esses dois grupos


de métodos é condicionada pela realidade dos
textos: a aplicação de um grupo de métodos ou de
outro é, aliás, o resultado da percepção correta
ou errônea do exegeta.
Se um texto aparece como unidade clara, o
exegeta poderá começar com o segundo grupo de
métodos. Se, porém, sua unidade é problemática,
não obstante um primeiro esforço de encontrar um
sentido total, será preciso começar por inquirir a
"constituição do texto". A palavra "unidade" é
usada na exegese em dois sentidos. Por um lado,
designa a qualidade de um texto, dotado de
unidade; por outro, designa o próprio texto que
possui tal qualidade, que é uma "unidade textual"
ou "unidade de texto".
O conceito de "unidade de texto" é relativo.
Pode referir-se a uma "pequena unidade", ou seja,
à menor quantidade de texto que possui sentido
completo (por exemplo, uma cena de um relato, um
oráculo profético, um poema no interior de uma
coletânea). Mas também pode referir-se a conjunto
mais amplo (um "ciclo de histórias patriarcais",
uma coletânea de oráculos ou poemas, um poema
inteiro, como o Cântico de Salomão em determinada
interpretação). O trabalho de crítica da
constituição do texto costuma começar pelas
unidades menores.
A decisão do exegeta acerca da necessidade da
crítica da constituição do texto pode prejudicar a
totalidade de sua pesquisa e levar à superava-
liação crítica e racionalista de certos elementos
do texto para chegar a mostrar sua não-unidade,
coisa que uma atitude mais positiva em prol da
unidade teria podido evitar. O hipercriticismo
nesse sentido esteve muito em voga nos primeiros
cinqüenta anos deste século e em parte é culpado
pela perda de credibilidade do método.
Qualquer que seja sua decisão inicial, o
exegeta honesto deverá sempre ter olhos abertos
para a possibilidade contrária da escolha feita.

Ao tratarmos dos métodos, iniciaremos com o


primeiro grupo, sem querer afirmar — como já
61

dissemos — que seja sempre necessário partir da


crítica da constituição do texto.

1.5- A crítica da constituição do texto


A finalidade desse método é dupla:
• delimitação do início e do fim do texto;
• prova de sua unidade.
Somente quando se constatam esses elementos, de
modo intuitivo em casos óbvios, ou analiticamente
quando o requer o caso, é que se pode falar — se
bem que ainda não definitivamente, porque faltam
outras características — de "texto" em sentido
próprio. Se não for assim, estaremos diante de
certa quantidade de palavras que não constituem um
texto.
Os dois problemas, a delimitação e a prova da
unicidade do texto, estão estreitamente
vinculados. Com efeito, duas unidades textuais
diversas podem parecer ao leitor leigo um único
texto pelo fato de seguirem um ao outro sem sinais
formais de início ou de fim (título ou capítulo),
caso freqüente nos textos proféticos.

1.6- Delimitação do texto


Na literatura moderna, pode-se reconhecer o
início e o fim de um livro, de um capítulo ou de
uma seção também tipograficamente. A delimitação
do início e do fim de um texto na Bíblia, porém,
faz-se necessária por seu caráter antológico, caso
em que nem sempre a ordem ou a sucessão são
evidentes. Muitos textos foram incorporados num
"livro" bíblico sem nenhuma razão evidente. A
delimitação torna-se, portanto, necessária para
saber qual é a mensagem de um texto.
Se, por exemplo, os oráculos proféticos de
condenação jamais tivessem fundamento, poder-se-ia
pensar que a condenação é mero capricho divino, e
que, sendo assim, a imagem de Deus que têm os
profetas é simplesmente inaceitável.
Por certo, o leitor poderá sempre cortar um
texto onde lhe aprouver, e deixar fora dele o que
não lhe agradar. Nessa altura, porém, o texto já
não é meio de comunicação entre emissor e
destinatário, mas mera realidade física (palavras
62

escolhidas) à qual se atribui um sentido, mesmo


contra o sentido pretendido pelo emissor.

1.7- Unidade do texto


O exame da unidade de um texto bíblico é
necessário pela convicção, partilhada hoje pela
grande maioria dos exegetas (com exceção de certas
tendências fundamentalistas), de que a literatura
bíblica, não só como conjunto, mas também como
unidades menores (livros, seções de livros, perí-
copes), passou por processo de evolução e
crescimento, de modo que poucas unidades textuais,
e provavelmente nenhum "livro bíblico", pelo menos
do Antigo Testamento, nos tenham chegado na forma
em que saíram das mãos de um primeiro autor-
redator.
Esse fato não criaria dificuldade se os textos
tivessem atingido tal unidade que tornasse
supérflua a pesquisa sobre a pré-história do texto
atual. Torna-se, porém, condição sine qua non da
interpretação quando o próprio texto deixa
entrever suas diversas fases de vida independente.
A determinação da unidade de um texto é
importante, portanto, para a compreensão do
próprio texto, não para identificar seu autor.
Esse era, porém, o ponto de vista na época em que
a autenticidade de um texto — sua pertença ao
autor ao qual se atribuía — era considerada ligada
a seu valor como texto inspirado ou canônico.
Por isso, também no caso de um texto que por sua
natureza nasceu da justaposição de elementos —
como por exemplo as coletâneas de leis —, o estudo
da unidade e, portanto, de sua evolução é
importante, para entender não o sentido de uma lei
em particular, mas a história da legislação e da
mentalidade jurídica de um grupo humano.
O estudo da unidade do texto, portanto, ainda
é válido e útil mesmo que se tivesse a certeza de
autor único, se ele faz afirmações incompatíveis
com certa linha unitária de pensamento.

1.8- A crítica da redação (e da composição)


63

O objeto da crítica da redação, assim como o


da crítica da composição, é um texto não-unitário.
Supõe, portanto, que tenha havido processo de
crescimento do texto. Se um texto se manifestasse
como absolutamente unitário e homogêneo, não
haveria espaço para a crítica da redação. Um texto
unitário (A) pode eventualmente ser encontrado em
texto não-unitário (B). A crítica da redação então
não procederá a partir de (A), mas de (B), e será
crítica da redação desse último texto, que
precisamente não é unitário. Essa maneira de
considerar a crítica da redação elimina perguntas
a priori inúteis, como, por exemplo, se um texto
foi composto para "viver por si" ou para integrar-
se em um complexo mais amplo.
Se a finalidade da crítica da constituição do
texto era apenas constatar a existência de
diversos estratos de texto, cabe à crítica da
redação mostrar a relação entre eles. À redação, e
portanto à crítica da redação, interessa não só o
texto redacional que se acrescenta ao texto de
base mas também esse último.
A crítica redacional pergunta-se qual teria
sido a cronologia das intervenções redacionais,
quais os recursos utilizados por cada uma delas,
quais suas peculiaridades culturais e religiosas,
qual a intenção das diversas reelaborações,
confrontando-as umas com as outras, e essas com a
intenção do texto original. Só como conseqüência
de tudo isso se poderá ainda tentar identificar os
autores dos diversos níveis do texto.

1.9- A crítica da transmissão do texto


Reserva-se, o termo "transmissão do texto"
mais propriamente, como fazem diversos autores e
também nós, ao processo da transmissão oral. Sendo
assim, não inclui as fases sucessivas da gênese do
texto escrito que cabem ao trabalho redacional.
Abandonamos, portanto, neste momento do método
histórico-crítico, o território seguro do texto
escrito, para nos aventurar pelo campo mais
fantasioso e dificilmente controlável, mas
absolutamente real, das tradições orais.
64

Pressuposto da crítica da transmissão do texto


são a existência e a importância da tradição oral
como meio de preservar o patrimônio cultural.

1.10- A crítica da forma


"Forma" significa para nós, em oposição a
"conteúdo", todos os aspectos de um texto que
"conformam" ou configuram sua peculiar
personalidade. A "forma" é a carteira de
identidade de cada texto.
O objeto da crítica da forma é o texto
escrito, determinado pela crítica da constituição
do texto e eventualmente pela crítica da redação,
quer se trate de uma unidade de base, de um
fragmento, de uma expansão ou do texto composto em
sua fase final. Neste último caso, a crítica da
forma deverá proceder por partes, indagando
sucessivamente sobre cada elemento, mas também
levando em conta fenômenos lingüísticos que se
referem ao estado final do texto e talvez o
expliquem.
A crítica da forma diz respeito a todo aspecto
propriamente lingüístico de um texto. Os aspectos
lingüísticos organizam-se em cinco ambientes
diversos: fonemático, sintático, semântico,
estilístico e estrutural. Os quatro primeiros
ambientes dizem respeito a cada um dos três níveis
de elementos constitutivos da linguagem, ou seja,
fonema, proposição e morfema/ lexema. O último
ambiente, o estrutural, trabalha, ao contrário,
somente no nível da proposição e, mais ainda, do
texto.

1.11- A crítica do gênero literário


Determinar o gênero literário é de particular
importância no caso de textos que fazem parte de
mundo cultural diferente do nosso. A Bíblia contém
gêneros literários tais como listas de nomes ou
genealogias, que no mundo moderno fazem parte da
burocracia estatal ou de institutos de pesquisa
heráldica.
Esse problema pesou sobre a interpretação de
textos bíblicos por longo tempo. O caso clássico é
Gn 1—11. Mas de vez em quando ainda se fazem
65

tentativas de leitura sociopolítica de textos que


não parecem permitir semelhante abordagem.
A função e o sentido de um texto só poderão ser
descobertos em muitos casos ambíguos a partir da
justa determinação de seu gênero literário, e da
precisa descrição e compreensão desse gênero.
É bem diversa a imagem teológica que
proporciona o relato da ascensão de Jesus quando
se o lê como se fosse relato único ou tendo como
fundo o gênero literário do arrebatamento ao céu
ou do desaparecimento misterioso de personalidades
célebres (Moisés, Elias).
É preciso distinguir entre forma e gênero
literário. Forma é, como dizíamos antes, o
conjunto dos elementos lingüísticos — fonemáticos,
sintáticos, semânticos, estilísticos e estruturais
— que dão fisionomia precisa e única a um texto.
Gênero literário, ou tipo de texto, é, ao
contrário, uma abstração lingüística que permite
associar na mesma categoria os textos que possuem
forma literária semelhante.
1.12- A crítica das tradições
O último passo do método histórico-crítico
parte também da unidade textual sob estudo,
todavia não para estabelecer eventuais momentos de
sua evolução literária (crítica da redação) ou
pré-literária (crítica da transmissão oral dos
"textos" que antecedem ao texto escrito), mas para
indagar sobre seu hinterland cultural — no sentido
mais amplo da palavra, compreendendo a religião e
a teologia.
A crítica das tradições é equivalente, em seus
pressupostos, à crítica do gênero literário: mas,
com respeito a esta, implica um passo à frente do
ponto de vista metodológico, um passo atrás do
ponto de vista histórico.
Para fechar uma áspera discussão política, uma
pessoa mais jovem dizia a uma mais velha:
"Pertencemos a gerações diferentes". Esta
respondeu: "Não, lemos livros diferentes".
A crítica das tradições busca descobrir "os
livros" que leu o autor, e que contribuem para
fazer entender sua mensagem, ou seja, as
influências que sofreu de:
66

• motivos literários, como a criação do homem do


barro, a "mulher estéril curada", ou "o justo
sofredor";
• imagens como os querubins e as serpentes,
guardiães e assistentes da divindade; ou os
exércitos celestes de lahweh;
• conhecimentos, como a semana de sete dias ou os
antigos códigos legislativos:
• concepções, como a libertação da escravidão, a
inviolabilidade de Sião, o dia de lahweh e o
templo como morada da divindade;
• crenças, como a relação pobreza-justiça-
riqueza, ou a correspondência entre pecado e
punição imediata.
Todos esses elementos são, em sentido amplo,
tradições culturais que os autores sagrados
receberam, seja da própria cultura bíblica que os
precedera, seja da cultura do Oriente Próximo
antigo, ou de uma cultura geral não mais
identificável.
Em sentido estrito, é preciso distinguir entre
uma tradição já constituída e os elementos
(motivos, imagens, conhecimentos, concepções,
crenças) que se integram no decorrer do tempo para
chegar a constituí-la.
A crítica das tradições é instrumento útil
para entender o fundo cultural e histórico em que
se desenvolveu o pensamento de um autor e para
descobrir as relações entre diversos elementos
presentes na história de um povo, que sem essa
reflexão permaneceriam isolados, como produto
próprio de uma personalidade de destaque. Assim a
crítica da tradição permite uma aproximação mais
abrangente da história cultural e religiosa de um
grupo humano.

2- Sincronia: a análise narrativa


JEAN LOUIS SKA

2.1- A narrativa e a exegese bíblica


No fim da parábola do filho pródigo, o pai diz
ao filho mais velho, que se recusa a participar do
67

banquete pela volta do irmão: "Meu filho, você


está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu; mas
era preciso fazer festa e alegrar-se, porque esse
seu irmão estava morto e retornou à vida, estava
perdido e foi reencontrado" (Lc 15,30s). A
parábola termina com essa frase, antes de o filho
mais velho ter podido responder. Ignoramos,
portanto, se cedeu ou não às razões do pai. Mas,
se o filho mais velho não responde, quem escreverá
a conclusão que não se encontra no evangelho?
Esse gênero de problemas é peculiar a um novo
método exegético dito "narratologia". Esta
sublinha no texto os pontos interrogativos, as
lacunas e as elipses que interrompem o fio da
narrativa. Além disso, e é ponto essencial desse
método, ela mostra como esses indícios são sinais
dirigidos ao leitor. Cabe a ele responder a essas
interrrogações. E sem sua resposta o texto fica
incompleto. Em outras palavras, a narrativa requer
contribuição ativa por parte do leitor para
tornar-se o que realmente é. Certamente, essa
contribuição não é arbitrária, e a narratologia
lhe fixará as regras, mas nem por isso a parte do
leitor é dispensável. As narrativas dormem até o
leitor vir despertá-las de seu sono.

2.2- A Bíblia e a literatura


A narratologia ou estudo narrativo dos relatos
é posta em relação com os recentes
desenvolvimentos dos estudos no campo da
lingüística e da crítica literária. A exegese
bíblica beneficiou-se de sua contribuição mediante
certo número de análises que trataram a Bíblia
antes de tudo como fenômeno literário.
O sentido de uma narrativa é o resultado de
uma ação, ou seja, de um processo de leitura. Isso
significa que é impossível separar o sentido de um
texto em geral e de uma narrativa em particular do
"drama da leitura", para empregar o vocabulário de
M. Sternberg. Os métodos da exegese clássica, ou
seja, histórico-crítica, tendem a considerar o
texto antes de tudo documento que fala do passado.
O intérprete serve-se do texto para atingir o
mundo que se esconde por trás do texto. A exegese
68

literária influenciada pela assim chamada Nouvelle


critique vê no texto não mais um documento que
conduz para um além de si mesmo, mas um monumento
que merece plena atenção em si mesmo. Qualquer
texto é um todo coerente de que é preciso elucidar
as estruturas expressivas, sem nenhuma referência
nem ao universo do autor, nem ao do leitor, nem ao
mundo externo. O texto é um universo fechado em si
mesmo. Para o método narrativo, é um evento vivido
pelo leitor. Assim como a música de uma partitura
permanece morta até o intérprete a executar, assim
também o texto permanece letra morta até o leitor
lhe dar vida no ato da leitura. Mas não será
arbitrária essa leitura? E o confronto com a
literatura moderna, com a literatura da fiction,
não será perigoso? não será falso, no final das
contas? Tais objeções são sérias e merecem
resposta circunstanciada. E estão de mais a mais
interligadas.

2.3- Os princípios da leitura ativa


Antes de tudo, é óbvio que a leitura narrativa
não elimina as outras abordagens. Assim, R. Alter
e M. Sternberg insistem, ambos a seu modo, na
necessidade de incluir no estudo os principais
resultados da exegese histórico-crítica, entre
outros, o fato de os textos bíblicos serem em
geral compósitos. Todavia — retomando uma idéia
diretriz de vários exegetas —, é preciso estudar
os princípios adotados pelos últimos redatores que
deram ao texto bíblico sua forma final.
O ato da leitura não é ingênuo, devendo assim
respeitar as convenções que o texto fornece ao
leitor. Se o texto provém de outra época, é
preciso buscar as convenções próprias de então
para interpretá-lo corretamente.
Do mesmo modo, o método narrativo deve
respeitar a estrutura lingüística e estilística
das narrativas. É partindo de exame preciso e
rigoroso dos diversos elementos do estilo e da
forma que é possível determinar a direção que toma
a narrativa. Nesse sentido, o método narrativo
muitas vezes se afasta bastante das escolas que
tendem a impor aos textos esquemas preesta-
69

belecidos. Estes podem ser válidos, e o são o mais


das vezes, mas sua aplicação não pode fazer jorrar
do texto um sentido tão genérico quanto os
próprios esquemas. O método narrativo é mais
pragmático, pois prefere proceder por indução. Por
outro lado, ele não se limita a estudo meramente
estilístico. Numa narração, o estilo fornece
indicações que revelam o movimento do texto e
permitem acompanhar o traçado dos "percursos
narrativos" ou das "transformações", se nos é
permitido empregar essa linguagem técnica.
Essas poucas observações mostram
suficientemente como esse método leva em conta
antes de tudo as transformações e o progresso da
narrativa. O aspecto dinâmico é primário na
leitura narrativa.

2.4- Alguns princípios básicos da análise


narrativa
A análise narrativa é um tipo de análise que
se aplica, enquanto tal, unicamente ao gênero
literário dos relatos. Faz parte de um movimento
que se desenvolveu no campo dos estudos literários
há mais de quarenta anos, chamado, segundo as
épocas culturais ou lingüísticas, New criticism,
Werkinterpretation, explication du texte. No campo
exegético, os primeiros defensores desse método
criticaram a fundo os métodos mais clássicos, em
particular o histórico-crítico. R. Alter, por
exemplo, falando da exegese clássica, usa a
expressão excavatiue exegesis, exegese preocupada
em escavar no passado dos textos. Mas não existe,
em princípio, incompatibilidade entre esses
diversos métodos, que tendem antes a completar-se
mutuamente, como veremos. As soluções de
continuidade ou as tensões que os exegetas
encontram muitas vezes em muitos textos
veterotestamentários aparecem claramente a todo
aquele que estuda honestamente as tramas dos
próprios relatos. Por outro lado, um maior
conhecimento das técnicas narrativas usadas pelos
autores bíblicos permite evitar juízos apressados
70

sobre aquelas que podiam parecer em certos casos


incoerências e que se revelam, num exame mais
aprofundado, como convenções literárias. Além
disso, a análise narrativa estende sua pesquisa às
técnicas de composição usadas pelos redatores de
textos compósitos e por autores de acréscimos
redacionais. Mas sua finalidade fundamental é
diversa. Ela consiste em compreender qual é o
itinerário que o texto propõe ao leitor: as
perguntas que lhe são postas, os elementos de
resposta que aí se podem encontrar, as impressões,
as idéias, os valores e os juízos que se lhe
oferecem e a síntese que só ele pode operar.

2.5- As principais etapas da análise


2.5.1- A trama
A trama ou enredo é o elemento essencial de um
relato, o que preside à disposição de seus
diversos componentes. Essa disposição é sobretudo
cronológica ou, pelo menos, supõe uma cronologia
da "história" ou "diegese". E essa ordem
cronológica supõe, por sua vez, uma forma de
seqüência lógica: post hoc, propter hoc. Quando
dois elementos seguem-se num relato, é
praticamente inevitável pensar que o primeiro seja
a causa do segundo.

a)- Trama de ação — trama de revelação


A partir de Aristóteles, os críticos
distinguem dois grandes tipos de trama: a trama de
ação e a de descobrimento ou revelação.
Numa trama de ação, o relato descreve uma
mudança de situação, ou a passagem de uma situação
inicial feliz a uma situação final infeliz, ou
vice-versa. O momento em que acontece a passagem
chama-se em grego peripeteia ("mudança da
situação").
Numa trama de revelação, o problema é antes de
tudo questão de conhecimento, e o relato descreve
a passagem da ignorância inicial ao conhecimento
final. O momento do descobrimento ou da revelação
chama-se em grego anagnorisis ("reconhecimento").
Muitos relatos combinam juntos esses dois
tipos de trama. Assim, a história de José descreve
71

a passagem do conflito inicial à reconciliação de


Gn 45 a 50. Trata-se, pois, de uma mudança de
situação. Mas, para reconciliar-se com os irmãos,
José deve também se fazer reconhecer por eles.
Eles ignoram quem seja o grão-vizir do Egito que
os recebe e os põe à prova. A mudança de situação
(peripeteia) coincidirá com o momento do
reconhecimento (anagnorisis) (Gn 45,1-4). Gn 22
apresenta antes de tudo uma trama de revelação:
Deus põe à prova Abraão porque quer "saber" se o
teme. O v. 11 é o momento da anagnorisis: "Agora
sei que temes a Deus..." Essa intervenção divina
põe fim à prova de Abraão e corresponde, portanto,
também a uma peripeteia. Gn 38 é outro exemplo de
relato em que ação e movimento caminham pari
passu. A "situação" de Tamar muda no momento em
que o sogro "reconhece", mediante as provas por
que a faz passar, que a nora é "justa" e que ele
errou (Gn 38,25-26).
b)- Trama unificada e trama episódica
Os autores distinguem também entre trama
unificada e trama episódica.
Numa trama unificada, cada episódio tem sua
importância. Está claramente ligado ao que o
precede e tem peso imediato sobre o que o segue.
Em outras palavras, todos os episódios são
necessários ao desenvolvimento da trama. Exemplos
de trama unificada: o Livro de Jonas, o Livro de
Rute, o Livro de Ester, a história de José, a
história da sucessão de Davi.
Numa trama episódica, o nexo entre os
episódios é mais frouxo. A ordem dos episódios
pode ser invertida, o leitor pode facilmente
saltar um episódio e passar diretamente ao
seguinte, uma vez que todo episódio forma uma
unidade em si e requer do leitor apenas um
conhecimento geral da situação e dos personagens
para ser entendido. A unidade de uma trama
episódica é dada com freqüência pela presença de
um mesmo protagonista. Exemplos de trama
episódica: a história das origens (Gn 1—11), a
história de Sansão (Jz 13-16) e o Livro dos Juizes
em geral.
72

Certamente, também aqui cada "relato" é mais


ou menos unificado ou mais ou menos episódico. O
ciclo de Abraão é menos unificado que o de Jacó, e
este último menos que a história de José.

2.5.2- As subdivisões da trama


a)- O modelo clássico
No modelo clássico, seguido por muitos
exegetas, os diversos momentos de uma narração são
a exposição, o início da ação, a complicação, a
resolução e a conclusão.
A exposição contém os elementos que o leitor
deve conhecer para compreender a ação antes de seu
início. Trata-se, em geral, de certo número de
informações sobre os atores e as principais
circunstâncias da ação (lugar e tempo). Na
diegese, os dados da exposição precedem
logicamente ao início da ação. No relato real, ao
contrário, a exposição pode encontrar-se
logicamente no início do relato, recolhida num só
ponto no interior do relato, ou as informações
podem ser dadas pouco a pouco, aqui e acolá,
quando se demonstrarem mais úteis. No Livro de
Rute, por exemplo, o relato fornece as principais
informações da exposição num "sumário": a
carestia, a estadia de Elimelec e Noemi no
território de Moab, a morte de Elimelec, o
casamento dos dois filhos de Noemi e a morte deles
(Rt 1,1-5). Em seguida serão fornecidos outros
dados do quadro do relato: a existência de um
parente próximo, Booz (2,1), o fato de ele ser um
possível "redentor" (2,20), a existência de outro
redentor (3,12) e de um campo que pertence a Noemi
(4,3). Em geral, na exposição encontram-se as
formas verbais utilizadas para o "quadro" e para o
"fundo" do relato (sobretudo o imperfeito).
O início da ação (inciting moment) é o momento
em que aparece pela primeira vez o problema ou o
conflito do relato. Ora, ele pode aparecer de
diversos modos. A esterilidade de Sara (Gn 11,30)
é ao mesmo tempo um elemento da exposição e o dado
que contém o principal problema de todo o ciclo de
Abraão. O conflito entre José e seus irmãos
aparece já em Gn 37,4. Em outros casos, no início
73

da ação do relato encontra-se uma ordem, como a de


Deus a Jonas (Jn 1,2), como as instruções da
missão de Moisés (Ex 3-4) e a vocação de Abraão
(Gn 12,1-3).
A complicação corresponde às diversas etapas
que conduzem à solução do conflito ou do problema:
as diversas tentativas de resolver o problema, as
etapas de um itinerário, as mudanças progressivas
etc. Os relatos comportam um "obstáculo" que
retarda a solução e aparece desde o início do
relato. Para sublinhar essas diversas etapas, as
narrativas bíblicas usam freqüentemente uma
"estrutura escalar", elementos x = l, o último dos
quais contém a solução. Por exemplo, no fim do
dilúvio Noé manda três vezes um pássaro, e na
terceira vez o pássaro não retorna (Gn 8,8-12). O
anjo de Deus pára três vezes Balaão; na terceira
vez ele se revela ao adivinho (Nm 22,21-35). Ou,
ainda, há dez pragas do Egito e só na décima o
faraó deixa Israel partir (Ex 7-12).
Em geral, o desenvolvimento do relato ou
complicação consta de uma série mais ou menos
longa de cenas e episódios. As narrações hebraicas
utilizam diversos meios para assinalar essas
etapas da ação: formas verbais, fórmulas, mudança
de atores, indicação do tempo e do lugar etc.
A resolução ou solução pode ser, como vimos
acima, uma mudança de situação (peripeteia) ou de
conhecimento (anagnorisis). Desde esse momento, a
tensão dramática diminui quase completamente e o
relato chega rapidamente à conclusão. Assim, a
história de Esaú e Jacó termina com a cena de
reconciliação de Gn 33. Em seguida, o relato
contém somente episódios pouco ligados entre si, e
o leitor se cansa ao querer perceber o fio
condutor (Gn 34-35).

b)- As "cenas típicas"


O termo é derivado dos estudos da literatura
homérica. Trata-se de "tipos" ou "convenções
literárias". Quem quer que tenha lido Gn 12,10-20;
20; 26,1-14 (as três versões da "esposa em
perigo") não pode deixar de reconhecer-lhes um
mesmo esquema. Esse esquema contém certo número de
74

elementos, em certa ordem, reconhecíveis em todos


os relatos que os utilizam. Todavia, cada relato
real pode permitir-se variações com referência ao
esquema abstrato, acrescentando, suprimindo ou
modificando a ordem e introduzindo novos
elementos. Essas variações em geral evidenciam a
intenção do relato.
Citemos, como exemplo, as principais "cenas
típicas" do Antigo Testamento, além da da esposa
em perigo: encontro junto ao poço: Gn 24; 29,1-14;
Ex 2,15-21; cf. Jo 4,1-42; encontro de um "anjo"
no deserto: Gn 16,6-14;21,14-19; IRs 19,4-8;
relato de vocação: Ex 3,1-4,17; Jz 6,11-24; Is
6,1-11; Jr 1,4-10; hospitalidade oferecida a um
ser divino: Gn 18,1-15; 19,1-3; Jz 6,11-24; 13,2-
24; anúncio de um nascimento: Gn 16,7-14; 18,9-15;
Jz 13,2-24; ISm 1,1-28; 2Rs 4,8-17; cf. Is 7,14-
17; relatos de murmuração no deserto sem castigo
do povo: Ex 15,22-25; 17,1-7; Nm 20,1-13; relatos
de murmuração no deserto com castigo do povo: Nm
11,1-3; 17,6-15; 21,4-10; cf. Nm 13-14; relatos de
milagres realizados com a ajuda de elemento
material: Ex 15,22-27; 17,1-7; 2Rs 2,19-22; 4,38-
41; 6,1-7; plebiscito ou introdução de um chefe ou
de um soberano: Ex 14,1-31; Jz 3,7-11; 3,12-30; 6-
8; ISm 7,2-17; 11,1-15; IRs 3,16-28; Deus que
sanciona a autoridade de seu mandatário: Ex 14,1-
31; Nm 17,16-26; Js 3-4; ISm 12,16-18; IRs 18,30-
39.
Um texto pode naturalmente combinar vários
"esquemas". Enfim, como regra geral, deve-se falar
de "cena típica" quando se dispõe de mais de dois
textos, bíblicos ou extrabíblicos.

2.5.3- Os personagens ou atores


a)- Observações preliminares
Dados o interesse contemporâneo pela
psicologia e a utilização que se faz de certos
textos bíblicos na pregação, existe forte
tendência a "psicologizar" e "moralizar" quando se
depara com personagens dos relatos bíblicos. Sem
negar a legitimidade desse empreendimento, é
preciso afirmar muito claramente que a finalidade
da análise narrativa dos personagens não consiste
75

nem em reconstruir os moventes ou os processos


mentais que determinaram suas ações, nem em fazer
juízo moral a seu respeito. A leitura visa antes
de tudo a fixar as coordenadas de seus papéis no
interior da trama do relato.

b)- Classificações
Existem diversos modos de classificar os
personagens de um relato. Os especialistas da
literatura contemporânea falam de personagens
dinâmicos ou estáticos, conforme evoluam ou não no
decorrer do relato, de personagens "chatos"
(estereotipados) se permanecem idênticos a si
mesmos, ou "redondos" (complexos) se entregues a
tendências contraditórias durante a narrativa.
Outros preferem classificar os personagens
conforme seu papel na trama: o protagonista ou
ator principal; o antagonista ou adversário
principal; as figuras de contraste, que servem
sobretudo para ressaltar a personalidade dos
outros atores; os agentes ou funcionários, que
realizam ações secundárias; os comparsas.
Enfim, segundo o modelo semiótico, não existem
personagens verdadeiros e próprios, mas funções e
actantes. Esse modelo actancial, bastante
conhecido, comporta seis membros:

Destinador —> objeto —> destinatário

ajudante —> sujeito <— opositor

Esse modelo tem a vantagem de ilustrar


bastante bem os dados de um relato. Note-se que,
no mesmo relato, um mesmo personagem pode
corresponder a diversas "funções actanciais". Em
Gn 24, por exemplo, Abraão deseja encontrar uma
mulher para seu filho Isaac. Abraão é portanto o
"destinador", aquele que enuncia o programa
narrativo. O "objeto" (o termo não tem nenhuma
conotação pejorativa) é a futura esposa, Rebeca, e
o destinatário é Isaac. Abraão encarrega seu servo
dessa missão. Esse servo torna--se, pois, o
"sujeito" do relato, aquele que deve realizar o
76

programa narrativo. O ajudante, neste caso


específico, é nomeado por Abraão no decorrer da
conversa em que enuncia as condições da missão: é
o anjo enviado por Deus (24,7). Enfim, o eventual
opositor é a mulher escolhida ou a família, que
podem recusar o casamento (24,5.55). Rebeca será,
pois, nesse relato "objeto" e eventual "opositor"
a um só tempo.
Para a análise, é de fundamental importância
perceber exatamente a função de um personagem no
interior de uma trama. Não é certamente difícil
perceber quem é o herói ou o protagonista de um
relato. E menos fácil, porém, definir a função dos
personagens subalternos que o narrador faz
intervir em certos momentos, como um jogador de
xadrez joga esta ou aquela peça para vencer a
partida.
E claro, por exemplo, que as três intervenções
de Judá na história de José são todas decisivas
(Gn 37,26-27; 43,8-10; 44,18-34). Sem elas a
história de José teria tomado rumo muito
diferente. Quanto a Rúben, ele encarna antes o
"contraste", no sentido de que suas intervenções
são infelizes e preparam, por antítese, os
"golpes" decisivos de Judá (cf. Gn 37,21-22.29-30;
42,22; 42,37-38).
Na história de Davi, o general Joab e o
profeta Nata intervém em momentos críticos. Joab
assassina Abner (2Sm 3), obtém o retorno de
Absalão (2Sm 14), decide matar o filho rebelde
contra a vontade de seu pai (2Sm 18,14), depois
faz o rei esquecer por um momento sua dor (2Sm
19,5-9); assassina Amasa, seu rival, chefe das
tropas de Absalão (2Sm 20); enfim, desaconselha ao
rei fazer um recenseamento, e a história demonstra
que o general tinha razão (2Sm 24,3-4). Joab
poderia representar a "razão política" de Davi. O
profeta Nata, por sua vez, seria antes de tudo sua
consciência moral (cf. 2Sm 7; 12,1-15), para se
tornar, com Betsabé, sua "consciência política" em
IRs 1,22-27. É neste momento que Joab perde a
partida. Na realidade ele escolhe outro campo, e
este lhe tira a vida (IRs 2,28-35). Em termos
narrativos, há aqui substituição de papéis: Nata e
77

Betsabé substituem Joab em momento-chave do


relato.
É na análise dos percursos narrativos que o
papel dos diversos atores surge mais claramente. A
linha de um relato pode tomar rumo inesperado, a
ação pode ser bloqueada, ou pode amadurecer
lentamente uma mudança.
Na história das origens e no ciclo de Abraão,
o "destinador", Deus, intervém com muita
freqüência para dirigir a ação, reconduzi-la a seu
curso inicial ou imprimir-lhe novo rumo. O mesmo
ocorre em muitos relatos do êxodo e da permanência
no deserto. No relato de Jacó e Esaú, os atores
gozam de maior liberdade. Em Gn 27, por exemplo, é
Rebeca quem imprime à trama rumo definitivo. Na
história de José, tudo depende na realidade dos
atores humanos. Os juizes, no livro homônimo, são
"sujeitos" (protagonistas) escolhidos em geral
pelo "destinador", Deus, para desbloquear
situações sem vias de saída. Com Davi, os atores
humanos em geral voltam a retomar as rédeas da
ação. No Livro de Rute, Noemi desempenha o papel
de "destinador", ao passo que no Livro de Ester é
Mardoqueu quem exerce essa função. Concluindo, é
importante perceber que jogo faz cada personagem
na trama e em que coisa pode influenciar seu
curso.

c)- A descrição dos personagens


Diga-se uma vez mais, a finalidade deste item
não é mostrar de que forma se pode analisar o
"caráter" de um personagem, mas antes indicar como
seu caráter determina os percursos narrativos do
relato. Os relatos bíblicos conhecem vários modos
de descrever o caráter dos personagens e sua
ligação com a ação do relato. Elenquemos as
principais possibilidades: o nome do personagem,
sua descrição no início e durante o relato, o uso
do "monólogo interior", o diálogo, a irrupção do
divino por meio de visões, sonhos ou oráculos, ou
o recurso a textos líricos (poesias ou salmos).
Esses momentos da narração em geral não têm como
finalidade principal fazer conhecer a vida
78

interior do personagem, mas mostrar os moventes de


sua ação.

2.5.4- Narrador, narração e leitor


A estrutura presente em qualquer comunicação
lingüística, e portanto em todo relato, comporta
três pólos principais: o "emissor", a "mensagem" e
o "receptor". Cada um desses pólos envolve
diversas facetas que devem ser atentamente
consideradas na analise. Notemos logo que aí se
estabelece a relação entre o mundo do relato e o
da experiência, entre o mundo representado e o
real, como veremos em seguida.
No esquema clássico proposto pelos críticos
literários, a estrutura de comunicação de um
relato é a seguinte:

autor real // autor implícito —» narrador —»


narração —» narratário —» leitor implícito //
leitor real.

O autor real e o leitor real (todo leitor que


lê de fato o relato) são externos ao relato e
chamados, portanto, de "extradiegéticos". Todos os
demais são internos ao relato ou
"intradiegéticos".
O autor implícito é a imagem do autor
refletida pelo relato, ou seja, a personalidade do
autor, suas preocupações, escolhas de valores,
opções existenciais, assim como resultam do texto
e não, por exemplo, de sua biografia. Quanto aos
escritos bíblicos, só conhecemos, na maior parte
dos casos, o autor implícito. Os textos são as
únicas fontes de informação que possuímos e, no
caso dos livros históricos (Gn—2Rs), os autores
permaneceram anônimos.
Chama-se de narrador a "voz" que narra o
relato. Na maior parte dos casos, como na Bíblia,
a distinção entre "narrador" e "autor implícito"
não tem nenhuma importância, razão pela qual os
exegetas falam de modo geral de "narrador". E útil
a distinção apenas em casos particulares, como
quando um autor põe em cena um personagem que se
relata, mas que o autor desaprova. Nesse caso, o
79

mundo do narrador e o do autor implícito não


coincidem e a finalidade da leitura é medir essa
distância. A voz do narrador se faz presente de
modo particular nas "intrusões", as observações
que interrompem o relato e voltam-se diretamente
ao leitor. É sempre o narrador o responsável pela
distribuição dos diálogos, e cabem a ele todos os
"ele disse", "ela disse", "eles/elas disseram" dos
relatos bíblicos.
O narratário é o destinatário do relato. Na
maior parte dos casos não aparece no relato e,
conseqüentemente, não se distingue do "leitor
implícito".
O "leitor implícito", por sua vez, é o
destinatário ideal do relato, o "leitor virtual",
"potencial", capaz de decifrar e compreender a
mensagem que lhe envia o autor implícito. Todo
relato supõe esse leitor ao mesmo tempo que o
"constrói" paulatinamente por meio da resposta ou
respostas que o convida a dar no decorrer da
leitura.
Essa estrutura da comunicação narrativa é mais
evidente quando um relato aparece no interior de
outro relato mais amplo. Assim, quando Nata conta
a parábola do pobre e do rico a Davi (2Sm 12,1-
15), Nata é o narrador da parábola e Davi é seu
narratário. O autor implícito é aquele que põe em
cena todo o episódio e deseja "formar" seu leitor
virtual — um membro do povo de Israel — sugerindo-
lhe que interprete moralmente essa parte da
história de Davi. O autor real é o que redigiu o
relato, e os leitores reais são os que de fato o
lêem. É importante distinguir entre "leitor
implícito" e "leitor real". É raro que se enderece
um relato diretamente ao leitor real, razão pela
qual, quando a análise fala de "leitor", em geral
tem em mente o auditório dos relatos e não
diretamente o leitor hodierno. No que diz respeito
ao Antigo Testamento, trata-se portanto de um
membro ideal do povo de Israel, que conhece o
hebraico e busca definir a própria identidade e a
identidade coletiva do povo a partir das
experiências do passado.
80

Por outro lado, às vezes é preciso distinguir


entre o "leitor virtual" ou "implícito" e os
personagens — intradiegéticos — que podem
representá-lo no relato. Nos relatos da
permanência de Israel no deserto, por exemplo, é
bastante evidente que o leitor virtual é convidado
a tomar certa distância de seus antepassados
rebeldes. O mesmo vale, mutatis mutandis, para a
maior parte dos discursos do Deuteronômio. Moisés
dirige-se aos membros do povo de Israel que
chegaram ao planalto de Moab. Indiretamente, o
autor do Livro do Deuteronômio faz refletir os
"leitores virtuais", pertencentes às gerações
posteriores de Israel, sobre esses discursos de
Moisés. No Novo Testamento é bastante evidente que
o leitor virtual do Evangelho de Marcos não é
chamado a identificar-se em tudo com os
discípulos, especialmente quando esses últimos
demonstram-se incapazes de compreender a mensagem
de seu mestre.
A análise narrativa, ao buscar definir com
maior precisão os contornos do autor implícito e
do leitor implícito, não pode deixar de enfrentar
alguns problemas de crítica histórica. As duas
instâncias narrativas levam na verdade o selo de
seu ambiente histórico. Sendo assim, todo relato
define as próprias relações com o mundo real
mediante as convenções literárias que usa. Também
nesse caso é necessário, portanto, situar o mundo
do texto em relação com seu "referente", o mundo
histórico e real, o mundo da experiência ao qual
reenvia por meio dos códigos que utiliza. Um
relato não é necessariamente puro reflexo de uma
experiência. Ele oferece uma interpretação dela, e
muitos relatos bíblicos buscam não só informar mas
também formar; um relato enraíza-se efetivamente
em determinado mundo e quer transformar
determinado mundo. Essa interação é, em última
instância, o verdadeiro objeto da análise
narrativa. Por outro lado, também é certo que as
divergências, as tensões, as narrações duplas e as
repetições de um relato obrigam a descobrir neles
uma pluralidade de "vozes" e, em última análise,
uma pluralidade de autores.
81

2.5.5- Ponto de vista


Esta noção, talvez uma das mais sutis da
análise narrativa, foi objeto de muitas discussões
entre os especialistas. Mas no campo bíblico é
melhor limitar-se a uma teoria simples, que aliás
deriva da estrutura da comunicação delineada no
item anterior.
Assim como nessa estrutura de comunicação
existem três pólos principais, assim também há
três "modos" principais de relatar. O "ponto de
vista" ou a "focalização" de um relato é na
realidade um problema de "percepção". A pergunta a
se fazer é: Quem percebe o que se relata? Em
terminologia cinematográfica, o problema seria
saber onde a câmera se encontrava quando foram
filmadas as diversas cenas que se desenrolam na
tela.
Como dissemos acima, existem três "pontos de
vista" ou três "perspectivas": a do
autor/narrador, a do relato ou dos personagens do
relato, e a do leitor. Traduzidos em termos de
percepção e conhecimento, o narrador pode relatar
desde sua própria perspectiva e fornecer ao leitor
todas as informações de que dispõe; pode
contentar-se com descrever o que percebem um ou
mais personagens do relato; enfim, pode limitar a
percepção à de um observador externo.
No primeiro caso, o ponto de vista é o do
"narrador onisciente". Temos "perspectiva" desse
tipo, por exemplo, nos relatos da criação, uma vez
que o narrador pode descrever-nos eventos que
precederam ao aparecimento do primeiro homem e
conseqüentemente não tiveram testemunhas. Ela
poderia ser chamada de "perspectiva total", uma
vez que nenhuma — idealmente — escapa da percepção
do narrador e que a informação do leitor é máxima.
Quando o narrador limita a percepção à dos
personagens, a "perspectiva" é chamada de
"interna" (à dos personagens em questão). Neste
caso, o leitor vê, entende, percebe e compreende o
que vêem, entendem, percebem e compreendem um ou
mais personagens. O leitor não consegue saber nada
82

a mais que aquilo que sabe e diz determinado


personagem.
Enfim, a perspectiva pode ser "externa". Nesse
caso, o narrador nunca entra no mundo interior de
seus personagens, não revela nada dele, e o leitor
encontra-se na posição de observador externo.
No primeiro caso, o leitor sabe mais que os
personagens; no segundo, quanto sabe o personagem
(pelo menos quanto o personagem que serve de
"focalizador"); e no terceiro sabe menos que ele.
Nos relatos bíblicos, aplicam-se tais noções
não tanto a longos episódios, mas antes a
fragmentos de relato. Em muitos relatos, a
perspectiva é a de um observador externo
(pespectiva externa ou ponto de vista do leitor).
Mas o narrador de vez em quando amplia a
perspectiva e informa o leitor desde o ponto de
vista de narrador onisciente. Ou então escolhe,
para um momento preciso, adotar o "ponto de vista"
ou a "perspectiva interna" de um dos atores do
relato.
Por exemplo, no relato da rebelião de Absalão,
a maior parte dos acontecimentos é relatada
segundo perspectiva objetiva, externa. O leitor
"assiste" a todos os acontecimentos, sem jamais
poder lançar o olhar para o que ocorre nos
bastidores. De vez em quando, porém, o narrador
informa o leitor sobre certo número de coisas que
ficaram por longo tempo secretas ("perspectiva
total" ou "ponto de vista do narrador
onisciente"). Em 2Sm 13,22 temos um primeiro
exemplo disso: "Absalão não disse mais uma palavra
a Amon, nem em bem nem em mal, pois Absalão odiava
Amon pelo fato de ele ter violentado Tamar, sua
irmã". A explicação "pois odiava" é do narrador.
Para um observador, essa explicação é uma das
tantas possíveis: Absalão pode estar prostrado
pela dor, pode ter vergonha etc. Mas a afirmação
do narrador será confirmada em seguida, uma vez
que Absalão assassina Amon (2Sm 13,23-33). A voz
do narrador volta a fazer-se ouvir ao interromper
o relato para descrever Absalão (14,25-27).
Durante a cena da deliberação entre Absalão,
Aquitofel e Cusai (2Sm 16,15-23), o narrador
83

intervém duas vezes. Na primeira vez explica como


eram então os conselhos de Aquitofel muito
apreciados: "Naqueles dias, um conselho dado por
Aquitofel era como uma palavra dada por Deus a
quem o consulta. Isso valia de todos os conselhos
de Aquitofel para Davi e para Absalão" (16,23).
Por que ampliar a perspectiva e dar essa
informação? Provavelmente porque o leitor tem
necessidade de um guia para interpretar a
situação. Deve compreender que Aquitofel é homem
perigoso, o que não resulta imediatamente do
contexto; Aquitofel, com efeito, acaba de aparecer
em cena, e o leitor ainda não o viu agindo. Neste
caso, a intervenção do narrador é o meio mais
econômico de situar o personagem e sua influência.
Além disso, ele tinha dado somente um conselho a
Absalão, o de freqüentar as concubinas de seu pai
(16,21). O motivo pelo qual Absalão segue esse
conselho não é necessariamente, para o leitor, o
prestígio de Aquitofel. O narrador esclarece por
isso as coisas. Na segunda vez, o narrador diz: "O
Senhor tinha decretado malograr o conselho de
Aquitofel, se bem que fosse o melhor, para fazer
cair a desgraça sobre Absalão" (17,14). Essa
"percepção" dos fatos não pode vir nem de um
personagem nem de um observador. Só o narrador,
que conhece o fim trágico da história, pode
pronunciar essas palavras a partir de seu ponto de
vista "onisciente" e, assim, penetrar até nas
intenções de Deus.
Nos mesmos capítulos, temos um exemplo de
passagem em que o leitor sabe menos que os
personagens ("perspectiva externa"). Dessa vez, o
narrador opta por esconder uma informação a seu
leitor para aumentar a tensão dramática do relato.
No capítulo 14, quando Joab imagina um estratagema
para fazer retornar Absalão, faz vir uma mulher de
Técoa e dá-lhe instruções. Mas, no diálogo, o
narrador refere assim as palavras do general:
"entra para junto do rei e fala-lhe assim e assim"
(14,3). Em vez de dar o conteúdo da mensagem, o
narrador resume-o dizendo: "E Joab lhe colocou na
boca as palavras" (indicou-lhe o que devia dizer).
Hoje se diria: sussurrou-lhe ao ouvido o que devia
84

dizer. Aí o leitor é observador externo que só


descobrirá a astúcia quando ouvir a mulher falar
com o rei Davi.
No mesmo relato, temos um exemplo de
"perspectiva interna" (capítulo 18, v. 24). Depois
da derrota, Davi acha-se na entrada da cidade e a
sentinela está sobre a torre, esperando que chegue
algum mensageiro. O v. 24 descreve assim a chegada
de Aquimaas, filho de Sadoc: "A sentinela subiu ao
terraço da porta, na muralha. Levantou os olhos e
eis um homem a correr sozinho". Quem vê o homem
correndo sozinho? Certamente é a sentinela. Mas o
texto não diz: Vi um homem correndo sozinho.
Tratar-se-ia então de percepção do narrador. Nesse
trecho, o narrador opta por ver e fazer ver a
chegada do mensageiro com os olhos da sentinela, a
primeira pessoa a vê-lo. Nesse caso, o hebraico
usa a partícula "e eis que" (vehinnêh).
Essa passagem da perspectiva neutra ou total
do narrador para a perspectiva interna de um
personagem é muito clara em dois relatos de
teofania, Gn 18 e Ex 3. No primeiro, o narrador
informa logo seu leitor sobre o conteúdo do relato
que segue com uma espécie de "retomada
proléptica": "O Senhor apareceu [a Abraão] junto
aos Carvalhos de Mamre" (18,1a). O leitor sabe
desde o começo que lahweh em pessoa aparece a
Abraão. O versículo seguinte passa à perspectiva
de Abraão: "levantou os olhos e viu: eis que três
homens estavam de pé diante dele". Para o narrador
é lahweh que aparece, mas na perspectiva de Abraão
trata-se de três homens. No relato da sarçà
ardente, a estratégia narrativa é a mesma. Para o
narrador e o leitor, é o anjo do Senhor que
aparece a Moisés "numa chama de fogo no meio da
sarça" (Ex 3,2a). Moisés, por sua vez, não vê de
início mais que uma chama: "viu, e eis que a sarça
queimava, estava toda em chamas, mas não se
consumia" (3,2b). A mudança de perspectiva é
particularmente freqüente nos relatos de visões e
de sonhos.

2.6- Conclusão
85

Todo método tem seus pontos fortes e seus


pontos fracos. O método narrativo tem certamente
uma vantagem: aplicar às narrativas bíblicas um
método adequado ao próprio objeto, uma vez que
analisa os relatos como relatos e não só, por
exemplo, como possíveis documentos históricos. Por
outro lado, um método é verdadeiramente rigoroso
quando sabe fixar os próprios limites e não
pretende ultrapassá-los. A análise narrativa tem,
como primeira finalidade, penetrar no mundo do
relato. Seus instrumentos são menos adaptados à
análise das relações entre o relato e o mundo de
experiência. Nesse terreno, os métodos mais
clássicos da exegese histórico--crítica são mais
adequados. Esperemos, pelo menos, que o olhar
sobre o método oferecido nesse capítulo tenha
permitido ver como esses diferentes modos de
praticar a exegese muito mais se completam do que
se excluem. Como o bom artesão, o exegeta não
escolhe primeiro os instrumentos e depois o objeto
a trabalhar. Ele examina longamente o material a
trabalhar e só depois escolhe os instrumentos mais
adequados para o trabalho que deve realizar.
3- Ana-cronia e sincronia: hermenêutica e
pragmática
HORÁCIO SIMIAN-YOFRE

À diferença dos capítulos anteriores, nos


quais nos movíamos em terra segura, conquistada em
decênios de debate, se bem que nem todo problema
tivesse sido resolvido, caminharemos agora em
dunas que mudam de conformação a cada nova
ventania.
"Hermenêutica", tomada aqui no sentido
descritivo que a palavra adquiriu nos últimos anos
na discussão sobre a interpretação da Escritura,
quer indicar uma interpretação que conecta o
sentido histórico do texto com seu significado
para o leitor atual em cada momento da história do
texto. A essa correlação entre significado e
significação correspondem a correlação de
explicação e interpretação, a de Deutung und
86

Bedeutung e a categoria de "leitura


contextualizada".
Neste capítulo refletimos sobre três
importantes esferas de problemas relativos à
leitura hermenêutica. A primeira diz respeito ao
sujeito da leitura da Escritura, a segunda à
possibilidade e justificação de uma leitura
hermenêutica, a terceira à estratégia concreta que
implica essa leitura.
Por causa das circunstâncias de origem dessas
reflexões, elas manifestam particular preocupação
pela hermenêutica da teologia da libertação, à
qual se referem alguns exemplos. Aplicam-se,
porém, também ao problema da leitura hermenêutica
como tal.

3.1- O sujeito natural da leitura da bíblia


3.1.1- O problema
Quem é o legítimo sujeito da leitura da
Bíblia, e, em correspondência a essa pergunta,
quem é seu destinatário? É sujeito o teólogo ou
biblista, que sabe mais e lê a Bíblia para o povo,
ou é o "povo", a comunidade crente, que, não
obstante suas limitações naturais, lê a Bíblia por
si mesmo, inaugurando assim uma nova forma de
leitura? Tinham necessidade os ouvintes das
narrativas patriarcais ou os ouvintes dos
ensinamentos dos profetas e de Jesus de um exegeta
que lhes interpretasse as palavras que tinham sido
propostas?
Da tragédia grega à oratória latina e às
homílias dos Padres da Igreja, dos grandes textos
dramáticos ingleses, franceses ou espanhóis aos
romances contemporâneos e aos discursos políticos,
todo texto, por sua natureza comunicativa, exige,
em princípio, ser interpretado, não por um
intermediário, mas por seu destinatário final.
Somente as dificuldades técnicas (línguas
mortas, evolução da cultura, estado dos
manuscritos) podem requerer e justificar a ajuda
do mediador. Mas fora desses casos permanece
válido o princípio fundamental de que o
87

destinatário final é o intérprete legítimo de um


texto.
A grande massa pode ser o destinatário final
de textos orais, grupos particulares de nível
cultural médio o destinatário de textos concebidos
como escritos, e ainda um grupo mais particular
(juristas, cronistas, teólogos) o destinatário de
textos mais ou menos técnicos. Em todo caso, o
destinatário dos textos bíblicos não foram
certamente os especialistas da religião, ou da
sagrada Escritura. Como acontece com os conceitos
fundamentais, não parece que se possa encontrar
argumento decisivo para estabelecer se o povo é
somente destinatário passivo ou também sujeito
ativo da leitura da Escritura.
As afirmações da própria Escritura sobre a
presença do Espírito no povo e na comunidade
cristã favorecem a tese da comunidade intérprete.
Nem sequer a doutrina tradicional sobre o
Magistério da Igreja pode responder à pergunta. A
relação entre o "mestre" da Escritura e o povo
põe-se antes de se chegar ao caso excepcional em
que a autoridade última do Magistério é chamada a
resolver um problema de interpretação.
Quando faltam os argumentos, parece que é o
tempo dos testemunhos. Em diversos ambientes, e
muito intensamente na América do Sul, houve
esforços para retornar a uma leitura popular — do
povo em primeira pessoa — da Bíblia.
Essa interpretação da Escritura, que parte do
povo e endereça-se ao povo, funda a própria
exegese sobre a autoridade do "Sr. Paulo" ou de
"Dona Maria", camponeses desconhecidos que mal
sabem ler e escrever e, em todo caso, não utilizam
esse conhecimento para interpretar a Escritura,
mas reagem com senso cristão a um texto. A pessoa
que coordena o grupo de leitura limita-se a
purificar a sintaxe e o vocabulário, e a eliminar
as repetições. Daí surge uma interpretação da
Escritura que não é a do catequista, mas a do povo
de Deus.
Esse modo de ler a Escritura destaca um
problema da filosofia moderna que a hermenêutica
88

bíblica muitas vezes esquece: o consenso como


critério de verdade.
Na radical formulação de Jürgen Habermas, se
uma proposição pode ser considerada verdadeira
quando o predicado convém ao objeto, "então e
somente então se pode atribuir um predicado a um
objeto, quando toda pessoa que se pusesse em
comunicação comigo atribuísse o mesmo predicado a
tal objeto".
Como teoria geral da verdade essa formulação
recebeu numerosas críticas, e deveria ser
precisada de muitos modos, como o próprio Habermas
o fez sucessivamente. Ela oferece, porém, um
elemento importante para a reflexão hermenêutica,
bíblica e geral.
Quando um grupo de pessoas sofre intensamente
por uma situação de injustiça e opressão, de modo
que somente ele pode entrar em comunicação a esse
propósito, e quando ele atribui o mesmo
significado ao mesmo sujeito, ou seja, interpreta
de modo comum tal situação, parece realizar-se o
postulado de Habermas. Se, além disso, a situação
é interpretada a partir de um texto bíblico, então
se poderá dizer que também a interpretação bíblica
é legítima.
É lógico e óbvio, ao contrário, e não debilita
a legitimidade da precedente interpretação, que
uma pessoa fora daquele grupo, não tocada pela
situação, a interprete de modo diverso. As pessoas
"bem-pensantes" de todos os tempos pensaram — como
os amigos de Jó — que o desgraçado é um pecador,
que o pobre é punido por sua preguiça, e que o
estrangeiro não progride porque não se empenha.
Quando se trata de interpretar com relação a
uma situação concreta, e não somente de explicar
em abstrato, parece que se pode aplicar o consenso
como critério operativo de verdade sobre a justa
interpretação. Falar de "critério operativo"
significa reconhecer a validade de tal consenso
dentro de deteminados limites de espaço e de
tempo. Pela mesma razão, esse critério operativo
do consenso deverá ser submetido constantemente a
verificação, para evitar que se torne também ele
89

uma proposição teórica não mais válida na situação


concreta.
Nesse contexto pode-se entender como é justo
que um grupo encontre nos eventos do êxodo dos
hebreus do Egito uma parábola de sua própria
situação, e releia o texto a partir desse ponto de
vista.
O critério do consenso, que lembramos,
encontra importante fundamento teológico quando se
reflete sobre a importância da tradição na
comunidade cristã como critério de verdade.
Pensamos aqui no momento da origem de um aspecto
particular dessa tradição, quando se revela como
um processo vivo e como o impulso a elaborar novas
interpretações ou formas de vida que,
progressivamente e mediante várias tentativas,
chegam à sua forma justa e podem eventualmente
completar e corrigir as precedentes formas e
interpretações.

De modo semelhante, uma interpretação


consensual da Escritura poderá revelar-se, por
meio de sucessivas purificações, e num processo de
assunção sempre mais universal no seio da Igreja,
como parte de sua permanente tradição. Ou, pelo
contrário, poderá ter apenas valor limitado a um
momento e a um grupo concretos.

3.1.2- O povo pobre como intérprete da Escritura


Uma vez que os pobres (no sentido econômico da
palavra) são a imensa maioria da população do
planeta Terra e, pelo que se pode prever,
continuarão a sê-lo por muitos séculos, falar de
"povo" como sujeito da leitura da Escritura obriga
a considerar o "pobre" de fato e concretamente (se
bem que não exclusivamente) como tal sujeito.
A falta dessa reflexão nos faria recair no
elitismo de uma interpretação elaborada nos
centros da cultura rica e oferecida —- no melhor
caso — ou imposta — no pior — ao indefeso povo de
Deus.
As conotações da pobreza não são as mesmas em
todo país ou continente. Em países como o Chade ou
Bangladesh parece assinalada pela radical dureza
90

das condições de vida (terra desértica e


inundações periódicas); na índia e, até há pouco
tempo, na China, parecia ligada a um crescimento
excessivo da população sem qualquer previsão e
controle. Nesses casos, a pobreza não caracteriza
antropologicamente de modo decisivo a relação
desses povos com outros.
Na África negra a pobreza não parece resultado
direto da exploração daqueles países por parte de
outros, mas conseqüência de uma situação de
inferioridade racial à qual o mundo islâmico e
branco condenou o mundo africano, com a
escravidão, primeiro, e com um maldisfarçado
desprezo depois. É lógico, portanto, que uma
leitura africana da Escritura se interesse mais
pelo problema das relações entre os povos do que
pela pobreza, uma sua conseqüência.
No contexto latino-americano, a pobreza é
vista como o resultado injusto de uma opressão que
se desenvolveu num processo complexo, que vai da
provável influência da colonização inicial até a
história moderna, na qual os interesses
internacionais se entremesclam com aqueles de
grupos locais privilegiados.
A pobreza na América Latina aparece assim,
mais que em outros continentes, não como resultado
de dificuldades naturais ou técnicas que se devem
superar, e portanto como etapa necessária no
processo de crescimento, mas como o resultado do
egoísmo de grupos e pessoas, como efeito da
vontade de poder e conquista da parte de nações
estrangeiras, como manifestação de uma desordem
estrutural da sociedade, e enfim, para o crente,
como concretização do pecado.
Sendo assim, a pobreza torna-se lugar de
encontro do bem e do mal, manifestando-se ao mesmo
tempo, para o crente que reflete a partir da fé,
como lugar da vizinhança de Deus.
Em tais circunstâncias até a pobreza concreta,
bruta e suja, que se pode encontrar todos os dias
em tantos lugares urbanos e rurais da terra,
aquela pobreza aceita — ainda que não tematizada —
com paciência, com verdadeira alegria
freqüentemente, faz descobrir e viver intensamente
91

valores evangélicos (confiança no amor paterno de


Deus, aceitação de seus caminhos, descobrimento do
sentido da dor, compreensão para com os outros,
generosidade, paciência e criatividade perante
situações não atualmente modificáveis, alegria de
viver, apreço pelas pequenas satisfações que a
vida pode oferecer), valores dificilmente
encontrados nas sociedades desenvolvidas, ricas
até a saciedade, enfastiadas até a neurose.
Diante dessa constatação, é preciso perguntar-
se seriamente se a opinião daqueles que vêem na
pobreza um momento de passagem da humanidade,
incompatível com a riqueza e plenitude de Deus —
que se toma como analogatum princeps —, pode ainda
ser mantida. Nem a escassez de bens materiais, nem
a renúncia, necessária ou voluntária a eles, é
verdadeiramente incompatível com a riqueza de
Deus, mas somente a pobreza que é expressão da
injustiça, miséria que degrada a humanidade, a
maior riqueza de Deus.

Parece, portanto, tarefa iniludível de uma


reflexão hermenêutica que queira ser válida para a
maioria das pessoas criar uma metodologia de
leitura bíblica capaz de encontrar na Escritura
não só a inspiração para uma ação política
libertadora, quando necessária, mas, para além
dessa finalidade, limitada teoricamente a um
período de transição, estabelecer a pobreza como
chave definitiva de leitura: uma pobreza entendida
como dom de Deus, cultivada voluntariamente e não
produto de opressão; oposta ao consumismo e ponto
de partida de liberdade interior, de vontade de
compartilhar os bens da terra, de respeito pelo
universo.

3.2- Justificação de uma leitura hermenêutica .


3.2.1- Características de uma leitura
contextualizada
Em artigo que foi como que a magna charta da
leitura contextualizada da Bíblia na América
Latina, Carlos Mesters apresenta os traços
fundamentais da concepção e realização de uma
hermenêutica bíblica.
92

O processo de leitura descrito poderia


organizar-se em três pontos:
• a leitura da Bíblia é feita por uma comunidade
orante e militante;
• portanto, não a partir de um lugar social e
culturalmente neutro, mas engajado;
• ela busca não a compreensão de uma história
passada, ou de um sentido em si, mas de uma
história que reflete a atual e, portanto, de um
"sentido para nós".

Sobre a comunidade como sujeito da leitura já


falamos no item I. É preciso acrescentar ainda que
aquela comunidade ("o povo pobre"), sujeito da
leitura e interpretação da Escritura, concebe-se
aqui como militante e, portanto, consciente de
seus problemas e empenhada em encontrar-lhes
solução; e, como crente, em que a oração é
manifestação da fé, a partir da qual se buscam
soluções.
A segunda característica dessa leitura está
implícita na primeira. Se a comunidade que lê a
Bíblia é militante, significa que tem uma visão de
sua situação e uma vontade de encontrar uma
solução a partir de sua fé. Como toda
hermenêutica, a hermenêutica bíblica latino-
americana insiste na impossibilidade de exegese
neutra da Bíblia. A aparente exegese científica,
neutra e objetiva, não passaria de uma leitura a
partir de uma situação de satisfação econômica e
de conformismo político e social, que permite
substituir a necessidade de encontrar uma mensagem
"para mim" por um "jogo de pérolas de vidro",
passatempo elegante, que nem prejudica nem ajuda.
A terceira característica segue a segunda. É
impossível ter consciência de uma situação de
leitura engajada sem sentir a necessidade de
buscar uma "palavra para mim". Toda palavra que
não se possa referir a tal situação será ignorada
como alienante e desviante.
A atitude tradicionalmente aconselhada pela
"direção espiritual" privada, pelas homílias e por
certos documentos eclesiásticos, voltados para
encontrar na Bíblia uma interpretação pessoal, não
93

é problemática quando se limita aos problemas


"pessoais" e "espirituais". Torna-se, porém,
suspeita ao afirmar que a Bíblia pode falar à
comunidade sobre seus problemas políticos e
sociais, que, de outro lado, estão ligados, em
todo caso, aos problemas "espirituais".

3.2.2- Relação entre hermenêutica e métodos


histórico-críticos
Tanto a leitura contextualizada como a exegese
histórico-crítica recusam, com bom senso, uma
interpretação meramente formal, estilística ou
estruturalista, que não consegue abandonar o
claustro do texto para retornar ao mundo. Ambas
reconhecem que o texto está ligado a uma história
e a reflete. Diferem, porém, quando buscam
determinar a que história está ligado: apenas à
história contemporânea à produção do texto, ou
também à história atual de cada receptor do texto?

Ambas tentam evitar divórcio completo. A


exegese histórico-crítica constata que perdeu seus
fiéis no novo e no velho mundos, que é desprezada
não só como inútil mas também como obscura e
caprichosa, pela direita e pela esquerda, por uma
boa parte da exegese técnica, e por quase todas as
leituras engajadas, em virtude da multiplicidade
de opiniões inconcludentes sobre os mesmos temas.
Por outro lado, as leituras contextualizadas
não querem ganhar para si o epíteto de ignorantes
ou de inimigas nas centrais do poder exegético,
que costumam ser controladas pelos que possuem
mais meios econômicos, e concedem assim, por
escolha ou por força, que não se pode prescindir
do sentido literal e do trabalho exegético para
"controlar" o sentido "espiritual", e que "o
sentido espiritual deve ser sempre o sentido do
texto". Diz-se do exegeta profissional que ele é
"guarda" do "sentido textual e histórico do
texto", e reconhece-se que a "pesquisa exegética
européia" ajuda a "iluminar o texto e aprofundar o
trabalho interpretativo".
94

É difícil, porém, encontrar concretamente um


estudo bíblico, de uma e de outra parte, em que se
integrem harmoniosamente exegese e hermenêutica.

3.2.3- As promessas de uma leitura hermenêutica


a. Relação entre verdade e linguagem
Uma leitura hermenêutica legítima deverá levar em
conta também esse problema epistemológico, muitas
vezes negligenciado pelos biblistas, que retoma a
velha tese escolástica do juízo como sede da
verdade.
A variedade dos modos de linguagem implica uma
variedade formal da verdade, que não se deixa
reduzir a um denominador comum que incluiria, como
que numa síntese, todas as variantes.
Há uma verdade de correspondência,
"indicativa" ou tautológica, que consiste em
assinalar a presença de um objeto e atribuir-lhe
um nome. Essa verdade exprime-se num juízo
existencial e reside na linguagem, enquanto supõe
uma linguagem adquirida e aceita por uma
comunidade. Fora dela, o juízo é incompreensível,
e em conseqüência a verdade que aí se expressa,
irrelevante. A esse tipo de verdade corresponde o
juízo sobre a presença de objetos ("este é um
livro de metodologia exegética").
Não inteiramente diversa dessa parece ser a
verdade de evidência. A diferença consiste no fato
de o objeto agora designado ser imediatamente
perceptível e não poder ser submetido a discussão.
Essa "verdade" é, pois, indiscutível, e também
incontrolável. A ela corresponde o juízo sobre
sentimentos internos ("estou triste", "estou
enamorado").
Claramente diversa, porém, é a verdade de
coerência (formal), que se expressa num juízo que
é verdadeiro na medida em que desenvolve
coerentemente um sistema de proposições não-
contraditórias e progressivamente descritivas de
um objeto não imediatamente perceptível na
experiência sensível. A esse tipo de verdade
correspondem as descrições das realidades
complexas, históricas, culturais ou religiosas,
cujos elementos constitutivos e cujas relações
95

percebem-se progressivamente e com forte


dependência de certos pressupostos teóricos por
parte do observador.

b. A hermenêutica e sua possibilidade de relação


com os métodos histórico-críticos
Os métodos histórico-críticos trabalham com
uma verdade de coerência. Trata-se de explicar
coerentemente situações, personagens, concepções e
eventos, dos quais não temos experiência interna e
com os quais não podemos estabelecer uma
correspondência, indicando-os. Essa tarefa se
realiza com um instrumento técnico, estruturado
numa linguagem própria, de que faz parte o
vocabulário da história, da literatura, da
arqueologia, da religião e da teologia.
A hermenêutica bíblica, ao contrário, trabalha
inicialmente com uma verdade de correspondência,
na medida em que atribui a determinada situação
contemporânea um texto bíblico que a reflete: ela
"denomina" uma situação contemporânea com um texto
bíblico. O juízo assim estabelecido é do tipo: "A
situação refletida no texto X corresponde à
situação contemporânea Y".
A correspondência entre a situação do êxodo,
ou do personagem dos Cânticos do Servo sofredor, e
a situação do povo nicaragüense em certo momento
de sua história, ou do povo brasileiro do Nordeste
em outro, não parece que possa ter outra
justificação que a percepção de determinado grupo
de pessoas que lê uma situação como pecaminosa,
não-desejada por Deus, e encontra na situação
descrita num texto bíblico o equivalente da
própria situação, e na solução aí proposta o
modelo de solução para a própria situação.
Da verdade de correspondência, assim como a
experimenta a hermenêutica bíblica, pode-se
afirmar o que G. Vattimo afirma da experiência do
verdadeiro em geral, enquanto residente na
linguagem: "Andar na verdade não quer tanto dizer
atingir o estado de luminosidade interior que
tradicionalmente se indica como evidência quanto
passar para o plano das admissões participadas e
condivididas que, mais que evidentes, surgem como
96

óbvias e não-necessitadas de interrogação, e por


isso nem sequer, talvez, tais que possam
individuar-se como autênticas evidências no
sentido forte".
Quando se introduz um termo novo numa língua
para expressar uma realidade já existente, mas da
qual havia somente uma consciência obscura, pode-
se considerar o novo termo mais ou menos adequado,
mas não se poderá negar nem seu direito de
existir, nem a realidade que quer expressar.
A leitura hermenêutica de um texto bíblico
poderá ser considerada mais ou menos expressiva da
realidade que quer refletir. O consenso da
comunidade que percebe de modo semelhante uma
situação concede inicialmente a essa leitura sua
carta de cidadania. Mas a partir desse momento
deve entrar em jogo a verdade de coerência, no
sentido que tentaremos explicar na seção seguinte
deste capítulo, para determinar de modo mais
preciso a legitimidade da correspondência
estabelecida.

Em sua meditação "Vom Lesen und Schreiben"


escrevia F. Nietzsche: "De tudo o que foi escrito,
só gosto daquilo que se escreveu com o próprio
sangue. Escreve com o sangue, e experimentarás que
o sangue é espírito".
A interpretação hermenêutica é um livro
escrito com o sangue das próprias experiências,
percepções e decisões. É isso que lhe dá
vitalidade e obriga-nos a interrogar-nos sobre seu
espírito.
Uma vez estabelecidas as premissas sobre a
legitimidade do discurso hermenêutico, precisamos
perguntar-nos agora se é possível estabelecer um
programa de conversão que permita a passagem da
epistemologia histórico-crítica ao discurso
hermenêutico.

3.3- A leitura hermenêutica: alegórica ou


pragmática?
3.3.1- Pragmalingüística e texto
A importância adquirida pelos estudos teóricos
e práticos sobre a comunicação em todos os seus
97

níveis (técnico, psicológico, sociológico,


filosófico) teve, a partir da década de 60,
repercussão intensa nos estudos lingüísticos, e
levou em muitos países a um desenvolvimento sempre
mais sistemático da pragmalingüística.
A pragmalingüística é a parte da lingüística
que se ocupa com os sinais lingüísticos como
elementos de comunicação.
Todo texto, e portanto também o texto bíblico,
não é senão o elemento lingüístico constitutivo do
ato de comunicação de um processo comunicativo,
tematicamente orientado, que cumpre uma função
comunicativa reconhecível. O tema da atividade
comunicativa não se identifica, portanto, com a
finalidade, mas é o meio para alcançar uma
finalidade.
Em outras palavras, o texto não é simplesmente
um sistema fechado de sinais que funcionam quase
independentemente de seu produtor e de seu
destinatário (como parecia ser o pressuposto dos
métodos estruturalistas), mas o ponto de contato
entre ambos, o núcleo que libera a energia
comunicativa.
Isso implica dois aspectos: primeiro, que a
linguagem, seja ela oral ou escrita, não
"acontece" só, mas junto com outros fatores no
quadro complexo da situação comunicativa. Segundo,
que a realidade primária da linguagem, objeto de
experiência, não é constituída por sons, palavras
ou frases, mas é uma realidade complexa,
multíplice, que desempenha uma função
comunicativa. Essa realidade é o que aqui chamamos
de "texto". O estudo de um texto deve, portanto,
investigar não só sua realidade lingüística mas
também a linguagem em seu contexto
sociocomunicativo.
A atividade comunicativa tem como finalidade
produzir um efeito: transmitir concepções, induzir
reações emocionais ou motoras. Mais precisamente,
o emissor da comunicação (o produtor atual do
texto) busca atrair o destinatário a suas próprias
concepções, convicções e finalidades.
O receptor da comunicação (o destinatário),
por seu lado, busca receber, compreender e
98

responder na medida em que se espera dele, ou,


pelo contrário, recusa a cooperação. No primeiro
caso o destinatário/receptor busca influir sobre o
emissor, no segundo interrompe-se completamente a
comunicação.
Uma vez que tanto o emissor como o
destinatário da comunicação incluem-se
necessariamente num grupo social, os efeitos da
comunicação superam a esfera individual de cada um
e estendem-se ao conjunto da sociedade.
Esse processo manifesta a impossibilidade de
atribuir papéis exclusivos e absolutamente
determinados aos sujeitos da comunicação. Cada um
deles interage alternativamente como emissor e
receptor.
A comunicação é portanto, por sua natureza,
ilimitada. O processo de aproximação das
concepções, emoções e realizações pode ser sempre
aperfeiçoado. O processo comunicativo de que
falamos implica obviamente mais que a satisfação
de uma demanda ou de uma pergunta pontual ("que
horas são?"), processo que chega a seu termo com a
informação ou com a recusa de fornecê-la, e que
talvez não se deva considerar "comunicação" em
sentido estrito, mas somente "informação".
Considerar a Sagrada Escritura como Palavra
supõe que essa palavra não seja mera informação
divina atemporal, oráculo pronunciado
independentemente do caráter concreto do
"receptor" e de sua situação, mas processo
articulado de comunicação, que não só propõe como
também escuta, e modifica os termos tanto quanto
necessário para obter êxito no processo
comunicativo. A palavra de Jesus ou dos profetas
não atinge sua meta com a proclamação de certo
conteúdo, mas com o estabelecimento de um processo
comunicativo que leve os protagonistas da
comunicação a relação sempre mais estreita.
Além disso, se a palavra de Deus, segundo a
natureza comunicativa da palavra, consiste em
comunicar-se, é possível que aquilo que a
Escritura nos quer dizer em certos casos não
coincida precisamente com o conteúdo propo-
sicional dos textos pronunciados pelos diversos
99

personagens, mas se exprima no próprio processo


comunicativo, ou seja, na interação dos
personagens.
Assim, a parábola que Natã conta a Davi (2Sm
12,1-15) não passa de elemento menor na
constituição da "mensagem" da cena, que se deveria
ler nas atitudes subseqüentes dos dois personagens
que se concluem com a confissão de Davi.
O princípio, hoje geralmente aceito na
interpretação da Escritura, de que o elemento que
transmite a palavra de Deus não é constituído por
palavras isoladas, nem sequer por frases fora do
contexto, mas pelos textos considerados em sua
unidade, e pelo conjunto da Escritura como unidade
canônica, deve receber ainda essa
particularização: não são somente os "textos" como
proposição o que transmite a mensagem, mas os
textos como parte constitutiva de um processo
comunicativo.

Não há, portanto, textos in actu completamente


assépticos, gratuitos, indefinidos em sua
intenção, atemporais em seu valor, utilizáveis de
muitas maneiras; nem sequer, pelo contrário,
textos que dizem sempre a mesma coisa. Todo texto
implica uma pré-compreensão do mundo e do
interlocutor, ou do receptor, e tem intenção
persuasiva (a confirmação ou modificação de uma
atitude ou posição tomada). Todo texto em ação tem
uma intenção precisa. Dizer "eu te quero bem"
indica a vontade de comprometer-se com essa
afirmação, e a intenção de produzir uma reação
afetiva no interlocutor.
Um estudo pragmalingüístico pretende,
portanto, descobrir o que um texto (sistema de
sinais lingüísticos num contexto de sinais
paralingüísticos) (re)produzido por um emissor
(produtor atual) pode e quer obter de determinados
ou menos determinados destinatários (ouvintes,
leitores.
A esse conjunto de elementos pode-se aplicar a
categoria "intenção do texto", enquanto diversa da
"intenção do autor". Esta última é na realidade um
conceito psicológico, não-lingüístico, que se
100

refere à intenção interna do produtor do texto, a


qual pode manifestar-se de modo mais ou menos
explícito no texto produzido.
Nos textos de comunicação habitual (nas
relações pessoais cotidianas), o autor busca
delimitar rigorosamente seu texto, de modo que
seja evidente sua intenção e possa atingir sua
finalidade — a não ser que considere que sem
expressar a própria intenção se atinja melhor a
finalidade prevista.
Os textos "literários" tomam, ao contrário,
distância com respeito ao autor, cuja intenção
sobre sua obra habitualmente nos foge e em todo
caso não é interessante. Valorizar essa intenção
do autor fora da intenção do texto como tal
levaria a ignorar o texto e a buscar por vias
laterais — por exemplo no "diário íntimo" do autor
— sua intenção: que coisa queria dizer ou
pretendia obter.
A intenção do texto é dada, ao contrário, por
um conjunto de elementos que em boa parte não se
acham submetidos à vontade do autor. Ela poderia
definir-se, portanto, como a capacidade de ação ou
influência que determinado texto tem em certas
circunstâncias, podendo essa intenção coincidir ou
não com a do autor. A determinação da intenção do
autor, dado que se possa saber, seria eventual
ajuda para determinar a intenção do texto.

4- A leitura fundamentalista
CASSIO MURILO DIAS DA SILVA

Embora nosso interesse seja a leitura


fundamentalista da Bíblia, precisamos começar
notando que o fundamentalismo é algo bem mais
amplo do que uma simples postura hermenêutica
diante dos livros sagrados. E não obstante esteja,
hoje, presente também no Islamismo, no Judaísmo,
no Hinduísmo, no neo-confucionismo e em outras
seitas asiáticas radicais e extremistas, o
fundamentalismo teve seus inícios entre os
cristãos protestantes nos Estados Unidos e no
101

Canadá, no período imediatamente posterior à


Primeira Guerra Mundial. Suas raízes, no entanto,
remontam à ortodoxia confessional do século XVIII.

4.1- O fundamentalismo
O tema é, sem dúvida, bastante complexo e não
é nossa pretensão esgotá-lo aqui. Cada vez mais,
sociólogos, antropólogos, psicanalistas,
historiadores e estudiosos da religião se
interessam por esse fenômeno que tende a crescer
em períodos de incerteza, ocasionados por mudanças
sociais, econômicas, culturais e políticas, a
serem enfrentadas tanto pela coletividade como
pelo indivíduo. Com efeito, Shupe e Hadden definem
"em termos extremamente simples" o fundamentalismo
como "um movimento que visa recuperar a autoridade
sobre uma tradição sagrada que deve ser
reintegrada como antídoto contra uma sociedade que
se soltou de suas amarras institucionais".

Em quase todas as línguas, o termo


"fundamentalismo" evoca as idéias de reacionário,
antimoderno, conservador, contrário à evolução da
ciência, adverso a novas idéias, literalista e até
paranóide.
Em uma abordagem psiquiátrica, Hole confronta
fundamentalismo, dogmatismo e fanatismo e procura
distinguir estes três fenômenos tão aparentados. A
atitude fundamentalista é entendida como "a
orientação para um valor ou uma idéia básica que
tem que ser perfeccionisticamente protegida; além
disso, o medo de perder esse valor mediante
compromissos" e caracteriza-se "pela necessidade
de:
• embasamento (Verankerung),
• identificação clara,
• perfeccionismo,
• simplicidade".

4.2- Fundamentalismo e Bíblia


Retornando à temática que nos interessa e em
base a essas premissas, podemos elaborar algumas
ponderações breves e sumárias.
102

O fato de se ler a Bíblia de forma


fundamentalista, isto é, acentuar e aferrar-se à
autoridade absoluta da Escritura entendida como
inspirada e infalível, reflete uma atitude, uma
tomada de posição diante da vida e da conjuntura
social. Em um mundo sempre mais complexo,
incoerente, plurifacetado e em mutação, a busca de
valores simples, coerentes, unitários e perenes
acaba excluindo os pontos de vista diferentes.
A honestidade científica nos leva, porém, a
reconhecer que um fenômeno tão ligado à
subjetividade humana adquire manifestações
bastante complexas e variadas (mesmo
especificamente quanto à leitura da Bíblia),
decorrentes de uma "atitude fundamentalista",
presente em maior ou menor grau e, por vezes,
inconsciente e bem articulada. Em outras palavras,
tratar o fundamentalismo de modo simplista e
descartá-lo a priori como característico de
indivíduos afetiva e intelectualmente inferiores
ou perturbados seria encarar o fundamentalismo
fundamentalisticamènte.
Devemos, portanto, focar as variadas facetas
da atitude fundamentalista quanto à leitura da
Bíblia. A primeira delas é a dificuldade em lidar
com a complexidade do texto bíblico e o pluralismo
de idéias e de teologias por ele propostas, o que
leva a uma rejeição. Para o fundamentalista, a
Palavra de Deus está livre dos erros e das
incoerências próprias da palavra humana. As
limitações culturais, lingüísticas e científicas
dos hagiógrafos são minimizadas, quando não
descartadas, pois os autores/redatores agiram sob
a divina inspiração, capaz de remover e superar
todos os obstáculos.
A segunda pode ser definida como realismo
ingênuo. O leitor fundamentalista julga
desnecessário interpretar o escrito e tende a
ignorar outras possíveis significações e as
variadas perspectivas de abordagem do mesmo texto.
Para tal leitor, o sentido é claro e está
claramente expresso em palavras perfeitamente
adequadas. Questionado acerca das dificuldades e
das várias opções de uma tradução, o realista
103

ingênuo dirá que, mesmo no original, o sentido é


claro e, portanto, também a tradução o será. E
qualquer tradução divergente daquela que tal
leitor acredita ser autêntica será tida como
falsificação realizada por gente mal-intencionada.
A terceira faceta disfarça a atitude
fundamentalista sob a égide da confessionalidade e
se manifesta quando determinada doutrina ou
teologia se utiliza do texto bíblico para
comprovar seus dogmas. O texto bíblico, visto como
linear, coerente e harmônico, torna-se um tesouro
de argumentos que corroboram o credo e a doutrina
de um grupo. Típico desse expediente é a
utilização de variados versículos, que foram
pinçados de seus contextos e sem levar em
consideração a questão do gênero literário, para
comprovar um artigo da fé e motivar ou legitimar
um comportamento.
A confessionalidade se desdobra em
espiritualidade. Bem mais numerosos que os
fundamentalistas crassos e declarados são os que
abdicam do senso crítico e da própria capacidade
de buscar sentidos novos para as perícopes
bíblicas e se deixam conduzir acriticamente por
líderes e movimentos espirituais. Esses leitores
interpretam o texto bíblico sempre da mesma
perspectiva, normalmente de cunho moralizante, e
descartam (ao menos para a própria vivência) a
possibilidade de interpretações baseadas nas
ciências bíblicas. Quando muito, aproveitam-se das
conclusões e dos questionamentos dos estudiosos
apenas para comprovar as interpretações que já
operavam anteriormente, mas rejeitam tudo o que
coloca em dúvida uma leitura já assumida e tida
como o sentido evidente e claro do texto.
Por fim, a última faceta do fundamentalismo
aponta para a própria ciência bíblica. Mesmo entre
os exegetas, não pode haver um "fundamentalismo"?
Não falamos apenas das pesquisas históricas,
arqueológicas, antropológicas etc., que se
empenham em provar a historicidade dos relatos
bíblicos. Falamos de algo bem mais sutil. Em vez
de dar a liberdade ao texto para que diga o que
quer (ou o que pode), a atitude fundamentalista
104

pode levar o exegeta a realizar uma trapaça


metodológica, que pode ser assim definidida: não é
a "interpretação" que abre o texto e sim o texto
que comprova a "interpretação". O termo
"interpretação" aparece entre aspas, pois não se
trata mais de uma verdadeira interpretação, e sim
de uma abordagem pseudocientífica: o que deveria
ser provado é utilizado como pressuposto. Em
decorrência, não importa qual o texto — se do
Antigo ou do Novo Testamento, se um Salmo ou uma
perícope tirada da epístola de Tiago, se uma lei
do Deuteronômio ou a genealogia de Jesus no
evangelho de Mateus —, ele será sempre lido de
modo a confirmar determinada "interpretação".
Imaginemos um estudioso da Sagrada Escritura que
adota somente uma teoria ou uma linha de
interpretação e que força os textos para fazê-los
concordar com as idéias que quer provar. Não
haveria nisso uma manifestação de fundamentalismo?
Em outras palavras, só porque utilizamos o Método
Histórico-Crítico, ou fazemos uma leitura
feminista, ou realizamos estudos sócio-
antropológicos, isso significa que tenhamos
superado a atitude fundamentelista?

VII- A PRÁTICA EXEGÉTICA


1- A exegese e o texto original
DOUGLAS STUART

O propósito deste capítulo é ajudá-lo a ter


uma idéia mais clara do processo da exegese,
apresentando ilustrações de como certas partes
desse processo poderão funcionar em várias
passagens do AT. Um bom número de passagens é
usado de modo seletivo — algumas vezes, mais do
que uma para determinado passo exegético —, a fim
de proporcionar-lhe uma exposição à rica
diversidade de material no AT. Portanto, você não
verá a cobertura exegética sistemática de nenhuma
passagem em particular. Para obter exemplos disso,
os comentários exegéticos recentes e técnicos,
105

como a série Word Biblical Commentary, ou a série


Hermeneia, serão úteis, como também,
ocasionalmente, artigos exegéticos em periódicos
tais como Interpretation.
Mesmo quem não lê hebraico perceberá que o
conteúdo deste capítulo é útil e, em geral,
inteligível. Para os que conhecem hebraico, a
consulta regular à BHS é essencial para a
apreciação dos contextos mais amplos dos quais os
trechos escolhidos deste capítulo são tirados.
Nem todos os passos exigem uma ilustração;
mas, quando isso for útil, pelo menos uma
ilustração será oferecida. Ilustrações mais longas
ou múltiplas serão apresentadas quando
esclarecerem o processo exegético.

2- O texto

2.1- Confirmando os limites da passagem


Existem dois recursos aos quais poderá
recorrer a fim de conseguir ajuda imediata para
confirmar os limites de uma passagem: (1) o
próprio texto hebraico na BHS ou BH3, e (2)
praticamente qualquer tradução moderna. O que deve
ser examinado aqui é a paragrafação delas. No caso
do texto hebraico, o material bíblico é arranjado
em forma de parágrafos por meio de variação na
endentação na margem direita. Quando muda o local
da margem, seja por avançar para o meio da página
seja por recuar mais para a margem direita, isso
sinaliza a opinião do editor de que uma nova seção
lógica começou. No caso das versões modernas, a
endentação simples da primeira palavra em uma
oração indica um novo parágrafo. Ao examinar o
arranjo da passagem, de preferência tanto em
hebraico como em português, logo poderá perceber
se sua própria tentativa de identificar uma
passagem condiz ou não com a avaliação desses
eruditos quanto ao agrupamento natural do
conteúdo.
As decisões sobre paragrafação são, às vezes,
subjetivas. Assim, notará que os diversos
agrupamentos de conteúdo feitos pelos editores nem
sempre concordam entre si. Entretanto, se decidir
106

iniciar a passagem onde nenhum editor começou um


parágrafo, ou encerrar sua passagem onde ninguém
terminou um parágrafo, será sua a responsabilidade
de justificar integralmente a decisão de
selecionar ou configurar a passagem desse modo.

2.2- Comparando as versões


Para analisar as muitas versões do AT, você
precisa verter cada uma delas de volta para o
hebraico, pelo menos até o ponto de ser capaz de
dizer se refletem ou não o TM. Como esse processo
pode ser complicado, será útil fazer uma tabela
com todas as versões alistadas, linha por linha,
facilitando a comparação das leituras. Lembre-se
de comparar as palavras das versões da passagem
inteira. Se você consultar as versões somente
quando o TM for problemático, você deixará de
observar todas as variantes resultantes da
corrupção do TM, as quais eram óbvias, mas que,
depois, foram abrandadas e reescritas num hebraico
mais legível (mas não necessariamente original)
por escribas bem intencionados do passado.
A comparação palavra por palavra no caso de l
Samuel 20.32 (para o qual existe uma versão dos
escritos de Cunrã) ficará parecida com a tabela na
página seguinte.
Você poderá ver facilmente como as versões se
comparam, ao escrever o hebraico do TM, da direita
para a esquerda (de acordo com a estrutura
semítica), alistando diretamente abaixo deste as
versões selecionadas (incluindo a LXX). Na tabela,
os parênteses são um modo conveniente de indicar
que tanto o texto de Cunrã como a LXX omitem
qualquer equivalência a vylx, do TM, sugerindo que
essa palavra seja uma expansão (nesse caso, um
acréscimo explicativo) no TM. A LXX, no entanto,
também omite qualquer correspondência aos termos
rmxyv vybx do TM e de Cunrã. Talvez isso reflita
uma haplografia (a perda de algo que estava
presente) no texto hebraico usado pelo tradutor da
LXX. A Peshita e o Targum, como geralmente fazem,
seguem o TM. A Vulgata, como é típico, segue o TM.
(A Peshita, o Targum e a Vulgata são muito menos
107

freqüentemente reais testemunhas "independentes"


de um original que difere do TM do que é a LXX.
Mesmo os manuscritos de Cunrã, escritos em
hebraico, demonstrarão com mais freqüência seu
caráter independente do TM hebraico que a Peshita,
o Targum e a Vulgata.)
Incluímos, na tabela da próxima página, a
tradução em português de acordo com a ordem das
palavras no hebraico. Você poderá achar útil fazer
isso, pelo menos enquanto está começando a
aprender o método. Poderá também incluir a
tradução em português sob qualquer palavra
diferente do TM que as versões trouxerem,
especialmente se tiver dificuldade em traduzir
instantaneamente as várias versões! Consulte o
livro de Brotzman, Old Testament Textual
Criticism: A Pratical Introduction, ou de Tov,
Textual Criticism of the Hebrew Bible, ou ainda,
Textual Criticism: Recovering the Text of the
Hebrew Bible, de McCarter para consultar exemplos
e explicações dos princípios envolvidos na decisão
sobre qual versão reflete melhor o original.

2.3- Reconstruindo o texto, fazendo anotações


Damos aqui dois exemplos para ilustrar o
processo de reconstrução e anotação do texto.
Muitas vezes uma passagem não exigirá nenhuma
reconstrução. Depois de comparar as versões, você
poderá concluir que a passagem preserva
adequadamente o original da maneira impressa na
BHS ou BH3 (ambas contêm o texto do Códice de
Leningrado, de 1008 d.C.). Mas, quando as versões
antigas discordam muito entre si, você deve tentar
determinar como essa discordância surgiu. Isto é,
tente estabelecer que palavras originais dariam
melhor base para as leituras divergentes atuais.
Isso significa trabalhar no sentido inverso, a
partir do que está presente nas várias versões
antigas até o que, teoricamente, deveria constar
do texto original.
Centenas de diferenças de tradução entre as
versões modernas do AT em português e em outras
108

línguas provêm, simplesmente, de reconstruções do


texto hebraico feitas pelos tradutores. Nenhuma
versão moderna segue servilmente o texto hebraico
da BHS ou da BH3. Todos os tradutores modificam o
texto quando concluem que a evidência das versões
antigas aponta para um texto hebraico original
diferente do preservado no Códice de Leningrado.
Desse modo, eles freqüentemente traduzem em
português a partir de um texto hebraico
reconstruído. Assim, você deveria saber alguma
coisa a respeito de como se reconstrói um texto,
mesmo que seja só para entender por que as versões
modernas fizeram o que fizeram. Os exemplos a
seguir devem ajudar.

ISamuel 20.32

wybia' lWav'-ta, !t'n"Ahy> !


[;Y:w: TM

seu pai a Saul Jônatas E respondeu

" " [Faltam as 2 Cunrã


primeiras linhas]

( ) tw/| Saoul Iwnaqan kai. avpekri,qh LXX


" " " "(TM)Peshita

" " " " (TM)Targum

" " " "(TM)Vulgata


109

`hf'[' hm, tm;Wy hM'l' wyl'ae


rm,aYOw:
ele fez? O que deve ele Porque a ele e disse
Morrer?

" " " " ( ) "

pepoi,hken ti avpoqnh,|skei i[na ti ( ) ( )

" " " " " " "

" " " " " " "


" " " " " " "

a)- Reconstruindo dois nomes hebraicos: Josué 7. 1


A comparação cuidadosa das versões antigas
confirma o alerta, de forma abreviada, das notas
textuais 1a e lb da BHS . Ou seja, o hebraico (TM)

yDIb.z:-!b, ymir>K;-!B, !k'['


é, possivelmente, o resultado de um erro de cópia
em algum ponto da longa história da transmissão do

texto de Josué. Para o nome !k'['


(Acã), você verá
que certo número de textos importantes da LXX
(grego), bem como da Peshita (siríaco), têm o
110

equivalente rk'['
) (Acar), que é a forma do nome
em l Crônicas 2.7. Além disso, o nome do avô dessa

pessoa, yDIb.z: (Zabdi), em hebraico, é


traduzido por um número importante de textos da
LXX como o equivalente de yrim;zi (Zimri), a forma
do nome também em l Crônicas 2.6.
Qual dos dois é o correto: Acã, neto de Zabdi,
ou Acar, neto de Zimri? Três considerações o
ajudarão a decidir. Primeiro, lembre que a
evidência do texto grego (LXX) deve ser levada
muito a sério. Isso faz com que a escolha seja,
pelo menos, entre duas possibilidades. O apoio
evidencial da Peshita para o primeiro nome
confere-lhe ainda maior peso. Segundo, observe que
as leituras comparativas em Crônicas são evidência
bastante forte para os nomes Acar e Zimri,
respectivamente. Por quê? Porque o cronista,
escrevendo muito depois do livro de Josué estar
completo, refletiria uma leitura independente dos
nomes. Não temos evidência de que o cronista teria
alterado um nome. Ao contrário, temos muitas
evidências de que sua preocupação com genealogias
precisas poderia preservar um nome mais
acuradamente do que até o livro de Josué o faria.
Terceiro, veja que a passagem destaca um artifício
mnemônico, um jogo de palavras pelo qual os
israelitas lembrariam o vale onde Acã/ Acar foi
apedrejado. Eles o chamaram (Js 7.26)rOkfA qm,fe ,
Vale da Desgraça, sendo que a palavra para
desgraça (rOkfA, Acor) tem as mesmas consoantes
de Acar, mas não as de Acã.
Você precisará apresentar essa evidência e o
seu arrazoado (breve ou longo, dependendo da
extensão do trabalho) a favor da originalidade de
Acar e Zimri, em anotações ao texto que deverá ser
impresso em seu trabalho. Se usar colchetes, terá
o seu texto reconstruído da seguinte forma:

yb<r9m;>z9-Nb, ymir4Ka-NB, a<r>kAfA


Hq01y09v1
111

As letras sobrescritas a e b alertarão o


leitor para olhar as explicações de reconstruções
textuais nas anotações que você fez.

b)- Reconstruindo um termo comum: 1 Samuel 8.16


Perto da metade do versículo, o hebraico (TM)
lê:

~ybiAJh; ~k,yreWxB;-ta,w>
e vossos melhores/seletos jovens

O exame cuidadoso das versões antigas


revelará, porém, que o grego (LXX) traz nesse
mesmo lugar

ta. bouko,lia u`mw/n ta. avgaqa.


vosso melhor/seleto gado

Qual era o original: "gado" ou "jovens", ou


nenhum dos dois? Como decidir? Primeiro, seguindo
o mais básico princípio de crítica textual
(explicado em qualquer obra de crítica textual),
você tentará determinar que palavras no original
teriam produzido, ao longo da história de cópia e
transmissão da passagem, tanto "jovens," no
hebraico, como "gado", no grego. Para fazer isso,
traduza o grego de volta para o hebraico, pois a
leitura original era hebraica, não grega. Aqui, ao
consultar Hatch e Redpath, A Concordance to the
Septuagint, você verificará de imediato que
(bouko,lia é como a LXX freqüentemente traduz o
hebraico rq!BA, gado.
Agora, restam apenas dois passos. Primeiro,
compare rUHBA com rq!BA. As palavras são
iguais, exceto pela consoante do meio, H ou q. A
vogal U shuruq, embora escrita com waw, é somente
uma vogal e representa uma decisão sobre a
vocalização que os copistas fizeram muito tempo
depois de l Samuel ter sido escrito (cf. Cross e
Freedman. Early Hebrew Orthography). Que palavra
112

original teria sugerido as leituras rqb e rHb?


Sua resposta é rqb, "gado". O H de rHb é,
provavelmente, um erro de cópia. Segundo, você
confirmará sua decisão pela análise do contexto.
Depois de "escravos" e "escravas" (um par lógico),
"jovens" e "jumentos" dificilmente combinam. Mas,
"gado" e "jumentos" (outro par lógico) certamente
combinam.
Por último, faça um apanhado final da
evidência e de sua argumentação para o leitor,
seja qual for a extensão apropriada para o seu
trabalho. O texto reconstruído será assim:

MybiOF0ha Mk,yr2a<Q!>B;-tx,v4
O ª direcionará o leitor para a anotação,
i.e., o resumo da evidência textual e a explicação
nas notas de rodapé.

2.4- Colocando a passagem em forma versificada


A fim de economizar espaço, tanto a BHS como a
BH3 dispõem a poesia de forma que parelhas de
versos paralelas (bicolon) ou tercetos paralelos
(trícolon) apareçam na mesma linha impressa. No
entanto, na exegese é melhor alistar cada parte da
linha dupla ou tripla separadamente. Assim, a
correspondência entre as linhas poéticas paralelas
torna-se mais evidente.

A seguir, temos Números 23.8-9 versificado


desta maneira:
Como posso amaldiçoar lae hBoq;
al{ bQoa, hm'8 a quem
Deus não amaldiçoou?

E como posso denunciar hw"hy> ~[;z"


al{ ~[oz>a, hm'W a
quem Javé não denunciou?
113

Pois do topo das montanhas WNa,r>a, ~yrIcu


varome-yKi9 eu o
vejo,

E das colinas eu o contemplo. WNr,Wva]


tA[b'G>miW
Veja, o povo habita sozinho !Kov.yI
dd'b'l. ~['-!h,
E entre as nações bV'x;t.yI
al{ ~yIAGb;W
ele não se conta

A partir desse arranjo é muito mais fácil


perceber que a parelha de versos no v. 8 é um
paralelismo sinonímico simples, palavra por
palavra, enquanto as parelhas no v. 9 representam
paralelismos sinonímicos mais complicados.
A propósito, a não ser que pretenda analisar o
sistema melódico medieval dos massoretas, ou
contar seus acentos (poéticos) como uma maneira
simples de analisar a métrica de um poema, não há
por que incluir os acentos no seu texto escrito.

3- A tradução
O propósito das ilustrações a seguir é
incentivá-lo a fazer a sua própria tradução de uma
passagem, em vez de simplesmente utilizar as
traduções das principais versões modernas. Todos
estes breves exemplos são de frases hebraicas
relativamente simples que, ainda assim, não são
sempre traduzidas de forma clara e adequada.
Que direito você tem de discordar das
traduções produzidas por "especialistas"? Você tem
todo o direito! Considere os seguintes fatos:
Todas as traduções modernas (e todas as antigas
também) foram feitas ou por comissões que
114

trabalham contra o tempo, ou por indivíduos que


não podiam conhecer tão bem a Bíblia toda, no
original, de modo a produzirem traduções
impecáveis em cada parte. Além disso, no mercado
atual de publicação de bíblias, quanto mais
"diferente" for a tradução, tanto maior é o risco
de ser rejeitada e não vender. Assim, há uma
pressão sobre os tradutores, as comissões, os
editores etc., para que suas traduções sejam
conservadoras no significado, embora normal, e
felizmente, sejam apresentadas em linguagem
atualizada. Por fim, a maioria das pessoas detesta
ficar isolada com uma tradução diferente da
Bíblia. Muitos problemas de tradução são questões
de ambigüidade: há mais de uma maneira de
interpretar o original. Contudo, as limitações de
espaço não permitem que os tradutores ofereçam uma
explicação cada vez que desejarem traduzir algo do
original de um modo completamente novo.
Conseqüentemente, eles quase sempre erram,
pendendo para o lado da cautela. Como resultado,
todas as traduções modernas são, apesar de bem
intencionadas, exageradamente "seguras" e
tradicionais. No trabalho de uma comissão de
tradução, o gênio solitário é, normalmente,
derrotado pela maioria cautelosa.
Portanto, não raras vezes, você poderá fazer
uma tradução melhor do que outros fizeram, pois
pode investir muito mais tempo trabalhando
exegeticamente numa passagem do que tradutores ou
comissões de tradução puderam fazer por causa da
velocidade em que foram levados a trabalhar. Além
do mais, estará escolhendo uma tradução mais
adequada para o seu leitor em particular, em vez
de para todo mundo que fala o português. Lembre-
se: Uma palavra não possui um significado
individual, mas um conjunto de significados.
Escolher a partir de um conjunto de significados
é, freqüentemente, subjetivo; deve ser algo que
você faz para o benefício de seu público, em vez
deixar isso inteiramente para outras que não
conhecem o seu público e precisam traduzir
estritamente para as massas. Felizmente, num
trabalho exegético você poderá explicar de modo
115

breve para o seu leitor, nas anotações relativas à


sua tradução, suas opções e as razões de escolher
determinada palavra em português. Aqueles que
trabalharam nas várias versões, antigas ou
modernas, não tiveram essa oportunidade.

3.1- Uma tradução que esclarece o comportamento de


um profeta: Jonas 1.2

`yn"p'l. ~t'['r' ht'l.['-yKi h'yl,[' ar'q.W


A tradução comum para a parte final do
versículo é mais ou menos a seguinte: "clame
contra ela, pois a sua maldade subiu até diante de
mim". Essa tradução, porém, tem sido sempre
problemática. Ela representa apenas uma maneira de
traduzir algumas palavras hebraicas que possuem
extensos conjuntos de sentidos e também não se
encaixa facilmente na lição da história como um
todo. Afinal de contas, essa é uma ordem que Jonas
tenta desobedecer, ao recusar ir para Nínive.
Contudo, da maneira típica como é traduzida, soa
como uma ordem que Jonas teria gostado de
obedecer. Por que não estaria ele feliz em pregar
contra uma cidade que Deus tinha declarado ser má?
Seguindo a orientação de "traduzir de novo,
desde o início", e determinado a não aceitar a
tradução comum como a única opção razoável —
somente por ser a mais comum —, você considerará o
sentido das palavras hebraicas de novo, procurando
sua definição num léxico bom e atualizado, tal
como o de Holladay ou o de Koehler-Baumgartner.
Eis o que encontrará: lfa pode ter o sentido de
"contra", mas também de "a respeito de". yKi pode
ter o sentido de "porque", como também de "que",
hfArA pode significar "mal", mas mais geralmente
significa "aflição". E yn!pAl;...htAl;fA é mais bem
traduzido idiomaticamente, não como
"chegou...diante de mim", mas como "chegou à minha
atenção". Por último, concluirá que a frase toda
pode muito bem ter o sentido de "proclame a
116

respeito dela, que a aflição deles chegou à minha


atenção".
As implicações exegéticas dessa leitura são
significativas. Em contraste com a tradução usual,
sua tradução esclarece por que o hipernacionalista
Jonas fugiu de sua responsabilidade: Deus o estava
enviando numa missão de compaixão, não de
denúncia. A leitura cuidadosa do restante do livro
confirma isso várias vezes (cf., especialmente, Jn
4).

3.2- Uma modesta tradução não-interpretativa:


Provérbios 22.6

`hN"M,mi rWsy"-al{ !yqiz>y:-yKi ~G:


AKr>d; yPi-l[; r[;N:l; %nOx]
Este versículo é, normalmente, assim
traduzido: "Ensina a criança no caminho que deve
seguir, e quando for velha não se desviará dele".
No entanto, quando analisar mais cuidadosamente o
conjunto de sentidos das palavras, notará que não
existe nenhum equivalente hebraico para o
português "deve". Isso motivará seu interesse,
pois a tradução comum parece prometer muita coisa.
De fato, esse versículo, muito popular, tem sido
freqüentemente citado como apoio à idéia de que os
pais podem praticamente garantir que seus filhos
crescerão como adultos piedosos, se criados de
forma adequada. A maioria dos provérbios, é claro,
se compõe de generalizações, e as generalizações
têm exceções. Mas você pode fazer uma nova
tradução desse provérbio, não importando o quanto
ele seja conhecido. (Lembre-se de que quanto mais
conhecida é a leitura de um versículo da Bíblia,
tanto mais hesitarão as traduções modernas em
diferir, mesmo quando não gostam dela, por medo de
que as pessoas não comprarão uma Bíblia que mudou
a redação de um de seus "versículos favoritos").
O processo de fazer uma nova tradução de um
versículo não é muito complicado. Requer,
principalmente, a disposição de considerar, lenta
117

e cuidadosamente, as combinações possíveis de


significado. Assim, quanto a Provérbios 22.6, o
que você poderá determinar facilmente ao consultar

um léxico é que yPi-l[; significa "de acordo


com"; e que j;r,d, significa "caminho". Dessa forma,

AKr>Da significa "o seu caminho" ou "o seu


próprio caminho". A primeira metade desse dístico
poético diz, então, o seguinte: "Ensine a criança
de acordo com o seu (próprio) caminho". Você não
encontrará nenhuma referência a "deve" aqui. A
lição do versículo, você concluirá corretamente, é
que a criança, abandonada à sua própria vontade
egoísta quando jovem, terá as mesmas tendências
egoístas como adulto.

Nota: Excelentes fontes de tradução alternativa


são as traduções dos autores de comentários
técnicos. Um erudito que tenha estudado um livro
intensivamente é mais capaz de apresentar uma
tradução alternativa. E para informação atualizada
sobre os sentidos mais precisos de palavras
hebraicas, consulte a lista anual de palavras
discutidas nos artigos resumidos em Old Testament
Abstracts, via livro ou em formato eletrônico.

4- O contexto histórico
A situação histórica na qual, ou para a qual,
uma parte específica das Escrituras foi escrita
precisa ser entendida para que o seu significado
seja plenamente compreendido. É claro que há
passagens menos rigorosamente "históricas" do que
outras. O salmo 23, por exemplo, trata de
preocupações que quase todas as pessoas, em
qualquer época e lugar, são capazes de avaliar. O
salmo 117, com a ordem simples de louvar a Deus e
a afirmação da lealdade divina ("Louvem ao SENHOR
todas as nações ... a fidelidade do SENHOR
subsiste para sempre") é tão pan-histórica e
pancultural quanto a literatura bíblica pode ser.
118

Mas conhecer o contexto, o ambiente social, o


cenário histórico e geográfico, e a data, é
normalmente essencial para a avaliação do
significado da passagem. A maior parte dos textos
do AT contém material bastante relacionado com
esse tipo de consideração. A Bíblia é uma
revelação tão historicamente orientada que ignorar
o contexto histórico tende a garantir uma
interpretação equivocada. Um princípio básico da
hermenêutica (a ciência da interpretação) é que
uma passagem não pode significar o que ela nunca
quis significar. Em outras palavras, você deve
saber a que fatos, situações, épocas, pessoas e
lugares a passagem se refere, se não quiser
removê-la do contexto específico que lhe confere o
seu verdadeiro sentido. A ilustração a seguir foi
escolhida como exemplo de uma passagem cujo
significado não pode ser adequadamente captado, a
não ser que se dê atenção ao seu contexto
histórico, ambiente social, cenário histórico e
geográfico, e data.

4.1- O contexto histórico esclarece uma profecia:


Oséias 5.8-10
À primeira vista este breve oráculo profético
é enigmático. Por que tanta ênfase em trombetas
(hr!c;coHE, rpAOw)e alarme (Ufyr9hA)? Por que a
profunda preocupação com um marco de fronteira
(lUbG;)? E por que tudo isso faz Javé proclamar a
sua ira (ytir!b;f,)?
"O contexto histórico", descobre o seguinte.
Primeiro, consultando o índice de referências
bíblicas em quase todos os livros sobre a história
de Israel , verá que Oséias 5.8-10 tem um claro
referente histórico: o contra-ataque de Judá a
Israel (o Reino do Norte) na guerra siro-efraimita
de 734-733 a.C. À medida em que você lê, além
dessas fontes, em comentários historicamente
orientados, e segue os detalhes geográficos em um
bom atlas bíblico, notará o seguinte (aqui apenas
de forma resumida).
119

Contexto. O rei Rezim, de Aram-Damasco, e o rei


Peca, de Israel, propuseram ao rei de Judá, Acaz,
que se unisse a eles numa coligação militar para
desbancar o domínio assírio da Palestina, iniciado
por Tiglate-Pileser III (745-728 a.C.). Acaz,
porém, recusou a aliança, seguindo a palavra de
Deus dada por intermédio de Isaías. Rezim e Peca,
temendo que houvesse um traidor entre eles,
atacaram Judá (734) a fim de depor o rei Acaz. Mas
Acaz, prontamente (e contra a ordem de Deus, dessa
vez), buscou a ajuda de Tiglate-Pileser, o qual
imediatamente atacou Aram-Damasco e Israel. Judá,
tirando vantagem da situação, fez planos para
contra-atacar Israel. Foi, mais ou menos, nessa
época que a palavra de Oséias 5.8-10 foi
proclamada (733).

Cenário. No ataque ao norte, os homens do reino de


Judá avançariam, naturalmente, pela estrada da
cordilheira central, de Jerusalém (ao sul do
limite do território de Benjamim) para Gibeá, Rama
e Betel (chamada, de maneira pejorativa, por
Oséias, Nv@xA tyBe, Bet-Áven, "Casa da
Nulidade"). O contra-ataque foi bem-sucedido. Judá
capturou não só a maior parte do território de
Benjamim como também Betel, na fronteira sul de
Efraim. Judá, então, controlou Betel até a época
de Josias (640-609; cf. 2Rs 23.4, 15-19).
Agora você percebe a razão pela qual Deus
derramou a sua ira (j;OPw;x,, v. 10). Judá está no
processo de capturar uma parte do território do
norte, como alguém que sub-repticiamente "move um
marco" a fim de apropriar-se de terra que pertence
ao vizinho (cf. Dt 27.17). As trombetas e o alarme
são os avisos de guerra.
Benjamim e Efraim são os alvos. O ataque
original de Israel e Aram-Damasco contra Judá, em
734, foi errado. Mas o contra-ataque vingativo de
Judá, em 733, também foi errado. Isaías condenou o
primeiro (Is 7.1-9), enquanto (aqui) Oséias
condena o segundo.

5- O contexto literário
120

A análise do contexto literário tem interesses


diferentes dos da análise histórica. A preocupação
aqui não é com todo o contexto histórico, que se
aprende de quaisquer fontes, mas com a maneira
peculiar pela qual um autor inspirado, ou editor,
colocou uma passagem nos limites de todo um bloco
de literatura. Na maioria das vezes, o contexto
literário mais importante de uma passagem será o
livro no qual a própria passagem se encontra. Como
a passagem se encaixa no livro — qual é a sua
contribuição para o desenvolvimento estrutural do
livro, e qual a contribuição da estrutura do livro
para a passagem — estão entre as principais
perguntas no estudo do contexto literário na
exegese.

5.1- Examinando funções literárias: Como um


capítulo se encaixa num livro: Lamentações 5
Quando você lê o livro de Lamentações
rapidamente, começa a perceber a forma em que é
organizado. Ao consultar uma introdução ao AT
sobre Lamentações , ou um artigo num dicionário
bíblico, você confirmará sua impressão inicial:
cada um dos quatro capítulos iniciais é um poema
de lamentação, organizado em maior ou menor grau
em forma de um acróstico.
No capítulo l, você verá que cada versículo
contém três dísticos poéticos, sendo que o
primeiro dístico poético de cada versículo começa
como uma letra do alfabeto hebraico, em seqüência:
hkAyxe (1.1); OkBA(1.2); htAl;GA(1.3); etc.
Existem 22 versículos no capítulo l,
correspondendo às 22 letras do alfabeto hebraico.
O capítulo 2 tem uma organização similar. No
capítulo 3, porém, você encontrará um formato
triplo de acróstico. Os 66 versículos estão
dispostos em grupos de três, tendo no início de
seus dísticos a mesma seqüência de letras
hebraicas: ynixE, ytiOx , j;xa em 3.1, 2 e 3;
hl.ABi, hn!BA, MyKiwaHEmaB; em 3.4, 5 e 6;
rdaGA, MGa, rdaGA em 3.7, 8 e 9 etc. Esse
terceiro poema não lhe parecerá mais longo do que
121

os dois anteriores; e assim concluirá que a


versificação diferente não é problema. É a
"intensidade" desse poema que intriga: poderá o
poeta desenvolver ainda mais a sua estrutura
acróstica do que nesse capítulo?
Uma olhadela no capítulo 4 responderá a essa
pergunta. Há novamente 22 versículos, e esses
versículos formam um acróstico simples (hkAyxe,
4.1; yn2B;, 4.2; MGa, 4.3; etc.) Existem somente
dois dísticos por versículo. A julgar pelo padrão
dos acrósticos e dos dísticos, você perceberá que
o livro não continua se intensificando, mas vai
perdendo a ênfase do seu ponto mais intenso no
capítulo 3.

5.2- Examinando a localização de uma passagem


Quando a atenção se volta para o quinto e
último poema (cap. 5), percebe-se uma situação
muito interessante. Cada versículo é constituído
de um dístico simples. Além disso, esses dísticos
não estão mais dispostos num acróstico. Somente o
número total de dísticos, como indicado pelos
versículos (22), reflete uma estrutura acróstica —
e isso de forma suave. O relacionamento do
capítulo 5 com o restante do livro está, agora,
bem mais claro. Ele está posicionado no final de
uma progressão que inicia vigorosamente (caps. l e
2), atinge o ápice (cap. 3), diminui de
intensidade (cap. 4) até se tornar apenas uma
pequena lamúria (cap. 5). Esse tipo de progressão
é um dos formatos clássicos da literatura
tecnicamente chamada "tragédia".

5.3- Analisando os detalhes


Até mesmo o versículo final (v. 22) reflete o
estado trágico de Jerusalém depois da conquista
babilônica: Teria Deus rejeitado seu povo,
enfurecendo-se contra eles dxom;-dfa,
"completamente"? Esta declaração tocante sobre as
pessoas que agonizavam pela incerteza dá destaque
ao pedido dos sobreviventes.

5.4- Analisando a autoria


122

A respeito da autoria, você concluirá


provisoriamente que, visto que o cap. 5 se
relaciona de forma integral com o restante do
livro, talvez escrito pelo mesmo autor dos
capítulos 1-4. Ao consultar as introduções ao AT,
os dicionários bíblicos e especialmente as partes
introdutórias de comentários sobre Lamentações,
você descobrirá um grande número de teorias
conflitantes sobre a autoria do livro e/ ou de
suas diversas partes. Outras etapas do processo
exegético (especialmente contexto histórico,
forma, estrutura e conteúdo léxico) são relevantes
para a questão da autoria. Assim, ela ainda não
pode ser respondida de modo definitivo.
Entretanto, diante das opiniões conflitantes dos
especialistas, você precisará tomar a sua decisão.
Quando a sua exegese indicar unidade de autoria,
você não deverá deixar de expor a própria opinião.

6- A forma
Conhecer a forma de uma passagem certamente
traz dividendos exegéticos. Se você pode
categorizar de forma precisa uma peça de
literatura, poderá também compará-la com precisão
com passagens semelhantes e, desse modo, apreciar
tanto os aspectos em que ela é típica quanto os
aspectos em que é singular. Além do mais, a forma
de uma peça literária está sempre relacionada, de
algum modo, com sua função.
O exemplo abaixo se concentra especialmente
nesse relacionamento entre forma e função. Nesse
processo, ele trata dos aspectos da análise do
tipo literário geral, tipo literário específico,
subcategorias, contexto vivencial e integridade
relativa da forma.

6.1- A forma como chave para a função: Jonas 2.3-


10 [2.2-9]
Ao analisar o contexto literário deste "salmo
de Jonas", você toma conhecimento de que existe um
questionamento sobre o seu lugar no livro. Alguns
estudiosos o consideram uma interpelação
inadequada ao seu contexto atual. Na verdade,
alguns chegaram a sugerir que seu estilo difere do
123

restante do livro, ignorando o fato de que o


estilo é quase sempre uma função do gênero e da
forma, de modo que um salmo poético dificilmente
deixaria de refletir um estilo diferente do resto
do livro, que é uma narrativa. A fim de avaliar os
argumentos desses estudiosos, você precisará
determinar que tipo de salmo ele é, i.e., qual é a
sua forma.
Para isso, você consultará um livro ou
comentário que classifique os salmos de acordo com
as suas formas. Ao consultar, por exemplo,
Bernhard W. Anderson, Out of the Depths: The
Psalms Speak for Us Today (3. ed., Westminster
John Knox Press, 2000) concluirá que o salmo de
Jonas é, aparentemente, um "salmo de ação de
graças", pois ele tem as cinco características
que, segundo Anderson, compõem a maioria dos
salmos de ação de graças. As cinco características
são: (a) uma introdução que resume o testemunho do
salmista (v.3[2]); (b) o trecho principal que
descreve as aflições passadas (v.4-7a[3-6a]); (c)
a súplica por auxílio (v.8[7]); (d) uma descrição
do livramento (v.7b[6b]); (e) uma conclusão, na
qual a graça de Deus é louvada e o salmista
promete demonstrar sua apreciação por Deus (v. 9-
10[8-9]). Você já deve ter notado que os salmos de
ação de graças são orações de gratidão por
livramento da aflição já passada.
Isso o fará refletir. Você sempre presumiu,
talvez até foi ensinado assim, que o fato de Jonas
ter sido engolido pelo peixe fora uma punição. Mas
Jonas ora um salmo de gratidão a Deus pelo
livramento! Relendo a história, perceberá que a
punição de Jonas foi ter sofrido a tempestade e
sido lançado ao mar (Jn 1.12-15).
O peixe, portanto, representa o resgate do
afogamento. Agora as peças começam a encaixar-se.
O salmo contribui para o propósito da história ao
demonstrar nitidamente a incoerência de Jonas.
Ele, eloqüentemente, expressa gratidão a Javé pelo
próprio resgate, embora merecesse a morte; porém,
mais tarde se ressente do livramento de Javé para
os ninivitas, e continua desejando a morte deles
124

(cap. 4). Saber a forma do salmo permite, de fato,


uma avaliação mais abrangente do caráter de Jonas.
Uma nota explicativa acerca do contexto
vivencial de Jonas 2.3-10 [2-9]. Alguns eruditos
têm proposto a teoria de que os salmos de ação de
graças têm seu contexto vivencial na adoração no
templo. O israelita traria sua oferta ao templo,
recitaria (ou ouviria) um salmo de ação de graças
enquanto fazia sua oferta e sairia, depois de
prometer voltar para oferecer outros sacrifícios.
A evidência, no entanto, sugere que os salmos eram
recitados em muitas ocasiões na vida dos crentes
(cf. os títulos dos salmos, apesar de muitos sem
dúvida serem secundários; o uso dos salmos pelos
profetas; e o cantar dos salmos em contextos
outros que não o do templo no NT, como em Mc 14.26
ou At 16.25; cf. Ef 5.19; Cl 3.16). Dessa forma, o
uso que Jonas faz de um salmo de ação de graças
era, de fato, típico. O contexto vivencial para
esse tipo de salmo era qualquer ocasião em que
coubesse gratidão pelo livramento de uma aflição.

7- A estrutura
Entender a estrutura de uma passagem é captar
o fluxo de conteúdo projetado nela pela mente do
autor, consciente ou inconscientemente. Contudo,
além disso, é importante considerar que o
significado não é comunicado apenas por palavras e
frases. Como as palavras e frases se relacionam
entre si, e onde ocorrem na passagem, pode ter um
impacto profundo na compreensão da mesma. De fato,
com freqüência, a estrutura é o principal critério
de decisão para determinar se um bloco de material
é uma única passagem ou um grupo independente de
passagens independentes. Uma palavra-chave na
análise estrutural é "padrões". Padrões indicam
ênfases e relacionamentos; e ênfases e
relacionamentos, por sua vez, priorizam
significado. A pergunta básica que você deve fazer
ao analisar a estrutura de uma passagem é: o que
posso aprender do modo como isso foi montado?
Surpreendentemente o bastante, depois de um estudo
cuidadoso, pode-se aprender bem mais do que vemos
num primeiro vislumbre.
125

7.1- Analisando a estrutura e a unidade: Amos 5.1-


17
Ao trabalhar com Amos 5, você percebe que não
é óbvio de imediato que o trecho de 1-17 forma ou
não uma unidade. Notará que os estudiosos,
normalmente, atribuem quase todo esse material a
Amos. Entretanto, alguns têm sugerido que esses
versículos são um compêndio de pequenas unidades
de discurso pregadas por Amos em vários lugares e
momentos. Seguindo as orientações, você esboçará a
passagem com cuidado, procurando por padrões,
analisando o paralelismo poético. Você observará
algumas correspondências interessantes.
Os v. 1-3 falam de lamentação (hn!yqi) e
predizem a ruína de Israel. Os v. 16-17 são
semelhantes, com sua ênfase no pranto (dPes;mi),
lamentos (lb,xe) etc. Na verdade, os v. 16-17
parecem quase descrever a dor resultante da
destruição apresentada nos v. 1-3. Prosseguindo
para os v. 4-6, perceberá que eles têm como tema a
busca (wrd) de Javé e da vida (hy!HA) livre da
prática de coisas más e proibidas. É interessante
que os v. 14-15 empregam o mesmo vocabulário e, da
mesma forma, contrastam o fazer a vontade de Javé
com a prática do mal. Poderia haver ainda outras
correspondências? No v. 7, o assunto é a
injustiça: as coisas são o oposto do que deveriam
ser. Olhando mais adiante, notará que os v. 10-13
compartilham desse tema. Ali Javé denuncia, com
algum detalhe, as injustiças que os israelitas
praticavam nos dias de Amos. No v. 13, hfArA tfe
("tempo de desgraça") certamente resume o que os
v. 7 e 10-13 descrevem em comum. Restam apenas os
v. 8 e 9. Como eles se enquadram? Você verá que o
v. 8 apresenta o fato de que o poder de Javé para
criar implica também no poder de destruir. E o v.
9 também fala que ele é capaz de destruir, até
mesmo a fortaleza (CfA). Por último, você
observará que, na BHS, as palavras Omw; hvhy, no
final do v. 8, estão isoladas, aparecendo sozinhas
numa linha. Aparentemente, o editor de Amos na BHS
126

(Elliger) alerta para o fato de que essas duas


palavras se destacam por não terem paralelo no
texto. Uma vez que essas palavras ("Javé é o seu
nome") estão mais ou menos no centro da passagem,
você poderá verificar se é possível estruturar
simetricamente a passagem a partir delas. Aqui
está o resultado:

1-3
4-6
7
8a-c
8d (Omw; hvhy)
9
10-13
14-15
16-17

Você reconhece um quiasmo de grandes


proporções aqui. Um formato literário
propositadamente concêntrico. Supondo que Amos
estruturou, intencionalmente, sua revelação dessa
maneira, você concluirá, com razão, que a passagem
é uma unidade.
Ao utilizar os procedimentos descritos no
Passo 11 (a seguir) você verificará que J. DeWaard
confirma amplamente sua análise e provê uma
descrição cuidadosamente detalhada dessa passagem,
no artigo em Vetus Testamentum 27 (1977), p. 170-
177, cujo título é "The Chiastic Structure of Amos
v 1-17" ("A Estrutura Quiástica de Amos 5.1-17").
Você poderá, então, usar o artigo de DeWaard para
aperfeiçoar e ajustar suas conclusões onde
necessário. Mas você não precisará começar pela
análise de DeWaard a fim de descobrir as
características estruturais básicas. Isso você
pode, com cuidado, fazer sozinho. Além disso,
tendo concluído a análise estrutural básica, você
se encontrará numa posição bem mais confortável
para avaliar e pesar a contribuição feita pelo
artigo de DeWaard para a sua exegese. Em outras
palavras, o exegeta cuidadoso é invariavelmente um
"consumidor" da melhor qualidade do que encontra
127

na literatura secundária a respeito de uma


passagem do que a pessoa que dá atenção
primeiramente à literatura secundária, sem fazer a
análise crítica necessária pela qual essa fonte
pode ser utilizada e aproveitada de forma mais
eficaz.

8- Os dados gramaticais
É aqui que todas aquelas horas investidas em
aprender a gramática hebraica vão, por fim, trazer
dividendos. O alvo da gramática é a exatidão. Em
qualquer língua, gramática ruim pode ofender o
nosso bom gosto, mas seu maior perigo é que ela
pode bloquear a nossa compreensão. De igual forma,
uma falha em avaliar a gramática numa passagem do
AT é, não somente, deixar de observar sutilezas da
linguagem, mas é, também, deixar de entender
exatamente o que foi e o que não foi dito.

8.1- Identificando ambigüidades gramaticais:


Juizes 19.25

~h,ylea] aceYOw: Avg>l;ypiB. vyaih'


qzEx]Y:w:
assim, o homem tomou a sua concubina e a trouxe
para eles

Ao fazer a exegese de Juizes 19, você encontra


uma aparente incoerência que causa surpresa. O
levita parece agir sem consideração alguma (v. 28)
para com a sua concubina ao entregá-la a um grupo
de estupradores (v. 22-25). Todavia, mais tarde,
ele parece ter ficado tão furioso com o que eles
fizeram (previsivelmente) com ela a ponto de
convocar todo o Israel para a guerra por causa
disso (v. 29-30; cap. 20). Com sua atenção voltada
para a precisão gramatical, você relê
cuidadosamente as partes relevantes do texto a fim
de determinar se a sua impressão inicial foi
correta. Seu interesse principal será o de
128

compreender exatamente quem eram as partes


envolvidas no v. 25.
Você observará que cada uma das personagens da
história é nomeada de mais de uma forma.
Especificamente, o levita é identificado como
yv9le wyxi("levita", v. 1); h0wAyxi ("seu
marido", v. 3); OntaHE ("seu genro", v. 5, 9); e
wyxihA ("o homem", v. 7, 9, 17, 22, 28 etc.). O
homem de Efraim, em cuja casa ele se hospedou em
Gibeá, é chamado de Nq,zA wyxi ("um homem idoso",
v. 16); wyxihA ("o homem", v. 16, 22, 23, 26); e
Nq,zA0ha wyxihA ("o homem idoso", v. 17, 20 etc.)
Você percebe numa comparação rápida que tanto o
levita como o homem idoso podem ser identificados
como, simplesmente, wyxihA. Qual deles, então, é
o referente gramatical para a expressão wyxihA no
v. 25? A identidade da concubina é bastante clara,
mas wyxihA ("o homem") é aparentemente ambíguo. A
decisão aqui requer a avaliação das evidências em
duas frentes.
Primeiro, você notará que fora do v. 25, tanto
o levita como o homem idoso podem ser
identificados estritamente como wyxihA, ou podem
ser chamados wyxihA com um modificador, tal como
em Har2xohA wyxihA ("o homem que estava
viajando", v. 17), ou ty9Baha lfaBa wyxihA ("o
dono da casa"', v. 22). Portanto, wyxihA no v. 25
é realmente ambíguo. A ausência de um modificador
o deixa assim.
Segundo, você observará que os v. 22-25 deixam
claro que o dono da casa é quem estava conversando
com os estupradores, mas não há nenhum indício de
que o levita também estivesse. Você, então, decide
(corretamente) que wyxihA tem o homem idoso como
o seu referente gramatical, não o levita.

A análise gramatical tem os seus limites, é


claro. No caso de Juizes 19, permanece uma
questão: Teria o levita conhecimento do que o
129

homem idoso fez? A gramática pode levantar essa


pergunta, mas não pode respondê-la. A solução
encontra-se tanto na análise da estrutura da
passagem como na análise do contexto histórico.
Essa é uma típica narrativa bíblica lacônica: a
passagem omite qualquer detalhe não-essencial e
espera que o leitor conclua que o levita não
estava ciente das ações do homem idoso. Sobre o
contexto histórico: arqueologicamente, muitas
casas de israelitas tinham seus aposentos e
dormitórios — onde o levita, presume-se, estava
alojado —, tão distante quanto possível da porta
de entrada da casa.

8.2. Identificando uma especificidade gramatical:


Oséias 1.2

~ynIWnz> ydel.y:w> ~ynIWnz> tv,ae


^l.-xq;
`hw"hy> yrex]a;me #r,a'h' hn<z>ti
hnOz"-yKi
Vai, toma uma mulher de prostituições e terás
filhos de prostituição, porque a terra se
prostituiu, desviando-se de Javé.

Ao fazer a exegese de Oséias l, você é


imediatamente confrontado com uma questão de
interpretação: Deus realmente ordenou que Oséias
se casasse com uma prostituta? Muitos
comentaristas respondem de forma afirmativa,
sugerindo, não raro, que a mulher de Oséias
voltou-se para a prostituição algum tempo após o
casamento, e Oséias, observando seu passado num
período posterior, enquanto procurava por uma
analogia para descrever a infidelidade de Israel
para com Javé, conta a história do próprio
matrimônio como se lhe tivesse sido ordenado
casar-se com uma prostituta. Entretanto, esses
130

intérpretes não têm necessariamente a gramática


hebraica a seu favor.
Há apenas três palavras hebraicas que designam
a prostituta(o): hwAdeq4 ("prostituta cultuai"),
hn!z* ("prostituta comum") e bl,K, ("prostituto").
Observe o óbvio: nenhuma das três formas é usada
aqui. Em lugar disso, surge um composto especial:
a palavra hwA0xi (mulher ou esposa) é usada no
modo designado pelos gramáticos do hebraico de
"forma presa", ou mais comumente "forma construta"
em combinação com o substantivo regente no
masculino plural, Myn9Unz4 Procurando em
qualquer gramática hebraica de referência (4.7.1),
você será lembrado de que o masculino plural é o
modo padrão em hebraico para referir-se à
abstração - neste caso, não "prostituta(o)", mas o
conceito de "prostituição", i.e., no contexto
teológico, o oposto de "fidelidade". Além disso,
você descobrirá que os substantivos no "construto"
relacionam-se logicamente com o substantivo
regente no sentido de "algo caracterizado por",
portanto Myn9Unz4 tw,x2 tende a significar "uma
mulher caracterizada por [pelo conceito abstrato
de] prostituição" em vez de "uma prostituta".
Observe também que os filhos de Oséias são
designados Myn9Unz4 ydel;y1 "filhos de
prostituição" numa construção hebraica paralela e
precisa, i.e., "filhos caracterizados por [pelo
conceito abstrato de] prostituição" em vez de,
"filhos de uma prostituta". Repare também que o
versículo prossegue afirmando que a terra (de
Israel), hn@z4t9 hn*z!, "se prostituiu". E por
fim, os gramáticos lhe dirão que a preposição
empregada no fim do versículo, yreHExame, "para
longe", é um composto que significa literalmente
"para longe de após", i.e., "em outra direção que
não após [seguindo]" Javé.
O mesmo então está sendo dito a respeito da
mulher de Oséias, a respeito dos filhos que lhe
nasceram posteriormente, e acerca da terra de
Israel em geral - e em nenhum caso o significado
131

literal está aparentemente relacionado com a venda


de sexo. O que, então, está sendo dito? Se nem a
mulher nem os filhos, e tampouco a população de
Israel, estão sendo literalmente chamados de
"prostitutos", qual é a acusação contra eles? Esta
pergunta deve ser respondida parcialmente pela
referência ao contexto literário e bíblico, embora
ainda com o olhar perspicaz voltado para a
gramática envolvida. Observando a forma em que a
raiz hebraica em questão, hnz, é usada
predominantemente em Oséias (e em outros contextos
proféticos, especialmente Ezequiel), você
encontrará que o uso dessa expressão é
majoritariamente metafórico, para designar o
sentido de "infidelidade [religiosa] máxima" a
Javé. Retornando a Oséias 1.2, você concluirá que
o versículo é conceitualmente paralelo a Isaías
64.6 ou a Salmos 14.2-3 (cf. Rm 3.10-12). O ponto
é, de um modo hiperbólico, que todo o Israel
abandonara a aliança de Javé, de modo que até
mesmo a mulher e os filhos de Oséias — não importa
com quem ele se case — serão maculados pela mesma
infidelidade demonstrada de forma geral pela
"terra".

8.3- Analisando a ortografia e a morfologia


A análise da ortografia ou da morfologia
hebraica não é uma tarefa fácil para iniciantes no
hebraico. Mas o seu valor é, muitas vezes,
inestimável em conexão com passagens
problemáticas, especialmente quando pode haver
suspeita quanto a decisões dos massoretas
medievais sobre como as palavras deveriam ser
entendidas.
a)- Utilizando a análise ortográfica para remover
uma leitura estranha: Gênesis 49. 10

hd'Whymi jb,ve rWsy"-al{


wyl'g>r; !yBemi qqexom.W
hl{yvi aboy"-yKi d[;
`~yMi[; th;Q.yI Alw>
132

Na terceira linha, o hebraico parece dizer:


"até que venha Siló" ou "até que ele venha a
Siló". Ambos os sentidos, você concluirá, são
estranhos, e sua leitura revela o descontentamento
generalizado da parte dos tradutores com a
vocalização massorética atual. Nesse caso, uma
solução convincente exigirá alguma habilidade em
avaliar a ortografia hebraica antiga (o estilo da
escrita), o que implicará num conhecimento do
hebraico para além do nível inicial.
O problema poderá envolver vocalização,
ortografia e, até mesmo, divisão de palavras. A
combinação yKi dfa ("até") parece suficientemente
clara. Todavia, existe algum outro modo de se
interpretar hloywi xboy!? Visto que hloywi
("Siló") é o real elemento estranho aqui, você
deverá analisá-lo outra vez. Retirando-se as
vogais se remove a possível opinião incorreta dos
massoretas medievais sobre a vocalização. Agora
você tem hlyw. Pode-se dividir essa palavra? Será
que um problema de espaçamento resultou na grafia
hlyw? Você separa yw de hl. Ao investigar yw,
verá que suas consoantes são as mesmas da palavra
hebraica normal (ywa), que significa "oferta(s)",
"presente(s)", "tributo(s)". Mas, e quanto a hl?
Consultando Cross e Freedman, Early Hebrew
Orthography (4.7.2), você descobre que hl era como
se escrevia Ol ("para ele") antigamente. Assim,
hlyw poderia ter sido o mesmo que hlo ywa,
"tributo para ele". Agora você observará
cuidadosamente xboy!. Mais uma vez, retirando-se
os sinais massoréticos, a fim de reavaliar a
vocalização, fica xby. Cross e Freedman o
informarão que em poemas primitivos, como Gênesis
49, a ortografia original não tinha vogais e era,
portanto, muito ambígua. Assim, as consoantes xby
poderiam representar o que mais tarde foi
vocalizado como xboy! ("ele vem"), ou xybiy! ("ele
traz", no hifil), ou, ainda, xbAUy ("é trazido",
133

no hofal) etc. A última opção acabará chamando sua


atenção, pois se encaixa muito bem no contexto.
A opinião dos massoretas sobre a vocalização
do texto surgiu de sua interpretação muito tempo
depois da redação original da passagem. Por essa
razão, sua reavaliação da vocalização é uma
sugestão válida e justificada. Você concluirá que
a linha que, tradicionalmente, fala de "Siló"
deveria ser:

Hlo ywa xbAyu yKi dfa


"até que lhe seja trazido tributo"

O fato de que esse sentido se enquadra


perfeitamente na próxima linha paralela ("e a
obediência das nações é dele") confirma a sua
conclusão.
A verificação da literatura relevante (Passo
12) será um apoio importante: O prof. W. L. Moran
propôs precisamente essa interpretação, a mais
convincente na literatura, num artigo em Bíblica
39 (1958), p. 405-425, cujo título é "Gênesis
49:10 and Its Use in Ezekiel 21:32" ("Gênesis
49.10 e seu uso em Ezequiel 21.32").
Nota: Parte do mesmo tipo de habilidade para se
chegar a uma conclusão poderá ser necessária para
se avaliar uma conclusão com segurança. Ainda que
nunca lhe tenha ocorrido reconstruir Gênesis 49.10
como acima, decidir entre as opções que ocorreram
a outros também exige trabalho cuidadoso. Dessa
forma, seu labor exegético vai recompensá-lo como
avaliador de erudição, não somente como autor
dela. Em outras palavras, à medida que suas
habilidades exegéticas forem desenvolvidas, você
se tornará um leitor melhor — e não apenas um
melhor autor - de estudos exegéticos.

9- Dados lexicais
Existe um considerável grau de subjetividade
no processo de decidir que palavras e frases são
as mais importantes numa passagem. Esta é uma das
134

razões para incluirmos esse passo neste ponto do


processo, e não antes: Você precisa familiarizar-
se com a passagem o máximo possível antes de
escolher e classificar os termos para um estudo
mais profundo. Deixe-se guiar pela própria
curiosidade e pelo perfil intelectual de seu
público. Onde necessário, veja quais palavras os
estudiosos selecionam para comentar. Mas seja
cuidadoso aqui. Um comentarista que investiga uma
palavra no capítulo 5 de seu comentário pode não
estar inclinado a comentá-la no capítulo 10.
Confie em seu julgamento quanto ao que é mais
importante. Quanto à freqüência de ocorrências de
uma palavra no AT, pode-se consultar quase
qualquer concordância em computador ou a
concordância de Even-Shoshan. Para ter uma idéia
do quanto se pode dizer sobre um termo, se se
quiser ser relativamente exaustivo na análise,
veja TDOT [Theological Dictionary of the Old
Testament], TWOT ou DITAT [Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento].

9.1- A importância do exame de palavras-chave:


2Crônicas 13
Você passará por todo o capítulo escolhendo
termos que possam exigir uma explicação. No
início, escolherá livremente, sem se importar com
o número de termos apontados. São estes os termos
que você selecionará:

v. 3, 17 @l,a, "mil"

v. 3, 17 rWxB' vyai "soldado em plena


forma"

v. 4 ~yIr;m'c. rha "Monte Zemaraim"

v. 4 laer'f.yI-lKA "todo Israel"

v. 5 hk'l'm.ma "reinado"

v. 5 ~l'A[l. "para sempre"


135

v. 5 xl;m, tyrIB. "aliança de


sal"

v. 6 hmol{v. db,[, "servo de


Salomão"

v. 7 ~yqire "imprestáveis"

v. 7; S. R. l[;Y:lib. "vadio"

v. 7 bb'le-%r; "indeciso"

v. 8 ~yhil{ale "como deuses"

v. 9 Ady" aLem;l.
"consagrar-se"

v. 9 ~yhil{a/ al{ "não são


deuses"

v. 10 tk,al'm.B; "no serviço"

v. 11 rAhJ'h; !x'l.Vuh; "a mesa


pura"

v. 15 W[yrIY"w: "e eles


gritaram"

v. 15, 20 @g:n"
"derrotou/feriu"

v. 18 ~h,yteAba] yhel{a/ "Deus de seus


antepassados"
v. 19 h'yt,AnB.-ta,w> (lae-tyBe) "(Betel)
e seus povoados"
v. 22 AD[i aybiN"h; vr;d>mi "comentário
do profeta Ido"

Quantos desses termos você será capaz de


discutir e quais desses selecionará, depende do
alcance do seu trabalho. Procure escolher
relativamente poucas palavras, levando em conta
136

que os termos que não necessitam de discussão mais


extensa podem ser comentados nas notas a respeito
da tradução ou em outro lugar na exegese. Você
escolhe cinco termos que demandam maior discussão.
Eles são:

@l,a, "mil" (v. 3, 17)

Sua leitura informou-lhe que @l,a, significa


uma "unidade militar", em vez de mil,
literalmente. Você terá de explicar o significado
disso na sua exegese.

xl;m, tyrIB. "aliança de sal" (v. 5)


Esse termo incomum, atestado já em Números
18.19 e atestado conceitualmente, embora não com
essa mesma linguagem, em Levítico 2.13 e Esdras
4.14, certamente lançará luz sobre o que Abias
pensa da linhagem real davídica.

~yhil{a/ alo "não são deuses" (v. 9)


Esse termo deve ser importante para a
compreensão do politeísmo/idolatria da perspectiva
ortodoxa de Judá.

@g:n! "destruir, derrotar, ferir" etc. (v. 15,


20)
A maioria das traduções traduzem a palavra de
forma diferente no v. 15 e no v. 20. Entender seu
uso pode auxiliar na identificação da função
divina nos fatos descritos.

AD[i aybiN"h; vr;d>mi"comentário do


profeta Ido"(v.22)
A compreensão desse documento seria, sem
dúvida, uma grande contribuição para a avaliação
de como o cronista compilou a sua história e como
era o público para quem ele estava escrevendo.
137

Desse grupo de cinco, escolha xl;m, tyrIB.


para a an álise lexical completa. Por meio de
consultas aos dicionários teológicos (4.8.4), bem
como aos dicionários bíblicos maiores (IDB, ISBE

etc.), você descobrirá que xl;m, tyrIB. é uma


maneira de dizer, na verdade, "aliança perpétua";
quem sabe até, talvez, "aliança régia perpétua",
por causa do papel que o sal desempenhava como
preservador/perpetuador (cf. Lv 2.13), e por causa
de sua associação com as refeições régias de
aliança (cf. Ed 4.14). De fato, a riqueza desse
termo originou o livro de H.C. Trumbull, cujo
título é The Covenant of Salt [A Aliança de Sal]
(Charles Scribner's Sons, 1899), que, se estiver à
sua disposição, seria de grande valor nesse ponto
do estudo lexical.
10- Contexto bíblico
A observação de como a passagem é usada em
outros lugares na Bíblia (se for usada — nem todas
as passagens são) ajuda a determinar sua relação
com o restante das Escrituras. Isso, por sua vez,
leva a uma estimativa de sua importância para o
entendimento das Escrituras.

10.1- Observando o contexto mais amplo: Jeremias


31.31-34
A sua primeira preocupação nesta parte é
verificar se a passagem é citada ou se há alusão a
ela em outra parte na Bíblia. Uma vez que a
citação de uma obra literária em outra obra é fato
muito raro no antigo Oriente Próximo antes da
época dos romanos, você não deverá esperar
encontrar um trecho do AT citado no próprio AT.
Entretanto, alusões podem existir, e o NT,
certamente, tanto cita quanto alude a passagens do
AT. Há dois auxílios que em muito adiantarão sua
pesquisa, antes mesmo de precisar consultar os
comentários: o "Index of Quotations" (i.e.,
"índice de Citações"; às vezes chamado "Index of
Citations and Allusions", i.e., "índice de
Citações e Alusões"), encontrado na maior parte
dos Novos Testamentos gregos; além das listas de
138

referências das bíblias de estudo ou das chaves


bíblicas.
Ao consultar o índice do NT, você encontrará o
seguinte sobre a sua passagem:

Jeremias 31.31 Mt 26.28; Lc 22.20; ICo 11.25


31-34 2Co 3.6; Hb 8.8-12
33 2Co3.3;Hb l0.16
33-34 Rm ll.27; 1Ts 4.9
34 At 10.43; Hb 10.17; Uo 2.27

Ao examinar cada um desses textos num NT grego


(ou em português), você verá que os três primeiros
(Mt 26.28; Lc 22.20; l Co 11.25) estão
relacionados com a instituição da Ceia do Senhor,
e parecem representar alusões genuínas, e não
necessariamente citações, a Jeremias 31.31. A
partir disso, concluirá que, além de outras
coisas, a Ceia do Senhor constitui um lembrete do
cumprimento do tipo de profecia feito em Jeremias
31.31. A quarta referência, 2Coríntios 3.6, parece
aludir tanto a Jeremias 31.31 como a 31.34. Esse
texto confere à predição original certo grau de
profundidade de interpretação, ao destacar a
enorme vantagem de um relacionamento espiritual
com Deus sobre um puramente técnico, no qual a
observação de regras escritas constitui a essência
da justiça.
A referência de Hebreus 8 é uma citação
completa de toda a passagem de Jeremias, o que
mostra seu grande significado (é uma das mais
longas citações do AT no NT). Mas, além disso, o
seu uso em Hebreus, um livro parcialmente dedicado
a demonstrar a superioridade da Nova Aliança sobre
a Antiga, destaca de modo especial como a passagem
de Jeremias implicitamente chama a atenção para a
natureza temporária da aliança do Sinai.
O uso de Jeremias 31.33 em 2Coríntios 3.3 é
outra alusão (não citação) na qual Paulo destaca a
participação humana numa aliança de vida,
permitindo, assim, que você note que ele considera
a profecia como algo que diz respeito a um modo
diferente de se relacionar com Deus — mais
responsivo e vital. Hebreus 10.16 apresenta uma
139

outra citação da passagem, dessa vez com o


propósito de destacar como a profecia de Jeremias
prevê uma era em que os atos redentores de Deus
vão tornar desnecessário o sistema sacrificial do
AT. Essa é uma perspectiva que, com certeza, você
desejará registrar.
Partes dos versículos 33 e 34 da profecia
aparecem em Romanos 11.27, com referência à
restauração da nação de Israel. Esse aspecto das
palavras de Jeremias não pode ser ignorado (cf. Dt
4.31). Paulo encontra na Nova Aliança o verdadeiro
cumprimento das promessas a Israel.
Ao examinar a próxima referência,
ITessalonicenses 4.9, você não reconhecerá nenhuma
alusão óbvia a nada de Jeremias 31.31-34. "Amar
uns aos outros" parecerá mais uma alusão a
Levítico 19.18, ou a Deuteronômio 10.18,19, ou a
Provérbios 17.17, ou a alguma outra passagem
similar, do que a Jeremias 31. O "índice de
Citações" está errado neste ponto? É muito
provável que sim. Trata-se claramente de uma lista
que você deverá utilizar com cautela.
De igual modo, Atos 10.43 somente pode ser
considerado como referindo-se a Jeremias 31 de
forma muito geral. O perdão é uma promessa
profética muito mais ampla do que apenas um texto.
Hebreus 10.17, porém, é na verdade uma citação de
parte de Jeremias 31.34, com a ênfase na
possibilidade de os pecados serem perdoados sem a
oferta contínua dos sacrifícios da Antiga Aliança
(cf. Hb 10.16, acima). Mas l João 2.27, a última
referência, com a afirmação, "e não precisam que
alguém os ensine", também parecerá não ter relação
alguma com Jeremias 31.34. Mais uma vez, o "índice
de citações" é um tanto desorientador e você
deverá considerar essa citação como irrelevante.
Consultar uma bíblia de estudo ou uma chave
bíblica pode produzir resultados semelhantes.
Muitas referências serão extremamente úteis,
outras estarão erradas, baseando-se em
similaridades de palavras ou tópicos, demonstrando
não serem alusões nem citações, quando melhor
examinadas. A pesquisa nos resultados gerados por
uma concordância no computador também exige
140

seletividade da sua parte. O trabalho exegético


sensato o ajudará a distinguir entre o relevante e
o irrelevante. Também o ajudará a preparar-se com
antecedência para avaliar o desempenho dos
comentaristas no seu tratamento das questões
relacionadas ao uso bíblico do texto.
Mas como achar passagens semelhantes ou
relevantes àquela que está estudando quando o
"índice de citações" e as listas de referências
nada indicam, ou quando você quiser ir além
daquilo que encontrou nessas fontes? Para fazer
isso, você precisará contar com o seu próprio
conhecimento do contexto bíblico e com quaisquer
outras indicações que puder colher em livros,
artigos e comentários que abordem sua passagem
e/ou seus temas. Lembre-se, porém, de que é o seu
próprio julgamento que deve prevalecer aqui. O que
alguém considera "relacionado" pode ou não ter
relação com o texto. É você quem decidirá.
Nosso exemplo foi de uma passagem do AT usada
no NT. Para a maioria das passagens, os "usos"
serão limitados a outros contextos do AT. Em
muitos casos, passagens paralelas ou relevantes
devem ser localizadas com base exclusivamente em
conexões temáticas ou lexicais, as quais você
deverá pesquisar e avaliar com muita atenção.
Concordâncias de tópicos podem ser úteis em muitos
casos — se houver vocabulário em comum. Se não
houver, você descobrirá como a passagem deve ser
entendida num contexto mais amplo somente ao ler
os comentários ou artigos sobre a passagem em
estudo.

Nota: Livros do nível de ElwelVs Topical Analysis


ofthe Bible ou Handbook of Basic Bible Texts, de
Davis podem ser muito úteis tanto aqui como no
próximo passo.

11- Teologia
Se você é cristão, o Antigo Testamento também
é sua herança teológica (Gl 3.29). O que você crê
é informado pelo seu conteúdo, corrigido por suas
fortes advertências, e incentivado por seus
ensinos. A teologia é uma grande, e por vezes
141

complexa, empreitada que não pode ser ignorada.


Como uma passagem se enquadra no quadro geral do
sistema de fé cristão merece atenção cuidadosa. A
partir das muitas passagens da Bíblia vemos um
quadro daquilo que Deus revelou especificamente. E
a partir de todo o conjunto da teologia podemos
ter uma perspectiva adequada para apreciar as
verdades de textos individuais.

11.1- Uma perspectiva especial sobre a doutrina de


Deus: Oséias 6.1-3
Este breve oráculo é uma das diversas
promessas de restauração encontradas em Oséias.
Entre os anúncios da destruição e do exílio
vindouros, aqui e ali se encontram lembretes de
que Javé não irá destruir completa e
definitivamente o seu povo, mas restaurará e
abençoará, algum dia, um remanescente resgatado do
exílio.
Assim, ao examinar Oséias 6.1-3 quanto à sua
relação com a teologia cristã em si, você notará,
primeiramente, que a sua mensagem não é limitada à
Antiga Aliança. (De modo geral, promessas de
restauração abrangem a Nova Aliança.) A essência
da passagem parece ser um convite à (re)aceitação
de um povo por Deus, uma vez que a linguagem é
plural e coletiva, e não singular e individual.
Portanto, a passagem é escatológica, da
perspectiva do AT, e também representa uma
escatologia parcialmente realizada, da perspectiva
do NT. Pela consulta de uma ou mais teologias
sistemáticas, para obter uma noção das categorias
apropriadas, você determinará que ela trata da
doutrina do pecado, pelo fato de que o perdão é
parte da promessa; e trata, também, da doutrina da
igreja, no que se refere à promessa da fidelidade
de Deus ao seu povo como uma entidade coletiva
(cf. Gl 3.26-29; Ef 2.11-22) etc. Mas, é provável
que o seu impacto teológico mais direto seja na
área da doutrina de Deus (teologia própria). Você
observará que toda a passagem focaliza no
relacionamento do povo de Deus com ele mesmo. Ele
trouxe a punição; ele trará a cura (v.l). Ele dará
vida nova e restauração (v. 2). Se reconhecido,
142

ele mostrará a sua fidelidade (v. 3). Assim, a


coerência de Deus, a sua misericórdia em contraste
com o seu julgamento, sua acessibilidade etc. são
aspectos incluídos no oráculo.
Você tentará avaliar a contribuição da
passagem para a nossa compreensão da teologia da
forma mais específica possível. Neste caso, a
passagem não diz nada inteiramente exclusivo no
que diz respeito a seus temas (conceitos) gerais.
Entretanto, utiliza uma linguagem até certo ponto
exclusiva (palavras, fraseologia) no que afirma.
Por exemplo, você observou no v. l que a descrição
da punição divina, usando os verbos Jr1FA
("despedaçar"), e hkAn! ("atacar"), combinada com
as promessas imediatas de cura (xpArA), e de por
bandagens nas feridas (wbaHA), é uma descrição
metafórica sem paralelo preciso na Bíblia. A
linguagem dos "dois" e "três" dias é, também,
bastante dramática, mas não é usada com a intenção
de dar alguma pista sobre o espaço de tempo entre
a crucificação e a ressurreição, você concluirá
acertadamente. A idéia de que Javé mostra sua
fidelidade por meio da natureza, e é também tão
confiável quanto as partes mais estáveis da
criação (v. 3), tem analogia nas Escrituras. No
entanto, as combinações de palavras, tais como
rfadalA hpaD4r4n9 ("esforcemo-nos por conhecê-
lo"), e rHawa ("o nascer do sol"); Mw,G,
("chuva") e wOql;ma ("chuva de primavera")
oferecem uma descrição analógica da confiança em
Deus que não se encontra dessa forma em outros
contextos. Você concluirá, portanto, que a
contribuição mais importante da passagem para a
teologia cristã é a sua forte reafirmação da
doutrina da fidelidade de Deus, usando uma
linguagem dramática, até mesmo surpreendente,
incluindo metáforas e símiles cativantes.

12- Literatura secundária


Você desperdiçará tempo e energia na sua
exegese se deixar de pesquisar artigos, livros ou
143

comentários relevantes à sua passagem. Utilizando


os procedimentos esboçados aqui, poderá sempre
localizar, de forma rápida, a maior parte da
literatura relevante. Esse processo não é
completo, mas é uma boa maneira de cobrir muita
coisa rapidamente.

a. Procure a passagem na qual está trabalhando em


todos os três volumes de Langevin, Biblical
Bibliography. Você terá uma lista da maioria dos
livros e artigos escritos sobre a sua passagem
entre 1930-1985.

b. Procure a passagem nos volumes anuais(outubro)


de Old Testament Abstracts, a partir do ano de
1978.
c. Se você tiver tempo, pode também procurar a
passagem no Elenchus Bibliographicus Biblicus,
para os anos que ele abarca. Isso pode algumas
vezes acrescentar um item ou dois a sua lista,
principalmente de antes de 1930.

d. Da Introdução de Dillard e Longman ou da


Introduction de Soggin, e/ou da Introduction mais
antiga de Eissfeldt, e, em menor medida, Langevin,
Biblical Bibliography, você poderá obter uma boa
lista de comentários sobre o livro que inclui sua
passagem. Para atualizar essa lista, indo além do
fim da década de 1970, você terá de consultar as
listas anuais em Old Testament Abstracts, tarefa
bem mais fácil se você possuir a versão
eletrônica.

e. Passe rapidamente por toda a lista de artigos,


livros e comentários que estão à sua disposição,
procurando os livros e artigos mencionados como
relevantes para a sua passagem; acrescente-os à
sua lista. (Lembre-se: muito do que é relevante
para a passagem não terá sido escrito diretamente
sobre ela.) Especialmente úteis aqui são os
volumes em séries tais como Hermeneia e Word
Biblical Commentary, porque essas séries instruem
seus autores a compilar bibliografias
relativamente completas tanto sobre os livros
144

bíblicos como sobre passagens individuais, até a


data da publicação do volume em questão.

f. Mesmo que você não seja capaz de ler os


livros, artigos e comentários em língua
estrangeira alistados nos passos anteriores, ainda
assim poderá averiguar aqueles que estão à sua
disposição para ver se mencionam artigos e livros
relevantes escritos em alguma língua que você
entende. Se esse for o caso, acrescente-os à sua
lista.
O processo aqui descrito, mesmo que não
exaustivo, fará você progredir rapidamente. Você
terá à disposição um bom número de obras úteis,
com as quais poderá verificar o trabalho exegético
que tiver feito até este ponto.
13- Aplicação
Sem a aplicação, a exegese é apenas um
exercício intelectual. Todos os passos do processo
da exegese deveriam ter como alvo fé e ação
corretas. As Escrituras cumprem o seu propósito
inspirado não só ao entreterem nosso cérebro, mas
ao influenciarem toda a nossa vida. A Bíblia é tão
diversificada que as aplicações de suas várias
partes serão diversas. Isso, porém, não significa
que uma aplicação qualquer não deveria ser o
resultado de um trabalho rigoroso e disciplinado.
As orientações têm como propósito manter as
implicações de uma passagem tão fiéis quanto for
possível à sua legítima aplicabilidade.

13.1- Amostra de uma vida correta: Jó 31


Jó conclui aqui sua "alegação de inocência",
uma forma de discurso também encontrada em l
Samuel 12.3-5 e Atos 20.25-35. Ele admite que se
de fato tivesse cometido vários tipos de atos
imorais, ele mereceria o castigo divino. Mas ele
persistentemente nega ter violado a lei de Deus e,
ao fazê-lo, descreve como uma pessoa decente e
moralmente correta deveria ou não se comportar. É
essa a perspectiva que interessa a você. Com base
em Jó 1.8; 2.3 e 42.7-8, você tomou conhecimento
de que a vida de Jó é algo como um modelo de
comportamento. Agora, você quer saber o que se
145

pode aprender de suas afirmações sobre seu estilo


de vida.
Quando analisar as questões relacionadas à
vida mencionadas nesta passagem, você alistará
seis que parecem claramente comparáveis a questões
de vida atuais: comportamento sexual apropriado
(v. 1-4,9-12); honestidade (v. 5-8); tratamento
justo dos empregados (v. 13-15,31); generosidade
para com o necessitado (v. 16-23,29-34);
materialismo e idolatria (esses dois itens são
comumente inter-relacionados no pensamento
bíblico; v. 24-28); e administração financeira (v.
38-40). Alguns desses seis itens sem dúvida se
sobrepõem parcialmente. Mas tratá-los
separadamente a princípio ajudará a manter as
questões bem focalizadas.
Uma vez que Jó 31 não contém um mandamento
direto, determinando que o leitor faça alguma
coisa, a natureza da aplicação aqui é de que ela
informa. Contudo, isso não implica que a aplicação
seja menos urgente ou menos importante.
A passagem fala principalmente de fé ou de
ação? Embora existam alguns elementos relacionados
à fé (v. 35-37, por exemplo), o interesse
principal está centralizado no comportamento de
Jó, i.e., ação.
E a respeito dos ouvintes? Aqui a resposta
pode variar, dependendo da questão específica.
Todos se relacionam pessoalmente com a questão do
comportamento sexual apropriado; portanto, ninguém
está excluído desse tópico de vida. De igual modo,
honestidade, generosidade para com o necessitado e
administração financeira dizem respeito a todos.
No entanto, nem todos têm empregados. A maioria
das pessoas é composta de empregadores e de
empregados, mas os aposentados e as crianças,
normalmente, não pertencem a nenhuma dessas
categorias. Além disso, no mundo moderno, muitos
empregadores não são indivíduos, mas pessoas
jurídicas. O reconhecimento dessas nuanças o
ajudará a tornar suas aplicações mais precisas.
Jó 31 trata de diversas categorias de
aplicação. Ela é tanto pessoal como interpessoal;
trata dos aspectos sociais, econômicos, religiosos
146

e financeiros. De particular interesse é a menção


do culto idólatra nesse contexto, nos v. 24-28
(i.e., a adoração de corpos celestes como símbolos
das divindades, cf. 2Rs 21.3; 23.5, 11; Sf 1.5
etc.). Essa menção o ajudará a lembrar que um dos
aspectos importantes da idolatria, como sistema
religioso, era a sua transigência com o egoísmo e
o materialismo, enquanto a religião da aliança não
era assim.
Quanto à época focalizada, você perceberá que
é relativamente ilimitada. O potencial para o
pecado nas áreas mencionadas por Jó certamente
continua no presente e vai persistir até a
consumação dos tempos — múltiplas passagens do NT
confirmariam essa conclusão.

Finalizando, você precisa tentar estabelecer


os limites da aplicação. A sua preocupação
principal aqui é a de impedir que haja mal-
entendidos da parte de seu público-alvo. A
aplicação central de Jó 31 é que uma vida íntegra
deve ser decente, honesta, generosa, imparcial,
leal, não egoísta e não exploradora. Contudo, a
passagem não sugere que a opressão legal de órfãos
deve ser punida pela amputação do braço do
transgressor (v. 21-22), nem que a porta da frente
fechada é evidência da pecaminosidade do
proprietário da casa (v. 32). Assim, também, as
maldições que Jó, potencialmente, pronuncia sobre
si mesmo como prova de sua decência não são
indicadas como apropriadas ou punições normais
para os dias de hoje. Da mesma forma, afirmações
metafóricas, tais como "a minha porta sempre
esteve aberta", não são afirmações literais de
fatos. No entanto, se o público-alvo para o qual
está fazendo sua exegese não tem conhecimento de
algumas dessas coisas, tudo o que puder fazer no
sentido de evitar mal-entendidos quanto à passagem
será uma contribuição positiva para a sua
aplicabilidade.
147

VIII – Referências bibliográficas

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