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De outros caxiris

festa, embriaguez e comunicação na Amazônia indígena

RENATO SZTUTMAN

(VERSÃO PARA PUBLICA ÇÃO, OUTUBRO DE 2006)


Un homme qui ne boit que de l’eau a un secret à cacher à ses semblables.

—Charles Baudelaire, Les paradis artificiels

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Para os pais da minha mãe

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Agradecimentos

Este livro corresponde a uma versão revisada de minha dissertação de mestrado, defendida em
outubro de 2000 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. Agradeço,
em primeiro lugar, às Profas. Dominique Tilkin Gallois e Beatriz Perrone-Moisés, que dirigem
esta coleção, pela dupla oportunidade de publicar estes escritos já antigos e, sobretudo, de
retornar a um tema que sempre me apaixonou: as festas de bebida fermentada na Amazônia
indígena. Agradeço, em seguida, à querida Valéria Macedo que revisou esses originais e tanto
me ajudou nessa etapa de finalização.
Devo admitir que o interesse em retomar o texto antigo foi aguçado durante um
seminário promovido por Philippe Erikson, realizado, em maio de 2004, em Saint-Nicolas-de-
Port, uma cidadezinha da Lorena (França), e que se intitulava “La pirogue ivre: bières
traditionelles en Amazonie”(“A canoa bêbada: cervejas tradicionais na Amazônia”). Nesse
encontro, pude não somente ouvir sobre a experiência de outros pesquisadores como também
degustar um delicioso caxiri preparado à moda dos Matis (Pano) da Amazônia Ocidental.
Agradeço, especialmente, a Philippe Erikson pelo convite e pela tradução cuidadosa de meu
texto sobre as cauinagens dos antigos Tupi da costa brasílica. O caxiri matis, produzido a
partir da fermentação de uma espécie não venenosa de mandioca, transportou-me diretamente
às noites quando, entre os Wajãpi do Oiapoque, Guiana Francesa, pude participar das
reuniões em que o oferecimento e o consumo dessa cerveja se faziam regra. Passaram-se
exatamente oito anos entre os dois eventos e, nesse ínterim, jamais voltei à Amazônia,
enveredando por investigações livrescas no campo da etnologia americanista.
O texto aqui apresentado consiste numa reflexão geral inspirada por uma experiência
de campo pontual, realizada no Oiapoque em 1996. Devo todo esse percurso à minha
orientadora, Dominique Gallois. Graças a ela, pude conhecer os Wajãpi do Amapari e do
Oiapoque e, assim, iniciar-me no americanismo. Sua paixão pela etnologia e, sobretudo, seu
envolvimento—teórico e político—com os índios é algo que sempre me fascinou. Em vários
momentos, além de orientadora crítica e rigorosa, ela se tornou uma espécie de informante,
alertando-me para a realidade dessas populações. Forçou-me a trazer o emaranhado de teorias
com as quais eu me deparava aos problemas realmente vividos pelos povos sobre os quais eu
também queria falar. Foi também graças a Dominique que conheci Japarupi, Kaintona e
Moropi, os jovens do Amapari, com quem segui viagem ao Oiapoque. Eles foram meus grandes

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iniciadores no mundo indígena. Com eles, estabeleci uma relação de troca total. Eles me
inseriam no universo wajãpi, ao passo que eu os apoiava na sua excursão pelo mundo dos
brancos, brasileiros e franceses, pelo qual transitávamos na longa viagem para o alto
Oiapoque.
Agradeço também àqueles que discutiram momentos diversos do texto aqui divulgado e
que, de diferentes formas, atuaram na minha formação. Márcio Silva e Paula Montero
participaram do exame de qualificação, contribuindo com questões e sugestões de leitura, que
certamente tiveram papel decisivo na configuração do texto da dissertação. Além disso,
revelaram-se mestres assíduos, acompanhando, de modos distintos, os passos dessa pesquisa.
Beatriz Perrone-Moisés e Tânia Stolze Lima participaram da banca de defesa da dissertação
de mestrado, tecendo críticas e comentários preciosos. Espero ter conseguido integrar boa parte
deles neste texto final. De todo modo, todos os equívocos continuam sendo de minha exclusiva
responsabilidade. A ambas, fica o agradecimento não apenas pela leitura que fizeram, mas
também pela profundidade e beleza de seus textos, nos quais sempre enxerguei uma
possibilidade de convergência temática e teórica. Não pod eria deixar de lembrar do apoio tão
estimado de José Guilherme Cantor Magnani, Lux Vidal e da saudosa Aracy Lopes da Silva,
logo nos primeiros anos de pesquisa. Sylvia Caiuby Novaes foi uma interlocutora sempre
presente: a experiência que ela me proporcionou no Grupo de Antropologia Visual foi um
complemento mais que necessário aos meus estudos de etnologia indígena. Não poderia
esquecer, enfim, o papel de José Arthur Giannotti que, durante as reuniões do grupo de
bolsistas no Cebrap, me fazia repensar os caminhos teóricos trilhados.
Aos companheiros de minha geração devo demais. Com Denise Grupioni, Rogério
Duarte, Sílvia Tinoco, Gabriel Coutinho Barbosa e Carlos Machado, colegas do Núcleo de
História Indígena e do “Grupo Guianas”, aprendi quase tudo o que sei sobre etnologia. Com os
dois últimos, em especial, guardo grande cumplicidade: não sei se teria feito as mesmas
escolhas se não os tivesse conhecido. Com a equipe da revista Sexta Feira, encontrei um modo
de conciliar a antropologia e a festa; inclusive porque muitos de seus integrantes haviam
escolhido, eles também, a festa como tema. Com Valéria Macedo e Silvana Nascimento,
companheiras de tantas estradas, descobri outras festas, pletóricas como só elas o são, desta
vez em contextos não-indígenas e em que o catolicismo se fazia presente. Com Paula Pinto e
Silva, saboreei o tema, não da bebida, mas da comida, igualmente reveladora dos percursos da
sociabilidade. Com Evelyn Schuler, amiga fiel de tantas madrugadas, compartilhei (em muitos
sentidos) o tema tupi da inconstância. Paula Miraglia e Rose Satiko trouxeram-me o

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contraponto necessário da antropologia atenta aos conflitos nas sociedades urbanas. Florencia
Ferrari sempre me surpreendeu com seu rigor textual e seu fervor reflexivo – sem ela, eu nada
poderia. Kiko Ferrite, com o seu talento, me incentivou com as fotografias; e Rodrigo Cerviño
Lopez assinou a autoria do projeto gráfico da dissertação, que infelizmente não pôde ser
mantido. Stelio Marras, por fim, esteve desde o começo nessa empreitada e muito me
incentivou a voltar a esses escritos antigos. Ele jamais deixou de me intrigar com suas questões
pertinentes e provocativas, e nossos debates calorosos sempre motivaram (e motivarão) o meu
pensamento.
Devo também agradecer às instituições que me permitiram prosseguir durante os três
anos da pesquisa. Agradeço à Fapesp pela bolsa de mestrado, concedida de abril de 1997 a
março de 1999, à Capes e ao Cebrap, pela bolsa concedida entre abril de 1999 e março de
2001. Manifesto minha grande dívida em relação aos funcionários do PPGAS da USP , sobretudo
à Ivanete Ramos.
Esse tópico de agradecimentos já se estendeu o bastante, é preciso parar, ainda que
fiquem de fora pessoas tão importantes. Seria injusto, no entanto, não incluir alguns daqueles
que não participaram diretamente do universo desta pesquisa. Agradeço, nesse sentido, o mais
que profundo companheirismo de Tatiana Bacic Olic, que esteve comigo nos momentos mais
difíceis e que, com sua sensibilidade clínica, sempre me encorajou para seguir adian te. Não
poderia deixar de lembrar a preocupação de Wilma Pompeu de Camargo e do apoio que ela me
deu na ocasião da única viagem à Amazônia. (A fita com canções de João Donato e Billie
Holiday gravada por ela será para sempre a memória sonora das longas viagens de voadeira
pelo Oiapoque.) Agradecer aqui pai, mãe, irmão, tia, avós transborda o sentido óbvio da
consangüinidade, pois que todos eles sempre me foram mais do que meros consangüíneos. Não
sei se eles estão completamente felizes com a escolha ou com o resultado desta empreitada, no
entanto, jamais deixaram de me apoiar, seja financeiramente, seja moralmente, e de me fazer
acreditar que esta escolha e este resultado – a despeito de suas delícias, dramas e vicissitudes
– têm lá a sua certeza.

São Paulo, agosto de 2005

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Índice

Prólogo

1. Antropologia da comunicação
1.1 Uma fronteira no mais do termo
1.2 Apontamentos de viagem
1.3 Sob o signo do caxiri
1.4 A festa como problema
1.5 O “contato” como problema
1.6 O sentido reencontrado

2. A rede ritual
2.1 Ritual e comunicação
2.2 A celebração da alteridade
2.3 A ilusão atomista
2.4 O festival antropofágico tupi
2.5 O sistema canibal yanomami
2.6 As formas da afinidade

3. Paisagens dionisíacas
3.1 Variações sobre o tema da embriaguez
3.2 Em torno da variação wajãpi
3.3 Uma breve etnografia da festa
3.4 Os sentidos da embriaguez

4. O encontro feito festa


4.1 Os usos da festa
4.2 História e geografia de um (re)encontro
4.3 Cartografias xamânicas
4.4 O encontro mediado pela festa
4.5 As formas da diferença

Epílogo

Bibliografia

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Prólogo

A comunicação entre diferentes pessoas ou coletivos de pessoas constitui a questão motriz


deste trabalho—não qualquer comunicação, antes uma comunicação embriagada que
coloca em jogo posições de identidade e alteridade. Para tanto, convido o leitor a um breve
passeio por paisagens dionisíacas imersas na vastidão—territorial e cultural—da Amazônia
indígena. Essas são produzidas sobretudo por admiráveis festivais interlocais em que a
diferença como condição da vida social é ritualizada—ou seja, explicitada de um modo
particular—, promovendo um evento de comunicação. Tudo procede de modo bastante
próximo nos lugares mais díspares: festeiros anunciam sua iniciativa para outros grupos
locais, muitas vezes vizinhos, e logo dão início aos preparativos que envolvem, no mais
das vezes, uma boa dose de bebidas fermentadas, geralmente feitas de mandioca, milho ou
frutas, e cujas receitas são decerto um “assunto de mulheres”. Os convidados deslocam-se,
então, de seus grupos locais, em busca de contato com aqueles pouco vistos, buscando
agradar os dadivosos anfitriões e retribuindo com presentes, caça e especialmente um
repertório de danças e cantos reservados para ocasiões desse tipo. Ao se encontrarem, as
partes dão início a um jogo de seduções e evitações. Tudo se passa, freqüentemente, sob o
consumo desmedido das bebidas fermentadas, em que o esforço de construir vínculos mais
estáveis esbarra no perigo da hostilidade desatada. Sistema de prestações por excelência, a
festa fornece o estimulante e o veneno para a sociabilidade. É um momento de cordialidade
em que resultam acordos comerciais e alianças matrimoniais, mas também palco de
agressões e abrigo para a história de assassínios terríveis.
Os elementos mencionados acima atravessam boa parte da Amazônia indígena e
sugerem o retrato de um emaranhado de pessoas e coletivos de pessoas que se intervisitam,
bebem juntos, trocam bens e cônjuges e entretecem acusações de feitiçaria. Retrato pouco
preciso, bem sei, mas não poderia de deixar de sê-lo, uma vez que reflete o esforço do
etnólogo em capturar um campo de visão que já não se apresenta senão pelo seu
movimento inconstante. Mas o que seria de fato adequado, aumentar a velocidade do
obturador de maneira a congelar o máximo possível o instante das posições de cada
personagem nessa trama maior que as perpassa, ou permitir que o movimento invada o
quadro privando-nos dos contornos bem definidos da imagem em favor do borrado

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cometido pelos percursos que se entrecruzam? Devo propor que a segunda opção traz
riscos que enriquecem a análise, desde que o borrado na fotografia não se imponha à
revelia do sentido, sacrificando o contorno dos pontos apenas para oferecer o rascunho dos
caminhos. Noutras palavras, o que se pretende fotografar são menos os contornos das
partes que se lançam à troca, mas a configuração e a extensão de redes de comunicação. Tal
a contribuição de estudos em etnologia indígena que propõem um deslocamento do
universo das unidades locais—fechadas em si mesmas, auto -contidas—para o das relações
que não apenas ocorrem entre as unidades, mas sobretudo as produzem. Ora, essas relações
em rede podem ser justamente observadas no contexto dos festivais interlocais.
Outro ponto que deve ser imediatamente questionado é se esse campo de visão, que
deseja abranger o estudioso das redes, não se apresenta por demais aberto, e se não valeria
a pena restringir o enquadramento para garantir em outro nível a nitidez da imagem
ameaçada pelo borrado. De fato, algum fechamento deve ser buscado, não como fim em si
mesmo, mas como ponto de partida para a abertura posterior. Nesse sentido, prosseguindo
com a metáfora do enquadramento, a matéria deste trabalho permanece uma indagação
geral sobre a pregnância da vida ritual/ festeira, que oferece um contexto de comunicação
alternativo ao da vida ordinária, e os sentidos da diferença na vasta paisagem amazônica,
mas que se ancora num caso bastante particular, os festivais de bebida fermentada
realizados por grupos wajãpi—população falante de uma língua tupi-guarani—numa
região de fronteira entre o estado do Amapá e a Guiana Francesa. Enfim, um foco possível,
capaz de informar sobre o campo de maior escala que se deseja abranger. Acompanhei,
entre abril e maio de 1996, uma expedição de jovens wajãpi do Amapari (Amapá) à
margem francesa do Oiapoque, habitada nos cursos alto e médio do rio por comunidades
wajãpi e emerillon (outra população de língua tupi-guarani). Aquela experiência de
encontro me fascinou. Estive diante de dois grandes blocos populacionais—que doravante
passo a me referir como “Amapari” e Oiapoque”, ou “meridionais” e “setentrionais”.
Todos falavam a mesma língua, guardavam histórias de intercâmbios e intercasamentos,
porém jamais cessavam de marcar suas oposições adquiridas nas diferentes histórias de
migração. Foi o que pude perceber sobretudo nas grandes festas de caxiri, como é
chamado em grande parte da região das Guianas esse fermentado de mandioca, que não
pareciam faltar, ainda mais numa ocasião de tamanha importância que era aquela do
encontro.

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Se eu buscava inicialmente o campo das relações estabelecidas na região entre
índios e brancos, percebi com o tempo que este está inscrito e deve ser reencontrado num
campo maior, que abriga relações entre os diferentes grupos indígenas, falantes ou não de
uma mesma língua, que se reconhecem ou não como pertencentes a uma mesma “etnia”
(termo bastante controverso para descrever tais realidades, como deverei explicitar
adiante). Ora, essas relações aparecem entre os Wajãpi e alhures como apoiadas num certo
idioma de parentesco e numa certa ética festeira, fundados semelhantemente no argumento
ontológico de que o ato de abrir as portas ao outro é ao mesmo tempo louvável e impregnado
de perigos. Joanna Overing (1983), em um balanço já clássico sobre a etnologia sul-
americana, alega que por trás das relações cotidianas e das manifestações rituais subjazem
“filosofias de alteridade” que se debruçam sobre o problema por assim dizer universal de
como lidar com a diferença—esta que funda o social, como propôs Lévi-Strauss desde seus
primeiros escritos—, apresentando soluções alternativas àquelas conhecidas pelo Ocidente
moderno. Desse modo, este trabalho consiste numa reflexão sobre os modos—
ameríndios—de lidar com alteridade e tem como horizonte a compreensão de relações
travadas atualmente entre os grupos indígenas, que em certa medida incluem os grupos
não-indígenas. Distancia-se, assim, dos estudos sobre o “contato interétnico” que se
perguntam, sob uma perspectiva externalista, pela interação entre índios e não-índios,
tomados como blocos naturalmente distintos e mutuamente excludentes. A discussão que
pretendo promover reside, pois, na relação entre os índios e suas figuras de alteridade—
parentes distantes, outros índios, brancos, seres sobrenaturais, inimigos, entre tantos
outros—, apontando como essa é trazida de modo surpreendente para o espaço da festa.
Tendo como ponto de partida o caso wajãpi, pretendo fazer dialogar diferentes
manifestações rituais/ festeiras que se desdobram na paisagem amazônica. Excluo desse
percurso o Brasil Central, uma vez atestadas suas diferenças significativas (uma delas é o
fato de que eles não são produtores e consumidores de bebidas fermentadas) que
ampliariam por demais o esforço analítico; não quero dizer com isso que essa inclusão seja
impossível. Não pretendo, contudo, me limitar unicamente ao campo “tupi-guarani”, no
qual as festas de bebida fermentadas, muitas vezes referidas como cauinagens (pois cauim
é o termo advindo do tupi), constituem um tema clássico e obrigatório das etnografias mais
recentes, que cobrem as mais diversas regiões sul-americanas (das planícies meridionais ao
extremo norte-amazônico)—estas não raro fazem-nos lembrar das descrições dos viajantes

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quinhentistas que insistiam na associação ritual entre antropofagia e bebedeira, como
praticadas pelos Tupi da costa (Tupinambá). Os Wajãpi são, devido ao seu percurso
migratório, um grupo tupi imerso na paisagem caribe das Guianas, e nessa região, tal o que
aparece nas fontes, o caxiri nunca pareceu faltar, o que consiste em mais uma prova de que
sua presença não se confina a uma área etnográfica ou a uma família lingüística específica,
mas se propaga pela imensidão da Amazônia indígena.
Ao mesmo tempo em que procuro me afastar da visão de um grupo indígena como
uma totalidade incomparável e absolutamente singular, devo fugir da idéia de uma
cosmologia comum substantiva e idêntica que perpassa as tantas manifestações rituais/
festeiras e, assim, evitar generalizações apressadas. Devo perseguir, em um mar de soluções
locais variadas, perguntas e princípios comuns que balizam a experiência e a vida ritual/
festeira dos grupos amazônicos para além do caso wajãpi. Como propõe Eduardo Viveiros
de Castro (1985b), o mais importante no desenvolvimento de uma empresa comparativa é
ater-se às “diferenças sistematizáveis” colhidas entre os vários casos, de maneira a pensar a
possibilidade de passagem entre um e outro caso, ou seja, a possibilidade de inferir do
conjunto certos princípios relevantes, não para desenhar um conjunto fechado, mas para
discorrer sobre um diálogo, uma conversação que atravessa fronteiras e que, nesse sentido,
está sempre se fazendo. Não posso negligenciar, mediante essa tarefa, as “diferenças
significativas” (idem), que apontam, entre outras coisas, a disparidade das organizações
sociais e dos contextos históricos. Os segundo e terceiro capítulos estão mais empenhados
num esforço mais propriamente comparativo—perseguem o que há de “sistematizável”, o
que se oferece ao diálogo—ao passo que o quarto se constrói justamente no plano de uma
diferença significativa, a wajãpi, debruçando-se com mais fôlego sobre casos particulares
e, mais especificamente, sobre o gancho privilegiado (e absolutamente pontual) de toda
essa análise, a festa de caxiri que pude observar certa vez no alto Oiapoque. Assim, a
oscilação entre um olhar aproximado (fechando o campo de visão) e outro distanciado
(abrindo-o) será um recurso constante no texto deste livro, o que lhe confere um sabor
experimental e ensaístico.
O primeiro capítulo, “Antropologia da comunicação”, remonta aos percursos da
pesquisa que deu origem a este texto e, para tanto, lança mão de uma discussão sobre os
limites do arcabouço conceitual em antropologia para apreender contextos dinâmicos, tal
como os observados entre os Wajãpi dos dois lados da fronteira por ocasião de sua intensa

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prática de trocas, viagens, encontros e oferecimento—dádivas, no sentido maussiano do
termo—de festas (contexto apresentado sob o formato de “apontamentos de viagem”).
Nesse sentido, pareceu-me relevante problematizar noções caras à antropologia como
ritual, festa e contato, assim como recuperar noções heurísticas como fronteira, comunicação
e rede.
O segundo capítulo, “A rede ritual”, se lança a uma experiência de comparação,
reunindo algumas etnografias sobre manifestações rituais na Amazônia, na tentativa de
definir certos aspectos dos sistemas, ou melhor, redes de comunicação que produzem
espaços supralocais em paisagens etnográficas distintas. O debate que releva daí reside em
como pensar a constituição desses espaços diante de uma tradição etnológica mais
interessada na descrição de níveis locais e situações de atomização social—tal aquela que
se desenvolveu de modo incisivo para a região das Guianas, e que foi posta em xeque pelos
estudos, por vezes interdisciplinares, sobre o alto Xingu. O exame de sistemas ou redes
rituais pode, parece-me, lançar nova luz sobre o problema e vir, desse modo, a se
encontrar—mais uma vez sob a forma do diálogo e da conversação—com alguns esforços
de síntese do continente sul-americano desenvolvidos ao longo das décadas de 1980 e
1990, tais os de Joanna Overing e Eduardo Viveiros de Castro.
“Paisagens dionisíacas”, o terceiro capítulo, volta novamente ao foco proposto, as
festas de caxiri realizadas pelos Wajãpi, apontadas, no capítulo anterior, como expressão
minimalista da armação ritual amazônica, para enveredar em novas reflexões comparativas.
Desta vez, o interesse reside menos na constituição de canais da comunicação ritual do que
na mensagem veiculada por ela e, por conseguinte, no sentido da embriaguez, qual seja, no
fato de que a constituição do “si” exige um movimento de abertura ao outro, que é
também um movimento de alteração. Estamos, pois, diante de um problema fundante das
cosmologias amazônicas: para construir a vida social é preciso estabelecer contextos em
que seja possível buscar fora, abrir-se tanto para uma humanidade diferente, aquela que
habita em diferentes grupos locais, que fala uma língua diversa ou com quem se guerreia;
como para o cosmos povoado por agentes não -humanos, tais os animais, os espíritos e os
mortos. As festas de caxiri oferecem, assim, estes contextos e o fazem especificamente por
meio de uma comunicação embriagada, uma comunicação em estado alterado, que acarreta
sérios riscos—tal a irrupção de hostilidades e do caos—que devem ser cuidadosamente
contornados.

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O quarto capítulo, “O encontro feito festa”, centra-se num caso etnográfico
específico, em que as personagens apresentadas no primeiro capítulo voltam a atuar e, a
seu modo, extrair diferentes proveitos da festa realizada no Oiapoque (Guiana Francesa)
em ocasião de uma visita dos Wajãpi vindos do Amapari (Brasil)—tal o que pude observar
em 1996. Trata-se, dessa vez, menos de um esforço comparativo por meio da literatura do
que de um exercício de compreensão de como alguns agentes se posicionam em um mundo
marcado por descontinuidades e em que a diferença é levada a assumir formas variadas
conforme os diversos contextos de sua enunciação. As festas e os encontros entre Wajãpi
do Amapari e do Oiapoque, então iluminados pela etnografia, revelam instâncias
embebidas de um certo pragmatismo, definindo alianças matrimoniais e arranjos
comerciais, bem como disputas e hostilidades, muitas vezes expressas por meio do idioma
do xamanismo. Nesse cenário, os discursos formulados na interface com as sociedades
nacionais, o Brasil e Guiana Francesa, com as quais convivem esses grupos, os ajudam a se
situar no mundo novo que se lhes é apresentado e a redefinir suas redes de relações.
Volto a atentar aos limites do retrato algo borrado a ser composto. A vastidão do
campo de visão que se quer abranger e o esforço para capturar a imagem do movimento em
detrimento daquela da fixidez implicaram, certamente, o sacrifício de detalhes, colhidos
mais de perto, que poderiam contribuir para a riqueza da análise. Por motivos de ordem
logística, jamais retornei ao Oiapoque depois daquela temporada de 1996, o que contribuiu
para a construção desse olhar distanciado no tempo e no espaço. O leitor deve encontrar
nas páginas seguintes um esforço de reconstituição, muitas vezes orientado por fragmentos
etnográficos, remontando aos eventos e relações observados naquele momento. A inserção
de narrativas um tanto subjetivas no percurso prioritariamente analítico e teórico desta
dissertação será, pois, um recurso recorrente, ainda que não o principal. Como se a
enunciação de uma instância etnográfica pudesse desembocar numa análise de maior
escopo, em que a experiência incompleta de campo apresenta-se como caso particular do
problema mais geral que anseio apreender. Nesse sentido, as reflexões aqui encadeadas
consistem, no mais, num balanço da literatura etnológica produzida sobre as sociedades
amazônicas e, mais precisamente, sobre as manifestações rituais e suas conseqüências para
a configuração de redes de comunicação. Trata-se de um desprendimento espacial que
conduz à indagação sobre a base comum de toda a interlocução que se estabelece em
termos bastante diversos daqueles privilegiados pelo Ocidente moderno. Essa comunicação

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embriagada, tal como apresentei no início deste prólogo, é o que cumpre aqui
compreender.

Antes de qualquer começo, gostaria de traçar uma breve consideração sobre o uso das
referências bibliográficas no texto que segue. Uso, ao mesmo tempo, referências mais
gerais de teoria antropológica e referências etnográficas extraídas de monografias sobre
diversas populações ameríndias, bem como artigos especializados. No que se refere aos
Wajãpi, disponho de dados etnográficos colhidos no Oiapoque, que são, não obstante,
bastante parcos, o que me leva a voltar com mais fôlego às monografias de Dominique
Gallois (1986, 1988), Allan Campbell (1982) e Flora Dias Cabalzar (1997)—sobre o
Amapari—e de Pierre Grenand (1981) sobre o Oiapoque; além de um apanhado de artigos
mais recentes produzidos pelos próprios e também por outros autores, dentre os quais
encontram-se os escritos de Françoise Grenand (1996, 2004) sobre a arte da fabricação do
caxiri. De modo geral, devo lembrar que trabalho com dados secundários, o que implica
uma apuração de interpretações de terceiros. Compartilho a idéia de Clifford Geertz (1978)
de que toda etnografia é de imediato uma interpretação e, dessa forma, o esforço
comparativo inclui ao mesmo tempo uma imersão no tema—as manifestações rituais/
festeiras na Amazônia indígena—e uma apreciação (um comentário crítico) da bibliografia
disponível. Não haveria como dissociar aqui esses dois planos.

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1. Antropologia da comunicação

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma se comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

—João Cabral de Mello Neto, “Rios sem discurso”

Uma fronteira no mais do termo

Em abril de 1996, parti em direção à fronteira que separa o estado brasileiro do Amapá da
Guiana Francesa, departamento além-mar do governo francês, representada pelo rio
Oiapoque, para iniciar uma pesquisa sobre os Wajãpi setentrionais. A escolha dessa região
fora bastante proposital. Como pesquisador recém-formado que eu era, não estava de fato
certo daquilo que iria estudar—me encantava a idéia dos encontros entre diferentes
agentes, indígenas e não -indígenas. Instigava-me também pensar os problemas de uma
situação avançada de contato entre índios e não-índios, seja porque não almejava
desenvolver uma monografia nos moldes clássicos (ainda que perseguidor assíduo de temas
clássicos), seja porque desejava empreender uma discussão teórica sobre a natureza dos
encontros entre as sociedades indígenas e a modernidade. Hoje, passados muitos anos, vejo
que meus intentos mudaram, como pode ser observado na proposta deste livro. No
entanto, penso que seja importante salientar alguns dos aspectos que saltaram aos meus
olhos naquela época, para concluir que, por mais que meu olhar tenha se desviado, foi
sempre em relação àquele contexto inicial do qual pude extrair as questões teóricas que
serão aqui levantadas e assim formular minhas indagações com mais destreza.
A literatura sobre os Wajãpi do Amapari, produzida por autores como Dominique
Gallois e Allan Campbell, entre outros, já era, no momento de minha ida a campo, algo

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extensa. Eu dispunha, assim, de uma bagagem razoável que me possibilitaria um bom
ponto de partida para a reflexão sobre o tema das relações, vividas ou imaginadas, com a
alteridade, que englobava o tema das relações com os não-índios1. Em Gallois, esse tema foi
bastante contemplado em seus escritos da década de 1990, período posterior à redação de
sua tese de doutorado centrada em noções wajãpi de pessoa e doença, quando questões
como auto -imagem, territorialidade e gêneros discursivos vieram à tona muito em função
da sua inserção, desde o final dos anos 1970, nos processos de transformação da vida social
wajãpi no Amapari. Junto ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Dominique coordenou
programas de educação e oficinas de vídeo, que compunham o projeto “Vídeo nas
Aldeias” 2, além de participar ativamente, como assessora e antropóloga responsável pelos
procedimentos de identificação e demarcação da Terra Indígena Wajãpi, trabalho
concluído, com a homologação oficial, em maio de 1996. É importante notar que Gallois
vem acompanhando a trajetória dos Wajãpi do Amapari desde 1977, poucos anos depois da
instalação de um posto da Funai, órgão indigenista tutelar, na área.3
O quadro da sociedade wajãpi na Guiana Francesa era apenas apresentado nos
trabalhos de Gallois (1986, 1988) e Campbell (1982) de maneira periférica. Já os estudos
assinados por pesquisadores franceses como Pierre Grenand (1981), Françoise Grenand
(1982) e Jean-Michel Beaudet (1984) sobre os Wajãpi do Oiapoque deixavam de lado a
questão do contato com a sociedade nacional em favor da eleição de temas e abordagens
mais tradicionais à etnologia, como etno-história, etnobotânica e mitologia. Para esses
antropólogos, as relações travadas com os franceses não renderiam um tema de pesquisa
propriamente legítimo, antes evidenciariam um colapso social responsável pela
“desnaturação”—ou mesmo “apodrecimento”, para usar a expressão hiperbólica de Pierre

1
É importante frisar os trabalhos de orientandos de Dominique Tilkin Gallois sobre os Wajãpi, concluídos
depois de 1996. Destaco sobretudo o de Flora Dias Cabalzar (1997) e o de Silvia Tinoco (2000b). O primeiro
versa sobre o sistema de parentesco wajãpi e seus usos através das formas discursivas. Trata-se de uma
contribuição imensa para essa literatura, uma vez que se vale de balanços bibliográficos e de uma etnografia
minuciosa quanto à recuperação da memória genealógica wajãpi, operando com seis gerações sucessivas. O
segundo apresenta uma reflexão de tipo diverso, que busca compreender a formação de lideranças wajãpi no
contexto das relações entre os índios e a sociedade nacional e as relações entre chefias tradicionais e jovens
líderes—os últimos se configurando como tais por meio do acesso a conhecimentos advindos dos brancos,
como aqueles oferecidos pela “Escola indígena”.
2
Em “Vídeo nas Aldeias”, projeto para a comunicação entre grupos indígenas através do vídeo, foi dado
privilégio justamente à perspectiva de encontro entre diferentes grupos indígenas—esse é o caso do filme
Arca dos Zo'e (1993), dirigido por Dominique Tilkin Gallois e Vincent Carelli—e grupos indígenas com
brancos—Meu amigo garimpeiro (1995) e Placa não fala (1997), dos mesmos diretores.
3
Sobre a trajetória de Dominique Gallois e a repercussão sobre a sua obra etnológica, ver a entrevista
concedida a F. Ferrari, V. Macedo, E. Schuler e R. Sztutman (in Gallois 2001).

16
Clastres (1996)—da sociedade nativa. A situação dos Wajãpi da Guiana Francesa era
retratada como estado de calamidade, em que a cultura nativa se mostrava antes de tudo
despedaçada diante da penetração de signos e valores do mundo europeu. Uma avaliação
que enfatizava o processo de perdas significativas em detrimento das dinâmicas sociais
internas ao grupo. “Pessimismo sentimental”, para usar uma expressão de Marshall Sahlins
(1997).
O processo de inserção dos Wajãpi setentrionais pela sociedade francesa é de longa
data. Com o êxito da Revolução Francesa, a Assembléia Nacional acorda, em 1792, a
qualidade de cidadãos a todos os índios, mas não os mestiçados com os negros, então
tomados como escravos. O índio era enquadrado, por um lado, dentro de um ideal de
pureza—guardião de costumes e tradições inalienáveis—e, por outro, sob a égide de
noções emblemáticas como igualdade e liberdade. O geógrafo Jean-Marcel Hurault (1972)
conta que, em 1850, os franceses nomeavam reis ou capitães gerais para as aldeias Wajãpi,
o que marcava um processo acirrado de intervenção. O autor identifica aí um caminho de
subversão de traços políticos, sociais e culturais nativos. Creveaux (Hurault 1972), em
1877, já tece comentários sobre a criticidade da situação sanitária dos assentamentos e
Coudreau (idem, ibidem), em 1890, mostra-se indignado com as constantes epidemias de
gripe que assolavam a população Wajãpi4. Com os Emerillon, que nos dias de hoje
convivem ao lado dos Wajãpi na “comunidade indígena” do rio Camopi, o processo não
teria seguido vias muito distintas: contatados em 1768, teria sido atestada a sua “extinção”
devido às inúmeras epidemias de doenças como malária e gripe.
O processo colonial empreendido pelo governo francês, inicialmente narrado por
viajantes como Creveaux e Coudreau, culminaria na recente política de “francização”,
instaurada entre 1968 e 1971. É preciso salientar que as políticas do século XX mantiveram
como meta a recuperação das populações indígenas que “caminhavam para a extinção ”,
valendo-se de uma política de oferta de novos e eficazes recursos sanitários para combater
as doenças e a taxa de mortalidade crescente e propor a integração dessas populações a um
esquema oficial por meio da garantia dos direitos básicos de um cidadão europeu. Alguns
antecedentes devem ser rapidamente frisados. O período iniciado em 1937 correspondeu
ao da implementação de uma política protecionista ao modo francês: medidas de proteção

4
Dados numéricos evidenciam uma acentuada decadência demográfica no século XIX. De 1817 a 1850, os
Wajãpi teriam sido reduzidos de 6 mil habitantes a apenas 350 (Hurault 1972).

17
eram tomadas em relação à exploração econômica e política da região, aliando-se a uma
política sanitária que visava o renascimento demográfico. A persistência das relações
intensas com os brancos fez eclodir, nos anos 1940, epidemias graves que implicaram
abalos demográficos. Dada a precariedade que se encontravam os índios, foi instalado, no
rio Camopi, em 1950, um posto de assistência médica e, quatro anos depois, uma
enfermaria. Em 1960, ano que contou com a migração de grupos meridionais, foi lançada
uma política oficial de recuperação dos grupos do alto e médio Oiapoque, a começar pela
municipalização da comunidade do Camopi e pelo crédito definitivo de cidadania francesa
a todos os índios que habitavam o solo francês. Em 1965, a pressão do conselho geral da
França acabou submetendo a população à lei nacional, trazendo como mote a integração
dos índios à economia de mercado.
Vê-se bem, por essa breve paráfrase, que a região do Oiapoque, sítio de encontros e
desencontros entre grupos sociais distintos, era um terreno para surpresas e insights
antropológicos. Apresentava-se, sobretudo, como uma situação de fronteira, que defino—
provisoriamente—como a conjunção, em um mesmo campo, de pontos de vista múltiplos e
conflitantes. Ainda mais se imaginarmos que essa região serviu em momentos distintos de
lugar de passagem e troca entre diferentes blocos wajãpi, que, aliás, revelam-se pela sua
história de intensas migrações (Gallois, 1986). Uma aproximação a esta noção de fronteira
se encontra no projeto “Sociedades indígenas e suas fronteiras na região sudeste das
Guianas”5: “Trata-se um conceito operacional interessante para apreender a multiplicidade
de relações de contato (índios/brancos, índios/índios, brancos/brancos) em curso na região
sudeste das Guianas. Nesse contexto, fronteira representa menos uma linha divisória que
uma faixa de conjunção, intersecção ou transição. Interessa-nos portanto abordar as
fronteiras vivenciadas pelos índios naquela área enquanto espaços privilegiados para os
encontros interculturais, zonas limites (“borders”) para o encontro e a interação entre as
culturas" (Gallois 1995:16; grifos meus).
No Oiapoque, a geografia nos empresta uma metáfora. A região que abriga a
fronteira oficial é palco para uma situação de fronteira de outra natureza que não deve ser
reduzida aos aspectos territoriais, revelando-se como espaço para intercâmbio e embate

5
Projeto temático de pesquisa, financiado de 1995 a 2001 pela Fapesp e coordenado pelas Profas. Dras.
Dominique Tilkin Gallois e Lux Vidal, o qual integrei desde o início de sua vigência. Os resultados dessas
pesquisas individuais e coletivas podem ser encontrados em duas coletâneas organizadas por Dominique
Gallois (2005 e 2006).

18
entre grupos heterogêneos. Como sugere Ulf Hannerz (1997), o termo “fronteira” pode ser
tomado como palavra-chave para uma “antropologia transnacional”—preocupada com
problemas de interação entre as diversas culturas do globo, para além dos divisores
nacionais—à medida que indica uma realidade de interconexões e deslocamentos em
detrimento da noção de “limite”, que supõe a separação de planos fixos que permanecem
intocáveis e impenetráveis6. Trata-se de entrever regiões onde os diferentes grupos sociais
se encontram e, desta forma, compreender como elas se organizam nesse espaço pleno de
ambigüidades. Tendo como horizonte um mundo “onde as comunidades são diásporas e as
fronteiras na realidade não imobilizam mas, curiosamente, são atravessadas” (idem:8),
Hannerz atenta à importância de pensar a cultura não como província de significado
fechada e estável, mas como “fluxo” descrito em termos processuais.
O esboço de uma noção ampliada de fronteira pode render considerações
interessantes para a etnologia contemporânea, principalmente no que diz respeito à região
das Guianas, uma vez que recoloca a discussão acerca da articulação entre as unidades
sociais locais—muitas vezes tomadas por uma “ilusão atomista”—em sistemas interlocais e
mesmo interétnicos (aqui faço caber no termo “interétnico” tanto a relação entre grupos
indígenas diversos como a relação entre os grupos indígenas e a sociedade nacional). A
fronteira representada oficialmente pelo rio Oiapoque, pouco lembrada por brasileiros e
franceses, é também o único ponto de intersecção territorial entre essas duas
nacionalidades. Atravessada pelos trajetos dos dois grandes blocos wajãpi7, ela se
manifesta como “zona de contato”, espaço aberto à criação e ao imaginário, e também ao
risco e ao perigo, como veremos nos capítulos seguintes.
Na esteira de Hannerz, Homi Bhabha (1998) reflete, no contexto de um mundo pós-
colonial, sobre a formação de “entre-lugares”, terrenos propícios para a elaboração de

6
Tomo as especulações de Hannerz apenas em seu sentido metafórico, uma vez que não estou diante de um
contexto transnacional tal como o descrito pelo autor. Aqui, o problema é outro. Como se verá, pouco
importam os limites nacionais de fato, mas sim os valores que a imaginação indígena conferem a eles. Voltarei
a este ponto no quarto capítulo.
7
Gallois (1986) referiu-se a esses blocos como “façções”. O sentido do termo “facção” é dado pela
conformação, na história, de duas ondas distintas de migração, como informa a autora. Essas facções foram
constituídas a princípio por um afastamento geográfico, resultado de divergências políticas e de rumos
aliancistas diversos. Por isso, podem ser referidas também como “grupos territoriais”. Prefiro empregar,
aqui, “bloco” em vez de “facção” devido ao uso que esse termo recebeu em etnografias de outras populações
ameríndias. Na literatura sobre os Xavante ou os Kayapó, por exemplo, o termo “facção” designa um
elemento central na composição da dinâmica política desses povos. No caso wajãpi aqui iluminado, não
possui um significado político de antemão, revelando apenas uma configuração territorial que indica um
processo de diferenciação.

19
estratégias de subjetivação—singular ou coletiva—que dão margem a novos signos de
identidade e pontos inovadores de colaboração e contestação no ato de definir a própria
idéia de sociedade. A fronteira parece a esse autor um lugar intersticial, sobreposição e
deslocamento de domínios da diferença, onde se dá a negociação do interesse comunitário
ou do valor cultural. Embates de fronteira acerca da diferença cultural podem “confundir
nossas definições de tradição e modernidade, realinhar fronteiras habituais entre o público
e o privado, assim como reativar as expectativas de desenvolvimento e progresso”
(1998:20). Bhabha questiona a nossa contemporaneidade cultural e a possibilidade de
(re)descrevê-la. Para tanto, busca na imagem da migração e da viagem os traços mais
reveladores desse mundo. Trata-se, para ele, do problema de viver de outra forma que não a
modernidade, mas ainda assim não absolutamente fora dela. “Viver no mundo do estranho,
encontrar suas ambivalências e ambigüidades encenadas na casa da ficção, ou encontrar
sua separação e sua divisão representadas na obra de arte, é também afirmar um profundo
desejo de solidariedade social: ‘estou buscando o encontro... quero o encontro... quero o
encontro’” (idem:41).
Bhabha propõe que abandonemos a perspectiva da fixidez da cultura e da
sociedade—essas não são “coisas”, produções e não produtos, processos que devem ser
capturados em suas formas fugidias. De forma análoga, James Clifford, em Routes, nos faz
pensar em uma antropologia dos deslocamentos, uma antropologia que privilegia as
relações de viagem em detrimento das relações de co-residência em um determinado local.8
Para tanto, ele procura definir o trabalho de campo menos como um problema de co-
residência e mais como a perseguição de uma série de encontros promovidos por viagens e
migrações. “Todos estão no movimento, e assim foi durante séculos: habitar-a-viagem”
(1997:2). E ainda: “A viagem emerge como um conjunto complexo e crescente de
experiências: práticas de cruzamento e interação que perturbaram o localismo e muitas
asserções comuns sobre a cultura” (idem:3).9
Essa literatura “pós-colonial” ou mesmo “pós-moderna” é aqui considerada apenas
à medida que oferece insights para uma investigação etnológica; como veremos, o estudo
8
Clifford propõe que se desloque o olhar das aldeias, dos grupos locais, para os percursos das populações. “A
aldeia era uma unidade útil. Ela oferecia um modo de centralizar uma certa prática de pesquisa e, ao mesmo
tempo, servia como sinédoque, como foco ou parte, através da qual fosse possível representar uma totalidade
cultural” (1997:21). Ora, guardemos esse ponto para o próximo capítulo, quando será discutida a perspectiva
supralocal em etnologia.
9
Todas as traduções dos textos em inglês e francês citados neste livro são, doravante, do autor.

20
antropológico de festas e rituais—um tema por assim dizer bastante “clássico”—revela-se,
no mais das vezes, sob o signo dos deslocamentos e sob a idéia de que a unidade e a
identidade não são mais que fases ou pausas de um fluxo contínuo de diferenças. Nesse
sentido, ironicamente, a surpresa do moderno ou pós-moderno diante da instabilidade e
desterritorialização de “coisas”, como a sociedade, a cultura e o indivíduo, vem ao
encontro da descoberta do mundo amazônico.
As Mitológicas, tetralogia de Claude Lévi-Strauss, representam, por certo, a
constituição de um objeto de estudo—os mitos—que não possui lugar ou território, mas
que se define pela sua produção nos interstícios de unidades sociais como grupos locais e
“étnicos”. Como garante o autor, os mitos conversam entre si, desdobrando-se e
traduzindo-se uns nos outros dos modos mais diversos, e um mito registrado não pode ser
pensado senão como uma versão particular, mais ou menos rica, de um conjunto de mitos
que está aquém e cumpre ser decifrado pelo mitólogo. O campo no qual se movem os mitos
é já um “entre-lugar”, onde não cabem noções como sociedade, cultura e indivíduo. Como
os mitos, os ritos ameríndios também conversam entre si, cortando fronteiras e, por isso,
não devem ser apreendidos em um recorte circunscrito exclusivamente ao local. Mas,
diferentemente dos mitos, que desenham uma comunicação que atravessa os homens sem
fazer deles sujeitos, os ritos engendram uma dupla comunicação dos homens entre si e dos
homens com os seres do cosmos, promovendo a con stante reconfiguração das unidades
sociais, bem como deslocamentos no espaço.
A idéia de deslocamento está presente na literatura sobre os Wajãpi. Segundo
Gallois (1986), a história wajãpi é a história das suas migrações—do baixo Xingu, no século
XVII, ao Oiapoque e o Jari, na região de fronteira entre o estado do Amapá e a Guiana
Francesa. E isso se explica não meramente por razões ecológicas – escassez de recursos
naturais e esgotamento do solo na terra firme amazônica – ou contingenciais – fuga de
agentes da expansão colonial, tais os missonários e os exploradores predatórios. Haveria
decerto nesses momentos uma causa religiosa ou ontológica que deve ser perseguida—tal o
que supôs Hélène Clastres (1975) para as migrações tupinambá, no século XVI, e guarani, no
século XX.10 Noutras palavras, o deslocamento e a recusa da fixidez seriam, antes de tudo,
uma disposição de povos como os Wajãpi. Assim como os mitos, os grupos locais

10
Migrações que se perpetuam até os dias de hoje.

21
tupinambá, guarani ou wajãpi não são senão uma pausa momentânea de um fluxo maior
que os antecede.11 Se hoje o intenso jogo de migrações foi substituído pelas políticas
oficiais de sedentarização—tal o que se nota com a demarcação da Terra Indígena
Wajãpi—, não deixam, nem deixarão, de existir por ali viagens e festas multicomunitárias
que insistem em demonstrar que, para haver comunicação, é preciso deixar transbordar o
local e alcançar novos domínios. “Sair de si”, desgarrar-se—eis um tema tipicamente
ameríndio.
Eis em parte a atmosfera conceitual que conduziu meu olhar para o rio Oiapoque
em abril de 1996. Ainda que por um curto período de tempo (devido a problemas
logísticos de viagem), minha experiência de campo contou com uma situação privilegiada:
eu havia sido convidado, por intermédio de Dominique Gallois, para acompanhar um
grupo heterogêneo—composto por jovens e velhos—de Wajãpi do Amapari em sua
expedição à terra de seus aparentados distantes na Guiana Francesa.12 Entre abril e maio
daquele ano, acompanhei-os ao longo de todo o percurso: de Macapá, passando pelas
cidades do baixo rio, Saint Georges (margem francesa) e Oiapoque (extremo norte do
estado do Amapá), até os grupos locais do alto. Visitamos ao todo cinco assentamentos
dispostos à margem ocidental do Oiapoque, dentre os quais, Camopi, o primeiro, ainda no
curso médio, era constituído por um assentamento bastante populoso, que recebe do
governo francês o estatuto de “comunidade indígena”. Diferente do que se verificava no
alto, no Camopi, aquele aglomerado de gente não poderia ser descrito como um único
grupo local, devido às segmentações vigentes, separando espacialmente seja os Emerillon

11
Ora, esse fluxo é sem dúvida impulsionado por um conjunto de mitos que faz menção seja a existência de
uma “terra sem mal” (H. Clastres 1975), seja à iminência da queda do céu e do apodrecimento da terra (ver
Nimuendaju 1987 e Gallois 2001).
12
Uso o termo “aparentados” como correlato do termo em inglês relative, que se distingue fortemente de kin,
parente consangüíneo. Aqui, o emprego da categoria "parentes" não seria de fato apropriado. Gentes do
Amapari e do Oiapoque não se vêem como parentes propriamente ditos, mas como afins distantes e com
predisposição à hostilidade (ver quarto capítulo). Os próprios índios lançam mão do termo em português
"parentes" para se referir a esses, o que não deve ser confundido com a afirmação de uma relação de
parentesco propriamente dita – ou seja, uma relação seja de consangüinidade, seja de afinidade atualizada ou
efetiva (ver Viveiros de Castro 1993). No mais, como descreve Flora Dias Cabalzar (1997), o termo -jepé (que
designa, em termos gerais, “parceiro de troca”, cujos laços de parentesco ou são distantes ou não existem) é
não raro utilizado pelos Wajãpi do Amapari para se referir aos do Oiapoque, pessoas os quais já se
relacionaram no passado, mas que acabaram perdendo os laços.

22
dos Wajãpi, seja certas parentelas wajãpi que se espalhavam pelo rio principal e pelos
igarapés.13
A peregrinação contou com uma série ininterrupta de encontros dos habitantes do
Amapari com os aparentados há muito tempo não vistos e com quem se procurava reatar
contatos. Além disso, o Oiapoque era para o pessoal do Amapá um local investido pelo
imaginário da opulência. Lá, os índios opulentos (“ricos”) contavam com o acesso a
inúmeras mercadorias, tais como os estimados tecidos de algodão de cores sortidas, os
potentes rifles e munições, as comidas e bebidas industrializadas (que os libertava da
necessidade categórica da caça), sem falar no fato de serem “cidadãos” franceses plenos.
Em contrapartida, no Oiapoque, alimentava-se o imaginário dos “índios puros”, que
traziam arcos e flechas para trocar, não haviam se esquecido dos grafismos corporais
tampouco do repertório de cantos e danças ensinados pelos antigos. Enfim, era possível
visualizar, nesse trajeto, o desenho de um círculo de relações interlocais, que principiava
com o estranhamento mútuo e culminava nas animadas festas de caxiri, cerveja de
mandioca muito apreciada pelos índios da região (não apenas os Wajãpi, mas também os
Emerillon, os Wayana-Aparai e as demais populações da região do rio Uaçá e do Baixo
Oiapoque).
No caso da expedição que acompanhei, parecia-me que a disposição para as festas
interlocais era mais intensa que o desejo de trocar objetos e, mesmo mediante tal atividade,
não era o valor de uso desses objetos o que ressaltava, mas sim uma disposição de
reestabelecer relações. Noutras palavras, a festa de caxiri, manifestação recorrente na vida
ritual amazônica, se apresentava como canal por excelência entre ambos os blocos. Desde o
primeiro dia de viagem, os Wajãpi do Amapari faziam alusões às grandes festas de caxiri
do Oiapoque que eles ouviam falar ou de que já haviam participado. A festa era a grande
expectativa para os que partiam em viagem, abrindo um horizonte de possibilidades, que
ia do estabelecimento de novos vínculos comerciais até a renovação de laços matrimoniais.
Enfim, prometia o restabelecimento de “relações de qualidade” (F. Cabalzar 1997) entre os

13
Emprego o termo “grupo local” da maneira pela qual é definido por Denise Grupioni (no prelo):
simplesmente como um grupo definido espacialmente (ainda que nas Guianas um grupo local ideal deva
coincidir com uma parentela cognática). O Camopi, parece-me, não pode ser definido como tal, pois
representa uma unidade criada pela administração francesa para atrair a população indígena e revela
clivagens espaciais explícitas. Sobre essas definições, ver o segundo capítulo.

23
blocos conhecidos sobretudo pelas suas relações tensas de rivalidade política, acusações
xamânicas e hierarquias comerciais.14
O primeiro contato com a realidade etnográfica do Oiapoque me levou a um novo
recorte que daria origem ao meu projeto de mestrado: olhar as relações tanto entre índios
de diferentes proveniências como entre índios e não-índios pelo prisma das festas de
caxiri, eventos que pareciam mover a vida social naquela região, colocando em contato
diferentes grupos sociais. É possível, neste sentido, levar adiante a idéia dessas festas como
situações de fronteira. Em seus moldes interlocais, elas trazem para o interior de um mesmo
campo blocos distintos e muitas vezes antagônicos para então reuni-los de maneira
provisória e tênue, ao mesmo tempo ressaltando seus contornos e diluindo-os no júbilo
comum. De qualquer forma, se os contornos não são de todo abolidos, são colocados em
suspenso, apagados para serem menos refeitos que redimensionados. Noutras palavras, no
interior de uma festa de caxiri, ilumina-se uma situação de fronteira que reflete não o
absolutismo de seus limites, mas justamente uma possibilidade de permuta e intercâmbio
de posições. Como tentarei demonstrar, é na festa que o impenetrável do cotidiano torna-se
penetrável, abrindo sítios para a troca entre Wajãpi do Amapari e Wajãpi do Oiapoque e
entre índios e não-índios.
Lugar da interpenetração e comunicação entre os grupos, as “zonas fronteiriças”
revelam-se interstícios, espaços intermediários, área soturna de predadores e vítimas. É
ainda nessas zonas que se potencializa a faculdade de mudar, adaptar-se, improvisar,
“parecer ao mesmo tempo mais e menos o que se é, e ser ao mesmo tempo mais e menos o
que se aparenta” (Hannerz 1997:23). Pela sua possibilidade de trânsito, fronteiras como
rituais interlocais não são lugares completamente seguros, trazendo à tona poderes
predatórios que migram da exterioridade e de certas zonas latentes da vida comum para

14
Relações de qualidade são aquelas que devem se manter no campo da sociabilidade, ou seja, relações
orientadas por condutas respeitosas que excluem a possibilidade de hostilidade ou agressão. Cabalzar pauta-
se, nesse sentido, nas reflexões de Joanna Overing (1991) sobre o “senso de comunidade” e a “estética da
produção”. Entre os Wajãpi, como veremos, um dos traços mais recorrentes dessa “qualidade” é a
comensalidade – o partilhar de alimentos. Membros de uma mesma parentela são aqueles que “comem junto”
(comensalidade de primeiro tipo ) e, por isso mesmo, assemelham-se. Ora estabelecer com um estranho uma
relação de qualidade é fazê-lo “comer junto”, oferecer-lhe comida e, de modo ainda mais marcado, “beber
junto” (comensalidade se segundo tipo), oferecer-lhe caxiri. A oferta de bebida é o que permite a aproximação
desde grupos domésticos diversos, até mesmo etnias diversas. Quanto maior a distância social, maior deverá
ser a quantidade de bebida e, por conseguinte, maiores as possibilidades da embriaguez. Não obstante,
quanto maior a embriaguez, maior a possibilidade da comensalidade resvalar em hostilidade, fazendo da
tentativa de estabelecimento da amizade a criação de novas inimizades.

24
ameaçar a tranqüilidade idealizada da vida social, uma vida—pretensamente—entre
semelhantes. Sob o signo da diferença e do perigo, tão próprio à paisagem guianense, a
festa como fronteira repõe a ambigüidade inerente à vida social, reunindo elementos
antitéticos para criar uma realidade própria, uma “realidade de segundo nível” (Ricoeur
1991)15 e um “espaço intersticial” (Bhabha 1998) para além da soma de seus termos.
A experiência no Oiapoque me levou a crer que o estudo do ritual, objeto clássico
da antropologia, pode esclarecer muitos pontos a respeito de uma “situação interétnica”
contemporânea, termo que deve ser colocado em questão, uma vez que dá conta apenas de
uma parte de um problema mais amplo, que não é simplesmente o das relações entre os
índios e a sociedade nacional, mas sobretudo entre os índios “eles-mesmos” apesar ou por
meio das sociedades nacionais—esse ponto será desenvolvido adiante. É nessa acepção que
reside um dos argumentos centrais deste livro. Por meio da pesquisa de campo, abreviada
que tenha sido, percebi que para adentrar a intriga interétnica em questão era necessário
antes me debruçar sobre o modelo de sociabilidade wajãpi e nas festas com as quais me
deparava, momentos por excelência da atualização desse modelo.
No que a antropologia poderia se valer deste incidente, a bem dizer, o encontro de
dois blocos wajãpi mediado pelo oferecimento de bebidas fermentadas—propriamente um
oferecimento de embriaguez, em diferentes graus—e cuja natureza parece, depois de um
mínimo esforço de atenção, menos desordenada do que se pensava ser? Em Macapá, a
insistência dos Wajãpi em mencionar as recorrentes bebedeiras dos do lado de lá era
surpreendida, e até certo ponto constatada, nos primeiros dias de estadia no Oiapoque.
Não eram, portanto, apenas bebedeiras, mas maneiras de organizar a experiência do
(re)encontro com os visitantes; maneiras de instaurar uma forma ritualizada para receber
aqueles que vinham de longe, o que, de alguma forma, pressupunha a presença de regras
de comportamento e de conduta. Regras de reciprocidade que deveriam ser estabelecidas e
negociadas. Podemos então identificar nessas atividades produtoras de sentido um material
precioso à análise antropológica. A questão que me vem em mente é a seguinte: em que

15
A festa, espaço do lúdico, esbarra na noção de “ficção” tal como pensada por Paul Ricoeur: “Não há
discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade, embora em outro nível mais fundamental
que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de linguagem ordinária.
Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência operada pela ficção e pela poesia é a condição
de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais
somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano do que Husserl designava pela expressão de
Lebenswelt, e Heidegger pela de ‘ser-no-mundo’”(1991:56).

25
medida manifestações relatadas como fluidas e desorganizadas, que povoam a vida social
de populações indígenas, podem ser trazidas ao interior da disciplina antropológica? Nem
tão fluidas, nem tão desorganizadas, eu diria.

Mapa 1
In: p. 38 do Livro de Mapas

Apontamentos de viagem

Devemos nos preocupar com a compreensão da ação humana e do mundo social como um
momento em que algo está fora de controle, mas não fora da possibilidade de organização.

—Homi Bhabha, O local da cultura

Antes de adentrar questões propriamente conceituais, voltemos ao princípio evocado há


pouco: a viagem ao Oiapoque. Em 19 de abril de 1996, quando se festejava o Dia do Índio,
deixei Macapá, partindo em direção ao Oiapoque. Acompanhavam-me três jovens do
Amapari, Kaintona, Japarupi e Moropi, que, como eu, jamais haviam pisado no solo
daquele departamento francês. Certamente, surpresas não faltariam para todos nós. No dia
seguinte, depois de alguns contratempos na longa e sinuosa estrada de terra que liga
Macapá ao extremo norte do estado, chegávamos à cidade de Oiapoque, onde pensávamos
encontrar três velhos do Amapari. Estes, por sua vez, preferiram não nos esperar,
adiantando-se ao Camopi. A nós, só restava fazer o mesmo: em poucos minutos,
negociávamos com um barqueiro que nos conduziria ao destino desejado. A viagem tão
esperada seria mais breve que o estimado, mas não nos pouparia momentos aventurosos
dado o curso irregular e arisco do rio Oiapoque, pleno de corredeiras. O pessoal do
Amapari diz que as pedras que abundam no rio formavam em tempos imemoriais uma
panela na qual o mundo teria sido fabricado. "Mas isso faz muito, muito tempo", lembrava
Moropi.
O rio era sem fim, a paisagem monotonamente envolvente e o sol estarrecedor. O
desconforto do barco, o calor e o perigo das corredeiras incomodavam, além de mim
mesmo, os três jovens, tão ansiosos que estavam pela chegada e para encontrar seus
velhos. “Moropi, não está gostando da viagem?”—perguntei, julgando-o apreensivo. Foi

26
então que ele me confessou: “Eu achava que era mais perto, que chegaríamos mais rápido ”.
“Pensava então que o rio fosse menor?”—continuei. “Isso não. Já tinha ouvido falar que o
rio era muito grande. Mas não estou acostumado. Lá na minha aldeia, o rio é pequeno. Tem
árvore, não tem tanto sol”. O que me interessava mesmo eram as suas expectativas e, ainda
no barco, indaguei a Japarupi: “Como você acha que vai ser lá no Camopi?”. E ele
procurou me confortar sem muita convicção: “Bom. Mas ouvi dizer que lá é tudo muito
diferente. Lá tudo é muito misturado, índio, parainsi-ko [francês], emerillon, karai-ko
[brasileiro]. E muita bebida”. Esse último aspecto chamou minha atenção por ser muito
recorrente na imagem que as pessoas do Amapari criavam para o Oiapoque. “Me disseram
que eles bebem muito, não é igual à nossa aldeia. Eles bebem muito e é só cachaça. São
muito diferentes, quase não são mais índios”. Logo percebi que a fala de Japarupi atentava
para perdas irreparáveis. Em seguida, perguntei se os habitantes do Camopi ainda se
pintavam e ele respondeu com sua firmeza particular: “Eles só usam roupas dos brancos.
Não querem saber de ser índios, vão sempre à vila dos karai-ko para beber. A gente se
pinta para não esquecer o nosso modo. Na aldeia, o melhor mesmo para enfeitar o corpo é
jenipapo, é tanga vermelha, urucum. Na cidade, pode usar calça, cinto, sapato. Mas na
aldeia não”.16
Depois de quatro horas de viagem pelo Oiapoque, bêbados do sol e do balanço da
voadeira, vislumbramos, enfim, a aldeia do Camopi. O barqueiro nos deixou em uma
espécie de pier que levava a uma via asfaltada. De cima, poucas pessoas, sobretudo
mulheres e crianças, observavam nosso sutil desembarque. Não havia como apreendermos
suas fisionomias, que estavam à contraluz. Uma música de estilo incerto ecoava forte de
longe, mas não me recordo muito bem. Naquele momento, o sol já estava baixando, o que
embaraçava ainda mais a nossa visão cansada. Para mim, aquilo tudo soava fantasioso. Para
os jovens do Amapari, quase febris, era a decepção. Japarupi, algumas horas depois,
teimava em confirmar seus presságios, seu olhar revelava um descontentamento ao mesmo
tempo moral e estético. “Eu pensava que aqui era bom como na nossa aldeia. Na nossa
aldeia é tudo diferente. Aqui, eles dormem separados de nós, não conversam. Para eles,
está tudo bem, mas não para nós. É porque nós ainda somos índios, eles não. Aqui todo

16
As imagens descritas por esses jovens de fato circulavam no Amapari desde a primeira visita de reencontro
entre ambos os lados da fronteira, em 1991; esta uma iniciativa de Kumai Wajãpi e Dominique Gallois, uma
viagem ao Oiapoque que envolveu 22 homens do Amapari.

27
mundo é francês, falam até com as suas esposas em francês. A gente entende o português,
mas só para usar na cidade, não para usar na aldeia”. E Moropi, sem hesitar, concordava
com o amigo: “O Camopi não é bonito. Eles moram em casas de branco. Eles não sabem
mais fazer casa bonita, só pensam em fazer casa como aquela do prefeito”.
Naquele momento do desembarque, uma situação de alteridade total havia se
imposto. Os mútuos “quem é você?” deixavam vazar sentimentos de reserva e um certo
antagonismo. No momento posterior, a vontade de diálogo se sobressaía, cedendo espaço à
troca de monossílabos e ao estabelecimento de uma nova reciprocidade. O fato era que, do
ponto de vista dos jovens do Amapari, a possibilidade de estabelecer uma relação de
qualidade, valor ressaltado, estava fortemente ameaçada. “Eu achei que o pessoal iria
conversar com a gente, mas eles nem ligaram para a nossa presença. Quando eles chegam à
nossa aldeia, todos os jovens vão conversar com eles, oferecem lugar para dormir nas suas
próprias casas. Eles não, eles acham que não fica bem”—bravejou Moropi.
De fato, quando chegamos não houve muita festa. Alguns rapazes vestidos com a
tradicional tanga vermelha e com camisetas que traziam estampados motivos norte-
americanos nos levaram até os velhos do Amapari, que já se encontravam instalados.
Matapi, Tsako e Taroko, igualmente cansados da viagem, reclamavam da fome e do pouco
caso por parte daquela população. Sussurrando, soltavam infâmias contra Joseph, o
prefeito emerillon, cuja casa funcionava também como cantina, ponto de venda de
alimentos e de bebidas alcoólicas, sobretudo para forasteiros, por vezes turistas. (O próprio
fato da venda era tido como suspeito, pois de certo modo transformava a “aldeia” em
“cidade”, fazia turvar as relações personalizadas, baseadas em dons recíprocos, em relações
impessoais mediadas pelo dinheiro. Não seria isso, pensavam, um ato de mesquinharia ou
mesmo... feitiçaria?) A casa onde iríamos dormir ficava no centro da comunidade, era uma
espécie de alojamento para visitantes, o que de certo modo irritava os do Amapari, que se
queixavam em demasia pela falta de conforto e pela péssima hospitalidade. Algo nada
digno de um Wajãpi. Não havia paredes, somente a cobertura e as estacas nas quais nos era
possível amarrar as redes. Indignados com o fato de o prefeito não ter-lhes oferecido nem
comida (afinal ele era dono da cantina), nem casa decente, os Wajãpi partiram à procura
daqueles que lhes eram, ou ao menos lhes pareciam mais próximos; afinal, diziam haver
parentes (aparentados) por lá. Foi então que, depois de momentos de abandono,

28
encontramos Ivo, um Wajãpi que se dizia sobrinho do “capitão” Matapi e que nos levou,
enfim, à sua “aldeia”, localizada nas mediações da comunidade do Camopi.
Essa comunidade, atualmente reconhecida pelo governo francês como um
município indígena, localizada na confluência do médio Oiapoque com o rio Camopi,
abriga um núcleo de estabelecimentos institucionais e comerciais—a gendarmerie (posto
policial) e as respectivas casas dos gendarmes e médicos franceses, do lado do Oiapoque e
em frente à Vila Brasil, e a prefeitura, a cantina, a escola (e também a casa dos professores
franceses) e a mercearia, quase nas margens do Camopi. O centro do Camopi é rodeado,
numa primeira faixa, por habitações wajãpi e emerillon mais ou menos indiferenciadas e, a
partir daí, por faixas isoladas de agrupamentos wajãpi e emerillon então diferenciados.
Como município, o Camopi foi idealizado por um plano piloto de urbanização, que incluía,
entre outras coisas, a pavimentação de ruas para a disposição das casas. Essa “francização”
do espaço jamais obteve êxito, uma vez que a tendência da disposição das casas emerillon e
wajãpi tem sido justamente a de esparramar-se nas margens do rio, negando-se à
organização das ruas—tal um padrão residencial observado entre os Wajãpi do Oiapoque,
esses que se reconheceriam como “índios do rio”. Assim, é possível vislumbrar um
movimento centrífugo em relação ao “núcleo” da comunidade, que conforma, por assim
dizer, periferias compostas por grupo locais fragmentados, ou, se adotarmos o idioma
urbano, bairros. Saudosos, os Wajãpi do Amapari buscariam, diante dessa geografia semi-
urbanizada, refúgio nos pontos mais afastados, uma vez que pretendiam guardar uma certa
memória do ambiente de suas casas.
Ainda no primeiro dia antes do anoitecer, fomos conduzidos por Ivo até sua aldeia,
que ficava a aproximadamente quinze minutos de voadeira do “centro”, para que
tivéssemos a nossa tão esperada refeição. Antes de tudo era o caxiri. “Quer?”—me
perguntaram simplesmente as mulheres do lugar. E eu, em busca de etnografia, aceitava de
imediato, pressentindo que essa seria a atitude mais adequada. Mas não exagerei no gole
nem na dose, o que lhes causou um ligeiro desconcerto. Depois, tivemos beiju com molho
de açaí para só então saborear o prato principal e mais estimado, caititu ensopado com
farinha de mandioca. De certa forma, a comensalidade frustrada há pouco era
reencontrada. Tudo apenas provisoriamente.
A má impressão do primeiro dia era desfeita e refeita. O dia seguinte não repetiria o
clima de indiferença que caracterizara o da chegada. Ivo, que já nos havia oferecido um

29
jantar na noite anterior, resolveu nos apresentar a novas pessoas. Fomos, sempre de
voadeira, à pequena aldeia de Paul, um emerillon, também afastada do centro da
comunidade. Éramos recebidos, como sempre, com muito caxiri. A refeição não era farta,
bem pelo contrário, havia um ou outro pedaço de peixe cozido o que não encantava em
nada os meus companheiros. O que abundava mesmo era o caxiri que, aos poucos, era
substituído, nas mesmas cuias, pela cachaça e outras tantas bebidas de branco que eles
chamam de tafiá.17 Todos beberam, não era o caso de fazer cerimônia. O que valia para o
caxiri valia também para o tafiá, ainda que as proporções não fossem exatamente as
mesmas. Dali, o convite se estenderia para uma cantina na margem oposta, e brasileira, do
Oiapoque—Vila Brasil, antigo vilarejo de garimpeiros, atualmente repleto de
estabelecimentos comerciais. Esse lugar apresentava-se como uma espécie de extensão dos
pátios individuais do Camopi, onde se desenrolavam festas de caxiri.
Tudo se passava ao modo de uma festa de caxiri corriqueira. O “dono” do lugar,
também reconhecido como “dono” do caxiri (casiri-jar) e que oferecia aquela pequena
festa, convocava a todos os convidados para beber na vila dos brasileiros, garantindo que
tudo seria feito por sua conta, afinal, ele era o anfitrião. Aqueles do Amapari retribuíam ao
convite como quem aceita um desafio, pois enfim iriam provar o tão falado tafiá da Vila
Brasil. Tal como nos festejos por assim dizer tradicionais, negar um convite como esse era
como que infringir uma regra social caríssima, algo como se um cavaleiro europeu se
negasse a participar de um duelo. Então, pude observar nessa situação um paradoxo
interessante. De um lado, os Wajãpi do Amapari mostravam-se inconformados com a
transfiguração de seus rituais de boas vindas, que deviam pautar-se por critérios de
comensalidade, atribuindo àquele cenário uma qualidade decadente. Expressavam em seu
discurso mais usual que os habitantes de lá não eram mais índios, não sabiam como se
comportar como tais, misturavam tudo, caxiri e cachaça, roupa de índio com roupa de
branco, carne de caça com carne de boi comprada no mercado. E, o pior de tudo, estavam
se misturando, pois cada vez mais freqüentes se tornavam os casamentos mistos, com os
emerillon e também com os crioulos das cidades próximas. Enfim, a miscigenação era
interpretada como a maior ameaça à autenticidade da sua “cultura”, aspecto com o qual os
Wajãpi do Amapari pareciam muito se preocupar. De outro lado, por trás daquela

17
Tafiá (ou ratafia) é uma palavra de origem crioula para designar as aguardentes e, em especial, as
aguardentes de cana-de-açúcar.

30
bagunça, regras de conduta pareciam ser mantidas e o caxiri, ainda que deslocado para um
espaço incerto e temeroso, prosseguia com sua faculdade de promover encontros
interculturais, guardando um modelo de sociabilidade muito particular para aqueles
índios. Assim, se havia reticências quanto à possibilidade de “comer todos juntos” (nível
mais elementar da comensalidade), o mesmo não poderia ser dito quanto ao desejo
menifesto de “beber todos juntos” (nível seguindo da comensalidade). Restava a impressão
de que algo estava fora de controle, mas não da possibilidade de organização.
Japarupi e seus companheiros, inclusive Taroko, um homem maduro que carrega
traços mais conservadores, não se negaram a participar da bebedeira na Vila Brasil,
deixando-se embriagar, afinal não poderiam fazer tamanha desfeita aos anfitriões, que
deviam ter lá suas razões para beber de maneira tão desmesurada.18 Mas, isso eles me
garantiam, tudo havia sido feito com muita moderação, pois o tafiá, bebida dos brancos, é
muito perigoso, mais ainda que o próprio caxiri, bebida conhecida pelo seu poder de
seduzir o inimigo e torná-lo uma presa fácil e suscetível a ataques. De certo modo, temiam
as gentes do Camopi e seus hábitos embranquecidos, e, por isso, fizeram-me prometer que
nos dias seguintes, deixaríamos o Camopi em direção às aldeias de Trois Sauts, no alto
Oiapoque, onde talvez poderiam participar de um caxiri autêntico. Trois Sauts
representava uma esperança para uma viagem que tinha como meta o restabelecimento das
tais “relações de qualidade”, a busca pela troca entre grupos separados pela geografia e
pela história. Se no Camopi flagrou-se a decepção, em Trois Sauts esse quadro deveria ser
revertido. Não por acaso, os dias que passamos em Zidock, o maior grupo local daquela
região de grandes quedas d'água, foram invadidos por uma ansiedade coletiva: a festa de
caxiri programada para a véspera de nossa partida, em que os convidados do Amapari

18
É interessante apontar um exemplo que reforça a idéia de que para os Wajãpi do Camopi, o sentido da festa
de caxiri extrapola os domínios da aldeia, invadindo espaços urbanos. Quando os Wajãpi do Oiapoque
visitam o Amapari, passam sempre alguns dias na casa do Apina (conselho Wajãpi) em Macapá, onde são
conhecidos pelas suas bebedeiras diárias. Quem acaba se dando mal com esta história são os Wajãpi do
Amapari, que ficam endividados nos bares do Beira Rio. Isso porque os habitantes do Camopi acreditam que
são os seus anfitriões que devem pagar a bebida, afinal, é assim que eles fazem quando recebem visitantes em
sua comunidade. Essa estranha, mas não inexplicável, forma de reciprocidade é responsável por grandes mal-
entendidos. Por exemplo, os índios do Amapari não têm dinheiro para sustentar esse hábito, que se torna
diário, e se sentem extremamente envergonhados quando são forçados a negar aos convidados do Camopi
uma “conversa” de bar. Esses, por sua vez, se recusam a entender tal limitação, pautando-se na lógica do
excesso que invade o caxiri, e tendem a ver aqueles como índios “pobres” e “introvertidos”, diferente deles,
“desenvolvidos” e “civilizados” (Gallois, informação pessoal).

31
deveriam dançar para os habitantes dos quatro grupos locais, então algo esquecidos dos
costumes festeiros de seus antigos.
Esse seria para os Wajãpi das bandas brasileiras um dia muito especial: mostrariam
para seus anfitriões sua competência na dança e no manejo de instrumentos musicais, de
maneira a retribuir a gentileza pela hospedagem—mais confortável que no Camopi, ainda
que não ideal segundo os padrões do Amapari—, e satisfazer a vontade destes de assistir a
um ritual ao modo dos antigos. A festa, nesse sentido, restaurava uma reciprocidade
suspensa ao mesmo tempo em que se convertia em arena para um duelo de imagens e auto-
imagens.
Beber e dançar até o sol raiar, sem tréguas, era a receita certeira da festa de caxiri.
Era o que pude observar de dia, à noite, na madrugada. Enquanto a canoa de caxiri,
arduamente preparada pelas mulheres anfitriãs, estivesse cheia, a festa deveria prosseguir,
com os homens a dançar e a cantar e, lá pelas tantas, as mulheres também poderiam vir. Na
madrugada, era a vez da eclosão do espírito mais dionisíaco que, como atenta F. Nietzsche,
dispara uma “realidade inebriante que não leva em conta o indivíduo, mas procura
inclusive destruí-lo e libertá-lo por meio de um sentimento místico de unidade” (1998:55).
A festa de despedida em Trois Sauts corresponderia ao grande momento da embriaguez
durante toda a viagem ao Oiapoque e ao momento decisivo da relação entre meridionais e
setentrionais. O alto Oiapoque promoveu a festa e deu a bebida, o Amapari dançou e
cantou, fazendo -os lembrar de como faziam seus antigos. Memória da tradição via ritual?
Esse ponto, bem como uma descrição um pouco mais apurada da festa, é a matéria do
terceiro capítulo. É importante salientar, e este livro buscará perseguir tal tema, a vigência
de uma ética festeira que permeia todos os contatos entre convidados e anfitriões. Não
seria por demais precipitado assumir que a relação entre eles—que não pode ser tomada
em termos unicamente positivos ou negativos, pois reside por definição na oscilação entre
ambos os pólos19—era propriamente ativada pelo fazer da festa, na qual era possível colher

19
Quando falo em “pólo positivo” e “pólo negativo”, faço referência aqui aos tipos de reciprocidade (que
nada mais são que formas de estabelecer relações) iluminados por Marshall Sahlins (1965). O autor propõe um
modelo concêntrico, baseado num contínuo de três formas de reciprocidade – negativa, balanceada e positiva
– que vai do interesse de impor-se de modo destrutivo sobre o outro para atingir certos fins à dádiva
desinteressada. Tal modelo é revisto por Viveiros de Castro (1993) em sua reflexão sobre os três domínios da
vida social amazônica, igualmente concêntricos: local (onde reina a consangüinidade), supralocal (onde reina
a afinidade) e global (onde reina a inimizade). Ao contrário de Sahlins, Viveiros de Castro situa o sentido da
socialidade no lado mais externo—na inimizade—, tomando as relações de maior proximidade como
derivadas de um fundo de alteridade máxima.

32
um modelo de sociabilidade bastante peculiar, compartilhado, com efeito, com outros
povos indígenas, como se verá adiante.
Se a descrição da festa de despedida que pude observar no alto Oiapoque—e os
paralelos que ela me sugeriu tendo em vista a etnologia indígena contemporânea—é
matéria para o terceiro capítulo, os corolários que ela implicou para a relação entre os
integrantes do Oiapoque e do Amapari deverão ser retomados no quarto capítulo. Por ora,
gostaria de discorrer, a título introdutório, sobre o significado das festas de caxiri para as
populações wajãpi e sobre o significado de um termo como “festa” pode assumir dentro de
uma análise antropológica como esta que se pretende traçar aqui.

Mapa 2
In: Livro dos Mapas, p. 7

Sob o signo do caxiri

Entre os Wajãpi, o oferecimento de bebidas fermentadas—que implica necessariamente o


movimento de dar, receber e retribuir—invade a vida social, desenhando um contínuo que
vai das instâncias mais íntimas até assumir proporções imensas, como é o caso dos grandes
festivais que rasgam noites e dias e contam com a presença de convidados de diferentes
proveniências. De modo geral, o que ultrapassa os Wajãpi, o caxiri é pensado como um
transformador e recebe o estatuto de um marcador temporal, acompanhando momentos de
passagem na vida das pessoas, bem como atividades coletivas que envolvem o encontro e o
intercâmbio entre pessoas estranhas e grupos locais diversos.20 Bebe-se caxiri quando uma
menina ou menino saem da reclusão que marcou a puberdade, na ocasião da realização de
um mutirão, na comemoração de alguma conquista importante (por exemplo, quando os
Wajãpi finalizaram a demarcação de suas terras), e, o que interessa a este trabalho mais
propriamente, quando da vinda de visitantes com os quais se pretende estabelecer alguma

20
A idéia do caxiri como “marcador temporal” – marcador tanto de ciclos agrícolas como do ciclo de vida –
encontra-se em muitas etnografias de povos indígenas atuais. Antonella Tassinari (2003) demonstra, por
exemplo, como o caxiri é indispensável na celebração das “festas grandes” e nas datas cívicas, bem como no
término de trabalhos coletivos (mutirões) que atravessam a sociabilidade dos Karipuna do vale do Uaçá (norte
do Amapá). Philippe Erikson (2004) revela, por seu turno, que entre os Matis do extremo oeste do estado do
Amazonas há um tipo de caxiri (o que significa ingredientes e receitas diferentes) para marcar cada fase do
ciclo de vida (nascimento, iniciação, morte).

33
relação. Bebe-se caxiri, em suma, para passar da vida ordinária, aquela baseada em
momentos de reserva e fechamento, em que os laços de parentesco pareciam predominar, à
vida ritual, que abre o mundo para uma comunicação generalizada com vizinhos, grupos
aliados e entidades sobrenaturais e, como se verá adiante, torna visíveis tensões inerentes à
existência social.
No Oiapoque, por exemplo, o oferecimento de caxiri perfazia um contínuo que ia
das instâncias domésticas às supralocais. As primeiras consistiam na reunião de unidades
residenciais em torno de “caxiris pequenos” (casiri miti), algo análogo aos nossos
coquetéis, em que o beber deve se dar de modo moderado o bastante para não colocar em
risco a etiqueta e a distância entre doadores e tomadores de bebida, anfitriões e
convidados. Em locais como Zidock, encontros para “beber junto” ocorriam em muitos
começos de noite, momento em que os homens reuniam-se para contar histórias. Todas as
casas produziam o seu próprio caxiri, e nem todos os caxiris eram fermentados, pois havia
a bebida doce, de consumo diário e muito apreciada pelas crianças. Nesse sentido, é
possível sugerir que o grau de fermentação obedece ao grau de distância social. Bebe-se,
entre si, ou seja, na própria casa e entre parentes próximos, o “caxiri doce”, que seria um
complemento da comida, incluindo-se no ciclo da comensalidade básica. Bebe-se, entre
outros, o caxiri fermentado, que deve ser menos forte quando se trata de encontros usuais
entre membros de diferentes casas (no mesmo grupo local) ou mesmo quando serve para
recepcionar um convidado que acaba de chegar—a cada novo grupo local a que
chegávamos éramos recebidos com caxiri. O caxiri verdadeiramente fermentado, ou seja,
preparado com bastante antecedência e armazenado em grandes canoas, é, pois, aquele que
se destina a um festival de maior proporção, tal aqueles que pressupõem a participação de
gentes de outros grupos locais ou, em termos gerais, de estrangeiros. Esse “caxiri grande”
(casiri wasu), envolve em seu programa música e dança, e tem como fim a produção, nos
participantes, de um estado alterado, da embriaguez.
Na comunidade do Camopi, médio Oiapoque, outras ocasiões festivas por assim
dizer não-tradicionais, tais as comemorações cívicas promovidas pelos oficiais franceses,
como a celebraçãço do 14 de Julho e o Natal, eram também capturadas pelo caxiri,
reunindo não somente os índios de diferentes proveniências (falantes de línguas diversas),
mas inclusive franceses e brasileiros—diferenciados pelos Wajãpi por meio de dois termos,

34
respectivamente, parainsiko e karaiko21. Nota-se que o caxiri servia de veículo pelo qual os
índios estendiam um modelo de sociabilidade, vislumbrado como belo e adequado, às
relações com as personagens do mundo afora, o que pressupunha o estabelecimento da
reciprocidade—oferecimento e retribuição de festas (e bebedeiras)—e permitia construir
"relações de qualidade" não apenas entre si, mas também com os outros, os quais à festa
cabia incorporar.
“Beber junto” era, com efeito, um costume reconhecido entre os franceses, fartos de
cachaças, vinhos, entre tantos outros tipos de bebida. Os Wajãpi viviam as festas
oferecidas pelos franceses como se fossem as suas festas de caxiri e, assim, conseguiam ver
naquele mundo estranho o discorrer de uma forma sociabilidade que constitui uma das
prerrogativas básicas da humanidade. O oferecimento de bebidas alcoólicas
industrializadas (tafiá) era tido, em certa medida, como o caxiri dos brancos, e era por meio
dessa experiência por assim dizer de “comutação cultural” que os Wajãpi sentiam-se aptos
para reproduzir, em contextos não -tradicionais e que envolviam a presença ativa de não-
índios, os encontros célebres entre homens, mediados pelo oferecimento de bebidas
alcoólicas, pois estas nada mais eram que disparadores de relações de afinidade—relações,
bem entendido, que não se situam necessariamente no âmbito do parentesco efetivo
(consangüinidade e casamento), mas que estão na base de alianças de outro tipo (comerciais
ou políticas, por exemplo) e que podem resvalar em agressão.22 Convidar para beber era
ativar uma relação, situada, no entanto, entre a comensalidade e a hostilidade, isso porque
a bebida não é um alimento propriamente dito, mas algo capaz de tornar a pessoa
vulnerável, tanto a ocupar a posição de sujeito (predador) como de objeto (presa) da
agressão.
Ainda que realizados em instâncias bastante distintas das festas cívicas, os
“encontros para beber” realizados na Vila Brasil, do outro lado do Oiapoque, seguiam a
mesma regra básica: beber até cair, reflexo de um processo de disputa—aquele que oferece
(e paga!) a bebida exige que os que a recebem se embriaguem sem cessar—, que lá tomava
novas configurações. Tais fatos indicam, infortunadamente, o crescimento do alcoolismo
entre os índios daquela região. Apesar de designarem um efeito perverso da convivência

21
Os Wajãpi dificilmente usam um termo genérico para não-índios. Entre eles, há também os mekoro, os
negros de comunidades vizinhas na Guiana Francesa (ver Grenand, F. & Grenand, P., 1996).
22
Refiro-me aqui ao horizonte da “afinidade potencial”, como definida por Viveiros de Castro (1993). Ver
segundo capítulo.

35
nessa vila de garimpeiros brasileira, não podem ser dissociados de uma prática tradicional,
a bem dizer, um sistema de prestações recíprocas, em que as bebidas figuram como bens
supremos. O problema do alcoolismo, eleito nos relatos de etnólogos como Françoise e
Pierre Grenand (1978, 1987, 1990) e Éric Navet (1984, 1981, 1986) como fator maior da
degradação no Alto e Médio Oiapoque, mereceria uma abordagem particular que se
dispusesse a desvendar as razões que subjazem à sua prática. Merece, nesse sentido, ser
tomado não pelo seu caráter alienígena, mas pelas suas possíveis relações com as dinâmicas
internas do grupo estudado. O discurso do etnocídio, voraz quando em referência ao
quadro encontrado no Oiapoque, reduz a questão a um aspecto que se impõe de fora para
dentro, como se não encontrasse qualquer ressonância na configuração interna do grupo.
Como cidadão, jamais me senti confortável para adentrar tão delicada questão.
Difícil a tarefa de ter de alcançar as profundezas de uma superfície que se nos apresenta de
forma tão áspera. De fato, a paixão pela embriaguez, assumida com fervor durante as
cauinagens, parecia encontrar no Camopi sua maximização eufórica nas cantinas da outra
margem do rio, o que, entretanto, pressupunha desvios. Tendo a concordar com algumas
das premissas dos autores citados acima, principalmente no que diz respeito à
marginalização de muitos indivíduos em relação à comunidade. Lembro -me bem de um
sujeito mais velho, um Emerillon, de corpo franzino e pele enrugada, que passava os seus
dias a mendigar na porta das cantinas da Vila Brasil por um copo de cachaça. Este
personagem, entre tantos outros, causava repugnância para a comunidade de um modo
geral e ainda de forma mais acentuada para os Wajãpi do Amapari que por lá passavam. A
permanência na Vila Brasil é tamanha que muitos indivíduos como o que acabei de
descrever acabam por se destacar das redes de sociabilidade na comunidade, sendo
inclusive apartados da vida social. Vê-se que, se a produção de caxiri requer a cooperação
de muitas pessoas, colocando em relação, no mínimo homens e mulheres e pessoas ligadas
por afinidade, o tafiá pode ser simplesmente comprado no bar, o que dá margem ao seu
consumo individualizado que produz o destacamento de certos indivíduos. Com efeito, é
necessário distinguir esses dois níveis de consumo para evidenciar que nem tudo diz
respeito a um estado destrutivo.23

23
A destruição a que me refiro não seria, dessa forma, de ordem cultural, porém de ordem física e psíquica.
Isso acarreta problemas sociais de aguda gravidade que clamam por soluções.

36
Além do problema das bebedeiras isoladas que criam indivíduos por assim dizer
marginalizados, é preciso mergulhar no problema da embriaguez e notar que o consumo de
caxiri e de tafiá distinguem-se sobretudo não pela sua natureza, e sim pela sua escala. O
caxiri leva à embriaguez apenas se ingerido em excesso, o que significa, como salientado
acima, a montagem de um grande festival, o que não é de forma alguma um fato ordinário.
O caxiri torna-se, pois, mais forte conforme à sua destinação—se para um público restrito,
ele será fraco e em quantidade reduzida, se para um público grande, ele será forte e em
grande quantidade. Noutras palavras, ele é controlado socialmente, uma vez que todos os
seus consumidores estão conscientes de seus perigos—tais a produção de hostilidades ou
mesmo as “transformações irreversíveis”. Sem o aporte da coletividade e com a
possibilidade de atingir um estado altamente ébrio, o tafiá tende a conduzir a estados de
vulnerabilidade tamanhos, isso sem falar que, pela sua própria constituição química, ele
pode produzir um estado de embriaguez bem mais agudo, o que possui corolários
importantes dentro do pensamento wajãpi. Se quanto maior a embriaguez, maior a
distância social que se põe em jogo e maior o perigo que se corre, é possível argumentar
que a introdução do tafiá representa para os Wajãpi tanto um atrativo—possibilidade de
maximizar as relações com o mundo distante, tal o mundo dos brancos—como um signo de
perigo—possibilidade de irrupção do caos, da dissolução das relações de qualidade. O tafiá
reduz, nesse sentido, a possibilidade de controle; fazendo aumentar os riscos de produção
de violência entre pessoas próximas. Noutras palavras, não pretendo dizer que ele esteja
fora da possibilidade de controle, mas apenas que, quando comparado ao caxiri, ele detém
um maior potencial entrópico e, por isso, requer um maior cuidado—afinal, nenhuma
embriaguez escapa do perigo, esta a sua graça e o seu torpor.24
A questão do alcoolismo esteve presente em minha pesquisa apenas de maneira
indireta. Meu olhar deslocou-se para as instâncias festivas—ritualizadas e coletivas, devo
insistir—marcadas pelo consumo por vezes excessivo do caxiri e em que o tafiá assumia
um papel secundário, um complemento à embriaguez do caxiri (o tafiá podendo ser

24
O lado atrativo do tafiá pode ser vislumbrado em sua utilização nas sessões xamânicas. Minha hipótese é a
de que, por permitir a comunicação com patamares de maior distância social, por permitir um maior estado
de embriaguez, o tafiá é eleito pelos xamãs do Oiapoque como um veículo de extremo interesse. Voltarei a
esse ponto no capítulo quatro. Por ora, atento apenas para o fato de que se o tafiá é um elemento perigoso
quando de seu consumo individualizado nos bares da Vila Brasil ou mesmo nas festas de caxiri, pois que faz
irromper a violência entre pessoas mais ou menos próximas, ele pode ganhar positividade no seio das sessões
xamânicas, outra espécie de ritual realizado por essa população.

37
misturado a ele). A indagação que se impôs mais fortemente era justamente quanto ao
significado da embriaguez dentro de uma instância socialmente programada. Reitero o
caráter ritual dessas festas de caxiri, à medida que pretendo frisar o seu aspecto
ordenado—a despeito de uma impressão equivocada de disformidade—e a sua definição
como uma esfera que não apenas reproduz, mas produz relações.
As festas de caxiri que observei no Oiapoque podem não guardar a complexidade e
o grau de especialização dos rituais encontrados entre outras populações amazônicas e
mesmo entre algumas populações vizinhas, mas isso não significa que elas sejam práticas
desprovidas de uma elaboração simbólica sofisticada. Quando empregamos o termo
“ritual” e nos remetemos às paisagens da Amazônia indígena, imaginamos cerimoniais
complexos como o kwaryp, ritual alto-xinguano pós-funerário, ou o jurupari, ritual rio-
negrino de inciação masculina. Ambas manifestações altamente elaboradas em termos de
sucessão de diferentes fases, papéis, cantos e instrumentos.25 Identificamos por vezes o
sentido do ritual às suas manifestações sensíveis, medimos sua eficácia simbólica pela
quantidade de “efeitos especiais” e de apetrechos materiais que ele pode colocar em cena.
Quanto mais complexo e mais diferenciado, mais a manifestação merece o título de ritual.
No Oiapoque, esse espetáculo de tamanha grandiosidade me fora privado. Em seu lugar,
uma série de danças e de cantos algo improvisados, sempre com a ajuda dos convidados do
Amapari. E isso me sensibilizou o bastante para as relações e o sentido que estavam sendo
produzidos ali.
O intento desse trabalho é, desse modo, operar com uma noção alargada de ritual
para buscar o sentido de práticas como as festas de caxiri que parecem ao observador
desavisado carecer de sentido. Mas esse desafio não é uma novidade para etnólogos. Já
Florestan Fernandes (1970), em seu trabalho pioneiro sobre os Tupinambá, enfatizava que
o fator de coesão social deveria ser buscado nas instâncias de aparentemente maior
tendência à desordem, as guerras entre grupos locais e blocos de grupos locais inimigos.
Poderíamos nos valer aqui de uma operação análoga: o excesso e a embriaguez produzidos
pela bebedeira da festa de caxiri seriam reflexos menos de uma desordem do que de uma

25
Não afirmo, de modo algum, que os rituais entre os Wajãpi são disformes—ver as descrições, por
exemplos, de Gallois (1988) e Beaudet (1993) sobre rituais, respectivamente, no Amapari e no Oiapoque.
(Entre os Wajãpi do Amapari, Gallois 1988 faz uma digressão interessante sobre a festa dos peixes—a festa
do pacuaçu.) O que pretendo demonstrar, não obstante, é que não é a cultura material tampouco a
complexidade morfológica do cerimonial que define o atributo ritual.

38
ordem. No entanto, não é possível levar o argumento de Fernandes às últimas
conseqüências, uma vez que aqui o interesse recai, antes de tudo, na questão do sentido e
não na questão da coesão social. Refutando a tese funcionalista do autor, eu diria que os
índios festejam não porque querem se manter coesos, restabelecendo para si um “Nós
coletivo”, que no caso wajãpi parece ser mais um artifício retórico produzido na interface
com a sociedade nacional do que uma figura operacional, mas porque de alguma maneira
aquilo os ajuda a organizar as experiências vividas, conferindo-lhes sentido e ativando
relações, o que significa a produção da comunicação.
O universo de sentido que alimenta e orienta as festas de caxiri não deve estar
restrito ao mundo do Oiapoque, tampouco aos grupos wajãpi. O longo trabalho de muitos
autores para encontrar recorrências estruturais nas formas de organização social e
cosmologias das diversas populações amazônicas, tendência que voltou a se acentuar nos
últimos anos, acaba confirmando minhas suspeitas de que há algo comum em toda a
Amazônia que se manifesta na gramática ritual das tantas sociedades dispersas nessa
região. Nesse sentido, deve ser possível passar do yawari alto xinguano à festa de caxiri no
Oiapoque sem provocar o distanciamento em relação a um mesmo tema, ainda que se façam
vazar os conteúdos de cada manifestação.
Como já insistido no início deste capítulo, passa-se com os ritos ameríndios algo não
muito distante do que Lévi-Strauss afirmava em relação aos mitos: o fato não de haver a
melhor e mais acabada versão, mas sim uma variedade imensa de versões possíveis e
valiosas, cada qual ao seu modo. Assim, aquelas festas de caxiri, improvisadas que eram
para os meus olhos, que tinham em seu horizonte kulas e navens, abrigavam um sentido
maior que, sutilmente, se deixava vazar. Mereciam, dessa forma, não uma consideração
apenas contingencial, mas que levasse em conta, principalmente, sua inserção numa
armadura mais abrangente.

A festa como problema

O termo “festa” tem sido empregado pela literatura antropológica de maneira pouco
precisa. É utilizado ora para designar instâncias religiosas, produtoras de sentido,
confundindo-se à noção de ritual ou culto, ora para se referir a instâncias de “pura
diversão”, estéreis de qualquer profusão simbólica. A festa parece muitas vezes escapar do

39
que há de sério na vida social, o que implica um menor investimento dos pesquisadores
para compreendê-la. Nesse momento, ela deixa de ser ritual, passando a habitar o terreno
do acaso e da desordem. Não obstante, etnografias atentas ao ato de festejar demonstram
que a suposta “pura diversão” costuma conter elementos simbólicos fortemente
reveladores, assim como cerimoniais “sérios” e altamente organizados programam
freqüentemente brechas para a descontração e a supressão das regras. Deste modo, ordem e
diversão não seriam planos absolutamente excludentes, pelo contrário, parecem se
alimentar necessariamente um do outro.26 Como sugere Catherine Howard, em seu ensaio
sobre a farsa dos visitantes no festival pawana entre os Waiwai (Caribe, Roraima), a
atenção para as instâncias festivas pode revelar aspectos profundos de uma cultura, tendo
em vista uma definição do ser humano “não como homo sapiens, mas como homo ludens”
(1993:261), ou seja, a via da festa é tão ou mais esclarecedora sobre a condição humana que
a consideração dos aspectos “sérios” da vida social.
Júlio César Melatti (1978), por exemplo, afirma que os Krahó (Timbira, Jê
setentrionais) possuem um termo específico, amnikhi, que agrupa todas as suas cerimônias,
não importando se uma atividade de pura diversão ou um ritual altamente especializado.
Para os Krahó, a importância de tais manifestações não está dada na especialização, e sim
na capacidade que isso tem de promover a “alegria”. Carlos Fausto, por sua vez, busca
entre os Parakanã (Tupi-Guarani, Pará) uma definição mais ampla do que significa para
eles a festa: “as atividades que se diferenciam daquelas da vida cotidiana por envolverem

26
Em dicionários como o Houaiss, encontramos definições para “festa” e “festival” (“festa de grandes
proporções”) mais ligadas à diversão e à jocosidade, e para “rito” e “ritual”, mais próximas de um sentido
religioso e sagrado. Lemos no verbete “festa”: em primeiro lugar, uma “reunião de pessoas de caráter
informal ou solene, em espaço público ou privado”; em seguida, “reunião, agrupamento de pessoas com fins
recreativos, organizada por particular ou por coletividade, em espaço público ou privado, geralmente
acompanhada de música, dança, bebidas e comidas” (grifos meus). Enfim, uma definição por derivação,
privilegiando o sentido figurado: “regozijo, alegria; ex.: vive permanentemente em festa”. O Houaiss
acrescenta o aspecto religioso à definição de festa apenas no final do verbete, mencionando “festividade
religiosa e, por vezes, bastante popular, geralmente consagrada à celebração de um santo ou ainda que
comemora alguma data importante para uma comunidade religiosa”. Ou ainda: “festividade religiosa e
popular que se caracteriza especialmente pela presença de uma procissão ou romaria”. E, em seguida, oferece
a seguinte definição: “dia em que se descansa; feriado, folga”, “episódio fora do comum, extraordinário”. (Esta
última é a que certamente mais me apraz; grifos meus) Já no verbete “ritual” temos a seguinte definição:
“culto religioso; cerimônia, liturgia”, e também “conjunto das cerimônias e das regras cerimoniais que
usualmente se pratica numa religião, numa seita etc.; liturgia”. Só aí podemos encontrar uma definição
propriamente antropológica, ausente no verbete anterior: “em determinadas sociedades, conjunto das
práticas mágicas, realizadas durante as cerimônias, cujo objetivo é assegurar certo controle sobre as forças
sobrenaturais e/ou orientar uma força oculta no sentido de uma ação determinada”. E ainda: “qualquer
processo de cunho sagrado ou simbólico, susceptível de estabelecer e desenvolver costumes” (grifos meus).

40
maior coordenação de ações, por exigirem o desempenho de funções e rotinas
predeterminadas, por mobilizarem de modo mais amplo a coletividade e por associarem, de
modos específicos, música e dança” (1997:270). Essa definição parece encontrar bastante
ressonância entre os Wajãpi, para quem a “festa” (moraita ) não pode se dar sem música e
dança.
Sob outra perspectiva, Márnio Teixeira-Pinto propõe uma definição mais rigorosa,
opondo, entre os Arara (Caribe, Pará) do baixo Xingu, festa e ritual. Para esses índios, as
“festas”, reuniões corriqueiras, distinguem-se das reuniões verdadeiramente sociais
(karamïtpït), que congregam vários elementos festivos dispersos entre eles, a comida, a
bebida, o canto e a dança. Não obstante, aquelas já conteriam a semente para estes: “Tudo
se passa então como se aquela festa de comer e beber, que fazem cotidianamente no pátio
da aldeia, nos fins de tarde do ‘verão’ amazônico, fosse já a realização ou a manifestação
concreta do próprio aparelho conceitual que determina a estrutura simbólica da vida social
arara” (1997:304). Karamïtpït significa, em arara, conversa, ou seja, uma construção que
para acontecer pressupõe a existência de dois ou mais pontos de vista. O mais importante,
garante o autor, é que esses rituais, eventos de comunicação, procedam como grandes
reuniões, em que cada elemento festivo esteja submetido a um ordenamento bem
estruturado. Com efeito, parece integrar a definição de ritual a idéia de um ordenamento
dos eventos em uma seqüência, visto que o sentido não está dado nas partes, e sim na
relação entre elas—tal o que propõe, por exemplo, Stanley Tambiah (1986), a quem
deverei voltar adiante.
Compartilhando a ênfase no caráter seqüencial, João Dal Poz (1991), em sua
etnografia sobre os rituais dos Cinta-Larga (Tupi-Mondé, Rondônia), inverte a formulação
de Teixeira-Pinto—ritual como conjunto de elementos festivos—, tomando a festa como
justamente o “conjunto de eventos rituais—noites de dança e chicha, caçadas,
brincadeiras, sacrifício etc.—e suas relações, na forma de um programa de movimentos e
atividades sucessivas, tal qual é pensada pelos próprios Cinta-Larga” (1991:157). Portanto,
Dal Poz amplia o significado da festa a despeito da oposição identificada por Teixeira-
Pinto: “Celebrada com descontração e criatividade, em meio a atividades e gestos
prescritos, justifica-se a tradução que os Cinta-Larga adotaram, e que assumirei para
designar este ritual—é ‘diversão’, como disse o intérprete a Chapelle, mas talvez o que seja
a natureza de toda festa, que é a rigor um rito” (idem:156). E ainda: “...admitir que o ritual

41
em estudo é uma festa é, certamente, dizer que a alegria e a espontaneidade regulam a
conduta dos participantes” (idem:235).
Para Dal Poz, a construção de sentido é inerente à própria diversão, não pressupõe
necessariamente esquemas rígidos dotados de uma morfologia sofisticada. A oposição entre
“festa”, comemoração desinteressada, e “rito”, manifestação ordenada, proposta por
autores como Émile Durkheim, é então revista em função de um alargamento dessas noções
e da idéia de que ordem e diversão são, aqui, elementos intrínsecos. Nota-se que o próprio
Durkheim não consegue sustentar em sua teoria a antinomia que propunha de início, pois
algo lhe parece transbordar do aspecto organizacional dos cultos coletivos (ritos). É na sua
concepção de religião que reside, de forma ambígua, esse argumento.
Para Durkheim, as festas se distinguem dos ritos eminentemente religiosos, à
medida que se revelam “instituição universal do descanso religioso” (1989:371). Não
pertencem nem à esfera do sagrado (religião), nem à do profano (trabalho), revelando a
possibilidade de um intervalo entre os dois tipos de atividade.27 Assim, a festa estaria mais
próxima da pura diversão do que de um “fazer” propriamente dito então associado ao
ritual. Trata-se, como queria Platão, de um ato frívolo sem implicações morais. Como
adverte ainda Durkheim: "Quando um rito serve apenas para distrair não é mais rito. Um
rito é, pois, algo diferente de um jogo, faz parte da vida séria" (idem:455). O autor opõe as
festas sobretudo aos cultos negativos que operam por meio de restrições e proibições.
Calcados em práticas de abstenção—sexual e alimentar, entre outras—e reclusão—
isolamento, evitação de contatos físicos—, tais cultos propiciam o despojamento das coisas
profanas, tendo na privação—jejuns, vigílias, retiros, silêncios—sua principal
característica. De sua parte, a festa conta com o excesso e com o prazer, constituindo -se em
reino da abundância e do contato e, nesse sentido, Durkheim confere a ela um estatuto que
não é estritamente profano, mas antes secular, exterior ao campo religioso28.

27
Jack Goody (1993) atenta ao fato de a oposição vida religiosa/ lazer ter sido abraçada sobretudo pela Igreja
católica e, portanto, permanece estranha a muitas populações, como as africanas. Victor Turner (1974), por
sua vez, aponta que os ritos Ndembu não operam em absoluto sob essa distinção, tendo as peças lúdicas
como parte do ritual religioso: as esferas se contaminam. Este é o teor, também, de estudos em contexto
urbano que procuram ressaltar a importância do lazer como reunião de práticas carregadas de sentido—ver,
a esse respeito, o estudo pioneiro de José Guilherme Magnani (1998).
28
Durkheim ilustra a sua noção de ritos comemorativos—que se fazem sem razão explícita—com o exemplo
da celebração da cobra totêmica entre os Warramunga, cuja explicação parece residir alhures: “celebram-na
porque os antepassados a celebraram, porque estão ligados a ela como uma tradição, muito respeitada e
porque saem dele com a impressão de bem-estar moral” (idem:451).

42
É necessário salientar que, na elaboração do autor, a noção de rito comemorativo,
cuja finalidade é apenas “despertar determinadas idéias e determinados sentimentos, ligar
o presente ao passado, o indivíduo à coletividade” (idem:450), pode englobar aquela de
festa, o que o faz discordar de suas premissas iniciais. Aliás, não seria a própria suspensão
promovida pela festa um ato religioso? Como se pode observar, a fronteira entre o ritual
religioso—lugar do sagrado—e a festa laicizada—lugar do secular—se apresenta de uma
maneira bastante tênue e pode ser problematizada. O mais instigante da análise de
Durkheim é que, segundo ele, os rituais comemorativos são os que, dentro de sua
tipologia, mais se aproximam da “essência” do fazer ritual, revelando a maior manifestação
de positividade da vida em sociedade. Os fins não estão dados fora das práticas, não se
recorre a tais ações simplesmente para resolver um problema pragmático. Celebra-se a si
mesmo, a sociedade exalta a sociedade, permitindo a sua reprodução—tal o âmago da
interpretação durkheimiana sobre a vida religiosa. A comemoração pela comemoração,
longe de ser um ato privado de uma sócio -lógica, “é mais uma prova de que o estado
psíquico no qual se encontra o grupo reunido constitui a única base, sólida e estável,
daquilo que se pode chamar de mentalidade ritual. Quanto às crenças que atribuem aos ritos
tal ou tal eficácia psíquica, são coisas acessórias e contingentes, já que podem faltar sem
que o rito seja alterado no que tem de essencial” (idem:451; grifos meus).
A questão posta por Durkheim não é da ordem da eficácia, como quiseram autores
como Bronislaw Malinowski, mas da “comunhão social”. Os elementos recreativos e
estéticos, parentes próximos das representações dramáticas e que serão recuperados
fortemente por Victor Turner (1982), são para Durkheim importantes fatores da religião.
“Estranhas a todo fim utilitário, fazem com que os homens esqueçam o mundo real para
transportá-los para um outro mundo, onde sua imaginação fica mais à vontade”
(idem:453). A aproximação entre festa e ritual comemorativo encontra, finalmente, eco na
afirmação do autor de que “os ritos comemorativos e as recreações coletivas são coisas tão
vizinhas que passamos de um gênero para outro” (idem:455). As fronteiras entre a
cerimônia de caráter religioso e a pura diversão se mostram deste modo imprecisas. Assim,
todos os ritos apresentariam a mesma função: “Tudo nos conduz à mesma idéia. Os ritos
são antes de tudo os meios pelos quais o grupos sociais se afirmam periodicamente”
(idem:456). A sociedade emerge como comunidade moral, unida por interesses e tradições,
pensada em termos de consubstancialidade.

43
A intensa faculdade de comunicação entre ordens distintas, ora humanas, ora
sobrenaturais, torna complexa a delimitação, nas festas de caxiri aqui examinadas, de um
campo sagrado—em suma, aquilo que possui sentido religioso—separado de um campo
secular. Nesse sentido, está-se diante, com essas festas, dos chamados “ritos
comemorativos”. O problema é, contudo, saber se é possível reduzi-los a uma celebração
da “sociedade”, de um “Nós coletivo”, o que conduz a uma revisão da interpretação
durkheimiana. Como já anunciado, a perspectiva que pretendo defender é a de que essas
festas revelam um compromisso com a celebração da alteridade, ou seja, com o fato de que
a vida social não poderia existir não fosse a comunicação entre pessoas e elementos
diferentes. Vale aqui retornar ao argumento de Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro
(1985) “contra” a interpretação durkheimiana do ritual antropofágico tupinambá por
Florestan Fernandes, que jamais deixa de evocar as cauinagens atuais: a questão não é
simplesmente reproduzir a “tradição” e renovar a integridade da estrutura social, mas
sobretudo promover uma abertura ao exterior, ao “fora”, personificado pelo inimigo de
guerra—nesse momento, o ritual deixa de ser um instrumento da Religião em seus termos
durkheimianos (conjuntos de representações sociais), para se constituir no lugar da
vingança, essa máquina que não reproduz, mas produz o social, ou seja, relações e pessoas.
Noutras palavras, o ritual antropofágico tupinambá, cerimônia sacrificial que possui
aspectos de um rito comemorativo (pois que resvala em uma imensa cauinagem), tem como
compromisso a produção do sentido da existência social que, no caso em questão, não pode
ser dissociada das forças a-sociais da exterioridade.
Em suma, as festas de caxiri ou cauinagens aqui iluminadas podem ser
compreendidas como uma espécie de ritual, e que o termo ritual deve compreender, como
propõe Durkheim, um sentido “religioso”. No entanto, se para Durkheim o religioso
designa um conjunto de “representações sociais” e se a religião oferece uma imagem da
estrutura social, talvez fosse preciso redimensionar o termos e propor uma outra definição.
Gostaria de operar com a idéia, talvez mais próxima de Lévy-Bruhl que de Durkheim, de
que o “religioso” compreende uma esfera de comunicação entre o mundo humano e o
mundo não-humano (sobrenatural ou cósmico), e que o ritual se presta justamente como
momento dessa comunicação. E, ainda, que essa comunicação respeita não uma oposição
diádica “humanos” e “não-humanos”, mas se estabelece justamente entre os homens. Se,
na festa de caxiri, dançar e cantar—e beber—consistem em modos de se aproximar de uma

44
dimensão que já não é meramente humana, isso designa também (e talvez sobretudo) uma
esfera de sociabilidade propriamente humana, atualizando relações sociais de grande
importância.
Instâncias totais de comunicação, as festas de caxiri não parecem se enquadrar no
plano de meros “secular affairs”, como propõe Irving Goldman (1978) para os Cubeo do
Noroeste Amazônico. Dominique Gallois parece oferecer uma solução mais interessante.
Segundo ela, entre os Wajãpi, todo ritual (ou festa) ocorre no contexto das relações entre a
sociedade humana e os espaços cósmicos e, como mediação, compreende dois pólos
básicos: um mais individualizado, que abre espaço à diferenciação entre os participantes, e
outro, mais coletivizado, ligado à indiferenciação social. De um lado, as sessões xamânicas,
que ocorrem de modo sutil e visam uma interlocução, por meio de cantos e sopros, com
agências sobrenaturais, têm como finalidade muitas vezes uma ação terapêutica pensada
também como retaliação (o que pressupõe uma relação de hostilidade).29 De outro, as festas
de caxiri, que envolvem a reunião de pessoas de diversas proveniências, bem como de
música, dança e bebedeiras, exaltando uma espécie de congraçamento entre todos os
participantes em detrimento das ameaças impostas pelo mundo não-humano, que deve ser
necessariamente evocado. Não há aqui uma oposição sagrado/ secular, e sim formas
individuais e coletivas de comunicar-se com o mundo não-humano e que possuem
diferentes conseqüências. Ora, se as sessões xamânicas produzem uma conjunção com o
mundo não-humano para recriar disjunções no seio das relações humanas (elas criam
hostilidades entre pessoas); as festas de caxiri operam um congraçamento entre diferentes
tipos de gente para promover a oposição entre a coletividade humana e o mundo não-
humano, de onde provêm, contudo, as condições de humanidade. Nesse sentido, assim
como o xamanismo, elas consistem num assunto sério—refletir sobre as condições da vida
social para assim produzi-la—e o fazem tendo em vista um estado indiferenciado de alegria
e regozijo, obtido por meio da embriaguez do caxiri (potencializada que é pelo movimento
da dança).

29
Dominique Gallois (1988) analisa a noção de doença entre os Wajãpi, evidenciando que, ali, o campo da
terapêutica não pode ser dissociado de uma etiologia particular que faz movimentar um sistema recíproco de
agressões e acusações entre membros sobretudo de grupos locais diferentes. Nesse sentido, da mesma forma
que a doença conduz a pensar a constituição da pessoa wajãpi, ela deve ser compreendida como disparador
de uma dinâmica política, que diz respeito à aliança ou repulsa entre diferentes grupos locais, bem como a
movimentos, internos ao grupo local, de fusão e fissão.

45
Para Gallois, diferente dos rituais individualizados ou privados, as festas de caxiri
wajãpi revelam como preocupação marcar o lugar da humanidade no cosmos. Elas
aparecem sobretudo como afirmação da vida social, sem apagar as diferenças em jogo, mas,
pelo contrário, incorporando-as num terreno comum. O que a autora denomina como
“indiferenciação interna do corpo social”, algo que se atinge no ápice da festa—quando da
maior embriaguez—, não é senão uma estratégia que estabelece a comunicação em outros
termos, ou seja, entre essa humanidade “una” e o cosmos; não obstante, essa unidade não
pode durar sendo dissolvida no próprio espaço da festa. Aqui, temos o exemplo de um
processo assinalado por Lévi-Strauss (1971) em seu comentário esclarecedor sobre a
natureza dos rituais, ao qual voltarei em seguida: ao tentar restabelecer o contínuo a partir
do descontínuo, o ritual anuncia-se fadado ao fracasso, já que se sabe que as
descontinuidades são irredutíveis ao projeto de comunhão, que as partes são incapazes de,
juntas, desenhar o todo. A indiferenciação em causa não reenvia senão às diferenças que
permanecem como fundamento e motor da festa. Enfim, o encontro festivo culmina numa
sobre-excitação generalizada, uma exaltação comunicativa compartilhada, por vezes
excessiva e perigosa.
Na festa de caxiri, diferentes níveis de comunicação, diluídos na vida ordinária, se
misturam: a negociação matrimonial torna-se mais explícita dada a circulação de cônjuges
potenciais; mensagens lingüísticas afloram com a profusão de performances, cantos e
discursos; enfim, tudo culmina numa troca material intensificada, uma vez que visitantes e
anfitriões desejam beneficiar-se cada qual com a cadeia de dádivas mútuas. Pode-se
afirmar, inclusive, que essa comunicação atravessa fronteiras, não se limitando à esfera
tradicional dos encontros entre grupos locais vizinhos, englobando outros tipos de
relações, como aquelas estabelecidas com os brancos. Nesse sentido, o quadro de mal-
entendidos ocasionados pelo contato, dadas as diferenças cognitivas e estruturais vigentes
entre indígenas e não-indígenas, pode ser revertido em termos de comunicação, em que o
Outro—o branco, o forasteiro, o conquistador—pode ser pensado alternativamente como
hóspede-visitante ou parceiro, com o qual se deseja estabelecer uma espécie de aliança e do
qual se pretende incorporar atributos (e, de certo modo, intercambiar posições). Trata-se
de um momento específico de gestão e negociação da alteridade, em que operam vivamente
as tais “estruturas elementares de reciprocidade” inferidas por Joanna Overing (1983).

46
É importante salientar que as condições dessa comunicação devem ser
problematizadas. Como aponta Gallois (2002), a relação no Amapari entre índios e não-
índios deve ser compreendida como fundamentalmente ambígua, num jogo oscilante entre
aproximações e distanciamentos. Ora, a autora identifica, no pensamento wajãpi, três
atitudes possíveis para com os brancos, das quais duas se constituem pela partilha e pelas
negociações (visando acesso aos bens, técnicas e assistências), ao passo que a outra implica
um alto grau de rejeição e afastamento—ênfase no seu poder de destruição. As festas de
tipo cívico, como o 14 de julho e o Natal, realizadas no Oiapoque por iniciativa conjunta
de franceses e índios estariam mais próximas da primeira modalidade a que se refere
Gallois, a da aproximação e amansamento dos possíveis inimigos. Trata-se de um momento
de construção de canais de interlocução e interinteligibilidade, e sobretudo de controle de
fluxo de bens e recursos obtidos, e não da aceitação plena da convivência.
A ênfase na festa que incorpora os não-índios como instância de comunicação em
vez de fricção—que implica a incompreensão estrutural—não abole o problema da política
de assimilação e seu caráter reconhecidamente etnocidário, apontando, contudo, o
processo de produção dessa sociedade para além de uma lógica de resistência ou de
acomodação. Em suma, tudo se passa como se esses grandes festivais representassem o
reverso da política de assimilação: os brancos, submetidos ao caxiri, são assimilados ao
estilo de ser wajãpi. Não obstante, é importante embriagá-los para que esqueçam que são
brancos. E assim, o pátio do município do Camopi, cercado pelo heliporto, pela prefeitura
e pela cantina do prefeito não deixa de ser mais um pátio wajãpi. Das lixeiras fazem-se
canoas de caxiri que abastecerão a grande população da festa. Entre uma e outra música
veiculada pelos modernos aparelhos de som, uma performance desajeitada dos cantos e
danças tradicionais toma conta da cena, exibindo motivos rituais pretensamente
tradicionais. Enfim, nesse ambiente, os franceses (ou brasileiros) tornam-se visitantes de
uma ordem que os incorpora sem que eles se dêem conta. Por outro lado, não se pode
esquecer, os Wajãpi de ambos os lados sabem que essa proximidade exagerada não está
livre de perigos, isso porque, ao mesmo tempo em que incorporam os franceses em suas
festas, eles sabem que podem sucumbir à sua imagem—nesse sentido, o que se apresenta a
princípio como vantagem pode converter-se em infortúnio. Eis a ambigüidade da festa de
caxiri e da comunicação embriagada que ela encerra.

47
O “contato” como problema

Passemos, assim, do problema da comunicação, como estabelecido acima, ao problema do


assim chamado “contato interétnico”. Este último deve ser tratado com cautela, já que não
é algo nem tão novo que mereça acarretar a redefinição total do método etnológico, nem
tão velho a ponto de ter sido superado pela nova geração de etnólogos. Antes de qualquer
esforço de análise, faz-se necessário indagar sobre o sentido do termo “contato interétnico”
e a busca por novos lugares no interior da etnologia para estudos que se debrucem sobre
ele. Gostaria, antes de tudo, de situar o presente trabalho no interior da tradição dos
estudos em etnologia indígena, mais especificamente, da tradição americanista, como
procurou definir Eduardo Viveiros de Castro em um balanço recente (1999). Todavia, não
pretendo alongar-me nesse debate, mas apenas tecer algumas considerações sobre os
limites e as dificuldades de tratar tal questão dos contatos, comunicações ou encontros
entre os diversos segmentos sociais. Por ora, devo admitir, não é meu interesse discutir a
interação entre as populações indígenas e a sociedade nacional na qual elas se vêem
inseridas, e sim, como afirmei há pouco, pensar como essas populações pensam e
organizam a experiência desses contatos.
Estamos, pois, diante de duas perspectivas diversas, embora isso não signifique que
uma invalide a outra, já que cada uma parte de perguntas essencialmente distintas. A
primeira debruça-se sobre o embate observável, a outra sobre a operação de uma
racionalidade indígena diante de novos eventos. Acredito, para fins deste trabalho e do
problema que ele se coloca, que essa segunda pergunta seja (re)formulada e, para tanto,
devo me valer da literatura etnológica disponível sobre o assunto que, aliás, tem se
mostrado bastante profícuo nas duas últimas décadas. É possível afirmar que essa
literatura colheu os bons frutos de debates caros à teoria antropológica, tal como aquele
empreendido por Marshall Sahlins (1985, 1990, 1995) que, de certa forma, inaugurou a
investigação sistemática das aventuras das categorias culturais no mundo da ação e da
prática—o que constitui o problema da inteligibilidade nativa do contato e não apenas do
jogo sociológico entre unidades distintas e antagônicas, a bem dizer, as sociedades
nacionais—ou, em outros termos, o sistema mundial que as reúne—e os povos autóctones.
No balanço citado, Viveiros de Castro reitera o caráter de oposição no interior da
produção em etnologia no Brasil entre “contatualistas”, aqueles que privilegiam o

48
confronto com a sociedade nacional como questão teórica privilegiada, e “americanistas”,
preocupados em capturar temas caros—e clássicos—à etnologia em geral, como
organização social, parentesco e mitologia, e de certa forma independentes da maneira pela
qual as populações se encontram situadas nos contextos nacionais. Se os “americanistas” se
destinam à produção, ainda nos termos do autor, de uma sociologia indígena propriamente
dita, os “contatualistas” estão mais interessados em uma sociologia do “Brasil indígena”. A
“rotação de perspectiva” que propõe o autor, referindo-se a uma nova abordagem para a
questão do contato, consiste em deslocar a indagação da constituição da sociedade
brasileira para os modos de apreensão dos próprios indígenas: os processos de mudança
social, se é esse o tema em que se deve investir, devem ser examinados pelo viés das
instituições e organizações sociais nativas.30 Tal teria sido, por exemplo, o esforço de
Florestan Fernandes, que esmiuçou a estrutura social tupinambá antes de travar qualquer
conclusão a respeito do infortúnio indígena diante da conquista européia. “Quando se
estuda uma sociedade indígena, com efeito, é preciso não se deixar impressionar pelas
evidências da presença da sociedade colonizadora, mas apreendê-la a partir do contexto
indígena em que ela está inserida e que a determina como tal” (Viveiros de Castro, 1999:117;
grifos meus).
Viveiros de Castro admite estar interessado em uma perspectiva puramente
indígena—anseia perseguir o “ponto de vista do nativo”, projeto implícito na obra de
autores como Bronislaw Malinowski e Clifford Geertz—e, dessa maneira, o sentido do
contato deve ser buscado na perspectiva das sociedades em questão. Para o autor, não se
trata de reconstruir o quadro geral das relações “interétnicas”, mas apenas problematizar
suas reverberações no sistema de pensamento e ação nativos.31

30
Aliás, essa é uma tradição que, antes de propor um estudo sobre a mudança social, deve se perguntar,
afinal, o que vem a ser para os índios mudar, em que sentido há mudança. Tal o questionamento de Lévi-
Strauss (1989) sobre a validade da “consciência histórica” entre populações, como as ameríndias, que
preferem proliferar máquinas de supressão dos efeitos do tempo, como a mitologia. Que tudo muda, isso é
um truísmo, o que importa é saber qual o valor da mudança para as culturas em questão, e esse valor pode
ser negativo, sendo a mudança escamoteada em favor de idéias de reversibilidade.
31
O autor opõe-se, com efeito, às pretensões teóricas daqueles que pensam poder reconstituir a situação como
um todo—uma “verdade” interétnica—, integrando ambos os pontos de vista: “Mas se [...] não existe esse
objeto chamado ‘contato interétnico’ é porque não há outro modo de contar a história senão do ponto de
vista de uma das partes. [...] Uma vez fixada a perspectiva no pólo indígena, tudo é interno a ele—inclusive a
sociedade envolvente” (1999:119-121), afirma a despeito da antinomia sustentada no meio acadêmico entre
uma postura internalista e outra externalista. Assim, estudar os aspectos internos da sociedade indígena não
significa tomá-la em seu isolamento em relação ao mundo exterior, mas, pelo contrário, implica o esforço de

49
Mas o quadro das análises etnológicas sobre esse fenômeno contemporâneo ainda
permanece por demais turvo. Em primeiro lugar, vemo-nos coagidos por uma vagueza
terminológica: qual a abrangência do termo “interétnico”? Ao empregá-lo, podemos
incorrer em mal-entendidos tamanhos. De fato, se tomado em seu sentido literal, o termo
não pode designar apenas a relação entre índios e não-índios e a questão se torna
interessante do ponto de vista etnológico quando esse mesmo par é pensado como um caso
particular daquele preexistente, índios e outros índios—não necessariamente de “grupos
étnicos” distintos, como pode ser verificado no caso wajãpi apontado acima;32 mas, de fato,
posições de alteridade, que podem estar contidas no próprio grupo local, este que foi eleito
o microcosmo da observação etnológica. Postular, então, uma descontinuidade acentuada
entre essas possibilidades de relação deve aparecer como um primeiro equívoco, em
especial porque as sociedades indígenas guiam-se por maneiras originais de organizar suas
relações com o mundo exterior que estão aquém da ruptura ocasionada pelo encontro com
os brancos. O termo “interétnico” perde de vista, portanto, um campo de interação com
figuras de alteridade diversas, sejam elas outros grupos indígenas, sejam elas setores não-
indígenas da sociedade nacional. Nesse sentido, o termo acaba por se tornar esvaziado de
sentido, uma vez que deixa de estar em questão uma relação propriamente entre “etnias”,
entidades que só ganham configuração na interface com o contexto político-nacional, ou
seja, são produzidas por ele, mas entre entidades de outro tipo, que não possuem
arquitetura rígida e que podem ser referidas simplesmente como pessoas ou coletivo de
pessoas. Parece-me que o desafio dessa revisão conceitual consiste justamente em superar a
redução dicotômica índios e não-índios, que conduz a outra dicotomia empobrecedora,
firmada sobre um recorte diacrônico, “índios antes do contato” e “índios depois do

compreender como a exterioridade é apreendida pelos sistemas de pensamento, como ela é englobada e
interiorizada.
32
No caso da relação entre índios de diferentes proveniências, a literatura etnológica tradicional optou pelo
emprego do termo “intertribal”. Como se verá, algumas etnologias regionais persistem com o emprego desse
termo. Não obstante, “intertribal” pressupõe “tribo”, e “tribo” pode designar um tipo formal de unidade
que não parece muito operativo entre os ameríndios. O fato, por exemplo, de diferentes agrupamentos
falarem a mesma língua e partilharem elementos morfológicos e cosmológicos não significa que eles se
representem como um conjunto social e político. A profusão das chamadas guerras intestinas, agressões
xamanísticas etc. demonstram que essas unidades não proliferam na Amazônia indígena. A noção de “etnia”,
de sua parte, serviu como contraponto à noção de tribo, à medida que, ao menos como definida por Carneiro
da Cunha (1987), não se tratava de uma unidade inata, mas algo construído politicamente tendo em vista o
embate com a sociedade nacional. Assim, a exigência de etnia, que é uma exigência identitária, advém do
mundo dos brancos e não pode ser encontrada, senão raramente, nos esquemas ameríndios. O perigo da
noção de etnia é, por sua vez, o da cristalização de algo circunstancial e, nesse sentido, não haveria diferença
alguma entre tribo e etnia, esta apenas recolocaria a idéia mudando o vocabulário.

50
contato”, ou se preferirmos, “índios isolados” (“selvagens”) e “índios contatados”
(“civilizados” ou mesmo “aculturados”). Essas antinomias não só empobrecem noções de
“contato” e “isolamento”—termos que devem ser imediatamente revistos (pois da mesma
forma que sempre existiu contato, jamais houve isolamento)—, como também deixam de
lado o uso que os próprios índios podem fazer dessas mesmas categorias.33
A crítica cultural norte-americana pode ajudar a pensar com mais malícia as
categorias criadas pela antropologia para compreender os trajetos das populações ditas
tradicionais no mundo dos brancos, mundo moderno ou pós-moderno, orientado pela
convivência dinâmica de processos de homogeneização e particularização, como insiste
essa literatura. George Marcus (1991) aponta a necessidade de superação de outra
dicotomia—resistência versus acomodação—, tomada, muitas vezes, como a única
alternativa das populações indígenas frente à nova realidade. Noutras palavras, lhes
restariam duas opções: ou a acomodação, aceitação do fato de viver entre outros
descartando dados culturais dos mais específicos, ou a revolta, negação por completo da
convivência com o estranho. A proposta de Marcus nada mais é que o retorno à etnografia
para colher os matizes entre uma ponta e outra, ou seja, a resposta negativa e conflituosa
da resistência e a positiva e consensual da acomodação. É preciso pensar essas situações de
encontro de maneira menos automática e binária—“nós” contra “eles”—para adentrar
suas nuanças em um mundo em que "nós" e "eles" não são de modo algum territórios fixos
e seguros, mas categorias passíveis de negociação e intercâmbio. Algo próximo da noção de
fronteira, que tomei emprestado de Ulf Hannerz e do projeto “Sociedades Indígenas e suas
fronteiras na região sudeste das Guianas” (Gallois 1995) no início deste capítulo. Identificar
fronteiras é, portanto, uma tarefa que se resolve pela etnografia, pelo mergulho nas
categorias de entendimento daquele que se estuda. Assim, é importante deixar de lado a
idéia de contraposição radical entre campos semânticos absolutamente excludentes para
pensar os diversos esforços de compreensão e classificação de que se aproveitam as
sociedades indígenas.
As problemáticas colocadas pela crítica cultural norte-americana fazem sentido para
a redação de novas etnografias que levem em conta o problema do contato interétnico, à
medida que apontam demandas para os estudos recentes sobre populações indígenas, em

33
Com efeito, apresento no quarto capítulo como os índios lançam mão desses estereótipos para gerenciar
suas relações com a exterioridade.

51
que a presença de elementos da sociedade envolvente torna-se cada vez mais uma
realidade acentuada e interna às realidades nativas. A percepção de que a “ordem tribal” e
a “ordem global”—uma versão modificada da noção de “ordem nacional”, pois vai além
dos limites do Estado-nação, abarcando um sistema internacional34—deixam de ser
meramente excludentes para serem coextensivas, interpenetrando-se, requer um novo
esforço de análise que tome justamente o ponto de vista dos povos estudados como ponto
de partida. Darcy Ribeiro (1993) vislumbra no modelo da transfiguração étnica um
horizonte de acomodação à realidade nacional, e Roberto Cardoso de Oliveira (1994)
apresenta o encontro interétnico como oposição de duas forças antagônicas (tendo como
horizonte o modelo marxista das lutas de classe), das quais a mais fraca, a indígena, luta
para resistir ao movimento hegemônico representado pelas frentes de expansão. As
interpretações lançadas por esses autores foram, por muito tempo, tomadas como fortes
paradigmas, sobretudo porque pretendiam abarcar uma grande série de eventos num vasto
território nacional. Produziam, de maneira geral, uma teoria do Brasil indígena que
comportava respostas para os processos históricos vivenciados pelas sociedades indígenas
diante dos impactos causados pelo mundo dos brancos. Quando essas respostas pareciam
falhar, seja porque os índios não se acomodavam tão facilmente ao estatuto de identidade
genérica, seja porque nem sempre apresentavam interesses diametralmente opostos a
setores da sociedade nacional, surge a necessidade de dirigir o olhar para mais perto das
realidades nativas na tentativa de verificar o sentido de acomodar-se ou de resistir ao
contato com o “branco”, categoria que parece trazer mais mal-entendidos do que
esclarecimentos. “Resistência” e “acomodação” designam, dessa forma, categorias restritas
para interpretar respostas alheias a um processo que o Ocidente moderno pensa como
unívoco, produtos de uma teoria de largo alcance. Esse processo parece trazer mais
esclarecimentos sobre o papel do Estado, os mecanismos de tutela, entre outros tantos, do
que sobre a agência indígena que, por essa abordagem, se perde numa linha reta, ora se
integrando, ora se constituindo sob os interesses de uma classe que ela mesma desconhece.
As sociedades indígenas (as etnografias que despontam nas duas últimas décadas permitem
essa afirmação) experimentam o contato de maneira incerta, oscilando entre os modelos

34
Se levarmos a sério os argumentos de Pierre Clastres (1981) de que o Estado representa uma força de
unificação e de supressão das diferenças (daí a noção de “etnocídio”), é possível imaginar que o assim
chamado sistema mundial não é senão a extensão dessa lógica, pois que se trata justamente da expansão de
uma gramática única—aquela do Capital—em detrimento da diversidade.

52
não-indígenas que lhes são impostos. Afinal, o mundo dos brancos é sobretudo depositário
de ambigüidades; ora é enfrentado de maneira hostil e agressiva—inimizade—, ora se
manifesta como fonte de fascínio e possibilidade de identificação—aliança ou mesmo
“parceria”. E, com efeito, essa oscilação, essa possibilidade de requalificação das relações
não é algo que pertence à atitude perante o branco, mas algo que baseia a relação com toda
espécie de estrangeiro.
Mais uma vez, sou obrigado a definir meu intento na apreensão do sentido das
experiências vividas do ponto de vista das populações indígenas e não na captura de um
mapa das relações dos índios entre si e com os brancos. Reitero meu desinteresse pela
restituição do o quê dos complexos “interétnicos” em favor do como os nativos lidam com e
interpretam sua inserção nesses complexos. Desse modo, o esforço aqui investido consiste
bem menos na proposição de um estudo do “contato interétnico” do que de um estudo que
se constrói no “contato interétnico”35, ao qual prefiro me referir como situação de fronteira
,o que nos deixa livre de certo modo do peso da noção de etnicidade, contaminada que é
pelas exigências do Estado e do multiculturalismo. A etnia pressupõe uma unidade
estranha aos índios, que não é acionada senão em ocasiões específicas. Como propõe Gallois
(2001), o “Nós, Wajãpi” jamais foi algo dado, mas teve de ser construído mediante
exigências externas, tal o reconhecimento de um território comum—estabelecido para a
“União”—e a organização de um “Conselho geral das aldeias”—ou seja, de um órgão
político representativo—para geri-lo. A noção de fronteira, imprecisa e metafórica, porém

35
O maior equívoco seria, para Viveiros de Castro (op. cit.), tomar como constitutivo um fato particular—o
fato interétnico—e, nesse sentido, ele se tornaria um “obstáculo epistemológico”. O autor prossegue
atentando como maior equívoco do "contatualismo" pressupor que a situação defina o situado, retirando dele
qualquer capacidade de agência. Ele se refere a um certo determinismo histórico, apontado sobretudo em
trabalhos de João Pacheco de Oliveira sobre território e etnicidade, que redundariam num certo
adaptacionismo relegando os índios a produtos—meras partes—do Brasil e não, como sugere ele, como
situados no Brasil. Assim, o Brasil “só é parte da situação histórica das sociedades indígenas porque ele é um
dos objetos de um trabalho histórico ativo de posição em situação realizado pelas sociedades indígenas”
(idem:135, grifos do autor). Dessa maneira, a questão de fato relevante para Viveiros de Castro reside menos
em como os índios se situam no Brasil do que como esse e seus diversos contextos são situados e englobados
por eles. O contatualismo assim apresentado partiria do pressuposto de uma insularidade anterior ao advento
dos primeiros encontros com o mundo ocidental, fenômeno que teria desnaturalizado as sociedades e as
inserido em um novo fluxo. Ora, essa postura traz implicações teóricas graves: em primeiro lugar, despoja
essas sociedades de um regime próprio de historicidade—elas teriam permanecido fora do tempo até o
momento de sua captura pela História—, em segundo, postula para elas um estado natural insular, como se
jamais houvessem conhecido quaisquer instâncias de troca ou encontros com populações distintas.

53
dotada de um estimado valor heurístico,36 tem por mérito o esforço de superação da
perspectiva unitarista e dicotômica em favor de um quadro que leva em consideração
múltiplos pontos de vista. Na situação de fronteira, várias são as maneiras de ver o que se
passa, e o processo que a perpassa é, como bem lembrado por Homi Bhabha (1998), o da
tradução cultural. Isso posto, tudo leva a crer que, na perspectiva adotada aqui, o contato
é um fator problemático mas que não se configura como foco propriamente dito da análise,
então buscado nas sociedades indígenas elas mesmas. De tal maneira, o contato persiste
como um problema relevante para esse trabalho apenas à medida que me preocupo com os
mecanismos de apreensão que essas sociedades desenvolvem como respostas às novidades
que se lhe apresentam. Mais uma vez, o como o novo entra no mundo dessas sociedades,
tendo em vista que métodos de tradução cultural são ontologicamente anteriores ao
contato com a sociedade ocidental. Nesse sentido, essa investigação só pode realizar-se
mediante um retorno àquela tradição que Viveiros de Castro denominou de “etnologia
clássica”, tradição que privilegia o processo de construção de sentido conduzido pelos
próprios índios. Meu intento, vale reafirmar, não é o de pensar a relação entre brancos e
índios, mas as modalidades de relação desenvolvidas pelas sociedades indígenas e as
categorias de alteridade operantes no seu pensamento. Afinal, situar os outros é ao mesmo
tempo situar-se, constituir-se como sujeito (e não objeto) da situação.

O sentido reencontrado

O interesse em um retorno à etnologia clássica, reiterado no artigo de Viveiros de Castro,


para examinar o fenômeno do contato, resulta num esforço para compreender a
constituição de sentido por parte das próprias populações estudadas nos diferentes e
conflitantes contextos por elas vividos. A análise da posição dessas sociedades numa dada
situação historicamente constituída deve se dar a posteriori, ou seja, é necessário incorrer
numa certa "redução etnológica" para que se possa aceder a um entendimento mínimo da
realidade nativa—é preciso deixar-se banhar no caldo conceitual do qual se alimenta uma
sociedade para reencontrar o sentido de suas estratégias de vivência no mundo mais

36
Uma sofisticação do conceito não será pois levada adiante aqui, cumpre apenas ser tomado seu aspecto
heurístico. Para uma discussão mais consistente sobre a noção de fronteira na antropologia, ver Gallois
(1999).

54
amplo. Ora, tal proeza analítica não se conquista senão pelo caminho minucioso (trilhado
ou por trilhar) da observação etnográfica. Insisto na idéia de retorno à medida que
suponho estarmos diante de novos problemas teóricos, não obstante visitados de modo
pouco sistemático pela disciplina em questão. Ora, o problema do contato da perspectiva
das sociedades indígenas não pode ser negligenciado, uma vez que atenta para uma nova
maneira de percepção do mundo vivido, para a construção de novas estratégias de ação e
para um processo contínuo de atualização epistemológica. Reduzir, colocar em parênteses
um dado contexto, não significa colocá-lo em dúvida ou julgá-lo irrelevante, pelo
contrário, há que se pensar uma etnologia sensível ao problema da inserção do estranho,
não-índio que seja, na experiência indígena. Trata-se de isolar elementos que existem
apesar dele e, por isso, toda redução dessa espécie deve implicar um caminho de volta que
permita avistar as situações com novos óculos e constituir uma etnologia que possa
verificar como os modelos indígenas se deparam com os fatos da experiência
contemporânea. Dito de outra forma, a pergunta que cabe consiste no modo como a
experiência desse mundo novo é digerida pelos próprios índios, como novas figuras são
situadas nos seus diagramas de alteridade.
Esse tipo de indagação esteve latente nos estudos que fundaram a tradição
americanista, tendo se conformado de maneira mais acentuada com os trabalhos dos anos
1990. Menos que teorias do Brasil indígena, etnografias recentes sobre populações
amazônicas com experiências de contato de longa data, como as de Peter Gow (1991) sobre
os Piro (Aruak, Peru)37 e Aparecida Vilaça (1996) sobre os Wari (Txapacura, Rondônia),
buscam um conhecimento dos múltiplos significados atribuídos a tais situações para os
grupos em questão. Nesses contextos analisados, o foco da análise deixa de ser o grupo
local como mônada sociológica em favor de uma rede mais vasta de relações, que pode se
manifestar, por exemplo, no interior de aglomerados populosos—muitas vezes referidos
pelo termo “comunidades”—que reúnem no mesmo espaço integrantes de diferentes
origens, indígenas e não-indígenas. Tal é o caso do município do Camopi, no Oiapoque,
onde, como já apontado, se verifica um emaranhado de grupos locais distintos, wajãpi e
emerillon, que acabam por compartilhar uma mesma experiência de "cidadania", categoria

37
Peter Gow é mencionado por Viveiros de Castro por ter incorporado à tradição clássica o problema do
contato, lançando foco na “continuidade interindígena visível apesar das diferenças de conteúdo derivadas
das diferentes situações de contato envolvidas” (1999:145).

55
fundamental da política de assimilação francesa. Tal é também o caso das comunidades
nativas do baixo Urubamba, na Amazônia peruana (Gow, 1991), das grandes aldeias da
região do rio Uaçá (Tassinari, 1998), dos aglomerados multiétnicos waiwai, em Roraima
(Howard 1993) e dos aldeamentos wari' (rio Pakaas Novas, Rondônia) que convivem
atualmente com missões católicas (Vilaça, 1996).38 Como demonstra Vilaça, a co-residência
em grandes aglomerados e a suposta conversão ao cristianismo são antes resultado de um
longo e complexo processo histórico que, graças a formas de subordinação ou assimilação
dessas populações ao sistema mais amplo, implicam ressonâncias sem excluir os inevitáveis
mal-entendidos.
A questão que povoa monografias como as de Gow e Vilaça passa a ser a da
coerência interna dos sistemas sócio-culturais indígenas mesmo diante de fatores exógenos
supostamente desorganizadores. É portanto um esforço de reordenamento que os autores
têm em mente quando afirmam ser fundamental recuperar a lógica particular e os
elementos estruturantes dessas sociedades—uma tarefa para além dos fenômenos de
contato. Gow assume para sua pesquisa entre os Piro do baixo Urubamba um método
essencialmente etnográfico, atualizando o projeto caro à tradição estrutural-funcionalista
britânica, para dar conta da organização social de um grupo ameríndio diante do quadro
de um longo e acentuado convívio com a sociedade nacional peruana. Seu objetivo é
perceber como os Piro tornam-se aptos a integrar elementos exógenos, atribuindo-lhes
significado e organizando-os em seu interior. Vilaça, apegada à tradição estruturalista
francesa, confere menor ênfase às mudanças que às continuidades, vislumbrando na busca
dos Wari’ pelos brancos razões mais estruturais que circunstanciais. Segundo a autora, os
brancos teriam sido classificados, no momento dos primeiros contatos, como mais um
grupo inimigo entre tantos outros já conhecidos. “Ao ser associado ao mito, o Branco
tornou-se ontologicamente idêntico aos Wari’, e a separação entre eles foi atribuída a uma
interrupção da troca de festas e mulheres” (1996:26).
É importante registrar que a proposta desses estudos recentes que resgatam
axiomas fundamentais do estruturalismo diz respeito à impossibilidade de prosseguir com
uma análise sobre o contato sem a consideração dos códigos pelos quais os nativos

38
Nesses casos, há um redimensionamento das unidades sociológicas muito intenso, principalmente no que
diz respeito ao valor do termo “comunidade” como forma de auto -percepção do grupo, e que nada tem a ver
com a noção pouco precisa de comunidade como unidade de co-residência ou grupo local.

56
pensam—classificam e refletem sobre—a diferença no mundo. É nesse tipo de preocupação
que reside o esforço de contrastar o olhar sobre os encontros interculturais na história às
teorias nativas sobre a alteridade e o lugar dos não-índios. Como sintetizam Patrick Menget
e Antoinette Molinié, em uma introdução sobre o operação da memória indígena diante
dos fenômenos do contato com os brancos : “Não se trata, com efeito, de negligenciar as
aquisições da história colonial e contemporânea, mas de partir de categorias culturais
indígenas, de apreendê-las em todos os aspectos, tendo em vista o que essas sociedades
valorizam e as suas normas de transmissão” (1993:11).
Nessa direção, é reveladora a análise de Viveiros de Castro sobre a recepção do
processo de catequese cristã pelos Tupinambá da costa brasílica no século XVI. O autor
pensa o seu encontro com os conquistadores europeus em termos de um idioma de
afinidade, “mesma linguagem que usavam para pensar e incorporar seus inimigos. [...] Os
europeus vieram para partilhar um espaço que já estava povoado pelas figuras tupi da
alteridade: deuses, afins, inimigos cujos atributos se intercomunicavam. [...] Guerra aos
inimigos ou hospitalidade entusiásticas aos europeus, vingança canibal ou voracidade
ideológica eram, literalmente o mesmo combate: absorver o outro e, neste processo, alterar-
se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizações de uma
alteridade que atraía e deveria ser atraída; uma alteridade sem a qual o socius soçobraria na
indiferença e na paralisia” (1992:32). Os missionários ignoravam, nos seus atos de
catequese, que a cultura estrangeira havia sido muitas vezes visada como um valor a ser
apropriado e domesticado, como um signo a ser assumido e praticado como tal. “Onde ser
como os brancos—o ser dos brancos—era um valor disputado no mercado simbólico
indígena. Os implementos europeus, além de sua óbvia utilidade, eram também signos dos
poderes da exterioridade, que cumpria capturar, incorporar e fazer circular—exatamente
como a escrita, as roupas, os salamaleques rituais dos missionários, a cosmologia bizarra
que pregavam; exatamente, aliás, como os valores contidos na pessoa dos inimigos
devorados: os Tupinambá sempre foram uma sociedade de consumo” (idem:41). Por isso,
padres como Antônio Vieira se mostravam perplexos ao concluir que “mesmo ao crer, eles
continuavam incrédulos”, justamente porque aquele modo de “crer” se dava por meio
dispositivos cognitivos bastante diversos dos cristãos.
O estudo das relações que se inscrevem no espaço da fronteira deixa então de estar
desvinculado das preocupações caras a uma pesquisa de inspiração clássica: a questão dos

57
encontros—e as representações que se fazem deles—torna-se aqui mais uma via para
adentrar as visões de mundo de uma determinada sociedade indígena. Trata-se, por meio
da consideração de um determinado contexto, de tecer reflexões acerca de como aquela
sociedade pensa a si mesma a partir do que pensa dos outros que a circundam, ou seja,
levar adiante as pesquisas sobre “filosofias da alteridade” (Overing, 1983), captadas no
fluxo das relações com os inteiramente outros que, como tais, passam a ocupar um lugar
marcado no esquema cosmológico nativo. Tal é a lição do último Lévi-Strauss (1993a):
buscar um modelo irredutível capaz de abrigar essa oposição—índios/não -índios (homens
brancos)—que povoa sua experiência pós-colombiana. Como nos conta este autor, a
chegada do estranho—o branco—pode parecer menos assustadora para os ameríndios do
que pensamos, uma vez que seu pensamento costuma reservar um lugar para o estrangeiro
que pode ser identificado a personagens míticas: tal o caso de Aukê, herói de mitos jê que
teria sido abandonado pela família da mãe e então se transformado no senhor dos bens
culturais mais preciosos. Não é difícil imaginar que esse herói fosse identificado ao homem
branco e, dentre os homens brancos, os mais ricos e poderosos. Ora, como sustenta
Carneiro da Cunha, entre os Canela (Timbira, Maranhão), o mito de Aukê serviu de chave
para que eles formulassem o seu próprio devir histórico, pois se eles perderam, em um
tempo mítico, tantos bens preciosos para os “brancos”, era chegada a hora de recuperá-los
e, assim, reverter o tempo da “má escolha”. Com efeito, a narrativa mítica resvalava em
movimento político, tal o profetismo que se pôde observar no início do século XX . Trata-se
este de um exemplo em que o mito e sua propriedade de suprimir os efeitos do tempo,
objeto privilegiado da obra lévi-straussiana, pode servir de base para a ação, englobando
em sua armadura os eventos históricos e transformando o mundo vivido. Sob essa acepção,
é preciso admitir que as cosmologias ameríndias detêm operações que lhes permitem
arquitetar saídas para o problema do encontro e convívio com os estrangeiros.39

39
A leitura de teses como a de Aparecida Vilaça me propiciaram um reencontro, muito confortante, com o
estruturalismo. Em grande parte das abordagens estruturalistas, o mito é protagonista neste processo de
enquadramento das experiências de contato. A idéia de que ele produz uma teoria capaz de dar conta das
relações que os sujeitos estabelecem com o mundo exterior é compartilhada por muitos autores
contemporâneos. France-Marie Renard-Cassevitz, por exemplo, analisa, em Le banquet masqué: une
mythologie de l'étranger (1991), narrações míticas dos grupos aruak subandinos (Amazônia Ocidental) que
contêm explicações genéticas e ontológicas da existência dos estrangeiros, sejam eles imaginários ou
presentes no cotidiano vivido. À medida que se debruçam sobre o tema da diferença, apontam a um campo
semântico da alteridade, ou seja, um mecanismo que retém e exprime na tradição oral as diversas
experiências passadas e presentes, capaz de incorporar as experiências de contato.

58
Em História de Lince (1993 a), espécie de posfácio reflexivo para o conjunto dos
quatro tomos das Mitológicas dedicados ao continente americano, Lévi-Strauss retoma,
muito em função de críticas recebidas durante mais de trinta anos, a discussão em torno da
tensão entre os sistemas de significação e a história. O autor já havia se disposto, em O
Pensamento selvagem (1989), a discutir como a lógica das classificações totêmicas, por
exemplo, reagia diante dos desafios da diacronia e atuava no ajuste entre o estado antigo e
a realidade introduzida de fora, de maneira a promover a “regulação estrutural” do devir
histórico de uma sociedade. Todo o esforço do autor consistia em mostrar que, apesar de
serem levadas pelo fluxo inevitável da temporalidade, as instituições indígenas jamais
deixavam de navegar por uma corrente de inteligibilidade, ou seja, os sistemas de
significação jamais cessavam de operar capturando os acontecimentos e conferindo-lhes
sentido. No totemismo, as séries natural e social existem no tempo, mas aí usufruem de um
regime atemporal, permanecendo em conserva e, como no caso do mito e do ritual, fazem
com que a história se encontre subordinada ao sistema. Dessa forma, o devir histórico é
admitido, porém apenas como forma sem conteúdo—“há sempre um antes e um depois,
mas sua única significação é a de se refletirem um no outro” (1989:260).
Esse embate entre sistemas classificatórios e a história é tema de alguns escritos de
Bruce Albert (1989 e 1993), para quem as contribuições de Lévi-Strauss devem ser
redimensionadas com o advento de novos problemas etnográficos e teóricos. Para ele, os
estruturalistas, ao privilegiar apenas os relatos míticos, teriam se mantido pouco atentos à
análise das representações do contato; faz-se necessário, por conseguinte, resgatar a
discussão sobre o lugar da história nos processos nativos de reelaboração cognitiva. “O
avanço da fronteira submete a existência e a permanência das sociedades indígenas à
resolução de enigmas metafísicos e transtornos sociais de uma magnitude inédita. As
extremas disparidades de sentido e de potência que essa colisão histórica instaura abrem
seus sistemas culturais para uma dinâmica de reestruturação constantemente desafiada pelo
desenvolvimento complexo de situações de contato” (1989:152; grifos meus). Para Albert,
para que haja um refinamento de suas abordagens, os estruturalistas devem contar também
com a consideração dos processos históricos, de maneira a perseguir os malabarismos do
pensamento indígena. Interessa ao autor o agenciamento de princípios cosmológicos e,
para tanto, ele desloca o foco da mitologia para o âmbito das relações políticas e das
transações rituais.

59
As indagações de Albert sobre a dinâmica das representações sobre o contato
podem ser enquadradas na perspectiva de uma “história estrutural”, mais atida às
transformações nas categorias sócio-cosmológicas que à inércia relativa do pensamento.
Não basta, em Albert, deduzir uma arquitetura formal, mas recuperar, o máximo possível,
a dimensão dinâmica e pragmática do pensamento selvagem. Ele busca, “para além de uma
mera ‘representação’ do contato, uma estratégia de reprodução, sob tensão histórica, das
dimensões culturais pertinentes de uma organização e filosofia social trabalhando sobre si
mesma” (1989:182). Para ele, sempre voltado ao caso yanomami (Roraima), a chave para a
compreensão das representações sobre o contato consiste em acrescentar às vantagens de
uma abordagem simbólica uma perspectiva histórica, iluminando as categorias culturais
em sua mobilidade. “Com efeito, por sua dinâmica pragmática e sua arquitetura cultural
(teoria da alteridade), a lógica subjacente dessas concepções se inscreve ao mesmo tempo
no campo da crônica histórica e no da filosofia social” (idem:ibidem).
Os trabalhos de Gallois sobre os Wajãpi do Amapari (1994 e 2002) têm revelado um
intento semelhante: inserir a análise dos processos históricos para compreender o caminho
das categorias culturais no mundo da prática. Nesse sentido, Gallois privilegia a exegese
dos discursos políticos wajãpi, como novo gênero oral, que emerge com o estreitamento
das relações com os brancos, a partir de elementos próprios à estrutura cosmológica. A
autora persegue “falas para brancos”, “falas duras” (Gallois 2002), e por isso mesmo
transformadas de maneira a utilizar estrategicamente elementos históricos para justificar
reivindicações políticas, como acesso a serviços, à assistência e a ferramentas. A maneira de
se situar nesse mundo outro programada pela cosmologia não exclui um horizonte de
ambigüidade: a relação entre índios e não-índios pode então ser pensada não em termos de
uma dicotomia na qual cada parte permanece com seu papel definido, mas como oscilação
entre um estado de aceitação e de aliança e outro de rejeição e afastamento. No entanto,
admite a autora que, para o melhor ou para o pior, a figura dos não -índios é trazida para
dentro dos sistemas de classificação, ela deve ser situada, não importando se em um pólo
positivo ou negativo. “O poder—ou o ‘mal dos brancos’ (karai ra'y)— é sujeito a
transformações internas que reiteram sua força devastadora. Os brancos não são
elimináveis, nem histórica nem cosmologicamente. São parte do cosmos e do devir wajãpi”
(2002:228).

60
Tanto as reflexões de Albert como as de Gallois buscam reconciliar uma análise de
caráter simbólico com o problema da prática—ou agência (agency)—, reinserindo sujeitos
em arquiteturas abstratas e examinando a forma pela qual o pensamento intervém no
mundo. A questão do controle, por parte dos índios, das relações com novas personagens e
situações aponta a imbricação dos discursos políticos e outros gêneros de tradição oral.
Gallois se refere a "discursos-explicação", em que elementos mítico-cosmológicos são
utilizados para legitimar suas reivindicações. Esse jogo de interpretações sobre os eventos
deixa vazar um princípio de transformação, que consiste na fonte de toda ambigüidade e
que impede a captura de dicotomias rígidas. Ambos os autores demonstram como os não-
índios podem ser ora introduzidos a uma categoria para parceiros, com os quais é possível
trocar, ora a uma posição de predadores, disseminadores de doenças terríveis ou
destruidores do mundo natural (nesse último caso, fazem confluir uma concepção própria
sobre a natureza e o discurso politicamente correto do ambientalismo). Daí a urgência de
figuras como os xamãs, a quem cabe restituir as relações com os donos dos domínios não-
humanos, e dos novos líderes políticos, que devem levar o ponto de vista indígena para o
debate com as autoridades nacionais.
Tanto entre os Wajãpi como entre os Yanomami, nota-se uma profusão de discursos
que responsabilizam os brancos por parte dos infortúnios vividos por eles—tais as
epidemias, que assolam estas populações desde os primeiros contatos oficiais. Ora, essa
responsabilização recai não-raro em cataclismologias que prevêem seja a “queda do céu”,
seja o “apodrecimento da terra” e, como entre os Timbira analisados por Carneiro da
Cunha, requer atitudes do tipo “proféticas” perante os eventos contemporâneos. Mais uma
vez, há uma leitura mítica e xamânica da história das relações com o mundo não-índio. Em
suma, uma leitura dada nos termos dos índios, subvertendo, assim, qualquer tentativa de
submetê-los, filosoficamente, a um devir que não lhes diz respeito, qual seja, a história das
sociedades nacionais ou do sistema nacional que pretende englobá-las.
É bem certo que o poder transformativo dos esquemas indígenas tem seus limites, e
autores como Bruce Albert e Dominique Gallois têm plena consciência disso. A
consideração da história é, nesse sentido, um meio de analisar o desempenho das categorias
ou conceitos diante de eventos concretos, diante dos quais algumas formas—como mitos,
ritos ou meramente idéias—podem se esgotar, possibilitando o aparecimento de formas
novas. O problema da ação política é, nesse caso, instigante: representar-se como “etnia”

61
vai de encontro, por exemplo, com a recusa de uma representação da totalidade social
como traço fundamental dos sistemas políticos de boa parte dos grupos guianenses.
Segundo Gallois (2001), diante das exigências da sociedade nacional, os Wajãpi tiveram de
passar por diversos processos de “aprendizado”, o que significou sobrepor aos seus
esquemas usuais novos esquemas. Ainda que a criatividade indígena seja extensa e
surpreendente—não é difícil colher exemplos de “subversões políticas” em um contexto
representativo—, não se pode negligenciar a instalação de novidades. Assim, os Wajãpi,
que sempre se pensaram como “plenamente humanos” perante categorias diversas de
humanidade residual—aprenderam não apenas se reconhecer como uma “etnia”, dotada de
nome e território demarcado, mas também como “índios”, passíveis de se identificar com
outros povos que antes eram vistos como inimigos ou mesmo como selvagens.
Nota-se que ao mesmo tempo em que alguns “aprendem a ser índios”, outros
afirmam “virar brancos”, o que revela, de fato, dois fenômenos opostos e complementares.
Aparecida Vilaça (1996) observa, entre os Wari’, a recorrência de um discurso, no qual eles
se dizem em transformação. Poderíamos pensar que se trata aqui de um artifício retórico
ou mesmo um atestado de aculturação, como muitas vezes advogaram as análises
culturalistas ou como continua a figurar no senso comum da sociedade brasileira. No
entanto, na compreensão da autora, essa seria uma proposição ontologicamente aceita ao
modo wari’ e que não contém em si qualquer referência de aculturação, pelo contrário,
pois transformar-se é admitido como um movimento reversível. Para sofisticar seu
argumento e inspirada pelas reflexões de Viveiros de Castro, Vilaça recorre à propriedade
perspectivista do pensamento wari’, no qual cada ser pode possuir ou ocupar um ou mais
corpos. “Tornar-se branco e cristão” seria, sob essa ótica, habitar um corpo alternativo,
mas nunca exclusivo.
Em linhas gerais, Vilaça estende o raciocínio de Viveiros de Castro (1996), baseado
na relação entre humanos e não-humanos, para a relação entre índios e não-índios. O autor
sustenta haver, entre os ameríndios, ontologias que admitem que a distinção entre
humanos e não -humanos não é de natureza, mas de posição. Nesse sentido, todos os seres
do cosmos partilham um mesmo “espírito” e se diferem entre si por meio de seus corpos. O
que se vê como um animal pode ser, de fato, um humano envolvido por um corpo ou
roupagem animal. Este que é visto se vê como humano e vê o observador como animal,
evidenciando que humanidade e animalidade são posições que podem ser trocadas, assim

62
como o são as posições de sujeito e objeto. Ver-se como humano é, em suma, assumir-se
como sujeito. Sob tal regime ontológico, é possível imaginar que as coisas se transformem,
e que se possa passar de uma posição à outra via processos de metamorfose. Como se verá,
estes podem ser reversíveis—logo, dotados de alto valor epistemológico—ou
irreversíveis—indesejáveis, porque representam o aprisionamento do outro lado, o que
pode significar também a morte.
Para Vilaça, da mesma forma que os xamãs amazônicos podem se transformar em
animais—bem como se comunicar com os espíritos da floresta e dos mortos—entre os
Wari’, para quem o xamanismo é menos uma posição diferenciada que uma capacidade
disponível a todos, embora em diferentes graus, seria possível transformar-se em branco.
Não posso adentrar, neste momento, os meandros da etnografia wari’, o que seria
proveitoso, pretendo apenas apontar a maneira pela qual Vilaça evidencia que a relação
com os brancos pode ser lida a partir da relação com as formas mais variadas de alteridade,
e que isso passa necessariamente pelo perspectivismo. Transformar-se em branco, como em
bicho, é uma questão de corpo e não de espírito; e, entre os Wari’, isso é possível devido à
partilha, cada vez mais constante, de substâncias entre eles e os brancos que com eles
convivem, em sua maior parte missionários cristãos, com os quais participam de grandes
festas de bebida fermentada. Nesse sentido, se “ser” é uma questão de “devir”, então os
Wari’ jamais foram tão eles mesmos que quando começaram a obter um “corpo branco”. É
na afirmação do “devir branco”, na idéia de que é possível trocar de corpo, que reside a
potência do pensamento wari’. No entanto, como ressaltado acima, toda transformação
evoca um perigo de irreversibilidade e resta saber se os Wari’ serão capazes de controlar
essa diferença.
De modo geral, enquanto “aprender a ser índio” evoca a necessidade de buscar fora
dos próprios esquemas conceituais de modo a se mover num mundo novo, ele também
impregnado de categorias; “transformar-se em branco” pressupõe que o novo seja
categorizado como sujeito e, assim, submetido a essa concepção perspectivista da troca.
Com efeito, o pensamento perspectivista é ele mesmo uma forma de subversão da oposição
entre sujeito e objeto, humano e não-humano, índio e branco como termos fixos e
substanciais. Nesse sentido, ele invade a própria noção de comunicação ritual, como se
verá adiante.

63
Concluo este capítulo atentando ao fato de que o mundo em transformação aqui
referido está mais próximo da prática do que se poderia imaginar. Devo colher, doravante,
em diferentes manifestações rituais armaduras conceituais—cosmologias, ontologias—que
permitem a configuração de redes de relações sociais complexas, bem como reflexões sobre
situações e eventos vividos. Mas antes de tecer comentários sobre os caminhos dessa
agência reflexiva indígena em contextos mais específicos, como aqueles que pude observar
no trabalho de campo já distanciado, tema reservado para o quarto capítulo, devo focalizar
a discussão bastante profícua na etnologia americanista acerca de redes de comunicação
engendradas por certos rituais coletivos—festas—que se fazem observar na imensidão da
Amazônia indígena.

64
2. A rede ritual

A revenir sur terre, ou plonger dans le courant du sens, communiquer, c'est voyager, traduire,
échanger: passer au site de l'Autre, assumer sa parole comme version, moins subversive que
transverse, faire commerce réciproque d'objets gagés. Voici Hermès, dieu des chemins et
carrefours, des messages et des marchands.

– Michel Serres, Hermes I – La communication

Ritual e comunicação

No capítulo anterior, discuti o caráter produtivo das festas de bebida fermentada e a razão
pela qual elas podem ser designadas como rituais e, mais especificamente, como certo tipo
de rituais, como manifestações coletivas, que envolvem, entre outras coisas, dança, música
e embriaguez, e que se distinguem de outras manifestações por assim dizer mais
individualizadas ou privadas. Neste capítulo, gostaria de me debruçar sobre uma questão
um pouco mais pontual, que diz respeito à maneira pela qual essas instâncias atuam na
geração de redes de relações que ultrapassam domínios locais. Nesse sentido, elas operam
uma abertura do espaço social, evidenciando a necessidade de buscar fora dele elementos
capazes de constituí-lo.
Para continuar essa reflexão, gostaria de esboçar uma reflexão comparativa, e
buscar apreender um plano em que o exemplo mais cuidadosamente iluminado entre os
Wajãpi possa dialogar com outros exemplos, extraídos da etnografia de regiões diversas.
Apresento, pois, este capítulo como uma experiência de colocar em conversação diferentes
manifestações que parecem apontar questões semelhantes, apesar de possuírem formas e
escalas bastante desiguais. Acredito que como os mitos, os ritos—os códigos e mensagens
difundidos por eles—“se desdobram ao infinito”, são “intermináveis” (Lévi-Strauss
1989:15), constituindo assim conjuntos de transformações que cortam paisagens vastas.
Nesse sentido, proponho um duplo desprendimento em relação ao localismo. O primeiro diz
respeito à constituição das tais redes de comunicação que são de fato vividas pelos nativos.
O segundo diz respeito a uma comunicação por assim dizer mais conceitual, ou seja, a
partilha, entre diversos povos, de princípios que estão na base da constituição dessas
redes.

65
Parto de um apanhado geral sobre algumas paisagens etnográficas—em especial a
guianense, onde se encontram os Wajãpi, foco privilegiado e ponto de partida da análise—
para voltar à discussão etnológica acerca dos sistemas rituais amazônicos. Sendo os Wajãpi
um grupo de língua tup i-guarani, não pude evitar a tentação de examinar, outrossim, o
festival antropofágico dos antigos Tupi da costa (Tupinambá). Parece-me, que apesar da
distância no tempo e no espaço, os dados antigos iluminam de modo esclarecedor os atuais,
e vice-versa. Pretendo, por ora, tomar estes sistemas em seu aspecto mais formal, buscando
quando possível algumas generalizações e, assim, colocar em questão uma gramática
comum que opera por detrás das diversas formas de expressão ritual. Para tanto, devo
perseguir o que Bruce Albert (1985) denominou de “rede de comunicação
intercomunitária” ou “interlocal”, algo inferido de sua etnografia sobre os Yanomam de
Roraima, e que também pode ser encontrada de maneira transformada noutras partes da
paisagem amazônica. O mais interessante, nesse ponto, consiste na contraposição dos
argumentos desse autor aos de Peter Rivière (1984) que, por sua vez, se pretendem gerais
para a região das Guianas. Diferente de Albert, a noção de comunicação aparece de modo
periférico em Rivière, cujo olhar se prende à constituição das unidades locais.
Estendido o argumento de Albert sobre os Yanomami, que servirá de base para as
próximas páginas, é preciso lembrar que os rituais amazônicos carregam uma estrutura um
tanto semelhante, operando por códigos compartilháveis e servindo de canal de
comunicação entre grupos distanciados. Isso conduz à compreensão das escolhas e
respostas desses grupos em relação às novas experiências vividas. O estudo de
manifestações rituais permite, em primeiro lugar, contrapor ao minimalismo sociológico
reconhecido como propriamente guianense—e que opera pela minimização das diferenças
no interior do grupo local pensado idealmente como parentela cognática fechada—um
espaço plural instaurado pela festa, e que tem como mérito justamente a celebração das
diferenças. Nesses termos, tal estudo permite dar continuidade a uma discussão sobre o
valor da alteridade para as sociedades indígenas em foco e, além disso, ecoa a necessidade
de experimentar novos recortes analíticos que iluminem unidades mais amplas que
transbordam o universo das unidades locais, centrando a atenção não nas unidades em si
mesmas, mas nas relações que se estabelecem entre elas e, o que é mais importante, as
constitui.

66
A ênfase no atomismo sociológico original deve ser, pois, deslocada para as redes
de comunicação que se realizam em níveis diversos—matrimoniais, comerciais,
lingüísticos, rituais—, e que revelam mecanismos, ainda que inconstantes, de integração
regional. O exagero na imagem de autonomia dos grupos locais guianenses, recorrido
muitas vezes por Peter Rivière, acaba por tornar turvo um campo de visão que abriga as
relações com estrangeiros, dados que não apenas clareiam os percursos—históricos e
geográficos—das populações indígenas, mas são extremamente importantes para as idéias
nativas sobre a reprodução da vida social e dos indivíduos. Como já salientado no capítulo
anterior, as relações com os brancos podem ser vislumbradas como mais um caso particular
de esquemas de comunicação vigentes, que vão de esferas propriamente locais até aquelas
mais globais. A idéia de que as sociedades em questão não estão em profundo isolamento,
antes vivem ou viveram períodos de intenso intercâmbio, já é um ponto de partida nos
trabalhos que se debruçam sobre a América do Sul e, mais especificamente, sobre a região
das Guianas, o que se deve sobretudo às pesquisas de reconstituição histórica.40
O estudo aqui proposto afasta-se de análises propriamente sociologistas e atomistas
para se aproximar das noções como a de “redes de comunicação”, enunciada por Dan
Sperber (1970). Os ritos de diferentes populações transgridem barreiras locais, e servem
sobretudo de modelo de comunicação para além dos agrupamentos locais ou étnicos
estabelecidos. A proposta aqui abraçada é, nesse sentido, o desenvolvimento de uma linha
de investigação que não esteja centrada nem na figura do grupo local como unidade
sociológica auto-suficiente41, nem na noção de etnia como produto de um processo de
embate com o contexto nacional. Trata-se, vale a pena frisar, da leitura de uma etnologia
que desenvolveu uma sensibilidade mais apurada para os fenômenos de caráter supralocal,
que dizem respeito também às relações com não-índios.42 Essa sensibilidade não é uma
novidade em etnologia, muito pelo contrário, reenvia ao problema da comunicação como
aquilo que instaura a vida social, como proposto por Lévi-Strauss (1982). O ritual, por sua
vez, mostra-se como um canal privilegiado de comunicação, uma vez que permite a

40
Sobre a revisão da literatura histórica sobre a região das Guianas, ver Gallois (2005) e Grupioni (2005).
41
Voltarei, no item seguinte, à discussão sobre a definição da noção de “grupo local” na etnologia
americanista.
42
Essa sensibilidade diz respeito tanto a um espaço visível —aquele das relações interlocais ou
intercomunitárias—como a um espaço invisível—aquele das relações com agentes não-humanos que habitam
o cosmos. Neste trabalho, privilegio os aspectos visíveis, embora sem negligenciar sua conexão com a parte
invisível. Sobre o segundo aspecto, que dispara redes de ação xamânicas, ver Sztutman (2005).

67
circulação de mensagens de várias naturezas e inviabiliza o pensamento de qualquer
comunidade como grupo fechado em si. Além disso, o ritual oferece a possibilidade de
conjunção de partes que seguem separadas, algo que implica um esforço hercúleo e que
tende a não se completar justamente porque a síntese anunciada corajosamente permanece
improvável e a totalidade almejada se mantém aberta, por fazer.
Tendo em vista a dificuldade de apreender um complexo ritual entre as populações
das montanhas Ok, na Nova Guiné, que se apresenta pela sua translocalidade, Fredrik
Barth (1987) pensa “receitas contemporâneas” para recortar um objeto de estudo em
redefinição. Barth rejeita a escolha pela circunscrição em um único local, apontando a
necessidade de reconstituição de sistemas regionais de intercomunicação marcados pela
circulação de conhecimentos. O autor alega que o objeto de estudo não deve ser
necessariamente “uma” cultura, mas uma variedade de culturas, de idéias e expressões
cosmológicas. Trata-se de detectar “subtradições” no seio de tradições, apontando a
pluralidade de comunidades intercomunicativas e geneticamente relacionadas. Os
Baktaman, das montanhas Ok, por exemplo, são divididos em grupos com práticas e
crenças religiosas variadas, o que impede o autor de delinear um estado de coisas
homogêneo, obrigando-o a inferir uma rede de comunicação propiciada pelo intercâmbio
de conhecimentos rituais. Tendo em mente um redimensionamento da teoria
antropológica, Barth constata: “Trata-se agora de um lugar comum antropológico o fato de
diferentes práticas e crenças encontradas em uma cultura estarem intimamente conectadas
como um sistema, e que tanto a sua descrição como a sua interpretação devam proceder
com referência a este contexto e nos termos dessas conexões. Assim, o antropólogo fornece
uma descrição de perto dos elementos na cultura de um grupo, e por meio da análise,
constrói um quadro que revela como as partes se ajustam” (1987:6).
Segundo Barth, o estruturalismo de Lévi-Strauss é, dentre os paradigmas usuais em
antropologia, aquele que mais parece apropriado para dar conta de um recorte etnográfico
que não esteja restrito a uma única localidade. A idéia de transformação em Lévi-Strauss
apontaria a faculdade de transpor elementos de um sistema a outro na busca pela
construção de um modelo explicativo abstrato. Não obstante, o fato do método
estruturalista perder de vista as gêneses históricas e a capacidade criativa individual
comprometeria a compreensão dos eventos de mudança e variação. Para Barth, o sistema
de intercomunicação – o sistema de transações – que liga tradições vizinhas na Nova

68
Guiné, campo onde desenvolve sua pesquisa, não pode ser analisado se dispensados seus
conteúdos particulares. Idéias são compartilhadas e transmitidas entre os diversos grupos
locais, sofrendo adaptações e transformações. Não se trata da abstração das realidades
díspares para a construção de um modelo único, e sim da ênfase nos aspectos empíricos de
variação. O importante, para esse autor, é identificar os processos empíricos pelos quais os
materiais culturais são produzidos e transformados.
De maneira distinta a Barth, não pretendo tecer considerações sobre as gêneses
históricas das manifestações culturais, e sim compreender mecanismos de
intertraduzibilidade, propiciados por certas preocupações e predisposições comuns. Minha
questão não é a de saber como as práticas rituais se originaram umas das outras, mas como
elas permitem, dada a sua linguagem, promover a comunicação entre diferentes
localidades. Mais uma vez me aproximo de Lévi-Strauss, à medida que estou interessado
na comunicação num plano, inclusive o sociológico, estabelecido entre as diferentes
unidades locais que não estão dadas de antemão antes da comunicação, mas que são
justamente produzidas por ela, o que lhes confere um grau elevado de variabilidade.
O júbilo da festa conduz a certas constatações. Em primeiro lugar, existe aí um
mecanismo ordenador, um sistema de significação operante, que não é definitivamente
estático, antes acompanha e procura conferir sentido ao fluxo de contingências. Como
insiste Lévi-Strauss (1989), o ritual consiste em um sistema posto em ação, diferente da
mitologia, um sistema puramente concebido, o que conduz à idéia de um papel decisivo no
mundo vivido, que o autor, no entanto, apresenta de modo ambíguo. Dan Sperber,
guiando-se pelos pressupostos estruturalistas, afirma que o ritual, diferentemente das
regras de aliança e dos mitos, constitui-se simultaneamente por estruturas de código, regras
que regem um conjunto de mensagens, e estruturas de rede, um conjunto de trocas, ou
seja, “a significação e a própria composição de uma mensagem dependem das posições
daquele que emite e daquele que recebe” (1970:78). Para Sperber, o sistema ritual, um
sistema total de comunicação “que não é suscetível de análise nem como rede nem como
código” (idem:ibidem), possui características próximas dos sistemas políticos, uma vez que
em ambos o que é comunicado e a situação da comunicação estão intimamente ligados.
Sperber busca enfatizar o caráter de rede dos sistemas de comunicação, ponto que a
antropologia de Lévi-Strauss não teria se debruçado suficientemente em favor das análises
de códigos e dos sistemas de pensamento. Como evidenciam os trabalhos etnológicos há

69
pouco comentados, a mensagem do ritual não pode ser dissociada da conformação de uma
rede. Como pretendi evidenciar no capítulo anterior a partir do caso wajãpi, o ritual existe
por e para a comunicação entre diferentes segmentos, sinalizando um horizonte
supralocal—provavelmente uma recorrência em toda a paisagem amazônica. Por ora,
guardemos essa discussão para os itens seguintes para poder examinar brevemente alguns
pontos importantes da teoria antropológica do ritual.
No “Finale” de L’homme nu (1971), Lévi-Strauss admite a dificuldade teórica para
tratar dos temas rituais. Para ele, todo ritual abraça a ilusão de compor o contra-senso do
mito, qual seja, refazer o contínuo a partir do descontínuo, o que implica conferir ordem
ao vivido. Como o mito, garante o autor, o rito tem como intento encontrar soluções
estruturais para os problemas enfrentados na experiência e promover um certo ajuste entre
o estado antigo e a desordem introduzida. Ambos foram por esses fatores identificados
como “máquinas de feed back” (Lévi-Strauss 1989), ou seja, como dispositivos de regulação
do devir histórico. No caso do ritual, não se trata propriamente de um mecanismo de
supressão dos efeitos do tempo, como pode parecer no caso do mito, visto que é ele
próprio constituído de tempo, de estruturas de duração, e por isso inscreve-se na
diacronia. Como bem define o autor, ele consiste num sistema “sincrônico-diacrônico” que
busca integrar caracteres periódicos e aperiódicos, tempo reversível e tempo irreversível,
diacronia e sincronia no interior da própria diacronia.
Lévi-Strauss opõe aos sistemas de classificação totêmicos os ritos sacrificiais que,
em detrimento de uma linguagem metafórica que mantém apartadas as ordens natural e
humana, procuram restabelecer a contigüidade entre elas. Cita o exemplo clássico do
intichiuma australiano, ritos de multiplicação e consumo das espécies totêmicas, em que os
homens buscam traçar uma identidade substancial com essas espécies. Noutras palavras, se
o totemismo está confinado à esfera do pensamento social e da oposição entre ordem
natural e ordem social, o sacrifício revela um esforço de comunicação entre ambas, passa-se
do reino da metáfora para o da metonímia, de uma busca puramente lógica a uma busca
pela contigüidade e, nesses meandros, o sentido derrapa. O sacrifício dá brecha à
transformação, às alterações, pois o sentido não está garantido de antemão, deve antes ser
constituído. Nota-se que ainda que periférico, o problema do ritual e da forma de
comunicação que ele engendra aparece na obra de Lévi-Strauss de maneira reveladora. Ele
consiste em uma instância de conjunção entre pensamento e ação em que a pretensa

70
manutenção mecânica do estado de coisas vigente deve surpreender-se com alguma
transformação.
Ainda que pouco simpática ao estudo do ritual, a análise de Lévi-Strauss parece-me
bastante elucidativa, sobretudo no que diz respeito ao esquema descontínuo/ contínuo/
descontínuo. Com efeito, o aspecto conjuntivo do ritual—busca de estabelecimento de uma
“continuidade perdida”, um estado de contigüidade entre o humano e o não-humano
gerado por uma comunicação excessiva, por exemplo—é o que permite a produção de
novas descontinuidades, ou seja, de pessoas e de relações sociais. Contudo, é esse caráter
produtivo do ritual, encontrado de maneira explícita no pensamento ameríndio, que Lévi-
Strauss perde de vista, quando o subordina à operação do mito, empenhado no
estabelecimento, ao infinito, de descontinuidades.43 Ao mesmo tempo em que o ritual
produz pessoas e relações sociais, ele abre a possibilidade de reflexão sobre esse processo,
o que significa evidenciar a contigüidade existente entre os seres do cosmos e a
necessidade da comunicação entre eles para produzir a vida social.
O tema do ritual como fomentador de comunicação reaparece na obra de Edmond
Leach, mais detidamente em Sistemas políticos da alta Birmânia (1996), que esboça uma
releitura do estruturalismo francês a partir de questões pouco abordadas por essa escola,
como relações hierárquicas e unidades políticas. Leach se refere ao ritual como linguagem
estereotipada e algo simples por meio da qual os vários grupos kachin expressam seus
argumentos e na qual questões de status são continuamente representadas. “Os atos rituais
são modos de ‘dizer coisas’ sobre o status social e a língua em que essas coisas são ditas à
totalidade da região das colinas de Kachin” (1996:321). Sobretudo, devem representar a
instabilidade da estrutura social44—daí uma crítica às análises de inspiração durkheimiana
que postulam um isomorfismo entre ritual e estrutura social. Leach não pensa, ao modo

43
Em vários momentos das Mitológicas, Lévi-Strauss insiste no horror que o pensamento ameríndio nutre em
relação às continuidades. Para tanto, ele se vale de uma miríade de exemplos extraídos do sensível, tal o
cromatismo do arco-íris, causador de doenças e infortúnio, e a algazarra sonora, responsável pela conjunção
de esferas que devem se manter separadas. Nesse sentido, esforços de conjunção que integram muitos rituais
designariam uma espécie de busca pela comunicação perdida entre mundo natural e mundo cultural e, por
conseguinte, uma espécie de reversão do estado de cultura para o estado de natureza. Esse segundo ponto é
especialmente tratado em Du miel aux cendres (1967).
44
“Mito e ritual são uma linguagem de signos em função do qual se expressam as pretensões a direitos e a
status, mas é uma linguagem de argumentação e não um coro de harmonia. Se o ritual é às vezes um
mecanismo de integração, pode-se igualmente dizer que ele é freqüentemente um mecanismo de
desintegração. Uma assimilação adequada desse ponto de vista requer, dizia eu, uma mudança fundamental
no atual conceito antropológico de estrutura social” (1996:319).

71
dos funcionalistas, o ritual como fator de integração social, tese aliás revisitada e
sofisticada por autores da Escola de Manchester como Victor Turner e Max Gluckman,
tampouco poderia ser interpretado como um fator de subversão. Menos atado a uma
função sociológica de coesão, enfrenta-se com os dilemas colocados pelo embate da
estrutura social com a diacronia, constituindo-se como portador de uma certa gramática
que possibilita a instauração de veículos de comunicação entre os diferentes grupos kachin
e que modela determinadas formas de ação social.
A solidariedade instaurada pelo ritual deve ser, segundo Leach, analisada no
interior do mesmo e não postulada como regra válida para vida social de modo geral. Há
que se pensar o mundo do ritual como um mundo destacado, um mundo que se debruça,
porém sem se espelhar, na experiência da sociedade. Se é possível referir-se à linguagem
ritual kachin, não se dá o mesmo em relação à sua sociedade, uma vez que esta só existe
como unidade quando do momento ritual. É apenas por meio das considerações da
instância e da linguagem em questão que se pode admitir uma unidade kachin, ainda que
possua um equilíbrio precário. O ritual apresenta, portanto, a versão como se da sociedade,
promovendo o embate entre a representação das relações sociais e as relações
empiricamente dadas. Trata-se de uma versão ideal da estrutura social, modelo do modo de
como as pessoas supõem a organização de sua sociedade, mas não necessariamente uma
meta que pretendem alcançar; no mais, um ponto de vista sobre o mundo no qual se vive.
A identificação do ritual a dimensões pragmáticas das representações sociais se
encontra presente de maneira interessante na obra de Stanley Tambiah (1986) que,
engajado na seleção de problemas menos privilegiados pelos estruturalistas—tal o fato de
que o ritual faz e não apenas confabula—, volta a insistir na propriedade comunicativa do
ritual, definindo-o como sistema culturalmente construído de comunicação simbólica45—
um veículo de que se estabelece entre pessoas ou entidades diversas em situações de status
marcadas. O ritual consiste no estabelecimento de canais para comunicar concepções e não

45
“O ritual é um sistema culturalmente construído de comunicação simbólica. Ele é constituído de seqüências
padronizadas e ordenadas de palavras e atos, freqüentemente expressos em meios múltiplos, cujo contento e
arranjo são caracterizados em graus variados de formalidade (convencionalidade), esteriotipia (rigidez),
condensação (fusão) e redundância (repetição)” (Tambiah 1986:129).

72
sentimentos, para tanto, está submetido a um processo de formalização, de conformação a
um comportamento convencional orientado por regras.46
Há dois pontos na obra de Tambiah que merecem ser examinados no que diz
respeito a uma teoria do ritual: a idéia de que um estudo deve levar em conta o contexto
em que a manifestação está inserida e o seu caráter performativo. O autor separa, para fins
de análise, duas dimensões: a semântica, submetida a regras gramaticais, e a pragmática,
aquisição de sentidos diversos tendo em vista os contextos singulares aos quais se encontra
submetido. A sugestão de Tambiah quanto à compreensão dos rituais procura conciliar a
análise estrutural, que pensa o ritual como um sistema de símbolos, organizado de acordo
com uma sucessão de seqüências articuladas, com aquela que privilegia o “contexto de
situação”, ou seja, que se pergunta pelo manejo desses símbolos, em quais circunstâncias
são empregados e que conseqüências podem produzir para a sociedade. O ritual deve ser,
pois, abordado como instância de construção de sentido e não como mero reflexo de uma
estrutura social dada, encontra-se fundado sob a necessidade de certa forma imposta pelo
pensamento de dar ordem ao vivido, e esses atos de doação devem ser compreendidos
como transformadores. Semanticamente, as diversas manifestações rituais sul-americanas
podem ser aproximadas por apresentarem recorrência a certas armaçãos conceituais
(características paradigmáticas) e esquemas de montagem (arranjos sintagmáticos). No que
se refere à dimensão pragmática, há que se perceber a quem está endereçada a mensagem
do ritual; ou seja, há que se tomar as situações em sua particularidade. Noutras palavras, o
ritual se organiza segundo um “contexto de situação”, relaciona-se com outras atividades e
é praticado em circunstâncias específicas.47

46
“Se os eventos rituais são atos performativos (em um sentido muito mais forte do que atos discursivos
ordinários, que também fazem coisas com palavras), então as conexões entre cada ato e cada expressão do
ritual, a lógica das regras de seqüências obrigatórias dos atos por si, não podem ser plenamente
compreendidas senão considerarmos que elas são uma roupagem das ações sociais; e essas ações sociais não
podem, por seu turno, ser compreendidas exceto em relação aos pressupostos cosmológicos e às normas
interacionais sociais dos atores. Mais uma vez, a forma e o conteúdo do ritual estão em fusão necessária, e o
problema aqui é apontar um sistema conceitual que vê a mensagem como ao mesmo tempo internamente
padronizada e ela mesma uma parte de um universo padronizado – a cultura ou alguma parte dela” (idem:
ibidem).
47
Tambiah (op. cit.) atenta dessa forma para os diversos “usos” do sistema ritual, formulando a pergunta de
como um conjunto de categorias de pensamento pode ser posto em ação. Sua sugestão é que, diferentemente
de sistemas concebidos como a mitologia, o trabalho ritual está engajado em uma transformação —no sentido
de uma ação sobre—da realidade. Trata -se de um pensamento que se torna ação e de uma ação que implica
uma transformação do real. Assim, aproxima-se de algo como o modelo sacrificial atentado por Lévi-Strauss,
em que se opera próximo ao domínio da metonímia, ou seja, aquilo que serve de representação mantém com
a coisa representada uma relação de contigüidade. Tambiah recupera, via Malinowski, o papel das preces ou

73
A celebração da alteridade

Os rituais coletivos na Amazônia indígena devem ser compreendidos, em linhas gerais,


como um modo de comunicação e negociação entre os homens e entre esses e os diversos
seres que povoam o cosmos. Eles atualizam ideais sobre o lugar dos homens no mundo,
criando canais e restabelecendo o contato entre esferas distanciadas—convivas e
estrangeiros, humanos e não-humanos—num tempo imemorial. A percepção desse “estar-
no-mundo” é enfatizada à medida que não se poupam esforços para refazer vínculos com
uma ordem mais ampla, que implica, todavia, uma situação de perigo iminente, a reversão
a um estado de desordem e caos. Os rituais coletivos lidam, assim, com questões
cosmológicas cruciais, trazendo à cena problemas metafísicos fundantes, como o lugar da
alteridade na constituição da vida social. Essas questões cosmológicas estão fortemente
imbricadas, tal o que pretendo evidenciar, com questões sociológicas; pois se é da
alteridade que provém todo o sentido, é com ela que se deverá compor o mundo social.
Desse modo, a cosmologia traduz-se na sociologia e vice-versa; e o ritual se presta, diante
desse trabalho, como uma dobradura reveladora.
É possível tratar a vida ritual das sociedades das terras baixas sul-americanas como
variação sobre um tema comum se prestarmos atenção ao debate lançado por Joanna
Overing (1983) a respeito das “estruturas elementares de reciprocidade”. A autora vai além
das sínteses regionais de David Maybury-Lewis (1979) e Peter Rivière (1984) ao propor um
modelo capaz de integrar o Brasil Central, as Guianas e o Noroeste Amazônico. Para ela, o
que unifica essas três paisagens etnográficas—e de maneira mais ampla, as terras baixas
sul-americanas—é a ênfase na alteridade em detrimento da valorização da identidade. De
modo bastante amplo, Overing faz referência a filosofias nativas, aparatos conceituais que
permitem pensar o mundo a partir do postulado da necessidade da diferença como
condição de existência de qualquer tipo de vida social. Tais sociedades teriam escolhido a
diferença como valor primordial, e nisso se distinguiriam do Ocidente, onde a

encantamentos (spells) nos rituais trobriandeses, atentando para a crença em um mecanismo de transferência
verbal, ou seja, na propriedade que essas preces têm de transferir para a realidade atributos cosmológicos. A
linguagem seria, nesse sentido, usada metonimicamente como elemento transformador. Ela não serve apenas
como expressão, antes provoca certas alterações, evoca entidades, coloca em comunicação partes separadas.

74
reciprocidade parece se manifestar de maneira pouco elementar, sempre escamoteada pela
noção hegemônica de identidade.48
Dentro desse quadro por assim dizer generalizado de eleição da diferença como valor
primeiro e necessário no que tange à constituição da vida social, a autora explicita as
nuanças de cada paisagem etnográfica, atentando para as diversas possibilidades de
interpretação e atualização de um mesmo problema cosmológico—que inclui pensamento e
ação—, qual seja, o problema da “gestão das relações exteriores" (Menget, 1985).
Parafraseando as conclusões da autora, esses modelos—sempre simplificações, vale
lembrar—são os seguintes:

? Brasil Central (composto por grupos das famílias lingüísticas Jê e Bororo): A


aldeia circular—marcada pela oposição entre pares metades (cujo valor é menos
matrimonial que ritual), e também entre centro e periferia—atua como
microcosmos dessas sociedades, o que significa que ela deva servir de espaço para
a entronização de todas as figuras da alteridade. O “Outro” em questão habita,
portanto, os mesmos domínios sociais e faz parte da convivência cotidiana,
ocupando lugares demarcados, como se pode notar com a observação da própria
planta da aldeia.
? Noroeste Amazônico (composto por grupos das famílias lingüísticas Tukano,
Aruak e Maku): Aqui o microcosmos não é mais uma única aldeia circular, mas a
casa comunal ou maloca (unidade espacial que corresponde idealmente a um

48
Em um esforço de comparação, David Maybury-Lewis (1989) aponta os perigos de se cair em uma
armadilha em que a simples profusão de pares de oposição é vista como variação do dualismo. Ou bem se
define a questão do dualismo, ou bem nos deparamos com um truísmo. A solução de Overing com as suas
“estruturas elementares de reciprocidade” incorre no risco de reduzir a riqueza das cosmologias ameríndias a
um truísmo, qual seja, o princípio de reciprocidade, apontado por Lévi-Strauss (1982) como a base de toda a
vida social, e não apenas da vida social ameríndia. É importante precisar, no entanto, que o emprego da
noção de reciprocidade varia quando passamos de Lévi-Strauss a Overing. Em um como em outro, a noção de
reciprocidade implica uma estrutura elementar, um princípio mínimo para o estabelecimento de qualquer
relação social. Mas, se Lévi-Strauss atribui essa elementaridade ao inconsciente estruturante, que não
pertence a nenhuma cultura, mas a todas elas, aquela a situa no plano da teoria nativa—mais consciente, e
portanto revelador de certas escolhas. À diferença dos ameríndios, a teoria social e as topologias ocidentais
escolheram a identidade como ponto de partida, tendo na noção de “eu” uma unidade para o mundo social.
Esse ponto foi, aliás, retomado pelo próprio Lévi-Strauss em História de lince (1993a): se a diferença é a base
da vida social, esse fato nem sempre é tomado de modo explícito pelo pensamento das diversas culturas. Ora,
se algumas culturas escolheram exaltar o valor da diferença, acentuando o caráter improvável da
identidade—tal o que se pode colher nos mitos ameríndios—; outras preferiram minimizar este valor,
escamoteando-o por trás de fórmulas identitárias. Voltarei a essa discussão algo metafísica no Epílogo.

75
grupo de descendência agnática) e a sua posição num sistema maior cimentado
pela prática de exogamia. No alto Uaupés (afluente do Negro), onde se encontra a
maior parte da população de língua tukano, este sistema é pensado a partir do
mito da Sucuri ancestral, cujo corpo fragmentou-se e se espalhou ao longo do rio.
O “Outro” em questão deve ser buscado fora dos domínios da maloca, e isso
ocorre pela prática de exogamia. O casamento preferencial dá-se não apenas com
mulheres de outras malocas (trata-se aqui de sociedades que praticam a residência
virilocal, o que as difere da maioria das sociedades amazônicas), mas também com
mulheres pertencentes a um grupo lingüístico diverso. Nesse sentido, a diferença
está dada ao mesmo tempo no interior da maloca—na figura das mulheres
“forasteiras”—e no exterior dela, tal o sistema regional multilingüístico, que se
estende pelo curso dos rios.
? Guianas (composto sobretudo por grupos da família lingüística Caribe, mas
também por outros grupos, sáliva, tupi-guarani, aruak e yanomami): Aqui, o
“Outro” em questão deve estar posto fora do convívio social, por sua vez pensado
sob a égide da endogamia do grupo local, unidade espacial que corresponde
idealmente a uma parentela cognática. O lugar da alteridade, mantida apartada
das esferas de convívio, é então relegado a um plano cosmológico que remonta aos
conflitos primordiais entre afins, como relatados nos mitos. Nesse sentido, o
caráter regional ou supralocal seria inibido por uma propulsão de viver entre
semelhantes, em uma sociedade que desconhece diferenciações internas—como
metades, clãs e linhagens—e que projeta no exterior uma profusão de figuras de
alteridade dotadas de imenso perigo, pensadas sobretudo sob a estética do
canibalismo e que devem ser domesticadas.

Apresentam-se, assim, três diferentes escolhas, três diferentes visões de mundo, que
situam a alteridade em patamares distintos. O que desejo demonstrar a seguir é como essas
formas de gestão ou manejo da diferença refletem-se nos diversos complexos rituais, de
modo a desenvolver a idéia de que estes não só abrigam e expõem, mas também elaboram,
ao seu modo, questões caras à vida em sociedade. No ritual, a tensão entre identidade e
alteridade, que já se mostrou como central nas filosofias sociais dessas sociedades, se torna
ainda mais exacerbada e a solução que se mostra como a mais recorrente para tanto não

76
reside em um mero congraçamento dos contrários, mas antes na ritualização—digamos
assim, um ato de tornar visível49—dessas oposições, o que permite a construção da vida
social e dos atores (pessoas) que a compõem.
De modo geral, tanto Brasil Central como Noroeste Amazônico apresentam algo
como uma cristalização: a sociologia passa a exprimir as tensões contidas na cosmologia
por meio de um idioma propriamente espacial—ou seja, ali, as diferenças devem ser
inscritas, e de maneira bastante explícita, no espaço. As regras de casamento entre as
sociedades rio-negrinas são a mais clara expressão de uma reciprocidade que tem na
diferença, embora não absoluta, uma condição necessária. Casar fora é um dever, o cônjuge
deve ser buscado fora do próprio grupo lingüístico, o que impõe uma experiência de
estranhamento trazida para o seio da convivência cotidiana. Nessa dinâmica que opõe
identidade—lida pelo idioma da descendência—e alteridade—lida pelo idioma da
afinidade—, o espaço serve de suporte para a elaboração cosmológica. De um lado, a
maloca, modelo reduzido do cosmos e local de produção da descendência; de outro, o mito
da Sucuri ancestral que fornece a explicação para a profusão das diferenças que habitam
cada ponto do rio e que, juntas, compõem um “sistema regional aberto”, marcado pelo
casamento e pela troca comercial e ritual (C. Hugh-Jones 1979).
Os Jê e os Bororo, de sua parte, não precisam buscar cônjuges fora dos limites de
suas aldeias, uma vez que vivenciam, desde sempre, o estranhamento e a diferença social
no interior delas, que podem ser visualizadas como unidades sociais circunscritas no
espaço. Como generaliza Maybury-Lewis: “Assim, as aldeias dos indígenas do Brasil
Central são microcosmos do universo, e os rituais realizados por seus habitantes procuram
manter suas sociedades em harmonia com o esquema cósmico de coisas” (1989:11). O autor
parece carregar as tintas no problema da harmonia e no equilíbrio—interessa aqui, por
ora, não este ponto, mas simplesmente o fato de o ritual ameríndio prestar-se como
instância para a visibilidade dos pares de oposição, que devem ser extraídos do cosmos
para constituir o socius. Como já posto no capítulo anterior, menos que uma questão de
49
Tomo emprestada a idéia de “tornar visível” da análise que Michael Houseman e Carlo Severi (1994)
realizaram a respeito do Naven, ritual iatmul (Nova Guiné) consagrado pela etnografia de Gregory Bateson
nos anos 1930. Houseman e Severi indicam que a tradução mais apropriada para francês do termo naven é
“donner à voir” (literalmente “dar a ver”, “tornar visível”), e a partir dessa concepção nativa eles extraem
uma sólida teoria do ritual que, dado os limites deste trabalho, não poderá ser esmiuçada nem discutida aqui.
De todo modo, a idéia de que o ritual opera por tornar visíveis relações que permanecem invisíveis (a
despeito do fato de que isso implica ou não um mecanismo cognitivo universal) parece-me bastante
apropriada e deverá ser empregada aqui de forma um tanto diversa da proposta dos autores.

77
coesão social, o ritual parece atentar a dimensões existenciais, o que remete à construção
da pessoa e da vida social.
Para Maybury-Lewis, os rituais jê procuram evidenciar o equilíbrio entre os
opostos, exigência do pensamento e das instituições dualistas. Tal o que ocorre de modo
exemplar nas famosas corridas de toras, praticada por diferentes grupos. Esses eventos,
situados a meio caminho entre o rito e o jogo, ocorrem mais ou menos do seguinte modo:
um tronco de palmeira de dois metros é cortado com alguma distância da aldeia; um
membro de cada metade corre em direção à aldeia com a tora em seus ombros, e quando se
cansa, apóia-se nos ombros de seu colega de metade; por fim, deposita-o no local de
encontro dos homens maduros no centro da aldeia. Da mesma forma que não pode haver
dissimetria e hierarquia entre as metades—no caso em questão, “metades esportivas”, para
os Xerente, ou “metades de idade”, para os Xavante—, não poderá haver vencedor na
corrida de toras e, com isso, o equilíbrio entre as partes, suposto por Maybury-Lewis, será
confirmado.50
A passagem do Brasil Central para as sociedades amazônicas sugere, em princípio,
um distanciamento em relação à imagem de uma organização fortemente espacializada e
cristalizada. Em segundo lugar, a própria noção de sociedade em sua acepção
antropológica corrente se vê ameaçada quando dados etnográficos revelam cenários
volúveis, fragmentados e cambiantes. A morfologia organizada muitas vezes dá lugar à
impressão de fluidez e amorfismo, surpreendida por uma cosmologia que se desencontra
com ideais vividos cotidianamente. A idéia de que unidades sociais se desmancham à
medida que se tenta capturá-las parece permear a etnografia dos povos amazônicos,
sobretudo daqueles que habitam a região das Guianas, o que exige novos instrumentos de
análise capazes de dar conta das nuanças de um universo transformacional caracterizado
pela mobilidade constante de suas fronteiras. Há que se encontrar, para essa região, novas
lentes que possibilitem verificar positividade na vida social, uma vez que elas foram
tratadas pelas suas negatividades: ausência de grupos corporados, ausência de
descendência, sistema ritual pouco desenvolvido, casamentos que tangenciam o incesto
etc.

50
O problema do dualismo jê e bororo como simetria e harmonia entre opostos é rebatido por Terence Turner
(1979) e Lévi-Strauss (1993b). Para uma revisão do debate entre este e Maybury-Lewis, que resulta numa
reflexão sobre o dualismo e sobre o valor da diferença entre os ameríndios, ver Sztutman (2001 e 2002). Para
uma discussão da corrida de toras como atualizador do dualismo e como ritual entre os Jê, ver Vianna (2002).

78
Overing (op. cit.) alega que as sociedades guianenses idealizam o estado de
sociedade como um espaço protegido das diferenças. O cosmos mais amplo é pensado como
povoado por seres perigosos, destacados pela sua posição de alteridade máxima, ao passo
que a sociedade emerge como ambiente seguro, em que afins co-residentes (ou seja, afins
efetivos) são constantemente convertidos, por meio da terminologia de parentesco, em
consangüíneos, ou seja, são transformados em semelhantes. Segundo Overing, nas
Guianas, vive-se idealmente em um grupo local composto de cognatas—geralmente, uma
casa comunal ou assentamento pequeno, composto por três ou quatro casas—, em que os
laços em questão dizem respeito à aliança. Diferente da aldeia no Brasil Central, o grupo
local guianense não é, ao menos idealmente, cortado por diferenciações internas, sendo
todos pensados sob o signo da semelhança. Diferente do Noroeste Amazônico, as
sociedades guianenses não conferem valor estimado à descendência, preferem casamentos
com parentes próximos e praticam a residência uxorilocal. Ali, os rituais coletivos
atuariam como um fator de perturbação da “ordem”, uma vez que, ao engendrar o contato
com esferas cósmicas diversas, acabam por promover uma espécie de comunicação
extralocal. Noutras palavras, tudo se passa como se, ao se abrirem para o cosmos perigoso,
as sociedades guianenses se abrissem também para a humanidade perigosa, colocando em
xeque o ideal de convívio cotidiano. Instância de provocação, a vida ritual das sociedades
das Guianas serve de contraponto ao isolamento do cotidiano, tornando visíveis oposições
fundantes, constituindo-se como lugar por excelência do manejo da alteridade e das forças
culturais que provêm dela. Como em outros lugares, não se trata de buscar a harmonia
entre os pólos, mas de evidenciar a vida social como produzida e atravessada por uma
tensão constante.
As sociedades do Brasil Central têm nos rituais uma oportunidade para marcar (por
vezes de forma agressiva) a oposição entre metades, grupos cerimoniais e facções, já
fortemente instituída na morfologia social. O ritual faz interagir as partes ao tornar mais e
mais evidentes suas discrepâncias, pensadas como decididamente necessárias51. A
pluralidade de pares de metades entre os Krahó, por exemplo, diz respeito à pluralidade de
modalidades rituais, cada qual enfatizando um aspecto diverso do princípio de divisão.

51
Os Xavante, por exemplo, conhecem um rito de iniciação masculina—o o’io—, no qual são postas em
relevo as metades cerimoniais wadehöri’wa e umretede. Os meninos pintam-se de urucum e portam bordunas,
insígnias de sua nova posição social, a de bravos adultos. No ínterim do ritual, enquanto os meninos
cumprem o seu jejum, as metades são vêm à cena, acentuando a atmosfera de tensão.

79
Nesse sentido, tudo se passa como se as metades—e a própria morfologia—existissem para
o ritual, e não o contrário; pois que o ritual não representa a totalidade, antes cabe a ele
fundá-la. “Cada par de metades deixa mais clara sua associação com certas oposições e mais
obscuras sua correspondência com outras” (Melatti, 1978:354). Entre os Krahó, acrescenta
Melatti, há metades que existem em função de um único rito, manifestando -se raramente.52
As sociedades rio -negrinas de língua tukano oriental também ganham nos rituais
uma forma total, que desconhecem na sua vida diária. A maloca torna-se cenário de uma
trama cósmica, em que vivos e mortos, consangüíneos e afins, velhos e jovens se reúnem
para celebrar e ajustar suas diferenças. A hierarquia entre os sibs e entre os indivíduos de
uma mesma maloca, de pouca importância para a vida diária, é feita evidente. Se entre os
Timbira o ritual produz o sistema horizontal de metades, entre os povos de língua tukano
o ritual produz o sistema hierárquico constituído por uma série de papéis especializados:
chefes, cantadores/dançadores, guerreiros, xamãs e servos (C. Hugh-Jones, 1979).53 É como
se em rituais, como o jurupari ou he wi , cerimônias de iniciação que ocorrem com pouca
freqüência (um ou dois a cada três anos), tudo recebesse um devido lugar, atualizando o
mito da Sucuri ancestral. Como demonstra Stephen Hugh-Jones (1979), baseado em sua
etnografia entre os Barasana (alto Uaupés, Colômbia), nesses cultos secretos masculinos,
que têm como protagonistas os instrumentos musicais sagrados—as flautas e trompetes he,

52
Entre os Krahó, o par Wakmëye/Katamye marca a oposição entre pátio e periferia, e o pertencimento a esses
ocorre de acordo com a nominação, ao passo que o par Khöikateye/Harãkateye designa as metades de idade.
Esses são apenas alguns exemplos de uma série vasta de oposição entre metades.
53
O elogio de valores hierárquicos, presente nos rituais rio-negrinos, revela uma cosmologia e uma teoria
social que em muito diverge daquela apontada por Maybury-Lewis para os grupos jê e bororo. A hierarquia,
e não a harmonia, pode ser pensada nessa região como modelo de sociabilidade e como valor ideológico. (É
nesse sentido que Christine Hugh-Jones [1979] tende a pensar a hierarquia tukano menos como uma
hierarquia de fato, mas como um sistema ideológico sustentado pelo e para o ritual). A cosmogonia tukano
abriga a explicação para a existência de tal código hierárquico: conta o mito que a Sucuri ancestral, ao subir
o rio, teve seu corpo fragmentado em cinco partes, dando origem ao conjunto de sibs, irmãos ancestrais, cuja
ordem de nascimento corresponde a uma posição na hierarquia. Para os povos de língua tukano, a hierarquia
é um distintivo de humanidade plena—o fato de descender da anaconda ancestral—, o que os permite
subjugar as populações vizinhas maku, que não conheceriam tal forma de organização instaurada para
permitir a comunicação entre os homens. Dessa forma, as redes de sociabilidade, trocas rituais e
matrimoniais, permanecem restritas ao conjunto de populações baseadas na hierarquia. As demais
populações circunvizinhas são excluídas do circuito de trocas rituais e intercasamentos prescritos, relegadas
a uma posição de inferioridade (C. Hugh-Jones 1979, Chernella 1981). Tal modelo emerge sobretudo nos
momentos rituais e, de forma bastante particular, no jurupari ou he wi, que, como o o’io xavante, outro rito
de iniciação, consiste na exaltação da masculinidade. No caso rio-negrino, não se trata de postular a potência
masculina como combinação e equilíbrio de princípios agressivos e sexuais (Maybury-Lewis 1984), mas antes
como entrada em um mundo fundado pela hierarquia. Como sugere Stephen Hugh-Jones, a masculinidade
barasana pressupõe a passagem de um estado de indiferenciação, próprio às mulheres e às crianças, a um
estado de especialização, que define o mundo dos homens.

80
pertencentes aos ancestrais e, de certo modo, encarnações dos próprios ancestrais—, é
enfatizado o princípio de que a ordem humana deve estar subordinada à ordem cósmica.
Cabe à ação ritual combater o perigo da sociedade distanciar-se desse domínio mais amplo
do cosmos—sua fonte de energia—e mantê-los em contato, estabelecendo entre eles um
canal de comunicação.54
Iniciandos, adultos e xamãs tomam parte do jurupari, cada qual assumindo uma
posição diferenciada (as mulheres e crianças são proibidas de manter contato com os
instrumentos). Tudo se passa na maloca, que constitui o microcosmos onde ocorre o
embate entre o mundo dos vivos e o mundo dos ancestrais. O espaço da casa serve como
suporte de metáforas e, assim, como modelo reduzido para pensar o lugar das coisas no
universo. O centro, espaço masculino, abriga a porção sagrada onde se desenrolam as
danças, acompanhadas da ingestão de “anti-alimentos”, como a coca e o tabaco, ao passo
que a periferia, espaço feminino, limita-se às relações corriqueiras. Aqui, a oposição
masculino/ feminino é fundante, já que corresponde a uma oposição entre pessoas de um
mesmo grupo de descendência (os rio-negrinos da família tukano são patrilineares e
virilocais) e forasteiros, representados pelas mulheres que falam outra língua e vêm do
exterior. Os iniciandos são colocados ao lado das mulheres, contrapondo-se aos homens:
ainda não ocupam um posto na hierarquia. Dessa forma, a distinção entre homens e
mulheres carrega a conotação de uma dualidade entre “nós” e “eles”, entre o “nosso grupo
de descendência” e os “outros”. Trata-se, assim, de um ritual de produção da
descendência, em que os afins—no caso, as mulheres—servem de “coro”, representando a
complementaridade necessária.55

54
A idéia do ritual como captação de “energia cósmica” pode ser encontrada entre os Xavante, na cerimônia
wai’a, descrita por Maybury-Lewis (1979). Trata-se, segundo o au tor, de um “complexo cerimonial durante
o qual os Xavante invocam certos seres ou espíritos visando à aquisição de poder. De Tsimihöpari [herói
mítico, caçador virtuoso e feroz] adquirem o poder criativo e destruidor, dos pi’u [espíritos da floresta], a
belicosidade. A combinação desses poderes é, de acordo com o pensamento xavante, a essência da
masculinidade. É por isso que o exercício dessa qualidade pressupõe e implica a participação no wai’a”
(1989:337). Os mais velhos devem dançar “contra” os mais novos, como que em uma demonstração de seu
poder agressivo e superior, sempre atrelado a um princípio de oposição que opera por classes de idade. Nota-
se a importante segregação, no ritual, entre homens e mulheres—como no jurupari, as últimas não podem
assistir à cerimônia sob o risco de serem violentadas. Em suma, o wai’a é marcado pelo enfrentamento entre
os dois principais grupos políticos—faccionais—xavante: waniwimhã (“os do meu lado”) versus watsere’wa
(“os do outro lado”). Para os Xavante, sua aldeia é idealmente dividida entre esses dois grupos: o princípio
de oposição enfatizado no mito invade o cotidiano. No wai’a reproduz-se o clima das disputas entre as
facções.
55
A correlação entre as oposições masculino/ feminino, centro/ periferia, sagrado/ profano também aparece
nos rituais jê (ver Melatti, 1978). Não obstante, entre grupos jê, como os Timbira, a descendência não parece

81
S. Hugh-Jones (1979) critica a interpretação de Irving Goldman (que estudou os
Cubeo) do jurupari como “culto dos ancestrais” e a de Gerardo Reichel-Dolmatoff (que
estudou os Desana) de que o manejo dos instrumentos representa a promulgação de leis de
exogamia. Para o autor, é preciso buscar o sentido dessas cerimônias na própria concepção
nativa de he, instrumentos pensados não apenas como capazes de suscitar histórias dos
antigos, mas sobretudo como estados experimentados em vários momentos da vida. O uso
de alucinógenos, como a ayahuasca (ou yagé), cujo acesso é exclusivo aos iniciados, é, por
exemplo, uma das vias para se atingir esses estados, que me permito chamar aqui de
“alterados”. Tais estados são obtidos, em diferentes ocasiões, pelos diversos tipos de
xamãs, muitos deles capazes de fazer com que sua alma abandone o corpo para se lançar
em viagens a diversos patamares do cosmos. Além do xamanismo, as danças e os cantos são
veículos eficazes para atingir o estado he.
Em linhas gerais, o he wi marca a passagem de um estado de humanidade “menor” a
um estado “pleno”, um estado em que a humanidade supera a si mesma, que não é senão o
estado he. Essa transição é concebida nos termos da metáfora espacial: os instrumentos
sagrados existem fora da maloca, pertencendo ao mundo da sobrenatureza, externo ao
cotidiano da sociedade humana e, no he wi, devem ser trazidos para dentro de maneira a
mudar o status dos iniciandos, de mortos para vivos e de espíritos para humanos. Assim
como a Sucuri ancestral que sobe o rio, os instrumentos devem subir à maloca, perfazendo
o movimento do nascimento (na roça) à iniciação (interior da maloca). “O que é separado
no tempo é visto como separado no espaço; as transições no espaço efetuam as transições
no tempo” (S. Hugh-Jones, idem: 248). Com essa afirmação, S. Hugh-Jones atenta à
indissociabilidade, entre os povos tukano, dos esquemas temporais e espaciais,
demonstrando como cortes no tempo são traduzidos em cortes no espaço; ou seja, como as
descontinuidades produzidas no mito infletem na produção de descontinuidades no
espaço. Assim, a relação entre ancestrais e vivos encontra eco em uma cosmografia que tem
na Sucuri ancestral o grande protagonista. A oposição mais velhos e mais novos, que move
o ritual de iniciação (grades de idade como substrato da hierarquia), é transposta em um
esquema espacial que permite transformar a maloca em um microcosmos integrado.

ser o foco dos rituais coletivos. Diferente dos grupos rio-negrinos, os grupos jê praticam a residência
uxorilocal. Quanto à descendência, apenas os Xavante parecem ter desenvolvido um sistema patrilinear,
contudo invadido pela regra de residência uxorilocal, o que produz um assim chamado “sistema
desarmônico”.

82
Por meio do he wi, o cosmos é ordenado—a comunidade-maloca reproduz a
estrutura do universo em miniatura—tendo em vista uma ordem inicial indiferenciada,
podendo então englobar a sociedade humana. O he wi atenta ao perigo sofrido pela
sociedade humana ao se separar de sua fonte geradora original. Assim, a sucessão de
gerações é pensada segundo a metáfora das folhas que se empilham no chão da floresta (S.
Hugh-Jones 1985), expressando a consciência de que a descendência implica profundidade
de tempo e separação. Ao achatar as pilhas de geração, o he wi submete os iniciandos de
cada uma em contato direto com os primeiros ancestrais, produzindo uma sociedade de
apenas duas gerações. Veicula-se aí uma ideologia de “reciclagem de almas”, que opera
pelo restabelecimento, via ritual, da ordem mítica e da recriação da sociedade. O tema dos
ancestrais trazidos de volta à vida por meio dos instrumentos sagrados opera pela metáfora
do “tempo repetitivo e reversível”.
O jurupari ou he wi pode melhor ser compreendido se analisado junto a outras
manifestações rituais que parecem ter nele um modelo recorrente. Tal é o caso da
cerimônia da “casa das frutas”, que consiste numa versão mais fragmentada do primeiro,
realizando-se em apenas um dia e uma noite, e que serve como espécie de prelúdio à
iniciação propriamente dita. Como aponta S. Hugh-Jones (2003), se o he wi consiste em um
evento anual mais sacralizado e elaborado, a “casa das frutas” deve ser realizada várias
vezes ao ano para marcar a maturação de diferentes espécies de frutos de árvores.56 Ora, a
oposição decisiva no Uaupés é, segundo o autor, aquela que se dá entre os ritos de
descendência—o jurupari e a “casa das frutas”—e os ritos de aliança, os dabukuris, que
implicam a dádiva de alimentos entre membros de grupos locais distintos. “Um
corresponde ao conceito antropológico de ‘descendência’, enfatiza a hierarquia e um etos
masculino geral, sendo mais saliente no contexto dos ritos de iniciação masculina. A outra
instância é mais igualitária, associando-se a um etos mais feminino e enfatizando noções de
parentesco e consangüinidade. Embora especialmente pertinente à vida cotidiana, esta

56
Segundo S. Hugh-Jones, as festas são denominadas, no rio Negro, de casas, significando ao mesmo tempo
um evento ritual, um grupo de pessoas e um mundo simbólico. Quanto à “casa das frutas”, o autor oferece a
seguinte descrição: “Os homens de uma comunidade presenteiam os de uma outra—geralmente os seus
irmãos—com grandes quantidades de frutos silvestres, trazendo-os para o interior da casa acompanhados dos
sons berrantes dos trompetes enquanto as mulheres e crianças permanecem atrás de telas nos fundos. Ao
anoitecer, as telas são removidas e as mulheres voltam a se juntar aos homens. Eles dançam a noite inteira até
o amanhecer e então distribuem os frutos entre os presentes” (2003:3-4).

83
também ganha expressão ritual durante os festivais de troca intercomunitários” (S. Hugh-
Jones 1993:97).
Nos dabukuris, os grupos locais aliados trazem peixe ou carne moqueada e são
recebidos pelo grupo local anfitrião com uma boa dose de caxiri, bebida fermentada de
mandioca. Como em outras partes da Amazônia, a oposição entre convidados e anfitriões é
correlacionada àquela entre homens e mulheres, visto que os primeiros encarregam-se do
provimento de caça e pesca—atividade masculina por excelência —, ao passo que os
segundos devem oferecer produtos derivados da mandioca, tal o caxiri e o beiju, que
provêm do trabalho feminino. Se o he wi desenrola-se sob o idioma da descendência, nele
participam todos os homens do sib, afirmando a sua autonomia em relação ao exterior; o
dabukuri efetua-se sob o signo da afinidade, selando dádivas e laços matrimoniais entre as
diferentes casas. Se o primeiro é orientado pelo ancestral do grupo de modo vertical e não
apresenta marcas de comensalidade—não entra no jurupari caxiri, comida ou fogo;
tampouco há refeição conjunta para o seu encerramento—, o segundo perfaz um
movimento de comunicação horizontal, marcando a necessidade de estabelecimento de
solidariedade entre diferentes grupos locais, o que se manifesta por meio do oferecimento
mútuo de alimentos. Por fim, se no jurupari os iniciandos devem beber ayahuasca (yagé)
para se aproximarem dos ancestrais e se destacarem do mundo feminino; no dabukuri todos
devem beber caxiri, tornando flexíveis as fronteiras que separam homens e mulheres,
convidados e anfitriões.
Para Aloísio Cabalzar (2000), rituais como o dabukuri evidenciam, entre os Tukano,
uma forma de organização social que passa pela afinidade. Se o grupo local tukano consiste
num grupo de descendência e coincide idealmente com o espaço da maloca, haveria algo
como um “nexo regional”, que abrange, ainda que de maneira flexível, um conjunto de
grupos locais que travam entre si relações políticas, rituais e de trabalho. Noutras palavras,
a organização social tukano estaria baseada por dois movimentos complementares: de um
lado, vertical, dado pela descendência e sustentado pelos rituais de jurupari; de outro,
horizontal, dado pela rede de alianças e potencializado pelos rituais de dabukuri. Ora, esses
movimentos supõem duas formas distintas de comunicação: uma, entre homens e
ancestrais—comunicação que torna possível a constituição da pessoa masculina através da
produção de um estado alterado he—, outra, entre os diferentes tipos de homens, visando
o estabelecimento de matrimônios e intercâmbios diversos por meio de outro estado

84
alterado, a embriaguez do caxiri. Se, de um lado, celebra-se a continuidade dada no
tempo—os ancestrais—; de outro, celebra-se a alteridade inscrita no espaço—os habitantes
de outros grupos locais.
Se as formas verticais parecem rarear em grande parte dos rituais coletivos
amazônicos, as formas horizontais, próximas aos dabukuris rio-negrinos, proliferam nas
mais distintas paisagens etnográficas. Essa constatação permite estabelecer um paralelo
entre os “nexos regionais” rio-negrinos e aqueles que se revelam na região das Guianas,
ainda que ali a exogamia não se configure como regra e que a vida “entre si” constitua um
horizonte desejado. Em linhas gerais, as sociedades guianenses conhecem poucas
sofisticações morfológicas no que se refere aos rituais coletivos, sobretudo ritos de
passagem (iniciação, morte etc.); no entanto, são particularmente adeptas de ocasiões
festivas em que se desenrolam troca de alimentos e bebidas fermentadas, bem como bens
de diversas naturezas. Nesses momentos, a oposição marcada é entre anfitriões e
convidados, distinção mínima sobre a qual se constituem diversas modalidades de
reciprocidade. Tal opção minimalista não deve ser negligenciada mesmo se confrontada
com a especialização dos rituais jê e bororo ou rio -negrinos. Nas Guianas, não se verifica a
ocorrência de grupos cerimoniais bem definidos, tampouco de metades e classes
hierárquicas. Não há necessidade de se representar o conflito entre metades, como ocorre
entre os Krahó; tampouco de organizar os dados da descendência, como se verifica entre os
povos de língua tukano. No entanto, há algo constante em toda essa inconstância, que diz
respeito ao nexo da afinidade.
A comparação com outras paisagens etnográficas levou a etnologia a enquadrar as
sociedades guianenses em perspectivas de fluidez. À primeira vista, suas unidades sociais
possuem feição amorfa e poucas são as diferenciações marcadas no interior de suas
celebrações rituais. De fato, a gestão da alteridade não parece estar marcada no espaço, ao
menos não do modo tão acirrado encontrado entre os Jê ou mesmo no rio Negro, o que
levou etnografias de fôlego sobre a região, como a de Joanna Overing sobre os Piaroa,
povo de língua sáliva da Amazônia venezuelana (1975), a demonstrar que o lugar da
alteridade nas Guianas deve ser buscado para além dos espaços de convívio. Eu
acrescentaria, valendo-me tanto da minha breve pesquisa de campo entre os Wajãpi como
de um conjunto de etnografias recentes sobre a região, que um novo direcionamento do
olhar para as instâncias rituais pode restituir um lugar ao sol para essas sociedades no

85
âmbito da etnologia amazônica. É preciso apostar no ritual como instância positiva que
produz incessantemente pessoas, grupos e posições, e que garante a dinâmica da sociedade
no tempo e no espaço a despeito da perspectiva de fluidez e amorfismo. Um ponto de
partida para essa retomada reside na idéia de que as formas rituais nas Guianas
ultrapassam o espaço puramente local, e tematizam este fato.
Os modelos teóricos jê e bororo e rio-negrino, brevemente destacados, partem de
complexos rituais que, apesar de bastante distintos, revelam certos pontos em comum.
Tanto os rituais do Brasil Central como os do Noroeste Amazônico identificam o grupo
local—a aldeia e a maloca comunitária, respectivamente—ao cosmos em miniatura. Tudo
parece estar lá, a alteridade lhes é constitutiva e cada posição social possui um lugar
marcado. No Brasil Central, esse aspecto é exacerbado, a aldeia contém todos os outros, por
meio das suas divisões em metades cerimoniais, etárias e baseadas no nome, e da sua
oposição fundante entre centro e periferia. No modelo ritual jê e bororo, tudo se passa
como se os co-residentes de uma aldeia se bastassem, sendo as oposições constitutivas do
espaço social habitado.57 No rio Negro, esse quadro sofre algumas alterações, uma vez que
a alteridade para esses povos provém necessariamente do exterior do grupo local, um
espaço que não é, todavia, absolutamente desconhecido. Nesse sentido, os rituais
enfatizam a oposição nós/ eles, que pode ser traduzida, no caso do he wi, como entre
homens iniciados (unidos por um laço de irmandade) e mulheres e crianças não-iniciadas,
e, no caso do dabukuri, como entre membros do grupo de descendência e afins
classificatórios (que podem tornar-se afins efetivos) provenientes de outras localidades.
Diferente do Brasil Central, no rio Negro a alteridade é ao mesmo tempo situada dentro e
fora do grupo local—dentro, porque está representada pelas mulheres, por definição
forasteiras, falantes de uma língua estranha; fora, pois aponta grupos afins que podem ou
não constituir um nexo regional, marcado por laços de solidariedade, que incluem não
apenas o ritual, mas também uma espécie de liderança comum e a cooperação em trabalhos
de produção (A. Cabalzar 2000). Essa complementaridade entre espaço intensivo e espaço
extensivo é um traço fundamental da organização social e da engrenagem ritual no
Noroeste Amazônico.

57
Isso não significa que não haja forma alguma de comunicação e troca (e também agressão) entre as aldeias,
significa apenas que elas se pensam como microcosmos.

86
Em paisagens como as Guianas, esta equação—nexo ritual e inscrição espacial do
grupo local—não se verifica. Se assumirmos que uma das principais características das
celebrações coletivas das terras baixas sul-americanas é colocar em relevo as “estruturas
elementares de reciprocidade” por meio da oposição cerimonial entre grupos de pessoas
distintos, então haveríamos de reconsiderar as unidades sociais entre as populações
guianenses. Arrisco uma definição provisória, ainda me pautando nas conclusões de Bruce
Albert (1985) sobre os Yanomami (comentadas no capítulo anterior), denominando “rede
intercomunitária” (ou interlocal) aquela que pode ser inferida dos complexos rituais (e
políticos) que se manifestam entre as diferentes sociedades guianenses. Considero, baseado
em grande parte das etnografias da região, que o grupo local guianense , que deve
correspoder idealmente a uma parentela cognática, não conforma uma unidade suficiente,
como no caso das aldeias jê, ou uma unidade suficiente do ponto de vista da descendência,
como no caso das malocas rio-negrinas, à medida que não envolve a completude das
relações sociais necessárias para a realização de ocasiões rituais. Os visitantes, forasteiros
ansiados e temidos, parecem ser a condição de realização de tais cerimoniais coletivos,
indicando um movimento de construção social sempre orientado para o exterior. Nesse
sentido, o espaço reservado ao ritual não pertence ao local, mas desvela um nível
supralocal que, embora inconstante, revela-se bastante operante.
A noção de grupo local nas Guianas constitui um assunto bastante delicado, e isso
se deve ao fato de que o grupo local real nem sempre corresponde ao ideal. Ao contrário
dos grupos locais rio-negrinos, unidades baseadas na descendência, os grupos locais
guianenses foram designados por Joana Overing (1975), pautada no caso piaroa, como
unidades baseadas na aliança. Ou seja, designam unidades que não se organizam em torno
de ideais de descendência e germanidade, mas que privilegiam o nexo da afinidade, tais as
relações entre um sogro e seus genros e entre cunhados. Em suma, nas Guianas, um grupo
local ideal é, sob a acepção de Overing, uma parentela bilateral endogâmica representada
pela figura de um homem mais velho, um sogro.
Dominique Gallois (1988), acertadamente, insiste na distinção entre “aldeias”
(unidades puramente espaciais) e “parentelas localizadas”, essas últimas sendo designadas,
em wajãpi, pelo termo wanako—composto pelo morfema wan (gente) e ko (sufixo que
indica o coletivo). Noutras palavras, wanako significa uma espécie de pessoa coletiva que
se reproduz no tempo e que não pode ser reduzida a uma categoria de delimitação espacial.

87
Segundo Flora Dias Cabalzar (1997), o wanako é uma unidade de cognatas que detém uma
história de grande movimentação, que inclui a formação e dissolução de diferentes aldeias
ou grupos locais. Embora um grupo local deva idealmente coincidir com a presença de um
único wanako, isso ocorre raras vezes, visto que os grupos locais são de fato uma mistura
de gente de diversas origens. Nesse sentido, o caráter atomístico e indivisível do grupo
local não se verifica.58
O quadro guianense fica ainda mais complexo quando da observação,
especialmente nos tempos atuais, da formação de grandes aglomerados, tais aqueles
avistados entre os Waiwai de Roraima. Nesse caso, a equação grupo local/ parentela
cognática se dissolve, passando a vez para a convivência entre diferentes parentelas,
muitas delas falantes de línguas diversas. O cenário de recato que baseia as Guianas é então
assaltado por uma explosão de diferenças. Não obstante, o olhar de perto a esses
aglomerados permite compreender que eles não funcionam como grupos locais
propriamente ditos, mas sim como um conjunto de grupos locais diversos. De certo modo,
eles fazem caber num espaço reduzido o que se pode chamar de “conjunto
intercomunitário” ou “nexo regional”—tudo se passa como se o que era difuso tivesse de
ser compactado. É assim, por exemplo, que Carlos Machado Dias Jr. (2000) faz referência
aos diferentes setores que compõem o aglomerado no rio Jatapuzinho, unidades capazes de
manter sua autonomia e realizar casamentos endogâmicos. É assim que Catherine Howard
(1993) descreve o ritual que ocorre nesses aglomerados: embora sejam todos co-residentes,
para fazer a festa e celebrar a alteridade, os moradores acabam por enveredar por uma
espécie de farsa, em que, na ausência de visitantes (pawana), estes são encenados, repondo
assim a oposição entre convivas e forasteiros que baseava os encontros festivos de outrora.

58
Em um esforço comparativo, Denise Grupioni (2005) distingue “grupo local” de “grupo temporal”. O
primeiro diz respeito às “aldeias”, descritas por Gallois; ao passo que o segundo descreve linhas que possuem
profundidade no tempo, e podem revelar inflexões de descendência—tal seria o caso do Tiriyó do Suriname
e do Norte do Pará, que conhecem grupos designados como itupu ou “continuações”, como glosa a autora,
que revelam se não patrilinhagens, ao menos “patrilinhas” dotadas de certo valor morfológico e cognitivo.
De todo modo, cognáticos ou unilineares, despontam, na região das Guianas, grupos com profundidade
temporal que se desprendem do âmbito espacial. O interessante da análise de Grupioni reside no fato de que
os grupos temporais apresentam-se como unidades para a troca, não necessariamente matrimonial e, com
isso, a paisagem guianense comumente descrita como avessa à diferença pode ser repensada, desta vez como
palco de trocas intermináveis. Nesse sentido, a própria noção de grupo local, idealmente mônada fechada,
sofre reforma: ora ele abriga diferenças internas, ora se abre para uma dimensão supralocal, afirmando-se em
comunicação com outros grupos locais.

88
Para evitar confusões, pretendo distinguir, no texto, aglomerado de grupo local,
tomando o primeiro como um amálgama de grupos locais, e estes como unidades espaciais,
que procuram se representar como correspondentes a uma parentela cognática
endogâmica, embora se saiba que seja este um horizonte mais ideal do que real. O
aglomerado seria a versão intensiva de um padrão extensivo, qual seja, a dispersão de
grupos locais endogâmicos que, no entanto, estabelecem entre si canais de comunicação,
configurando assim um espaço propriamente supralocal. Se, diferente do rio Negro, não há
nas Guianas regras de exogamia cap azes de cimentar um nexo regional, é preciso
perguntar-se pelas outras maneiras de constituir esse nexo, e isso me parece possível, entre
outras coisas, por meio da consideração de instâncias rituais ou festivas. Do mesmo modo
que os dabukuri rio-negrinos, festivais regados a caxiri e responsáveis por uma série de
trocas, ajudam a instaurar um espaço que já não é mais localizado ou fixo, mas que
depende de incessantes transações que desenham contornos flexíveis.
É possível prosseguir com esse sobrevôo comparativo e traçar um paralelo entre as
Guianas e o alto Xingu, uma vez que em ambos os sítios é possível encontrar a imagem de
grupos locais (idealmente) endogâmicos e (política e economicamente) autônomos, que
instauram um espaço supralocal por meio de trocas cerimoniais e, sobretudo, rituais
coletivos. Não obstante, estamos diante de duas escalas absolutamente desiguais, bem
como de duas diferentes concepções sobre o sentido da regionalidade. No alto Xingu, é
possível vislumbrar o avesso da política de horror ao estrangeiro, como parece ocorrer em
alguns momentos nas Guianas. Isso porque esses povos se pensam como integrantes de um
sistema regional estabelecido desde tempos imemoriais e, por isso, as diferenças entre os
povos que ali habitam não são apenas reveladas, mas exaltadas.
O sistema ou “sociedade regional” (Heckenberger 2001) vislumbrado no alto Xingu
reúne povos de diferentes línguas—provenientes dos troncos aruak, caribe e tupi (e da
família isolada trumai)—que mantêm entre si relações de complementaridade, que não
passam, via de regra, pelo casamento, e sim por um circuito de trocas de bens e por uma
trama ritual complexa. Cada grupo local, que em alguns casos coincide com um grupo
lingüístico, produz um tipo de artefato que poderá ser trocado em encontros cerimoniais,
tal o moitará (termo kamayurá, tupi-guarani) ou ulútsi (termo yawalapíti, aruak). Segundo
Viveiros de Castro (1977), os rituais alto-xinguanos possuem geralmente uma fase
intralocal e outra interlocal; mas, de maneira geral, é possível distingui-los entre festas

89
propriamente locais e festas propriamente supralocais.59 Dentre as primeiras, estão aquelas
que recebem o nome de uma certa categoria de espíritos responsabilizados pelo
adoecimento de um homem eminente. De modo a agradecer o trabalho de cura realizado
pelos xamãs, este espírito deverá ser representado visualmente—por meio, por exemplo,
de máscaras—e deverá ser montado um grande festival, com muita dança, canto e música
instrumental.60 Dentre as festas supralocais, estão sobretudo o kwaryp (termo kamayurá),
celebração dos aristocratas mortos, e o jawari (termo também kamayurá), duelo de dardos.
Como entre os Jê, no alto Xingu mesmo as maiores celebrações não parecem contar com a
ingestão de bebidas fermentadas.
Tanto o kwaryp como o jawari não podem prescindir da presença dos convidados e,
por isso, constituem-se no espaço por excelência de comunicação entre os diversos grupos
que habitam a região do Alto Xingu e partilham certas etiquetas e códigos morais. Se o
kawaryp, que é um rito de morte, evoca, ao lado do rito de perfuração das orelhas, que é
um rito de iniciação, o universo da chefia e da aristocracia, o jawari evoca o universo da
guerra. Se o primeiro envolve muitos grupos em um grupo local anfitrião, realizando-se
como uma espécie de exaltação da solidariedade alto -xinguana, o último envolve
comumente apenas dois grupos—o anfitrião e o convidado—e remete não ao horizonte da
“paz”, mas sim àquele da hostilidade, ainda que esta deva ser dissolvida no clima de
jocosidade da festa.
Segundo Rafael Menezes Bastos (1989), entre os Kamayurá, um jawari pode
ultrapassar dez dias e é composto comumente por três fases: antecedentes, fase
“intratribal” e fase “intertribal”. Como no kwarup, o rito tem por propósito oferecer uma
homenagem a um falecido do grupo e, para tanto, deve contar com a presença dos
membros de um outro grupo. Os antecedentes consistem na seleção dos convidados e na

59
Segundo Viveiros de Castro, no Alto Xingu, o ritual preenche uma dupla necessidade: “nele, os homens
adequam-se às ações realizadas por seus ipúka, seus originadores; agem conforme o modelo; mas a diferença
entre ‘festa’ e ‘realidade’ é clara—o ritual comemora aquilo que no mito era atualidade, e hoje é apenas
imitação” (1977:121).
60
Aristóteles Barcelos Neto, que estudou com profundidade os rituais de máscaras entre os Wauja (Aruak),
afirma que estes podem realizar-se num nível interlocal, promovendo a circulação de objetos-pagamento
(colares, panelas, adornos plumários etc.) e de objetos rituais permanentes (flautas e clarinetes). O autor
enfatiza o fato de que esses rituais conferem prestígio a quem os promove—por definição, aristocratas e não
“comuns”. “O Yeju inter-aldeão é o degrau máximo de reconhecimento que um importante ‘dono’ ritual—
que no caso wauja é invariavelmente um amunaw [aristocrata], como também o é entre os Yawalapíti —pode
receber em vida. Depois disso, só o Kaumai [termo aruak para o kwaryp], mas aí ele já está morto” (2004:
295).

90
formalização do convite por meio dos pariat, mensageiros que devem partir informando
aos demais sobre a festa programada. Menezes Bastos alega que os Kamayurá costumam
convidar grupos caribe, como os Matipu ou os Kuikúro, com os quais as relações são
marcadas por uma grande ambigüidade, uma vez que estes são considerados amõnap, ou
seja, “radicalmente outros”. Já os Yawalapíti, grupo aruak, não são considerados nem
sequer como convidados, mas antes como intermediários especiais que apresentam um
perigo muito reduzido.
A fase “intertribal” inicia-se alguns dias depois da abertura, quando são entoados
diversas instâncias de cantos, tudo isso dentro de uma estrutura seqüencial rígida seguida
pelos homens da aldeia na casa das flautas. As posições dos participantes são fortemente
marcadas, o mestre de cerimônias permanece no centro, ao passo que os jovens restringem-
se à periferia. No primeiro dia, os amõnap são recebidos pelos pariat, que lhes oferecem
comida, permanecendo, nos primeiros momentos, nos acampamentos, do lado de fora da
aldeia. Em seguida, entram no pátio, imitando o falecido com gestos e sons exagerados. O
segundo dia, bastante movimentado, principia com uma seqüência de cantos61,
prosseguindo com o “jogo do yawari”, duelos de dardos que ocorrem entre membros de
grupos locais distintos. Findo o jogo, é a vez dos cantos de clausura e, em seguida, da
cerimônia de quebra do arco do falecido. Feito isso, um discurso em homenagem ao
falecido é pronunciado por um parente próximo e todos são invocados a continuar as
celebrações. Uma série de cantos antecede a queima dos objetos do falecido, momento no
qual todos devem chorar. Por fim, uma grande cantoria anuncia o final do ritual, que
culmina no oferecimento de alimentos para os convidados. Como o jawari, o kwarup é
constituído de uma fase intralocal e outra interlocal, a última culminando de modo análogo
em uma grande luta—o huka-huka—entre os membros dos diferentes grupos.
Como sustentado por Patrick Menget (1977), se pensada pelo viés das relações
cotidianas, a unidade social privilegiada no Alto Xingu seria o grupo local, mas a ambição
de autonomia que este apresenta esbarra em aspectos cerimoniais, econômicos e políticos
fundamentais que lhe impõem sérios limites. Isso nos conduz a uma imagem de
interdependência que desvela uma ordem maior: o conjunto multifacetado constituído por
diferentes grupos locais e lingüísticos aliados entre si. Se sociedade aí existe, esta deve ser

61
Para um estudo detalhado do sistema cancional e da estrutura seqüencial do yawari, ver Menezes Bastos
(1989).

91
buscada num plano regional, instituído há muitos séculos, como insiste Michael
Heckenberger (2001) em seus estudos etno-arqueológicos. Não obstante, sugere Menezes
Bastos (1994), em vez de um sistema fechado, é possível vislumbrar ali “sistemas moventes
de fronteiras incertas”, capazes de incorporar elementos vindos do exterior.
Como no alto rio Negro, o alto Xingu revela um sistema regional bastante
configurado e fortemente ancorado na partilha de preceitos éticos e na montagem de
rituais. “Comunidades morais”, indica Menget (1993). Tanto em um caso como no outro, o
ritual articula dois eixos: um mais verticalizado, produzindo diferenciações internas ao
grupo local (tal a hierarquia rio-negrina e a linha de aristocratas alto-xinguana); e outro
mais horizontal, que incita à comunicação entre grupos de origens diversas, conformando
nexos regionais de cooperação e troca. (Se o Alto Xingu configura um sistema regional
total, o mesmo não se pode dizer do rio Negro, pois apesar da vigência dos mesmos
preceitos morais, de uma mesma mitologia de origem e das mesmas regras de exogamia, a
tendência é, como sugere A. Cabalzar [2000], a constituição de múltiplas unidades ou
nexos regionais, conformando ciclos mais ou menos fechados de trocas matrimoniais e
outras mais). Nas Guianas, essa regionalidade é muito mais incipiente; no entanto, não é
possível negligenciar a extensão, ali, de redes supralocais e nexos regionais, ainda que
marcados por sua grande inconstância e provisoriedade. Como no alto Xingu, um ideal de
autonomia local (política e econômica)—sustentado pela repetição da endogamia—é
assaltado pela necessidade de celebrar as diferenças, trazê-las para o júbilo da festa. Não
obstante, o que no alto Xingu se realiza de modo exacerbado—o elogio das diferenças—,
permanece de modo escamoteado nas Guianas.
A literatura sobre as Guianas depara-se com um paradoxo que cabe ser analisado
mais de perto. Se as etnografias contemporâneas apresentam a imagem de grupos locais
atomizados que evitam o quanto podem a comunicação com o exterior, a historiografia
sobre a região apresenta uma série de evidências que comprovam a extensão, nesta região,
de redes interlocais, que envolviam, entre outras coisas, um intenso comércio de bens e um
ambiente bélico; nada próximo, portanto, do estado atomístico. Trabalhos recentes sobre a
região, como aquele coordenado por Dominique Gallois (2005), demonstram que é possível
buscar a continuidade dessas redes nas novas etnografias, desde que se passe de um plano
puramente empírico para o plano conceitual nativo. Em suma, é possível vislumbrar, nas
Guianas, princípios de geração de redes, que passam por categorias de parentesco, de

92
parceria comercial e de agressão xamânica, mesmo em uma paisagem em que as redes
apresentam-se, empiricamente, de modo mais acanhado. Essa nova visada sobre as Guianas
permite aproximá-las de sítios como o Rio Negro e o alto Xingu, onde, todavia, o
regionalismo é definido por uma gramática rígida. Ainda que desconheçam essa rigidez,
não cabendo nos termos de uma “comunidade moral”, as Guianas não podem ser reduzidas
ao puro atomismo sociológico, pelo contrário, devem ser analisadas em sua possibilidade
de produzir redes.
Uma das possibilidades de recuperar a dimensão em rede dos sistemas guianenses
reside, justamente, na consideração dos esquemas rituais. A reciprocidade interlocal
atestada na vida ritual nas Guianas, que é o tema que aqui interessa, vai de encontro à
noção de atomismo. Verifica-se, novamente, o paradoxo. De um lado, terminologias de
parentesco mascaram as relações efetivas de afinidade, operando, via tecnonímia, pela
consangüinização de todos os co-residentes. Os membros de um grupo local pensam-se,
pois, como um grupo de cognatas, pairando sobre eles uma espécie de ficção de
endogamia, para usar uma expressão de Peter Rivière (1984), o que isola o grupo local e o
caracteriza como unidade fechada. Por outro lado, do ponto de vista das alianças políticas
e dos sistemas de troca ritual, é possível vislumbrar o que Bruce Albert (1985) denomina
para os Yanomami de “rede de comunicação intercomunitária”, aspecto que a análise de
Rivière não dá conta. Como interpretar esse conjunto de sociedades que nega a alteridade
em um plano local, para depois se haver com ela em planos supralocais—cerimoniais e
políticos, por exemplo—e cosmológicos?62 A perspectiva de Albert me parece mais
atraente que a de Rivière, uma vez que pretende dar conta das conexões entre os planos
sociológicos e cosmológicos, ou seja, não confina seu modelo às relações empíricas no
universo local, mas pretende abranger um universo mais amplo de relações, que inclui

62
Na esteira da etnologia sobre os Jê-Bororo, chegamos à discussão sobre a oposição parentesco/política. A
abordagem de Peter Rivière situa o parentesco como determinante em relação à política, apostando na idéia
de uma ideologia de fechamento. Albert, pelo contrário, em sua etnografia yanomami, salienta a construção
de sentido que só pode ser compreendida se analisadas as relações—políticas e rituais—com o exterior. De
qualquer forma, o importante é frisar que, diferentemente do que se pode dizer do Brasil Central, na
Amazônia parentesco e política são domínios que tendem a se misturar e se confundir na teoria nativa. Como
já apontado pelos estudos jê-bororo (Maybury-Lewis et alli 1979), o parentesco não parecia se apresentar
como fator de totalização, sendo interpretado pelos idiomas de substância e nominação que criam esferas
autônomas, diferente do que poderia ser afirmado para outras paisagens etnográficas. Essa “desconfiança”
talvez coubesse às investigações de Peter Rivière, que acabam por superestimar as relações de parentesco em
detrimento daquelas que se estabelece com a exterioridade.

93
concepções sobre a constituição da pessoa e sobre as agências sobrenaturais que povoam o
cosmos.

A ilusão atomista

Em sua monografia sobre os Tiriyó do Suriname (1969), Rivière assume que os festivais
coletivos, baseados na dádiva de bebidas (que geram embriaguez) e na performance de
danças, “representam menos o isolamento que o intercurso social, menos a suspeita que a
amizade, menos o interesse individual que a comunidade. Trata-se de um período em que a
unidade mítica é adquirida e tanto a diversidade empírica como a contradição da vida
cotidiana desaparecem” (1969: 258). Para o autor, nesses momentos, marcados pelo
sentimento da “alegria de estarmos todos juntos”, é possível identificar uma quebra de
autonomia dada pelo movimento de busca da alteridade, por meio da abertura para um
contexto mais amplo. Investe-se, para tanto, na relação convidados/ anfitriões de forma a
manipular categorias de intercâmbio, tendo na hostilidade a possibilidade de produzir
harmonia. São os rituais que, no mais das vezes, permitem a comunicação ao estreitar laços
de interdependência, revelados sobretudo pelo anseio de trocar diferentes saberes,
coreografias e repertórios musicais.
Ao discutir as relações interlocais, Rivière volta ao tema, de certa forma central em
sua obra, dos recursos escassos na região das Guianas. Em Individual and society in Guiana
(1984), obra em que procura se aproximar de uma estrutura social comum aos grupos
guianenses (sobretudo aqueles de língua caribe que ocupam a porção mais central), a
escassez diz respeito aos recursos humanos da região, não a um conjunto de proteínas,
como propôs a tradição da ecologia cultural, com quem o autor não poupa o diálogo, mas a
capacidades produtivas e reprodutivas dos homens e das mulheres, “ainda que
particularmente das mulheres”. No que se refere à demografia, a melhor alternativa recai
sobre os grupos atomizados, para os quais o nexo produtivo está baseado em uma
economia política de mulheres, então a força de trabalho por excelência da região. É por
meio da retenção de mulheres via residência uxorilocal que se torna possível manter o
controle da vida social, o que envia à idéia de fechamento. Para Rivière, que amplia um
argumento de Terence Turner (1979) sobre os Jê, a estrutura social das terras baixas pode
ser explicada pelo controle que a sociedade—masculina—exerce sobre suas mulheres. As

94
“subculturas” que ali se encontram diferenciam-se à medida que esse controle assume
graus distintos. “No caso guianense, a distribuição foi subordinada pelo controle. O último
é adquirido por meio da retenção de mulheres em casa, e a segurança de curto prazo é
assegurada ao preço da inibição de formações sociais. O reverso é também verdadeiro, pois
é a ausência de formações sociais, que podem agir como unidades de troca, o que impede o
desenvolvimento do componente distributivo” (1994: 108). A relação que se estabelece
com a exterioridade é lida sob a chave de um perigo eminente, e as trocas que daí
decorrem apresentam-se como inadequadas—é assim que a parentela co-residente e
endogâmica emerge como negação da reciprocidade.
Em linhas gerais, o autor apresenta a organização social nas Guianas como
caracterizada pela ausência de unidades sociais permanentes envolvidas nas trocas de
mulheres: não há o que garanta que a dádiva de uma mulher em uma geração ocasione um
retorno na próxima, sendo a única atitude segura de ação a realização de uma troca
imediata. Tudo isso faz distanciar as Guianas da realidade do Noroeste Amazônico, que
conta com mecanismos de troca desenvolvidos. O atomismo sociológico, mais que um
ideal, aparece ali como modo de existência. Na análise de Rivière, o grupo local (ou
assentamento) emerge como unidade social fundamental, apesar de sua existência
efêmera—trata-se de uma “unidade relativamente estável” (idem:101). Agrega um núcleo
de casas—ou em alguns lugares uma única maloca, tal o caso piaroa—, aparecendo como
mônada necessária, que pode eventualmente abrir-se à contingência das trocas supralocais.
O problema da fragmentação—impossibilidade de pensar nas Guianas totalidades
mediante um movimento incessante de fissões e dispersões de grupos locais diferentes—
ocupa um lugar central na obra de Rivière. Quanto maior o tamanho de um aglomerado de
pessoas, maiores seriam as chances de haver disputas e, assim, fissões. Um modelo de
harmonia e equilíbrio encontra-se vigente, tendo na política de fragmentação um modus
operandi fundamental. Tal modelo, vale ressaltar, é orientado pela idéia de fechamento e de
gestão da escassez do trabalho humano, o que redunda na idéia de que tanto o social como
o político estão fundados num ideal de autonomia e auto -suficiência. “Dado que o político
e o social são expressos por meio do mesmo idioma, a noção do grupo local como uma
unidade política autônoma e do grupo local constituído por uma parentela bilateral
endogâmica são congruentes” (idem: 80).

95
Em Rivière, esse ideal pode ser referido como “ficção” à medida que encobre a
importância do comércio supralocal, um dos meios mais importantes pelos quais os grupos
locais quebram seu isolamento (idem:82) e, conseqüentemente, abrem-se às relações com a
exterioridade. “Pessoas que detêm saberes rituais são uma ligação visível entre aldeias e
entre os grupos residenciais no interior de uma comunidade” (idem: 84). O ritual aparece,
pois, no esforço comparativo que Rivière concede às Guianas como instância privilegiada
para a troca matrimonial, o que reforça a idéia de que a endogamia de grupo local, longe
de consistir em uma regra seguida a fio, revela-se “ficção” necessária para a manutenção da
harmonia social. No entanto, a interpretação desse autor não explora o caráter ficcional
embutido no ideal de fechamento, antes o faz coincidir com uma tendência, um “dever
ser”. Ora, o que poderia aparecer como comunicação entre os diferentes grupos locais, é
lido como competição por recursos escassos, a bem dizer, mulheres. Se os grupos locais
relacionam-se entre si, eles o fazem por razões de escassez, devido às suas necessidades
materiais, almejando, não obstante, um estado em que o buscar fora possa, enfim, ser
prescindível. A troca de serviços rituais e os casamentos aparecem como respostas às
necessidades pragmáticas de regulação social, como algo que deve ser escamoteado em
nome de uma sociologia atomista. A regra para Rivière mantém-se fiel ao ideal de
fechamento da estrutura social guianense, uma vez que a aposta na endogamia permite
encobrir as exceções que, de sua parte, existem para garantir a harmonia social.
Um problema teórico que emerge imediatamente é o da natureza ambígua da
autonomia do grupo local: “Em um momento, ele é autônomo, auto-suficiente, e
aparentemente durável; em outro, ele se desintegra e os elementos que o constituem,
famílias e indivíduos, dispersam-se apenas para criar um padrão semelhante com os
mesmos elementos não importa onde. Embora não seja totalmente adequada, a imagem que
vem à mente é a de um caleidoscópio” (idem:102). Ora, tal caleidoscópio não pode remeter
senão à dificuldade de se traçar unidades fechadas nas Guianas, uma vez emaranhados—
em rede—os diversos planos locais. Contudo, mais uma vez, Rivière não explora esse
ponto, recaindo na tese inicial: as relações interlocais existem, à medida que permitem o
trânsito de recursos escassos, respondendo às necessidades materiais dos indivíduos. As
práticas rituais permanecem, todavia, reduzidas ao lugar de uma superestrutura diante das
necessidades concretas relacionadas à escassez. A estrutura social guianense confina-se,
assim, a um complexo endogâmico, ainda que subvertido por uma prática difusa.

96
De fato, a maior dificuldade de Rivière consiste em dar conta da instabilidade do
foco escolhido, o grupo local. Tendo como horizonte as aldeias jê e bororo ou as malocas
rio-negrinas, o autor restringe-se a um critério puramente local para definir a circunscrição
das relações sociais fundamentais nas Guianas e, para tanto, nega a implicação entre os
planos sociológico e cosmológico. A “ficção” que ele procura descrever redunda na
própria subordinação das relações de troca com o exterior aos mecanismos de fechamento,
das dimensões políticas ao universo do parentesco. Como sugerido acima, na região das
Guianas, as relações sociais devem ser compreendidas não apenas como inscritas no espaço,
mas como algo que ganha desdobramento no tempo.63
A conclusão de Individual and society traz o debate com Joanna Overing (1983) e
sua concepção de “estruturas elementares de reciprocidade”.64 Rivière aceita a explicação
de que diferentes estruturas sociais são geradas por uma forma global de reciprocidade, no
entanto, seus caminhos afastam-se qualitativamente dos de Overing, à medida que ele
analisa os casamentos extralocais em função de razões demográficas sólidas, e ela identifica
nessas estratégias matrimoniais mecanismos de perpetuação do grupo. O primeiro opta por
uma explicação colada à base material—a aliança não constitui um princípio ontológico em
si, mas designa um meio para resolver uma contradição dada pela economia guianense. A
segunda busca uma explicação idealista (filosófica), encontrando na aliança—e na
afinidade—um princípio que se desprende das trocas matrimoniais propriamente ditas e

63
Que essas explicações para a quebra do isolamento são insatisfatórias, o próprio Rivière não nega, deixando
em sua obra um forte teor de ambigüidade ao afirmar ser preciso voltar às cosmologias e noções causais da
região, ao campo do xamanismo—algo que ele não faz em Individual and society, mas passa a anunciar em
ensaios posteriores (ver Rivière 1995, 2001a, 2001b). Haveria, por certo, um movimento de abertura da
mônada ou átomo guianense que não ocorreria por motivos de escassez, mas o autor não vai tão longe a
ponto de afirmar que isso reside numa comunicação propriamente necessária. Resta do trajeto guianense de
Rivière a idéia de que os rituais e as teorias de causalidade instauram uma comunicação que faz transcender o
problema da escassez e envolve tanto um domínio interlocal e macroscópico (a trama estabelecida entre os
diversos grupos locais), como extra-humano e microscópico (a teia de agências sobrenaturais que compõem o
invisível). Como ele mesmo admite no Prefácio à edição brasileira de seu livro, travando um diálogo implícito
com as idéias de Viveiros de Castro: “Agora parece geralmente aceito o fato de que a ordenação do mundo,
por parte da maioria dos povos da região dos campos e serras das terras baixas da América do Sul envolve
uma comunicação, que percorre uma gama mais ampla de povos e entidades, reais e imaginárias, do que
aquela que concerne ao casamento, ao alimento e às trocas cerimoniais. Essas interações mais amplas incluem
a comunicação com seres do mundo invisível, mas está sendo questionado até que ponto tal comunicação
envolve inevitavelmente a predação, no lugar de outros tipos de relacionamento” (2001b:15; grifos meus).
64
Rivière finaliza Individual and society apontando a necessidade de se traçar um tema básico recorrente nas
terras baixas sul-americanas: “Sugiro ainda que neste mosaico de variantes a região das Guianas tenha um
lugar especial por representar a cultura das terras baixas em sua forma mais simples” (idem:109).

97
que revela a importância da alteridade para a perpetuação dinâmica das sociedades
guianenses.
Overing, como Rivière, aponta em sua análise a ambigüidade do grupo local
guianense, ilustrando com o caso piaroa, entre os quais a parentela bilateral aparece como
base dos agrupamentos, cujos membros se vêem como uma unidade relacionada por
consangüinidade, sem divisões internas separando afins e consangüíneos (terminologia
dravidiana). Em The Piaroa (1975), Overing pensa a continuidade da unidade residencial
piaroa,65 a casa comunal ou itso’de, no tempo a partir das regras positivas de casamento.
Para ela, remetendo-se a Lévi-Strauss,66 a aliança, motor da sociedade, é o que a permite
reproduzir suas relações de reciprocidade. Trata-se de um “grupo estruturado pela aliança,
pois é o princípio de aliança o responsável tanto pela formação do grupo como pela sua
continuidade em um nível formal. (...) A endogamia é, assim, fluida de um outro modo: ela
possui um aspecto de desenvolvimento. O que é endogâmico em uma situação não o é na
situação seguinte; uma aliança política afirmada por alianças matrimoniais múltiplas pode
ser quebrada” (1975:192-3).
O grupo local piaroa corresponde a uma parentela endogâmica, no sentido de um
“alliance based group”, pois é a relação de aliança responsável tanto pela formação do
grupo como pela sua perpetuação. Segundo Overing, a regra de casamento em si se refere a
categorias de relações.67 “O modelo é o de um grupo que se mantém através do tempo
como uma unidade consangüínea ao restringir a troca no interior de si mesmo” (idem:194;
grifos meus). Mais adiante, ela conclui: “Diante dos tipos de organização social, este é o
mais atomístico de todos” (idem: ibidem). O atomismo a que se refere Overing é de tipo
diverso daquele de Rivière. Se para ele o atomismo “reflete” a estrutura social guianense e

65
Como Rivière, Overing (1975), diante do caso Piaroa, dá-se conta da necessidade de pensar os critérios
residenciais nativos, visto que a noção de co-residência mistura-se à de consangüinidade, revelando um
critério de proximidade expresso sobretudo pelo idioma da residência. O itso’de—unidade residencial piaroa
(casa comunal), relativamente isolada—é introduzido pela sua composição “fluida”, e designa um grupo de
parentesco cognático endogâmico.
66
Uma das contribuições decisivas da monografia de Overing Kaplan, The Piaroa (1975), à teoria da aliança
elaborada por Lévi-Strauss foi a demonstração de que o casamento como sistema não implica necessariamente
um princípio de exogamia em termos de descendência. Uma sociedade como a Piaroa, alheia às regras de
descendência, não vê suas regras de aliança subordinadas a qualquer critério desse tipo. A interpretação de
Overing é pioneira justamente pelo fato de fazer valer a afinidade como o princípio por excelência que
ordena a sociedade guianense. E, para tanto, ela deve situar a afinidade para além do plano do parentesco.
67
A regra de casamento é a de “casar perto”, o que implica: 1) casar com os filhos do irmão da mãe (MBC) ou
os filhos da irmã do pai (FZC), (regra bilateral, troca restrita); 2) casar dentro de uma parentela imediata; 3)
reproduzir o casamento dos pais, participando de uma troca matrimonial particular sobre um período de
tempo.

98
a necessidade de controle de recursos escassos; para ela, representa um processo de
entronização da diferença, esta sim o princípio fundante da estrutura social guianense,
forma derivada das “estruturas elementares de reciprocidade”. Afirmar que a organização
social das Guianas corresponde ao tipo mais atomizado implica a constatação de que, ao
contrário do Brasil Central e do Noroeste Amazônico, tal região é a única onde se verifica a
enunciação—exaltação—da alteridade por meio de sua própria anulação. Noutras
palavras, os povos guianenses pensam a alteridade como algo a ser evitado e que transmite
perigo. É por isso que sua filosofia política está pautada em ideais de evitação do outro, o
que não significa, de modo algum, que a diferença permaneça fora das preocupações
dessas sociedades. A ênfase nas relações de proximidade pressupõe uma operação
complexa de tornar próximo o distante, consangüíneo o afim, ou seja, um esforço de
domesticação ou familiarização.
Entre os Piaroa, a afinidade, equacionada ao perigo, deve ser domesticada,
perfazendo um movimento de aproximação de termos distanciados. Em outro trabalho,
“Dualism as an expression of difference and danger” (1984), a autora se debruça sobre o
tema da terminologia de parentesco, que equipara consangüinidade e co-residência,
apontando como, entre os Piaroa, o termo chwaruwang pode designar ao mesmo tempo
“morar junto” e “compartilhar a mesma substância”. Tal associação revela um mecanismo
de transformação do afim, advindo do exterior, em co-residente, também um
consangüíneo. Aí se encontra a tese da autora: a consangüinização dos afins se apresenta
como estratégia para eliminar os perigos e promove uma aproximação em relação ao ideal
endogâmico de forma a evitar o estado crítico da afinidade.
A terminologia de relações entre os Piaroa apresenta, dessa forma, mecanismos de
manipulação de critérios como afinidade e consangüinidade. Da mesma maneira que os
laços de unidade grupal se definem pelo critério de cognação, os de casamento são
legitimados pelos laços de afinidade. Dito de outra forma: para que um indivíduo pertença
ao grupo é necessário que ele seja chamado por um termo de consangüinidade, e para que
se case com alguém desse mesmo grupo (seja ele de dentro ou de fora), deve ser designado
por um termo de afinidade. Como pontua Overing, a necessidade de ser afim por motivos
de casamento recebe expressão na terminologia. Os mecanismos descritos pela tecnonímia
não resolvem os paradoxos postos pela organização social e pela ideologia calcada na
tensão entre uma condição de isolamento (valorização dos laços de parentesco cognático e

99
da endogamia dentro do grupo local) e uma necessidade ontológica de buscar fora, de
constituir um campo para a afinidade. Mascaram-nas, pelo contrário, e, nesse sentido, a
transformação de afins em consangüíneos traduz uma forma de manipulação, em que a
diferença como princípio fundante é ofuscada pela terminologia, de modo que se crie uma
“ilusão atomista”, um ambiente homogêneo e circunscrito em que todos são supostamente
semelhantes e, por isso, estão a salvo dos perigos da exterioridade. A troca matrimonial
deixa entrever a separação entre dois mundos: um que é ideal, em que as unidades locais
de residência atomizadas são tipicamente estruturadas e isoladas uma das outras, e outro,
empírico, revelando uma organização local altamente flexível. Assim, os Piaroa “tornam
fictício o mundo empírico de modo a fazê-lo concordar ideologicamente com o mundo
ideal” (Overing Kaplan, 1975: 185).
Em diálogo com Overing, Flora Dias Cabalzar (1997) debruça-se, entre os Wajãpi do
Amapari, sobre o fenômeno da dispersão matrimonial e residencial de consangüíneos, fator
importante na determinação do valor atribuído à afinidade como relação ambígua. A
autora aponta a oscilação entre uma preferência pela endogamia, verificada pelas
parentelas relativamente autônomas, e a incorporação contínua de outros por meio de
casamentos, concluindo que isso ocorre graças a processos de produção da alteridade
cognática, ou seja, da diferença no seio do grupo.68 A autora afirma que, entre os Wajãpi, o
mascaramento da afinidade ocorre de maneira bem mais amena que nos tantos grupos
locais guianenses, como apresentados pelos autores acima citados, uma vez que a
pragmática social dessa população não implica uma simples subordinação à sintaxe
terminológica, pelo contrário, desvela o conjunto intercomunitário ou nexo regional como
campo social pertinente. Apesar de uma tendência à endogamia, as “alianças que definem
uma parentela idealmente endogâmica estão de fato estruturalmente articuladas àquelas
que conformam outras parentelas” (1997:288). Noutras palavras, não há fechamento
possível, as parentelas localizadas wajãpi, que não necessariamente correspondem a um
grupo local, devem ser compreendidas como se relacionando no interior de um sistema

68
Essa oscilação se revela pela “concretização da repetição de alianças no sentido estrito da endogamia de
aldeia, por suas gerações sucessivas, adicionado à co-residência englobando toda uma geração de irmãos reais
adquire uma conotação negativa, de 'hostilidade política' no âmbito intercomunitário. A solidariedade
política resultante dos casamentos intercomunitários é valorizada pelos Wajãpi, ao lado do ideal de
endogamia de aldeia, e essas trocas não são acompanhadas pela assimilação dos ‘afins reais’ do cunhado
pacífico, por exemplo, sobre o qual não recai qualquer conotação de hostilidade e distância, sobretudo em
termos de atitudes” (F. Cabalzar 1997:286).

100
supralocal, iluminado com freqüência pelas festas de caxiri. O caso wajãpi demonstra, por
seu turno, como opera essa “ilusão atomista”. Ainda que autora procure distanciar o
quadro descrito do panorama guianense mais amplo, ela parece atentar para um fenômeno
de fato guianense, o escamoteamento da diferença em um universo em que ela não só é
constitutiva como também fundante.
De modo geral, as relações que permitem pensar o sistema guianense não poderiam
ser exclusivamente aquelas de germanidade ou de consangüinidade, já que essas são
requisitadas à medida que encobrem outras, mais elementares, como a relações entre
cunhados e entre sogro e genro, relações que implicam uma abertura à exterioridade.
Nesse sentido, como salienta Overing, a afinidade emerge como nexo privilegiado da
estrutura social guianense, ainda que possa ser driblada pela terminologia. Overing
contrapõe -se às teses de Rivière, centrando-se nas noções mais amplas de afinidade e de
relação. Não obstante, ela não deixa incipiente a reflexão sobre as condições reais de
constituição de espaços supralocais na Guiana, atendo-se, nas análises posteriores a The
Piaroa, prioritariamente ao plano do grupo local e da assim chamada “convivialidade”
(Overing 2000), excluindo temas caros à região como a guerra, as trocas materiais e o
ritual. Ora, se voltarmos à descrição etnográfica em The Piaroa, reencontramos vivamente
esses temas. Overing se depara com unidades supralocais denominadas pelos Piaroa como
itso’fha, termo que ela traduz por “grupo territorial” e que podemos justapor às noções de
“nexo regional” (A. Cabalzar 2000) e “conjunto intercomunitário” (Albert 1985). Ora, os
Piaroa não apenas guardam um termo específico para esse conjunto transitório de grupos
locais aliados, como também reconhecem ali a influência de um “grande homem” ou
“chefe-xamã”, o ruwang itso’fha. Em linhas gerais, um ruwang agrega, para além da função
de cura e de reparação via agressão, os papéis de líder político, local ou territorial, e de
chefe cerimonial, atributos que se devem, sobretudo, ao grande acúmulo de
conhecimentos, obtidos pelo seu domínio da mitologia e pelas negociações que é capaz
realiza com os deuses celestiais tianawa. É também o ruwang que deve presidir o festival
sari, em que membros de grupos locais diversos se reúnem para beber e realizar trocas
materiais, tendo sempre como pano de fundo negociações matrimoniais. Overing desvela
entre os Piaroa um universo que transborda o localismo e que se empresta à realização de
trocas matrimoniais e comerciais. Mais uma vez, é no contexto de um ritual interlocal—

101
todavia pouco esmiuçado pela autora—que se pode iluminar esse transbordamento e a
exaltação da comunicação.
Um exemplo notável de uma situação festiva em que a alteridade é exaltada,
remetendo assim a um horizonte de comunicação supralocal, encontra-se no estudo de
Catherine Howard (1993) sobre a farsa dos visitantes (pawana) entre os Waiwai de
Roraima. Segundo a autora, os Waiwai, que vivem atualmente em grandes aglomerados de
composição heterogênea e convivem com missionários evangélicos, dizendo-se eles
também evangelizados, sempre tiveram a necessidade de travar contato com outros povos
e, o que é mais importante, domesticá-los, transmitir seus preceitos éticos e inseri-los em
suas redes de sociabilidade. Por se empenhar tão fortemente nessa busca desvelada por
povos desconhecidos, os Waiwai parecem destoar do restante da paisagem guianense
marcada pela suposta introspecção. Vistos de um outro viés, contudo, eles deixam de se
distanciar tanto assim do quadro geral da região, uma vez que a busca que empreendem
tem como fundamento uma espécie de amansamento radical dos estrangeiros, que devem
ser convertidos—daí a ressonância com a missão protestante—em co-residentes, e de
distantes feitos próximos. A autora denomina esse movimento de “waiwaização”, e sugere
que ele tenha sido potencializado depois do contato com o proselitismo missionário. Se o
convívio no aglomerado e a restrição da vida supralocal implicam, para os Waiwai, uma
relativa assimilação das diferenças a um projeto de unidade, ainda que essa unidade não
possa ser senão um conjunto de descontinuidades, foi preciso que eles inventassem um
meio de recriar um espaço efetivo para a comunic ação com uma alteridade mais radical que
aquela ressentida internamente, e a saída para isso foi encontrada pelo viés da farsa.
Noutras palavras, na ausência de uma alteridade social concebida como necessária (menos
sociologicamente do que ontologicamente) e reconhecida como tal, foi preciso forjá-la, e
esse procedimento só poderia ocorrer no ambiente de um festival, criado sob o modelo dos
encontros tradicionais entre grupos locais distintos (e capazes de estranhamento), que
trocam carne por bebida, cantam e dançam.
Segundo Howard, no festival que envolve toda a população do aglomerado, as
“tribos” pawana são representadas de forma caricatural como atrasadas, primitivas e
vindas de muito longe. Povos irados, perigosos e poderosos, povos “não -vistos”, os tais
visitantes mostram-se como ignorantes, desajeitados, socializados de modo incompleto,

102
inadaptados.69 O público reage com gargalhadas a cada evidência de imperfeição. Receber
tais visitantes é, para os Waiwai, um ato de doação de civilidade, de transformação dos
“bárbaros”—ridículos porque de certa forma temidos—em pessoas com as quais é possível
travar alguma relação de troca e sociabilidade. Howard escreve: “Se os ‘visitantes’ lucram
em ser ‘socializados’, a ‘sociedade’ waiwai lucra com a apropriação do potencial gerativo
da energia bruta dos pawana, essencial para a infusão de vitalidade na estrutura. Ambas as
partes, separadamente, são incompletas, como se fossem aldeias a que faltassem membros de
um dos sexos; a conjunção entre elas é reprodutiva em mais de um sentido” (idem:249;
grifos meus). Ao mesmo tempo em que remete ao processo de waiwaização, ou seja,
redução da alteridade a um projeto de identidade—análogo ao processo de
consangüinização dos afins—, o festival pawana explicita a necessidade, para a
constituição da vida social, da comunicação com o mundo exterior e com as figuras dessa
exterioridade irredutível, tendo em vista a incompletude que a vida “entre si” acarreta.
Assim como o fechamento guianense, a waiwaização é um movimento precário e o ritual,
por meio do mecanismo da farsa, trata de colocar a possibilidade dos próprios Waiwai se
afetarem pelos tais povos não-vistos e tidos como imperfeitos e, assim, não sucumbirem ao
destino que eles mesmos traçaram, qual seja, constituir uma unidade de semelhantes capaz
de reduzir a barbárie à sua “civilização”.
O breve excurso sobre o festival pawana nos permite voltar ao tema da
insustentabilidade do fechamento guianense, tema tornado visível pelo ritual. Na esteira
dos argumentos de Overing, Eduardo Viveiros de Castro (1985a) questiona até que ponto o
fechamento sociológico inferido por Rivière pode ser tomado como um fator em si. Para
esse autor, Rivière haveria inculcado aos níveis mais locais—o grupo local ideal, ou seja,
confundido com a parentela bilateral endogâmica, onde o idioma da consangüinidade
sufoca a afinidade—uma estrutura de tipo mais complexo que, no entanto, só poderia ser
apreendida tendo em vista a consideração de níveis mais globais, povoados por figuras
alheias ao parentesco, como os aliados políticos, os visitantes estrangeiros e os inimigos
(isso para não falar de figuras do “invisível”, como os “espíritos” mobilizados pelo
xamanismo). O fato de o ideal de isolamento não ser jamais atingido por completo indicaria
a primazia da troca entre as unidades tidas como fechadas e, assim, a geração de redes

69
Carlos Machado Dias Jr. (2000) nota que, nos festivais atuais, os povos não-vistos não são apenas
representados como “índios selvagens”, mas também como oficiais da Funai e médicos de São Paulo.

103
supralocais, que podem ser colhidas em intercâmbios matrimoniais, comerciais e, tal o
tema aqui tratado, rituais.
A solução de Viveiros de Castro para o dilema apresentado pela etnografia
guianense consiste em identificar nessa paisagem uma resposta por assim dizer
“minimalista” ao problema amazônico da afinidade e da gestão da alteridade. Ora, esse
minimalismo não diz respeito senão ao universo da co-residência e do grupo local
idealmente constituído como espaço da semelhança. Isso porque a exterioridade encontra-
se povoada pelas mais díspares figuras da alteridade, e o passo importante dado por
Viveiros de Castro em relação à literatura sobre as Guianas consiste em demonstrar que a
construção da interioridade deve passar pela comunicação com o exterior. A definição da
socialidade não apenas guianense, mas amazônica em geral, em Viveiros de Castro
ultrapassa os limites do grupo local “ideal”—no caso das Guianas, aquele que corresponde
a uma parentela bilateral endogâmica—, visto que retira o sentido de sua existência da
exterioridade e, mais precisamente, do que ele define como “afinidade potencial”, uma
afinidade em que os laços afins não são efetivados, existindo como pura virtualidade. Os
rituais coletivos e festivais de diversas naturezas que se propagam por entre essas
paisagens atuam justamente na maximização—na doação de visibilidade—daquilo que no
cotidiano tende a permanecer minimalista e minimizado. É nesse sentido que se justifica,
nesse momento, a direção do olhar a essas instâncias.

O festival antropofágico tupi

Gostaria, agora, de prosseguir, com a apresentação de dois complexos rituais que


envolvem o conjunto de interações entre diversas figuras da alteridade e que cimentam o
que tenho chamado de “conjuntos multicomunitários” e “nexos regionais”. O primeiro
exige um deslocamento no tempo e no espaço, e nos retira momentaneamente da
Amazônia, pois que diz respeito aos antigos Tupi da costa quinhentista (ou Tupinambá) e
seus imensos festivais antropofágicos, tão lembrados pela literatura de viagem e pela
etnologia americanista. Apesar de sua escala ampliada, esses eventos dialogam de forma
notável com a paisagem guianense (e amazônica, em geral), por algumas razões básicas. A
primeira diz respeito à organização dos antigos em parentelas idealmente endogâmicas
que, no entanto, revelavam uma forte necessidade de estabelecer canais de troca com

104
outras parentelas por meio do comércio e do ritual. Não custa lembrar que essas sociedades
realizavam-se na guerra que travavam umas contra as outras—e tal movimento foi
analisado de forma magistral por Florestan Fernandes (1970) e, depois, por Carneiro da
Cunha & Viveiros de Castro (1985). A segunda razão remete ao fato de que o festival
antropofágico, marcado pelo sacrifício do prisioneiro de guerra por um homem do grupo
local anfitrião, era concebido como uma enorme festa de caxiri ou cauinagem, que incitava
à interação entre membros de grupos locais distintos, bem como entre homens e mulheres,
revelando conotações sexuais.
O segundo complexo ritual aqui iluminado também está relacionado ao mundo do
canibalismo, desta vez em um grupo atual que habita os limites da região das Guianas, os
Yanomami. Contudo, o festival em questão—reahu—não compreende a execução de um
inimigo de guerra, mas sim o consumo das cinzas dos ossos de um afim morto, o que
envolve, mais uma vez, a oposição entre parentes do morto (grupo anfitrião) e afins
classificatórios (grupos convidados). Aqui, a dádiva de comida e de bebidas fermentadas é,
mais uma vez, um aspecto fundamental que media todas as relações. O reahu, de sua parte,
não termina em si mesmo, mas desencadeia outros ritos, mais individualizados, e que têm
por objetivo a vingança pela morte ocorrida.
Proponho, então, uma breve imersão do ritual antropofágico dos antigos Tupi da
costa quinhentista para buscar, ali, relações fundamentais.70 Antes de mais nada, trata-se
de tomá-lo como compreendido entre uma série de antecedentes e de corolários. Ou seja,
ele é antecedido pela captura do inimigo que deverá ser “familiarizado” pelos membros do
grupo local por um período que durava de quatro a cinco luas; e sucedido por um período
de reclusão ao qual deverá se submeter o matador, logo após o esfacelamento do crânio do
cativo.
Quando chegavam de uma expedição guerreira com um cativo, os homens o
entregavam às mulheres do grupo, e obrigavam-no a gritar: “Eu, sua comida, acabo de
chegar” (Métraux 1967:47). Cabia a elas cobri-lo de plumas, retirar seus pêlos e
sobrancelhas, prepará-lo, enfim, para a longa estada na nova aldeia. Já aí uma festa se
esboçava: preso por uma corda denominada por eles muçurana, a chegada do cativo era

70
Farei uso, doravante, de forma bastante livre, de uma mistura de informações extraídas tanto de fontes
primárias quinhentistas, como Hans Staden (1557/1979), André Thevet (1557/1997) e Jean de Léry
(1578/1994), Gabriel Soares de Souza (1587/1987), quanto de fontes secundárias, como Alfred Métraux
(1967), Florestan Fernandes (1989 e 1970) e Isabelle Combès (1992).

105
celebrada com música, dança e cauim. Nesse mesmo dia, ele receberia uma esposa, filha ou
irmã de seu dono, ou uma viúva, cujo marido havia morrido pouco tempo atrás. A relação
estabelecida entre o dono e seu cativo era a versão ritual daquela que se estabelecia na vida
cotidiana entre cunhados. O ritual maximizava o que no cotidiano era minimizado, ou seja,
a hostilidade que permeava a relação entre cunhados. O que no cotidiano era revertido por
meio de uma fórmula de reciprocidade—o tomador de uma geração seria o doador de
outra—, no ritual era levado ao extremo: por não poder retribuir aquilo que lhe foi dado,
por submeter-se a uma posição irreversível de devedor, o cativo mereceria um destino
trágico, seria devorado pelo grupo que o acolhera. Como já muito comentado, o termo
nativo tovajar—“aquele que está adiante”, “o do outro lado”—especificava tanto o
inimigo como o cunhado (afim efetivo), ou seja, “o cunhado-inimigo”. Tendo em vista que
os casamentos preferenciais entre os antigos Tupi da costa ocorriam, como nas Guianas,
entre parentes próximos, sobretudo entre tio materno e sobrinha (casamento avuncular),
mas também entre primos cruzados bilaterais, é possível afirmar que o inimigo era uma
figura imanente ao grupo e que, nesse sentido, a construção dos laços de parentesco
implicava sempre um trabalho de amansamento. Se a figura do tio materno (tutira, termo
que designava tanto o irmão como o primo da mãe, ver Fernandes 1989) revertia a
distância em uma espécie de “incesto metonímico” (Viveiros de Castro 1993), a figura do
inimigo de guerra maximizava-a: ao ser capturado, ele era incorporado ao grupo e, para
tanto, deveria submeter-se a um longo processo de familiarização.71
Segundo Florestan Fernandes (1989), entre os antigos Tupi da costa, a política
matrimonial tinha como estratégia básica casar-se o mais próximo possível de modo,
justamente, a minimizar a tensão uxorilocal, evitar o mundo da afinidade, mesmo sabendo
que este era inevitável, pois que imanente à relação entre os cunhados. Casar-se com uma
mulher distante representava um horizonte certeiro de subordinação ao cunhado ou sogro
distante. Não obstante, casamentos fora dos domínios da mesma parentela não eram
infreqüentes e representavam, outrossim, a construção de importantes laços de aliança e o
alargamento da sociabilidade nativa. Aqui temos um quadro não muito distante daquele
71
Vale ressaltar que se a vingança era exercida com estrangeiros, esses pertenciam preferencialmente a outros
grupos de língua tupi-guarani, que partilhavam o mesmo universo ético e que, como demonstrou Florestan
Fernandes (1970), estava fundado na guerra. Noutras palavras, devorava-se não um completo estranho, mas
um semelhante ou ao menos alguém que pudesse ser “tupinizado”, o que pressupunha um processo de
familiarização. Como o cunhado, o inimigo de guerra deveria ser visto à imagem de um homem maduro tupi,
pessoa em sua plenitude.

106
examinado na atual região das Guianas. Como sugeriu Pierre Clastres (1978), os Tupi
quinhentistas viviam um caso de “pseudo-atomismo”: apesar de manifestarem um grande
impulso de fragmentação e isolamento, eles não raro se viam imersos em um emaranhado
maior de relações comerciais, rituais e políticas, que remontavam tanto a conjuntos
multicomunitários (em que a dispersão ainda era a regra) como ao universo dos grandes
aglomerados, compostos por diversas parentelas ou malocas. Com efeito, esses aglomerados
representavam uma espécie de aglutinamento de grupos locais antes separados.
Fechamento num universo “entre si”—ideal de sociabilidade—e abertura para a relação
com outros—condição para a socialidade—eram movimentos que se alternavam,
desvelando um modelo endogâmico que, como evidenciou Overing para o caso guianense,
precisava do estrangeiro e do exterior para se realizar.72 Noutras palavras, o mesmo
paradoxo encontrado nas Guianas invadia o espaço social dos antigos Tupi da costa: para
viabilizar o projeto de endogamia, é preciso, antes, abrir-se ao exterior; para produzir o
grupo de parentes é preciso um terceiro termo, o inimigo. Ora, se o inimigo de guerra era
pensado como estrangeiro exterior (alteridade absoluta) que cabia ser predado, o cunhado
era visto como estrangeiro interno (alteridade minimizada), aquele com o qual era preciso
estabelecer uma relação de evitação. Ambos eram, todavia, figuras perigosas que deviam
ser familiarizadas, mas se a familiarização do segundo implicava o estabelecimento de uma
forma de reciprocidade (a mulher recebida em uma geração deveria ser reciprocada na
geração seguinte), a do primeiro só poderia culminar na predação.
Ao receber uma mulher de seu “dono”, o cativo assumia a figura do cunhado,
personificando o paradoxo inerente ao casamento e oferecendo um “simulacro ritual de
exogamia” (Viveiros de Castro 1993). Ele vivenciava o caso mais crítico de uxorilocalidade,
pois era um estranho a partilhar o espaço de parentes próximos. Nesse contexto, ele
contraía uma dívida que, tão grande, só poderia ser paga com a própria vida e, assim, o seu
dono transferia essa dívida ao matador, um parente próximo, muitas vezes um filho na
idade ideal para a iniciação à guerra (em torno de 25 anos).73 O cativo mantinha-se, pois, na

72
À diferença dos Piaroa descritos por Overing, os Tupi quinhentistas faziam da guerra um tema não
relegado ao tempo do mito ou às guerras invisíveis travadas entre xamãs, mas uma prática substantiva. Nesse
sentido, o universo da alteridade era-lhes evidenciado a todo o momento, e jamais mascarado.
73
Hans Staden narra, por exemplo, que ele foi dado como vítima (e também como xerimbabo) ao tio paterno
de seu captor, o que significava uma retribuição (ver, sobre esse ponto, Métraux 1928/1967). Gabriel Soares
de Souza (1587/1987) assume, de modo semelhante, que o captor era raramente escolhido como matador. De
modo geral, é possível supor que a relação entre o captor e o matador passava por um laço de “descendência”

107
posição de um eterno tomador de irmãs, ao passo que o dono e o matador permaneciam na
posição de doadores. A relação que era reversível na vida ordinária—e que, como em toda
troca diferida, implicava apenas uma geração para que fosse realizada a compensação—
deixava de sê-lo no ritual: o cativo, cunhado ritual, recebia uma sentença fatídica, era
destinado à morte. A única reciprocidade passível de se entrever aí era a da própria
vingança, que se estabelecia não mais em um domínio local, porém global: a morte de um
inimigo continha em si a promessa de uma nova retaliação e, assim, o motor da vingança
jamais cessava. Nesse domínio, uma nova reciprocidade impunha-se: não mais a troca
diferida de mulheres em duas gerações, mas a troca de vítimas em dois “tempos” e, se
considerada a homologia alimentada entre esses povos entre o consumo da carne do
inimigo e o consumo do cauim, a troca de bebidas fermentadas. Assim como a vingança, a
oferta de cauinagens apresentava-se de modo espiralado: elas também não podiam cessar.
Tempos depois de sua captura, num período que poderia ser breve ou mesmo durar
muitos anos, o cativo deveria ser, enfim, preparado para o ritual de sua execução.
Começava então a feitura do cauim por parte das mulheres. O conselho de homens decidia
a organização da festa e alguns deles partiam às imediações para convidar habitantes de
grupos locais aliados. Poucos dias depois, os convidados—homens, mulheres e crianças,
adornados com plumas e pinturas corporais—chegavam dançando, e o chefe da aldeia os
recebia, convocando-os a partilhar a carne do inimigo. O cativo, exposto a todos e
amarrado com a muçurana, aparentava ser, no entanto, o mais contente. A bebedeira tinha
então início. As mulheres iam ao pátio central servir os convidados, que bebiam seguindo
as regras de conduta: esvaziar cada cuia de um só golpe e jamais recusar uma oferta. Nesse
momento, o matador não poderia participar da festa, guardava-se, pois, para o grande
momento, cumprindo regras de abstinência sexual e alimentar.
O segundo dia da festa principiava com a construção de uma cabana especial para o
prisioneiro no pátio central da aldeia, o que marcava o seu desligamento em relação à
parentela do dono. Logo cedo, a bebedeira recomeçava, e o cativo era levado a participar
do ritmo dos demais, bebendo e, sobretudo, dançando com eles. Em meio à dança,
simulava-se combates, nos quais o cativo se defendia, sem demonstrar grande temor.

e, assim, evocava uma noção de substituição por semelhança. Não obstante, é preciso ressaltar que esse tipo
de laço não encontrava, entre os antigos Tupi, um lugar propriamente estrutural – noções como herança, por
exemplo, não podem ser aplicados a este contexto (ver Fausto 1995).

108
Durante a noite, as mulheres pintavam e adornavam o tacape ou ibirapema, arma
responsável pela execução, suspendiam-no no teto de uma casa inabitada, e dirigiam-lhe
encantamentos, impregnando-os da eficácia necessária para dar cabo ao prisioneiro. Na
manhã seguinte, terceiro dia da festa, os homens destruíam a cabana que haviam feito ao
prisioneiro. As mulheres retiravam a muçurana do pescoço da vítima e a colocavam em sua
cintura. Enquanto uma se ocupava em pintar todo o seu corpo, as outras cantavam ao seu
redor. Iniciava-se então o tormento. As mulheres, também pintadas e adornadas, passavam
a perseguir o cativo, que se defendia atirando-lhes pedras e frutas.
Quase no amanhecer, findava o cauim, e todos encontravam-se completamente
ébrios. Uma mulher então chegava com o tacape inteiramente adornado e o exibia ao
prisioneiro, que compreendia que seu fim havia chegado. O matador, que tinha o corpo
pintado de cinza, aproximava-se pela primeira vez do pátio central e recebia o tacape das
mãos de um ancião, muitas vezes o chefe da aldeia. Isso ocorria ao modo de uma
coreografia: aquele passava o tacape por entre as pernas do matador, que devia sentir-se
honrado. Em seguida, um diálogo desenrolava-se entre o matador e sua vítima. Como
resume Staden, se o primeiro ameaçava – “Vim para matar-te, pois os teus mataram e
devoraram muitos dos meus” –, recebia logo uma brava resposta – “Quando eu morrer, os
meus irão vingar-me”. Nesse mesmo instante, o matador lançava-lhe, com o tacape, o golpe
fatal no crânio. Consumado o ato homicida, o mesmo ancião traçava em seu braço, com o
dente de um animal selvagem, uma marca, espécie de tatuagem.
Assim que o matador se afastava, as mulheres se aproximavam. A esposa do cativo
ia ao encontro do cadáver e chorava compulsivamente. “Lágrimas de crocodilo”, como
alega Léry, uma vez que, em poucos minutos, ela dava espaço às velhas que chegavam com
a água quente, metiam um bastão no ânus do defunto e começavam a despelá-lo. Um
homem vinha ajudá-las, cortando os braços e as pernas na altura do joelho. Algumas
mulheres tomavam esses membros nos braços e saíam correndo ao redor das casas,
lançando urros de alegria. As velhas continuavam sua cozinha: o dorso do prisioneiro era,
então, aberto e as entranhas, retiradas. As mulheres cuidavam de cozinhá-las, e
preparavam, com elas, uma espécie de mingau para as crianças. Elas ficavam com as
entranhas cozidas, como cérebro e tripas, deixando aos homens os membros, cuja
preparação era feita no moquém. Enquanto a carne era vorazmente devorada, os ossos
eram guardados para a confecção de flautas, que viriam a entoar, posteriormente, a música

109
dos inimigos. O matador, de sua parte, não poderia comer; pelo contrário, devia retornar
ao seu retiro e iniciar um longo trabalho de abstinência. No começo da tarde, todos já
estavam satisfeitos. Os convidados retornavam às suas aldeias, levando consigo partes
moqueadas da vítima. A partilha final da carne humana parecia, com efeito, reafirmar os
laços de aliança—comercial e política (em circunstância de guerras), podendo redundar em
matrimônios—entre os grupos distantes, que deveriam retribuir com novas festas.
Realizada essa breve reconstituição de uma antiga cauinagem antropofágica,
passemos a algumas considerações sintéticas. No início da festa, marca-se a oposição entre
doadores, os anfitriões, e tomadores de cauim, os convidados; oposição que, de sua parte,
deriva daquela entre mulheres e homens, ou seja, produtores e consumidores de cauim. Os
homens são, nesse contexto, associados ao domínio exterior e, portanto, aos estrangeiros:
eles circulam pelo território, capturam e são capturados. As mulheres associam-se, por
outro lado, ao domínio interno, não mais à predação, mas à produção: preparam tanto o
cauim como o inimigo. De fato, elas pouco circulam, sua função está relacionada
justamente aos processos de familiarização; como no processamento da mandioca, em que
cumpre extrair o veneno para produzir o alimento, elas devem tornar o perigo advindo do
exterior algo capaz de ser socializado. No caso do inimigo, isso é claro: ele é feito um
semelhante por meio de sua união com uma mulher do grupo e, enfim, convertido em
comida pelas mulheres do grupo. Como sugere Viveiros de Castro (1986) para a cauinagem
araweté, em que são entoados “cantos de inimigo”, a função de anfitrião, receber aqueles
que vêm de fora, oferecer-lhes a bebida e preparar-lhes a comida, é uma função feminina.
Em outras palavras, a entrada do estranho na sociedade tupi deveria passar,
necessariamente, pelo trabalho de produção das mulheres.
Assim como os cunhados e os inimigos, os convidados da cauinagem precisavam ser
familiarizados. Eles ocupavam uma posição de alteridade bastante ambígua, a de afins
classificatórios ou “aliados precários”, uma vez que poderiam tanto tornar-se afins
efetivos, ou seja, esposos das mulheres do grupo anfitrião, que os seduziam, da mesma
forma que faziam com os cativos. Entre os antigos Tupi da costa—e os dados sobre os
grupos tupi-guarani atuais ajudam a confirmar essa constatação—, as alianças políticas,
que envolviam trocas materiais e certos casamentos entre os grupos locais, eram bastante
transitórias. A idéia de “província” à qual se referem os cronistas não representa senão
uma configuração momentânea, o que significa que as alianças, assim como os nexos

110
regionais, eram constantemente feitas e refeitas. Algumas eram mais sólidas, visto que
sedimentadas por meio de matrimônios replicados, mas mesmo nessas circunstâncias
rupturas avistavam-se junto à gênese de novas inimizades. As cauinagens eram, nesse
sentido, eventos que se prestavam à afirmação tanto de identidades (masculinas e
femininas) como de laços de aliança política, em que gentes de grupos locais distintos
reuniam-se para beber e comer a carne dos inimigos, estreitando uma relação de
comensalidade que, no entanto, escondia, nas entrelinhas, sentimentos de hostilidade,
passíveis de explodir a qualquer momento.
A cauinagem antropofágica perfazia um movimento de conjunção entre o grupo
local anfitrião e os grupos locais convidados, algo obtido pela comensalidade propiciada
pela partilha de comida e bebida, sob o preço do estabelecimento de uma disjunção mais
radical, desta vez, entre todos os aliados e o inimigo. Se no início da festa o inimigo era um
ser socializado, portanto pertencente ao grupo local anfitrião, ele deveria ser, ao longo dos
dias em que se desenrolava a bebedeira, ritualmente desligado. Esse trabalho ao mesmo
tempo de conjunção e disjunção evoluía de acordo com a bebedeira de cauim. O ápice do
ritual era, pois, o momento que sucedia os combates simulados—reinvenção da
hostilidade—e quando emergia, enfim, a figura do matador, consagrada por um ancião ou
chefe do grupo anfitrião. O instante da execução era prenunciado pelo fim do cauim,
quando todos se encontravam absolutamente ébrios, com exceção do matador, que jamais
bebia. A indiferenciação promovida entre os participantes da festa devia -se, portanto, ao
cauim. Ébrios, eles diferenciavam-se apenas do matador e da vítima, que estabeleciam uma
relação de “fusão ritual” (Viveiros de Castro 1996a), tornando-se “um só”. Uma vez
separado definitivamente do grupo, reinimizado, o cativo devia ser executado e seu corpo,
enfim, dessubjetivizado, tornado comida a ser partilhada entre os aliados. Ao consumar o
ato da execução, o matador, diferenciado dos demais, mantinha a polaridade que o
separava do resto do grupo: ele não bebia nem comia, e trazia em si uma porção imaterial
de sua vítima.
Se os que comiam e bebiam juntos estabeleciam entre si uma relação de
comensalidade, selando laços de aliança, aquele que não o fazia constituía-se justamente
como perigo e, portanto, deveria ser apartado do espaço coletivo, iniciando um processo
demorado de reclusão. Nos termos de Viveiros de Castro (1996a), o inimigo tornava-se
imanente ao matador, o que supõe que este estivesse submetido a um processo de

111
transformação radical, que deveria ser controlado sob o risco de se tornar irreversível, ou
seja, o matador poderia voltar-se contra os seus, fazendo irromper a desordem no espaço
social. É sob essa ameaça encarnada na figura complexa do matador que os participantes da
festa rejubilavam-se, constituindo -se como um coletivo indiferenciado. O estado de
embriaguez produzia um sentimento de alegria de “estarmos todos juntos” que se opunha
à ética da reserva, marca do cotidiano. Se na vida ordinária, as pessoas restringiam-se a
relações no interior de suas casas ou em seus grupos locais, evitando excessos e agindo
com moderação; na cauinagem, esse quadro se invertia: a desmedida com que se bebia
acompanhava-se também de uma abertura ao exterior, uma comunicação generalizada, que
incluía dois tipos de estrangeiros: aqueles com quem se pretendia estabelecer uma aliança
política—e, portanto, agia-se pela comensalidade—e aqueles por meio dos quais se
desejava perpetuar o princípio da vingança e, nesse sentido, deveriam ser predados.

O sistema canibal yanomami e outros mais

Não há como prosseguir sem mencionar com cuidado a monografia minuciosa de Bruce
Albert, Temps du sang, temps des cendres (1985) que, entre outras questões, procura
adentrar a lógica do sistema ritual dos Yanomam (subgrupo yanomami), que ocupam uma
região localizada nos limites da Guiana Ocidental. O sentido do ritual encontrado entre
essa população pode trazer muitos paralelos com aquele examinado entre os Tupi da costa
quinhentista, e uma das razões para tanto reside no fato de os Yanomam serem adeptos de
uma certa ética canibal que engendra relações de afinidade efetiva, aliança política e
inimizade. O espaço social yanomam é compreendido por Albert como campo de operação
de uma “rede de comunicação intercomunitária”. O autor persegue uma armação
processual que dá conta de um sistema de categorias fundamentalmente contextuais, cuja
estrutura formal se opõe radicalmente aos sistemas de linhagem que possuem um ponto de
referência imutável. O sistema ritual yanomam tem, assim, como propriedade pôr em
ordem e em funcionamento uma armação cosmológica, cujas articulações instauram um
espaço sociopolítico—um eixo estrutural dominante que guarda o princípio dinâmico das
práticas. Dessa forma, os ritos “fundam simplesmente uma estrutura de comunicação
constitutiva da articulação interna de toda a ordem social” (1985:690). O ritual, a meio
caminho entre um instrumento cognitivo e uma prática cultural, junto ao campo político,

112
promove, de maneira indissociável, a articulação de um espaço social sustentado por um
sistema total de comunicação que constitui e institui simultaneamente a organização e a
representação do estado da sociedade em questão; apontam um canal de troca ritual e a
simbólica das mensagens trocadas.
Albert identifica, nas relações entre o grupo local e o conjunto intercomunitário,
um idioma de predação. Esse idioma é colocado no centro das preocupações do autor,
empenhado em reconstituir o sistema político e ritual yanomam, população marcada pela
grande dispersão territorial e pela sua heterogeneidade cultural. Para tanto, o autor
esmiúça as características das acusações xamânicas e as manifestações rituais que incluem
práticas de endocanibalismo funerário e exocanibalismo simbólico—as últimas se
desenrolam sobre um contexto de isolamento e reclusão, ao passo que as primeiras
envolvem festivais interlocais. Essa dissociação entre um rito individual e um rito coletivo
reenvia ao ritual antropofágico quinhentista, em que esses dois aspectos conviviam: de um
lado, a relação entre os convidados e os anfitriões mediada pela comensalidade e pela
embriaguez; de outro, o estado (crítico) de reclusão do matador, que não poderia participar
da festa. Albert enfatiza, com efeito, que tanto um rito como o outro apresentam
dispositivos simbólicos cruciais na articulação da estrutura de reciprocidade canibal
interlocal, disparada por um sistema de agressões, que compreende um contínuo que vai
da feitiçaria “leve” à destruição do “duplo animal”, passando pela feitiçaria de guerra e
pela agressão xamânica. Entre os Yanomam, o grau da agressão corresponde ao grau de
distância social: assim, agressões leves são atribuídas a afins—por exemplo, os visitantes
do festival funerário, que podem lançar feitiços para se vingar de insultos, avareza ou
ciúme sexual—, ao passo que agressões letais são atribuídas a inimigos desconhecidos ou
virtuais, que se valem de poderes xamânicos ou que caçam o duplo animal da vítima74.
Desenha-se, no espaço, um gradiente concêntrico de alteridade e, nesse esquema, o grupo
local ideal composto por uma parentela cognática representa segurança (ausência de
agressão) e, quanto mais se toma distância em relação a ele, maior se torna o perigo.
Noutras palavras, também entre os Yanomam a cognação tende a se confundir com a co-

74
A morte instantânea dos duplos animais é a pior de todas as agressões e, logo, o limite extremo do campo da
violência simbólica multilocal. Entre os Yanomam, o duplo animal representa o constituinte externo da pessoa, o
seu corpo espiritual que, quando morto, acarreta a morte do envelope carnal. Ninguém sabe onde habita o seu
próprio duplo animal, a não ser o fato de ele viver no território de grupos tão distantes que inimigos, capazes de
flechá-lo intencionalmente (ver Albert 1985).

113
residência e, nesse sentido, as relações supralocais são pensadas essencialmente não como
relações de parentesco, mas como relações políticas, comerciais ou rituais. Cabe ao ritual,
diante desse quadro, engendrar relações com esses círculos mais distantes, produzindo
tanto retaliações contra os inimigos—atualizando, assim, o estado de guerra—como laços
de aliança política com os assim chamados “afins classificatórios”, figuras com as quais as
relações de afinidade não são efetivadas pelo matrimônio, permanecendo em estado
potencial.
A razão de ser das empresas rituais iluminadas por Albert reside, pois, na
possibilidade de acionar os dispositivos simbólicos em questão, ora partindo de um
contexto de contato efetivo com os estrangeiros, pessoas de outros grupos locais ou de
proveniência incerta, ora guiando -se pela forma figurada desses contatos, ou seja, pela
interpretação das causas das doenças, mortes e infortúnios.
Um paralelo a respeito desse recorte e procedimento de análise pode ser traçado
com a análise de Dominique Gallois (1988) sobre o sistema etiológico wajãpi. A autora
busca compreender o espaço social desse grupo pelo viés das redes de troca e acusações
xamânicas, que permitem iluminar teorias nativas de alteridade. Como entre os Yanomam,
entre os Wajãpi, o adoecimento é defin ido como resultado de um desequilíbrio da ordem
social, ecológica e cosmológica, relação entre a sociedade e o mundo dos outros—
espalhados em classes diversas, como os afins, os inimigos, os animais e os mortos. As
práticas terapêuticas wajãpi representam, sobretudo, a reparação de uma agressão e
permitem não só confirmar como “ampliar a compreensão da rede de comunicação e
intercâmbio com a alteridade operada” (1988:225). As diversas modalidades de
transformação da pessoa humana configuram tipos de comunicação entre a sociedade dos
vivos e o mundo dos outros. Nesse sentido, a tese de Gallois é de que “a terapia, tanto
quanto a agressão, define e delimita as possibilidades e as opções de intercâmbio entre
domínios do universo em conflito ou, mais claramente, entre os -jar, donos das diferentes
esferas cósmicas” (idem:ibidem). Admitindo uma imbricação lógica entre sistema
terapêutico e etiológico num sistema maior representado pela vingança em que a doença
mobiliza uma rede de relações sociopolíticas, Gallois define, como Albert, o sistema
terapêutico como um sistema ritual, ou seja, que mobiliza por meio de um código simbólico
uma rede de relações concretas com níveis de alteridade sociopolítica. “As alternativas
concretamente escolhidas para o tratamento das doenças reproduzem, de fato, todo o leque

114
de relações concretas com a alteridade: mortos, animais, inimigos, brancos...” (idem:285).
A terapia como ritual confirma a ameaça sofrida pelo doente, seu grupo residencial ou a
comunidade envolvida, introduzindo a possibilidade de retaliação.75
Gallois acentua a relação estreita entre predação e retaliação, vinculação que toma a
forma de um espiral—toda vingança assegura a reparação de uma morte por outra. Nesse
jogo de acusações, o xamã revela seu papel central: ele é um visionário, ou político, que
trata dos desequilíbrios externos, atuando como retaliador. Ele responde aos outros xamãs
e promove a comunicação com o mundo invisível, cumprindo o papel de mediador entre
humanidade e sobrenatureza, entre os homens e os -jar. A cura aparece, então, como
declaração de guerra contra os agentes causadores da doença, acarretando a intensificação
dos conflitos entre os xamãs e, conseqüentemente, entre os grupos locais. Cada um deles
manifesta por meio da figura de seus xamãs sua posição na longa história de conflitos
interlocais ou interétnicos. O fenômeno do xamanismo entre os Wajãpi aponta, pois,
menos a constituição de uma coletividade que o movimento contínuo de divisão dela, de
articulação entre unidades que ora se aproximam, ora se repulsam. “Como instituição, o
xamanismo perpetua essa concepção particular da sociedade, embutida na cosmografia do
universo wajãpi, um mundo dividido entre nichos em conflitos que perpetuamente se
entre-vingam” (idem:337).
Voltemos à etnografia de Albert, da qual vale a pena parafrasear algumas passagens
que se referem aos ritos endo e exocanibais. Comecemos pelos primeiros. Os ritos de
homicídio (unokaimu) sucedem o rito guerreiro (watubamu) que, por sua vez, é realizado
cinco dias depois do rito funerário (reahu) em decorrência da morte de um parente
próximo. Nos ritos de guerra, um dos parentes do morto clama por vingança, realizando
uma incursão pela floresta a fim de flechar o duplo animal (o que significa uma ação letal)
do inimigo responsável pela morte do seu parente. Imitando um urubu negro, ele, agora
um matador, abre uma dívida de sangue, evocando o assassino e suas imagens vitais.
Depois de ter matado o animal e, assim, consumado a vingança, o matador deve retornar à
75
Gallois organiza o sistema terapêutico wajãpi em duas seções: terapias profanas (tratamento de sintomas) e
curas xamanísticas (tratamento das causas). A cura é sempre tida como uma retaliação e envolve um
diagnóstico, a identificação da causa externa, intimamente associada ao jogo político de alianças e dissensos
entre os grupos locais. Todo diagnóstico, acrescenta Gallois, é fundamentalmente uma acusação de natureza
eminentemente política—o xamã identifica a “causa última”, orientando o rumo das relações
intercomunitárias. Os diagnósticos costumam seguir critérios políticos e, portanto, são freqüentemente
alterados dados os diferentes contextos em que eles são produzidos—o sistema etiológico wajãpi se revela
pela sua abertura permanente.

115
sua habitação, onde entrará em reclusão e será cercado de prescrições e proibições: de lá
não deverá sair até que o corpo de sua vítima já tenha se putrefeito. Este tempo de espera é
associado simbolicamente à digestão canibal do cadáver pelo matador por intermédio dos
espíritos necrófagos que habitam o seu peito. Comer o menos possível e evitar quaisquer
tipos de contato é então regra que não pode ser burlada, visto que o assassino encontra-se
em estado de grande vulnerabilidade. Como no caso dos antigos Tupi da Costa, trata-se
aqui de uma instância individualizada, em que o matador deve proteger-se da retaliação da
vítima.
Albert atenta à dimensão política do rito homicida, uma vez que ele instaura uma
estrutura simbólica de reciprocidade canibal entre grupos locais inimigos. Como em boa
parte da Amazônia indígena, entre os Yanomam toda morte é devida ou imputada a uma
agressão humana efetiva ou invisível (ou seja, realizada por meio de feitiços ou agressões
xamânicas). Não há morte que não mereça ser vingada e, nesse sentido, torna-se clara a
dinâmica de estabelecimento de relações rituais de predação simbólica. A parentela do
defunto considera-se coletivamente afetada e logo se sente no direito e no dever de evocar
a tal dívida de substância.76 A partir de então, inicia-se uma troca de “déficit biológico”,
que culmina na troca de mortes. “Ao figurar a troca das carnes corrompidas dos mortos no
seio de um sistema ritual de reciprocidade canibal, os Yanomam se esforçam em
transformar a naturalidade da morte em relação social e política” (Albert 1985:380). A
simetria ritual de trocas de substâncias opõe co-residentes e inimigos em vários graus:
afirmação da interdependência e da estrutura de reciprocidade exocanibal, que faz da
morte uma relação política e faz do político uma relação biológica. “O exocanibalismo
simbólico do rito homicida encarna, então, a contradição interna de um monismo
sociológico que, ao se afirmar associando identidade e reciprocidade (cognatismo e
endogamia), ressalta de modo acentuado os perigos da alteridade que os freqüenta” (idem:
380).
Tendo dissertado sobre a natureza dos ritos guerreiros, que têm como núcleo a
proclamação de uma relação de hostilidade por meio da identificação de um inimigo virtual

76
Entre os Yanomam, alega Albert, a agressão letal diz respeito a um estado de perigo simbólico, pensado em
termos da contração de uma dívida de substância. O “sangue” (ixé) é tido como constituinte biológico
fundamental da “carne” (iyehikë) e agente de toda transformação psicológica e corrupção do cadáver. Toda
forma de agressão humana constitui para os Yanomam uma dupla predação simbólica: ontológica em relação
à imagem vital, e biológica, em relação ao seu sangue.

116
ou efetivo, Albert dirige sua atenção à montagem dos ritos funerários, baseados nas
práticas endocanibais. Por sua vez, esses ritos, ao contrário dos anteriores, não ocorrem
individualmente, sendo realizados com apenas com a participação de diferentes grupos
locais pertencentes de um mesmo conjunto multicomunitário ou nexo regional, o que
ilumina uma rede de trocas econômicas, alianças matrimoniais e políticas. Como no caso
dos Tupi antigos, a relação entre os membros de diferentes grupos locais não é
imediatamente de caráter matrimonial, mas sim do que se pode chamar de “aliança
política”. E como, entre os Yanomam, a política não pode ser dissociada da biologia, de
modo que travar uma relação de aliança desse tipo significa ao mesmo tempo manifestar
solidariedade contra os inimigos comuns e comer os mortos dos aliados—tal o teor do
festival funerário, reahu.
O reahu é composto de três grandes seqüências: luto e exposição do cadáver,
limpeza dos ossos e confecção das cinzas funerárias e, finalmente, consumo—efetivo e
figurado—das cinzas. O estudo do rito de cremação dos ossos permite a Albert examinar
um certo número de representações biológicas e escatológicas associadas aos humanos, o
que restitui um aspecto da dimensão metafísica desses povos. A exposição do defunto,
primeira etapa, atua no sentido de fazer dele um corpo anônimo, desfigurado diante dos
seus. Todo e qualquer traço do morto deve ser destruído de maneira a produzir um
anonimato entre si e para si. Tal ato indica ainda a plenitude social e maturidade biológica,
e, para tanto, o morto não deve ser nem tão jovem, nem tão velho. E o mais importante: a
decomposição de um cadáver de um co-residente reenvia, na teoria indígena, à sua
digestão simultânea por um inimigo (que sofrerá da vingança na instância exocanibal), ou
seja, expor o cadáver em putrefação é assistir à ação do inimigo predador, é dar-se conta
do processo predatório a que toda morte está submetida. Ora, toda morte implica predação
e todo ritual funerário implica uma inserção num sistema mais amplo de agressão.
A limpeza dos ossos e a preparação das cinzas, etapa seguinte, é precedida por uma
caça coletiva cerimonial dedicada ao defunto. O enlutado principal é quem possui a caça e
passa a ser designado como “dono” da cerimônia. O alimento serve, então, de retribuição
pelo serviço funerário. Na manhã que se segue, dá-se a abertura do envelope mortuário
para a limpeza dos ossos: o cadáver encontra-se então em estado de putrefação, sua
digestão é atribuída ao espírito agressor-predador. Cabe, não obstante, aos oficiantes
funerários, necessariamente afins classificatórios do morto, a aceleração do processo

117
decomposição do corpo, tendo em vista a extração dos ossos. Tal processo articula à
distância a complementaridade simbólica de um inimigo predador e de um afim
classificatório, oficiante funerário, no tratamento e partilha dos componentes biológicos do
cadáver: carnes sangrentas absorvidas pelo primeiro, ossaturas secas coletadas pelo
segundo.
O rito opera por um corte bastante definido entre enlutados, membros próximos da
parentela bilateral do morto, e oficiantes funerários, afins classificatórios. Os oficiantes
funerários são necessariamente afins classificatórios e não efetivos (cunhados, por
exemplo) do morto. O enlutado principal é quem escolhe esses oficiantes, que devem ser
no mínimo dois: na primeira parte, um co-residente do morto e, na segunda, um convidado
de outro grupo local. É tido como “incesto funerário” cognatas terem contato com o
cadáver. As cinzas são então destinadas ao banquete cerimonial, que os anfitriões oferecem
aos visitantes. O enlutado principal, organizador do reahu, é excluído em absoluto do
serviço funerário. Como “dono” da festa, por sua vez, ele deve chorar e distribuir a caça
cerimonial de maneira a retribuir o trabalho que os outros lhe prestaram.
Ao contrário do destino dos inimigos, cuja carne crua ou putrefata tem ingestão
figurada, os afins classificatórios têm seus ossos “cozidos” e ingeridos em um grande
banquete. Como acrescenta Albert, se o exocanibalismo apresenta-se como “anti-cozinha”,
pois que se come cru ou podre, no endocanibalismo desponta uma espécie de “cozinha
hiperbólica”. Os ossos são, pois, símbolos de continuidade biológica e suporte da
remanescência escatológica e suas cinzas são ingeridas com um arsenal de “maneiras à
mesa”. O trabalho funerário consiste, assim, em um procedimento de transformação
simbólica concebido como rito de preparação culinária—transformação de um substrato
hipernatural num estatuto hipercultural. Daí a pertinência da idéia de uma “cozinha
hiperbólica”: um canibalismo “sobreculturalizado” pelas mediações e deslocamentos
simbólicos hiperculinários.
Algo próximo ao reahu yanomam podia ser encontrado entre os Wari’, grupo de
língua txapacura de Rondônia. Originalmente adeptos da prática endocanibal, os Wari’
abandonaram tais hábitos, dado o contato intenso com missionários católicos e
protestantes. No entanto, como evidencia Aparecida Vilaça (1993, 1998), essa prática
povoa a memória da população atual e pode-se mesmo afirmar que ela ainda persiste em
sua forma figurada, seja no momento da “devoração” de presas animais concebidas como

118
humanas, seja no ato metafórico de ingerir seus afins, embriagando-os, nas festas, com a
chicha (cauim) azeda. Como entre os Yanomam, o funeral wari’ explicitava um corte entre
os participantes por meio da diferenciação entre aqueles que comem e aqueles que apenas
choram. Os que não compartilhavam laços de consangüinidade com o morto eram os que
deveriam comer da sua carne. Apesar de chamar o defunto por termos de parentesco
consangüíneo—os Wari’, como muitos povos das Guianas, fazem uso da tecnonímia—, os
que comiam eram idealmente afins efetivos. No caso yanomam, de modo diverso, os que
comem são afins classificatórios, ou seja, pessoas que não mantêm laços efetivos de
afinid ade com o morto, o que não significa não podem vir a efetuá-los em um momento
posterior. Outra diferença crucial entre os dois casos é o fato de os Yanomam ingerirem
apenas as cinzas dos ossos—tendo a carne como a “parte dos inimigos”—, ao passo que os
Wari’consumiam a carne dos defuntos e já em um estágio inicial de putrefação: o cadáver
deveria ser comido como se fosse uma presa animal, submetida, todavia, a um duplo
cozimento, no apodrecimento e no moquém. Como entre os yanomam, entre os Wari’
comer o cadáver significava mostrar que ele era diferente de um parente, ou seja, mostrar
que aquele era apenas um corpo dessubjetivado. Ao ser esquartejado e assado, o morto era
tornado irreconhecível, e seu corpo, sede de relações sociais e do parentesco, destruído. O
momento de preparação era, pois, crucial para a sua separação em relação à sociedade dos
vivos.77
Se entre os Wari’ a oposição pertinente era entre consangüíneos e afins efetivos,
oposição pensada também como entre parentes próximos e distantes, entre os Yanomam o
mesmo ocorria entre cognatas e afins classificatórios, os últimos não mantendo com os
parentes do morto uma relação efetiva de afinidade. Se, entre os Yanomam os convidados
de outros grupos locais, que oficiavam o funeral, preparavam e comiam as cinzas, eram
afins potenciais, ou seja, poderiam apenas porventura efetivar os laços de afinidade; entre
os Wari’ os afins efetivos, referidos cotidianamente por termos consangüíneos, deveriam
comportar-se cerimonialmente como afins mais distantes, conferindo sentido à oposição
comer/ não comer o morto. De todo modo, o que se percebe nesse jogo de oposições é que

77
Vilaça & Conklin (1998) notam que uma vez finda a carne, os parentes próximos decidiam se os ossos
seriam queimados e enterrados com o moquém ou se seriam macerados e ingeridos com mel. De modo geral,
são os parentes distantes (afins efetivos) que ingerem os ossos, mas algumas pessoas afirmam que essa parte
do repasto cabia aos netos, que também eram os comedores preferenciais dos miolos assados do morto. A
explicação para tanto pode ser buscada no sistema de parentesco wari’, de tipo oblíquo (ver Vilaça 1995).

119
afinidade revela-se uma posição elástica, oscilando entre a possibilidade de atualização—
realização matrimonial—e de distanciamento—o comportamento agressivo.
Voltemos mais detidamente aos Yanomam, entre os quais a oposição insistente entre
cognatas e afins classificatórios reenvia à oposição clássica entre parentesco, domínio das
relações de consangüinidade e de afinidade atualizada, e política, domínio das relações
organizadas fora do âmbito matrimonial, onde o valor operante da afinidade é, na essência,
potencial. (Lembremos que a política implica não apenas as relações de aliança e
solidariedade, mas também as relações de predação, como a guerra e a agressão.) É possível
afirmar que o reahu engendra ambas as esferas ao mesmo tempo como necessariamente
imbricadas e como separadas. Noutras palavras, o reahu produz o sentido do parentesco—
o grupo de cognatas—e da aliança política—o grupo de afins classificatórios—e o faz a
partir do sentido que provém da inimizade e da agressão. Como demonstra Albert, o ritual
parte das interações entre co-residentes e visitantes, os que comem e os que apenas
choram—todas elas mediadas por diálogos cerimoniais e por etiquetas especiais—para,
então, desembocar na relação entre parentes cognáticos e afins classificatórios constituídos
ao final da cerimônia como unidades discretas. Em suma, a seqüência do reahu compõe-se
do encadeamento de quatro planos principais: principia com a dança de apresentação
(“demonstração de agressividade”), passando à cerimônia de bebida fermentada (“tempo
da comensalidade matadora”), à dança kwakëmu (“conjugalidade predatória”) e,
finalmente, culmina na ingestão das cinzas (“estabelecimento de uma reciprocidade
funerária”). Essa última fase, baseada na oposição entre oficiantes funerários e enlutados,
confere sentido à dicotomia grupo de cognatas e afins classificatórios, reafirmando ao
mesmo tempo os laços de parentesco e o sentido das alianças políticas.
A ritualização da afinidade classificatória passa, pois, por diferentes momentos de
conjunção e disjunção, aproximação e distanciamento entre os grupos. “Tudo se passa,
então, como se o reahu se esforçasse em reduzir toda alteridade social e política nos e entre
os grupos que ele reuniu a uma relação de afinidade potencial” (Albert 1985:539).
Finalmente, concilia -se o ideal do grupo local como um grupo de parentes endógamos e o
ideal de solidariedade política e interlocal. Noutras palavras, o ritual conduz à
indiferenciação entre todos os seus participantes, congregando-os em um grande festival, e

120
isso passa decerto pela embriaguez causada pelas bebidas fermentadas78; para, logo em
seguida, fazer emergir, em seu seio, a diferenciação entre aqueles reconhecidos como
cognatas, ligados por laços de parentesco (consangüinizados ou não), e os afins
classificatórios, estrangeiros por excelência. O reahu distingue, por fim, dois níveis
decisivos da sociabilidade: um mais local, baseado nos laços de cognação, e outro
supralocal, fundado na lógica das alianças políticas, econômicas e cerimoniais, no qual a
afinidade permanece como potência.
Albert vislumbra a integração de co-residentes e estrangeiros no seio de uma
comunidade cuja articulação interna se funde sobre a afinidade potencial. A relação
formalizada entre cognatas e afins classificatórios, transposta em relação ritual entre
enlutados e oficiantes, torna-se por “derivação” , ao longo de um ciclo reahu, o modelo
cerimonial das relações políticas intercomunitárias. O ritual processa a passagem da
ausência de reciprocidade matrimonial e econômica—âmbito do grupo local—à atualização
de uma reciprocidade simbólica, que perfaz o caminho da troca endocanibal à troca de
cônjuges. No endocanibalismo, os casamentos são figurados sobre o modo da predação, da
agressividade e das trocas alimentares, ao passo que a guerra aparece como paródia lúdica,
tematizando a afinidade entre primos cruzados classificatórios como uma relação tênue que
oscila entre reciprocidade e hostilidade, atitudes que devem variar quanto ao grau.
A ausência de isomorfismo entre grupo local e parentela cognática é a base para o
ritual que toma forma simbólica, matrimonial e política. A afinidade classificatória tem
lugar central nesse sistema, ao contrário da afinidade efetiva que reina na vida cotidiana.
No rito funerário, verifica-se a resolução cognitiva e pragmática dos paradoxos, o exterior
ideal é projetado para o âmbito supralocal, em que a solidariedade política é efetivada
apesar da abertura aos perigos virtuais de uma aliança sem reciprocidade. Por sua vez, o
interior ideal é preservado no âmbito local, dada a manutenção da afinidade efetiva que
garante a perenidade do grupo local como entidade sociológica real ainda que conduzida a

78
Como pontua Vilaça (1999) sobre o antigo endocanibalismo wari’, alguns apenas podiam comer a carne do
morto, mas certamente todos deviam chorar, fazendo assim transparecer uma unidade maior que aquela
experimentada nas relações internas ao grupo local. Nesse sentido, o ritual funerário carrega um forte traço
de indiferenciação, ainda que seja para repor, ao final, as diferenças. Vilaça (1996) reencontra, nos dias de
hoje, esse ideal de “comunhão” coletiva nas festas de batismo promovidas pelos missionários católicos. Para
ela, as festas católicas recuperam o sentido das festas de chicha, em que se busca atingir um estado
indiferenciado entre os participantes de diversas proveniências. Nesse sentido, o ritual é invadido por dois
movimentos opostos e complementares: de um lado, a produção de um corte entre “próximos” e “distantes”;
de outro, a congregação das diferenças.

121
um monismo político. Trata-se da operação, em níveis diversos, de dois mecanismos
distintos e contrários, que conferem movimento ao sistema. O reahu promove a atualização
e a representação das alianças interlocais, ou seja, apresenta um sistema global de
repartição de papéis transposta em idioma político. Assim, a afinidade classificatória pode
ser engendrada pelo ritual, que articula endogamia cognática e aliança política, sugerindo
desse modo uma solução conciliadora, capaz de atenuar a tensão entre duas modalidades
de relação—que, de outra forma, poderia ser insuportável—, impondo ordem ao vivido e
procurando restabelecer a harmonia entre esse plano e o pensado, entre a prática social e
os modelos teóricos nativos.

As formas da afinidade

Bruce Albert propõe que exo e endocanibalismo sejam postos em sistema e, em seguida,
analisados em função de sua complementaridade simbólica, para que seja possível
apreender o nexo subjacente a toda essa armação “que só toma corpo como sistema de
reciprocidade simbólica intercomunitária” (1985:527). A consideração dessas diferentes
manifestações em seqüência e em conjunto revela uma “lógica simbólica global”, visto que
estamos diante de um modelo geral, preso a uma ética canibal e que subjaz à política
intercomunitária yanomam. Ambas as formas, endo e exocanibais, apresentam uma
proposição simbólica comum: a equação entre relação de alteridade social e a reciprocidade
canibal, ou seja, toda a relação e troca com a alteridade, seja ela próxima ou distante,
segura ou perigosa, é mediada pelo idioma da predação . Sob esse código, co-residentes são
aqueles que não trocam agressões, pois se o fizerem acarretarão inevitavelmente uma
fissura no grupo local. Em relação a esse nível seguro da co-residência, o estrangeiro é
aquele que se destina a ser consumido num festival funerário ou, então, a ser devorado por
espíritos canibais invisíveis. Na primeira alternativa, vislumbra-se a relação dos co-
residentes com os seus afins classificatórios que, quando mortos, terão suas cinzas
ingeridas; a segunda, por sua vez, põe em campo a categoria dos inimigos, em grande parte
invisíveis, imaginados e, principalmente, muito temidos. Diferente do que acontecia entre
os antigos Tupi da costa, entre os Yanomam, os inimigos não são comidos em festivais
coletivos, mas devorados em atos individualizados pelos espíritos necrófagos que habitam
o peito dos matadores. Não obstante, a oposição entre ritos coletivos (festivais de

122
oferecimento de comida e bebida) e ritos individuais (reclusão) remete à
complementaridade entre as duas modalidades canibais, indicando a existência de um
sistema que se atualiza de forma cíclica: a morte de um cognata (pensada, via de regra,
como resultado de uma agressão humana) exige a presença de um afim classificatório que
consuma as suas cinzas e culmine em uma promessa e uma ação de vingança. Findo o
reahu, deve-se dar início, dias depois, ao ritual de homicídio, desta vez tendo na figura do
matador aquele que realizará o ato canibal sob a sua forma mais absoluta, ou seja, sob a
forma da devoração da carne crua e putrefata da vítima. Entre os Tupi da costa, uma
seqüência semelhante se apresenta; não obstante, a morte do parente próximo exigirá um
ato de vingança, que pressupõe a contenda armada e a captura de um inimigo. Nesse
sentido, o festival endocanibal é deslocado (adiado) para o festival de consumo do cativo,
expressão máxima da realização da vingança.79
No sistema canibal construído por Albert, a forma endo leva à forma exo, o que faz
transparecer o problema crucial da afinidade potencial. Entre os Yanomam, e na Amazônia
indígena de modo geral, os rituais revelam-se capazes de atualizar redes de comunicação
interlocal. Mais que uma instância produtora de um coletivo composta de seres humanos
semelhantes e aparentados entre si, os rituais colocam em cena e destacam figuras com as
quais não se compartilha laços de parentesco efetivos, o que significa uma relação
ambígua, oscilante entre a possibilidade da aliança política (e/ou comercial) e da agressão.80
O ritual atua como mecanismo de apropriação dessas figuras da alteridade que, como
atentaram autores como Albert e Overing, representam perigo, carecendo ser
domesticadas. Na extensa região das Guianas, habitada por povos díspares como os
Yanomami, os Wajãpi e os Piaroa, as figuras de alteridade em questão podem ser tanto

79
É possível vislumbrar no cativo tupinambá uma figura bastante complexa. Uma vez familiarizado pelos
parentes de seu dono, ele é identificado—Florestan Fernandes (1970) e Isabelle Combès (1989) insistem
particularmente neste ponto—ao morto do grupo que deverá ser vingado. Nesse sentido, a sua execução é ao
mesmo tempo um ato endocanibal e exocanibal. Voltarei ao caráter ambíguo do festival tupi mais adiante.
Seria possível afirmar que o ritual yanomam refaz em termos figurados o que o ritual tupinambá fazia em
termos literais. Isso porque a vingança atuada no último pressupõe a captura de um inimigo real, e a não a
relação com um inimigo invisível ou “imaginário”. Ora, no pensamento e na praxis indígena, a separação
entre literal e figurado é bastante problemática. Afirmar que a agressão xamânica é simplesmente uma
“metáfora” da guerra pode ser, por exemplo, um equívoco, visto que os antigos Tupi da costa, que tinham
na guerra de vingança e na captura dos inimigos uma prática corrente, não poderiam prescindir do sistema
xamânico como complemento. Ou seja, para eles, guerrear sempre foi um assunto tão real como “imaginário”,
tão visível como invisível. Para uma discussão sobre esse tema, em especial sobre a guerra tupi, no passado
como no presente, ver Cohn & Sztutman (2003).
80
Essas figuras não são sequer necessariamente humanas. Não obstante, adentrar essa questão exigiria um
grau de reflexão que ultrapassa os propósitos e as capacidades deste trabalho.

123
aquele convidado estimado de minha festa como o agente predador desconhecido que
ameaça constantemente minha saúde e que precisa ser revidado. Ora, essa alteridade não se
apresenta como um bloco em oposição a um núcleo pensado como idêntico, mas, pelo
contrário, é invadida por oscilações e gradações que vão da alteridade minimizada, que
corresponde aos afins efetivados, feitos cognatas e portanto internos ao grupo local ideal,
passando pela alteridade relativa, dada pelos afins classificatórios, aliados mas não por
parentesco, até culminar na alteridade absoluta dos inimigos, que nada mais é senão pura
potência predatória.81
Em suma, voltando aos dados yanomam analisados por Albert, tanto o ritual
exocanibal como o endocanibal colocam em cena um mesmo problema—a alteridade—,
encontrando, todavia, soluções que variam em grau no que se refere à maneira de se
apropriar dela e de como construir, com ela, a vida social. A correlação que se estabelece
entre ambas as formas rituais pode ser, então, resumida e esquematizada por meio dos
seguintes pares de oposição:

Endocanibalismo Exocanibalismo
Ingestão das cinzas (dos ossos) do afim Devoração da carne do inimigo
Cozinha hiperbólica (banquete) Anti-cozinha (comer a carne crua e
putrefata)
Relação entre cognatas e afins Relação entre matador e vítima
classificatórios (alteridade relativa) (alteridade absoluta)
Relação entre homens e mulheres (conotação Relação entre homens
sexual)
Aliança política Guerra
Ritual coletivo Ritual individual
Embriaguez Reclusão
Música Silêncio
Excesso Restrição

81
A crítica da idéia da contrariedade e oposição eu/outro para pensar as sociedades extra-jê é desenvolvida
de maneira densa em Araweté: os deuses canibais, de Eduardo Viveiros de Castro (1986). Para o autor, o
modelo dualista projetado sobre os Jê e Bororo deve ser repensado à luz da noção—deleuziana—de devir.
Viveiros de Castro refere-se especificamente a um modelo antropofágico tupi-guarani que pode ser tido como
uma transformação desse idioma de predação alcançado pela análise de Albert.

124
É possível concluir que o segundo é a transformação do primeiro ou vice-versa. Se
o rito funerário conta com uma fórmula que privilegia a comensalidade, um aspecto de
aliança entre próximos e distantes, firmado por metáforas culinárias (a preparação do
corpo do morto); o rito de homicídio e guerra desfaz a alternativa comensal do primeiro,
revelando a reciprocidade em sua forma negativa, isto é, a afirmação de uma re lação social
por meio de uma ação o mais hostil possível, a devoração e a aniquilação da subjetividade
do outro, traduzidas por metáforas anti-culinárias (dentre elas, a ingestão do corpo
putrefato). Nota-se, então, que esse nexo ritual tematiza a passagem do estado de agressão
(exocanibalismo) para o estado de aliança (endocanibalismo), como se o primeiro fosse
condição para o segundo. Como no yawari e no kwarup alto-xinguanos, é possível entrever
um sistema ritual de caráter global, composto por duas fases principais distintas, cada qual
uma versão transformada da outra. O endocanibalismo problematiza a relação com e a
posição do afim classificatório— o não-co-residente, oficiante funerário—ao passo que o
exocanibalismo ilumina a relação de inimizade, na forma mais radical de agressão. Ora, a
análise de Albert apresenta a afinidade classificatória e a inimizade em termos de
continuidade, como momentos mais ou menos exacerbados de uma ética canibal. O
complexo endo e exo canibal yanomam representa, pois, um sistema ritual total à medida
que põe em movimento planos e categorias diversas de alteridade, atentando sempre para
o jogo de transformações a que esses estão submetidos. Como sustenta Albert, esse sistema
ritual “forma um dispositivo de comunicação social à medida que distingue e articula
esferas sociopolíticas ao colocar em ‘circulação’ e ao repartir entre elas substâncias
corporais, componentes da pessoa, agressões, convites, papéis rituais... Ele constitui a
trama de um espaço social à medida que integra essa comunicação intercomunitária
multidimensional no quadro de uma ‘geografia da alteridade’ (projeção espacial das
categorias de relações intercomunitárias e interindividuais” (1985:550).
É possível traçar um paralelo do sistema canibal yanomam com o sistema canibal
tupinambá, sobretudo se imaginarmos que o ritual antropofágico reunia em si, de modo
sincrônico, o que entre os Yanomam era separado pela diacronia. Proponho, então,
decupar o ritual antropofágico em duas “partes”, uma que cabe ao coletivo de homens e
mulheres, convidados e anfitriões, e que consiste na festa propriamente dita, e outra que
cabe ao matador propriamente dito, pois que este deve executar o prisioneiro de guerra.

125
Na parte da coletividade, tudo culmina, como no reahu, na oposição entre o grupo de
cognatas, aquele que oferece o festival, a comida e a bebida, e os afins classificatórios,
membros de grupos locais aliados que não mantêm laços matrimoniais com o grupo de
cognatas, mas que se relaciona com eles por meio de conotações que vão da sedução
(sexual) à agressividade. Como no reahu, produz-se aí ao mesmo tempo o sentido
parentesco e da aliança política—esta, no caso dos antigos Tupi da Costa, tinha um
significado preciso: a formação dos bandos guerreiros tendo em vista os ataques a inimigos
comuns. Nesse sentido, ao produzir o sentido da aliança política, a festa antropofágica
desenhava também o assim chamado “conjunto intercomunitário” ou “nexo regional”,
tanto no caso yanomam como no caso tupinambá, uma unidade precária, de fronteiras
incertas e que precisa ser refeita a todo momento.
Na parte do matador, o caráter coletivo da festa cede lugar para uma instância
individualizada que o coloca em contato íntimo com sua vítima. Mesmo participando do
ritual antropofágico, o matador deverá privar-se da comida e da bebida, devendo recolher-
se para um ambiente afastado, visto que, ao mesmo tempo em que ele sofre a ameaça de
uma retaliação da vítima, oferece à coletividade um perigo, pois carrega em si próprio uma
porção daquele que matou. Segundo Viveiros de Castro (1996a), há entre o matador e sua
vítima um processo mesmo de fusão de subjetividades.82 Nesse sentido, o par matador-
vítima acaba por se opor radicalmente ao restante da coletividade em festa e, por isso
mesmo, deve se retirar. O que sobra da subjetividade da vítima depois da execução não é
apenas o seu corpo, objetivado e transformado em presa, e sim a sua porção imaterial que
impregna o matador. Como sugere Carlos Fausto (2002), em um ensaio de síntese sobre a
relação entre canibalismo e comensalidade na Amazônia, nos rituais exocanibais, a vítima
é, literal e metaforicamente, decupada em duas partes: a “parte-caça” (ou “parte-coisa”),
que corresponde à sua carne dessubjetivada, e a “parte-jaguar” (ou “parte-sujeito”), que
corresponde à sua porção imaterial revertida em princípio agressivo e que, portanto, deve
ser amansada. Seguindo o raciocínio de Fausto, a carne do inimigo torna-se, como a carne
da caça, comida, podendo ser repartida entre os participantes da festa e engendrando um

82
Segudo Viveiros de Castro (1986), os Araweté, grupo tupi-guarani atual do sudeste do Pará, executam
cerimônias que remetem às dos antigos Tupi da Costa sob a forma de cantos potencializados pelo serviço do
cauim. O cantador assume, então, a posição do inimigo, evocando as palavras do além. Mais uma vez, esses
ritos percorrem um movimento de aproximação fusional e introjeção de diferenças.

126
ciclo de comensalidade.83 Nesse ponto, nota-se uma inversão quando se passa do caso
yanomam para o caso tupinambá. Entre os primeiros, no ritual coletivo, os afins
classificatórios ingerem as cinzas dos ossos, que são cozinhadas, ao passo que a ingestão da
carne (crua e putrefata) remete ao ritual individual. Entre os últimos, é a carne (cozida) que
deve ser ingerida—por todos—no ritual coletivo, sendo os ossos um assunto para o
matador, que não come e cujo principal objetivo é, justamente, esfacelar o crânio da
vítima. Quanto ao destino do restante da ossatura, sabe -se apenas que das tíbias eram feitas
flautas, utilizadas em outras ocasiões rituais para tocar a “música dos inimigos”.

A parte da coletividade A parte do matador


Ingestão da carne (cozida e moqueada) do Esfacelamento do crânio (ossos) do
inimigo inimigo
Cozinha hiperbólica (banquete) Ausência de cozinha
Relação entre cognatas e afins Relação entre matador e vítima
classificatórios (alteridade absoluta)
(alteridade relativa)
Relação entre homens e mulheres Relação entre homens
(conotação sexual)
Aliança política Guerra
Rito coletivo Rito individual
Embriaguez Reclusão
Música Silêncio
Excesso Restrição

Tanto no caso yanomam como no caso tupinambá, é preciso tomar as duas “partes”,
coletiva (baseada na comensalidade) e individual (baseada na predação), em sua imbricação

83
Nesse sentido, conclui Fausto, deixaria de haver canibalismo propriamente dito, pois o que se come não é
mais gente. Algo análogo é relatado por Joanna Overing (1995) a propósito dos Piaroa: entre estes, toda caça
deve ser xamanizada e, assim, transformada em vegetal. Isso ocorre, pois os Piaroa acreditam que os animais
são, de fato, humanos e se disfarçam sob roupas animais. Comê-los simplesmente seria cometer um ato
canibal—perigoso como o é o incesto—e, assim, é possível convertê-los em puros corpos, em pura comida,
retirando-lhes toda potência humana. Fausto acrescenta que se o ato de comer animais e pessoas pode ser
reduzido a uma forma de comensalidade, dada a possibilidade de extração da “parte-sujeito” da carne via
técnicas de xamanização e de cozinha, o ato comer a carne crua remete a uma situação delicada, pois implica
colocar-se no ponto de vista do jaguar, animal predador que só come cru.

127
necessária. Isso porque os dois pares de oposição colocados em movimento—cognatas e
afins classificatórios, num caso, e matador e inimigo, no outro—revelam, com efeito, um
sistema de relações que não pode ser reduzido a uma dualidade, mas que é composto por,
no mínimo, três termos. A primeira oposição só pode existir devido à segunda, pois o
inimigo é o pivô da realização do ritual interlocal e, portanto, da construção dos laços de
parentesco e de aliança política. Os três termos que constituem o sistema são, portanto,
cognatas, aliados políticos (afins classificatórios) e inimigos. O disparador do ritual consiste
na identificação de um inimigo—real ou virtual; visível ou invisível, pouco importa—
como causa da morte de um parente. A partir de então será dirigida a vingança, uma
abertura à alteridade absoluta acompanhada de uma abertura à alteridade relativa. Assim,
estabelece-se uma relação de aliança política sob o preço de se estabelecer, em outro plano,
uma relação de hostilidade consumada pela vingança. A condição de constituição tanto do
grupo de cognatos como de seus laços de aliança política, que redundam no desenho
precário de um nexo regional, jamais deixa de estar dada na relação fundante com a
exterioridade e com o inimigo.
Avancemos para outras paisagens etnográficas para colher novos paralelos. Entre
os Arara, povo de língua caribe que habita a região do baixo Xingu, foi realizado por
muito tempo um ritual denominado ieïpari (no caso, um poste cerimonial), caracterizado
pela execução de um inimigo de guerra. Hoje em dia, dado o contexto de pacificação, o
ritual permanece, sendo o inimigo, no entanto, substituído por certas espécies de caça. O
caráter individualizado dos rituais de homicídio yanomam cede lugar a um festival
idealmente interlocal marcado pelo processo de redução do inimigo-caça ao valor da
bebida alcoólica, ou seja, pela transferência da substância do corpo do inimigo-caça para a
bebida ritual, imediatamente consumida na festa. Segundo Márnio Teixeira-Pinto (1997),
trata-se de um rito que problematiza a relação entre o inimigo e a sociedade a partir do
modelo do sacrifício dos cativos de guerra. Como o ritual antropofágico tupinambá, o
ieïpari consiste numa celebração por assim dizer sintética: parte de um estado de alteridade
absoluta—aniquilação do inimigo—para celebrar um estado de alteridade relativa—a
relação entre afins por meio de metáforas sexuais. Se, no passado, o ritual envolvia
diferentes grupos locais que, como nas Guianas, deveriam corresponder a parentelas
cognáticas; no presente, dada a aglutinação dessas parentelas em grandes aglomerados,
altera-se o cenário sem, contudo, afetar as relações de base. Assim, o sistema de troca

128
estabelecido entre os diferentes grupos, instituído sobretudo na troca de carne por bebida,
é mantido, engendrando a interação entre os membros dos grupos residenciais que
convivem numa mesma aldeia sem abrir mão de suas diferenças.
O poste cerimonial i(eïpari) traz o crânio dos inimigos, cuja ingestão simbólica
ocorre por meio da transferência da substância do corpo da vítima para a bebida
fermentada preferencialmente de mandioca (piktu ), preparada pelas mulheres da aldeia.84 O
inimigo é, nesse sentido, reduzido ao valor da bebida que, por sua vez, passa a engendrar
uma intensa comunicação entre os participantes da festa. Como acrescenta Teixeira-Pinto,
“se não se incorpora o inimigo com o valor da carne, mas com o atributo da bebida, isto é,
se não são, no modelo, canibais, os Arara são igualmente agentes de uma predação: de uma
predação que transforma e transfere valores extremos para o interior das trocas em sociedade”
(1997:130-1; grifos meus). Mais uma vez, estamos diante de um modelo de reciprocidade
canibal que, de sua parte, lança mão de um mecanismo de transferência: o valor da carne
do inimigo (atualmente, após o processo de “pacificação”, representada pela carne de caça)
é transposto para a bebida que mobiliza um ritual coletivo, em que a hostilidade inicial dá
lugar a uma relação de aliança, quiçá matrimonial, já que ali os grupos em questão
praticam exogamia. No ieïpari, o que era inicialmente hostil é transferido para um esquema
de comensalidade: a oposição entre sociedade e inimigo transforma-se naquela entre
convidados, que portam a carne, e anfitriões, “donos” da bebida. Com efeito, o mesmo
esquema inferido acima faz-se notar: a abertura em relação à alteridade absoluta, à
inimizade, é o que engendra a comunicação com a alteridade relativa e, nesse sentido,
abre-se a possibilidade para a construção de alianças de vários tipos, inclusive
matrimoniais. Noutras palavras, o que permite a comensalidade entre os grupos que
festejam juntos é a predação do inimigo. Comensalidade e predação são, entre os Arara e
no alhures amazônico, duas formas de relação intercambiáveis.
O ieïpari revela-se, pois, um processo de transferência de uma relação de inimizade
a uma relação de afinidade, no caso, afinidade efetiva. Um ponto que não pode ser

84
Segundo Teixeira-Pinto (1997), carne e bebida se articulam num sistema cujo eixo principal é a doutrina
nativa sobre a circulação de uma substância vital, chamada de ekuru. Esta é obtida por meio da morte dos
animais de caça e da transformação dos vegetais na bebida fermentada, tidas como fonte primordial de
aquisição de substâncias vitais pelos humanos. O autor afirma que os rituais arara são a maneira pela qual a
doutrina nativa de circulação da substância vital se transforma num princípio de articulação dos vários
subgrupos num esquema de reciprocidade e dependência mútua. Em todos esses rituais, verifica-se o nexo
central da troca de carne por bebida.

129
negligenciado é o fato do termo ïpari designar ao mesmo tempo o nome do poste que
contém o crânio do inimigo e uma categoria de determinação objetiva de qualquer relação
que possa se estabelecer entre os nascidos em grupos diferentes, ou seja, uma relação
básica de afinidade. Ïpari, figura base do afim, carrega as duas faces da alteridade a que
tenho feito referência ao longo de todo este capítulo: aquela com a qual se quer estabelecer
uma relação de qualidade (alteridade relativa) e aquela que deve ser predada (alteridade
absoluta). O ritual ieïpari não é senão a manifestação dessa “confusão”, o que representa
menos uma contradição—hostilidade como antítese da reciprocidade—que a
complementaridade que permite a passagem lógica do estado de alteridade absoluta para o
de alteridade relativa; pois que ali o inimigo é o afim, o afim é o inimigo, e a lógica das
relações desponta para fora do universo domesticado, adentrando o domínio da predação
generalizada.
É possível afirmar, finalmente, que o ieïpari, assim como o sistema exo e endo
canibal yanomam e o festival antropofágico tupinambá, encena o problema da afinidade na
Amazônia, como esmiuçado por Viveiros de Castro (1993), ou seja, como uma categoria
elástica capaz de articular os níveis mais locais—o do grupo local endogâmico—aos mais
globais—os sítios da inimizade—, passando pela constituição de um espaço sociopolítico
ou supralocal. O importante nesse contínuo, garante o autor, consiste no fato de que o
sentido está dado na exterioridade e, assim, a afinidade por definição não é aquela que se
efetiva no seio do grupo de cognatas, mas sobretudo que se mantém em estado de pura
potencialidade, engendrando figuras da alteridade alheias ao parentesco propriamente
dito. Ora, como já ressaltado, são essas figuras as que povoam o ritual, operando ao mesmo
tempo uma abertura radical ao exterior e a possibilidade de construção de uma
interioridade por meio de laços efetivos de afinidade, ainda que para serem depois
engolidos pelo idioma da cognação.
Buscando a singularidade do modelo amazônico em geral, e do guianense em
particular, Viveiros de Castro investe na noção de “afinidade potencial” como medida para
as diversas relações com a alteridade e como categoria que permite a passagem da situação
de distância extremada à outra de distância relativa, e vice-versa. Recordemos que Bruce
Albert enfatiza a ruptura, evidente entre os Yanomam, entre a afinidade classificatória, que
tem lugar nos momentos rituais e na figura dos aliados políticos, e afinidade cognática,
privilegiada na vida cotidiana. Viveiros de Castro traduz essa oposição por outra, dada

130
entre a afinidade potencial de afinidade virtual—a última se não é ainda efetiva, existe para
se atualizar, ao passo que a primeira não pressupõe uma necessidade de atualização, sendo
sobretudo uma afinidade ritual e política, situando-se fora da esfera do parentesco
propriamente dito.85
O autor estende a noção de afinidade potencial para pensar o conjunto da paisagem
amazônica, e mesmo das terras baixas sul-americanas. Como já discutido, dois modelos
divergem mais radicalmente. Os Jê e Bororo caracterizam-se pela entronização dos afins
potenciais no interior do espaço social, ao passo que na Amazônia—onde o caso guianense
aparece como a expressão mais elementar—, o afim potencial deve ser buscado alhures. Se
a oposição que faz sentido entre os Jê é aquela entre corpo e nome (personagem e
substância), nas Guianas, é o par proximidade e distância que engendra as posições de
alteridade.86 Identificar pessoas com as quais se estabelece uma relação marcada de
alteridade é, assim, um processo infinito que pressupõe a fabricação da sociedade.
Segundo Viveiros de Castro, os afins potenciais amazônicos são aqueles que operam
a “abertura sintética do campo social” (1993:179). Ao contrário da afinidade efetiva,
reduzida aos afins contaminados pela consangüinidade, a potencial abre a introversão
localista do parentesco para o comércio com a exterioridade. Ela implica, outrossim, a
atuação de “terceiros incluídos” em relações sociais fundamentais, caracterizados na
maioria das vezes por “relações de não-parentesco”, tais os cativos tupinambá, que tomam
a forma de “cunhados paradoxais” e que devem ser devorados, e os oficiantes funerários
no reahu yanomam, que devem devorar o morto do grupo e que podem apenas porventura
se tornar cunhados. Isso sem falar nos inúmeros exemplos oferecidos pela etnologia
americanista, dentre os quais os visitantes (pawana) do festival waiwai acima mencionado,
figuras imaginadas e dramatizadas. Em suma, trata-se, sobretudo, de mediadores que
operam o trabalho de significação da oposição simplesmente formal entre consangüinidade

85
O reahu yanomam revela para essa antinomia uma resolução a um só tempo cognitiva e pragmática,
articulando um ideal exterior (solidariedade política) e um ideal interior (afinidade cognática). A primeira
garante a perenidade do grupo local como entidade sociológica ideal, ou seja, composta por cognatas, ainda
que conduzida ao monismo político. A segunda assegura a integração supralocal, mas dá abertura aos perigos
de uma aliança sem reciprocidade.
86
Viveiros de Castro indica uma fissão decisiva entre afins efetivos e potenciais dada pelas categorias de
proximidade e distância: “O gradiente da distância é o terreno por excelência da performação, da interação,
virtualmente constitutiva entre norma e ação, estrutura e história. A simplicidade do modelo mecânico de
aliança simétrica amazônica impõe a tradução estatística complexa (Taylor 1983), que não pode ser
descartada pelo recurso usual à contingência demográfica: aqui o ‘jogo’ das regras é parte das regras do
jogo” (idem:170).

131
e afinidade, dando “ao sistema seu dinamismo propriamente racional. E eles são efetuações
complexas da afinidade potencial, cristalizações rituais e políticas dessa categoria
tipicamente amazônica” (idem:178).
Viveiros de Castro conclui que “a afinidade potencial é o lugar onde o parentesco,
como estrutura, conhece seus limites de totalização, ecoando apenas como idioma—como
metáfora que só ganha sentido pleno porque se afasta da letra. O parentesco (e a aliança
matrimonial que o cria) é estrutura estruturada, comandada pela estrutura estruturante da
exterioridade, que se exprime como afinidade potencial” (1993:179). Nesse sentido, a
afinidade potencial deve ser compreendida como um valor propriamente transcendental,
um princípio sintético apriori, suplementar à oposição afinidade/consangüinidade. Trata-
se, pois, de um encontro da teoria do dravidianato amazônico, 87 desenvolvida por outros
autores americanistas, como os próprios Peter Rivière e Joanna Overing, com as premissas
das Estruturas elementares do parentesco de Lévi-Strauss (1982): é necessário supor,
segundo Viveiros de Castro, um princípio lógico análogo ao “dom” maussiano que seja
capaz de dar conta da antinomia “eu”/ “outro” na Amazônia, e esse estaria dado na noção
de afinidade potencial. Assim, antes de se perguntar o que é o parentesco na Amazônia, é
preciso perguntar-se por o que o faz possível. A resposta do autor consiste na idéia de que a
afinidade é, no pensamento ameríndio, anterior à consangüinidade e, nesse sentido, a
última só pode existir por meio de um trabalho sobre a primeira.88 Em linhas gerais, propus
neste capítulo que este trabalho sobre a afinidade é justamente o foco do ritual, que
sinaliza tanto a passagem da predação para a comensalidade como o contrário,
evidenciando que se o parentesco e os laços sociais (e políticos) podem ser feitos, isso
87
Viveiros de Castro recoloca o problema da afinidade nos sistemas de parentesco amazônicos, evidenciando
que esta não recebe o mesmo estatuto da consangüinidade, justamente o contrário do que ocorreria nos
sistemas dravidianos “clássicos” da Índia meridional, sistemas terminológicos de duas seções que dividem o
mundo social simetricamente entre afins e consangüíneos. Contrapondo-se à transposição direta do modelo
indiano proposto por Louis Dumont (1975) para o campo amazônico, Viveiros de Castro propõe que, no
dravidianato amazônico, o par afinidade e consangüinidade seja pensado em termos de uma assimetria.
88
Refiro-me aqui às reflexões posteriores de Viveiros de Castro sobre o problema da afinidade. No primeiro
artigo, de 1993, ele pensou a articulação entre afinidade e consangüinidade a partir da consideração,
inspirada pelo modelo dumontiano do “englobamento dos contrários” (ver “Posfácio” in Dumont 1997), de
um nível local (onde a consangüinidade engloba a afinidade) e de um nível supralocal (onde a afinidade
engloba a consangüinidade), o que se devia à primazia de um idioma espacial. Já em um ensaio mais
recente—“Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco na Amazônia” (2002)— o
autor repensa essa relação de modo mais abstrato, qual seja, tomando a consangüinidade como via de regra
um caso da afinidade. Nesses termos, o parentesco amazônico emerge como esfera que precisa ser construída,
ao passo que a afinidade—não a afinidade efetiva, mas a afinidade potencial—revela-se como dimensão
dada, fundo de diferença a partir do qual a socialidade extrai sua existência. Mais uma vez, a afinidade é
designada de modo abstrato: trata-se de uma “afinidade antes dos afins”, uma pura virtualidade.

132
significa que eles também podem ser desfeitos. E a imagem desse desfazer, dessa abertura
de um esp aço local e seguro para uma exterioridade perigosa e ambígua, impregnada pela
predação generalizada, é o que confere sentido à existência social.
A encenação da afinidade potencial, que parece apresentar-se de modo insistente na
Amazônia, revela um contínuo formado pelos diversos níveis concêntricos de alteridade.
Nesse sentido, identidade e alteridade aparecem não como sítios rigidamente delimitados,
mas antes como posições intercambiáveis, que se contaminam, apontando algo a ser
construído. O ritual apresenta-se como lugar desse intercâmbio e de um “achatamento”
dos níveis: aquele que era nitidamente um inimigo—ser proveniente de paradeiro
desconhecido e com o qual, em princípio, não se estabelece contato algum—é submetido a
um campo de sociabilidade e, desta forma, passa a ser taxado segundo categorias de
afinidade efetiva ou atualizável, por exemplo, como um primo cruzado, um cunhado.
Desta forma, o ritual traz à tona aspectos hostis da relação entre afins efetivos ou
atualizáveis, promovendo encenações de embates, sobretudo para lembrar que o perigo
que reside em todas as formas de alteridade está mais próximo do que se imagina. Se o
inimigo pode ser afinizado, trazido para dentro dos limites do espaço social, também o afim
e o estrangeiro devem ser hostilizados. Como afirma Aparecida Vilaça, generalizando a
partir do caso wari’: “O estrangeiro é um projeto de inimigo. O processo de diferenciação
interna, de ‘estrangeirização’, é parte do processo de ‘inimização’ que pode se efetivar se a
ruptura for mais radical, com uma interrupção total das trocas de festas e de mulheres.
Conceitualmente, esse processo é reversível, ou seja, aqueles tomados como inimigos
podem ser reincorporados se voltarem a realizar trocas” (1996:48).
As conclusões de Viveiros de Castro sobre o lugar da afinidade potencial
alinhavadas aos exemplos rituais aqui trazidos nos permitem vislumbrar a constituição de
redes de comunicação, geralmente de ordem supralocal, operantes na paisagem amazônica
e, sobretudo, entre as populações guianenses. Se este capítulo debruçou-se sobre o
problema da geração de tais redes, bem como sobre a constituição dos termos que travam
relações entre si, o capítulo seguinte deverá enveredar por um tema mais específico, o
lugar das bebidas fermentadas nesses sistemas de comunicação e, mais precisamente, o
sentido da embriaguez que elas provocam. Desse modo, trata-se de passar da pergunta
sobre a configuração de redes de comunicação para aquela sobre a natureza mesma dessa
comunicação, que diz respeito, muitas vezes, a um estado embriagado.

133
3. Paisagens dionisíacas

Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele
desaprendeu a andar e a falar, e está pronto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus
gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do
interior do homem também soa algo de natural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha
agora tão extasiado e enlevado, com vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais
artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação
do Uno -primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez.

—Friederich Nietzsche, O nascimento da tragédia

Variações sobre o tema da embriaguez

Os povos amazônicos conhecem um número vasto de receitas de cervejas e hidroméis,


bebidas alcoólicas obtidas através da fermentação de um vegetal ou do mel misturado à
água. Os vegetais mais usados para a confecção dessas bebidas são a mandioca (amarga ou
doce) e o milho, alimentos que estão na base da alimentação desses povos, ainda que não
seja incomum encontrar o uso de frutas, como banana e abacaxi, e de outros tubérculos,
como inhames e batatas-doces. Esses ingredientes são freqüentemente mastigados por
mulheres, envoltas por uma série de restrições e tabus, que variam conforme o local, e é da
saliva delas que advém o fermento primordial. Como aponta Philippe Erikson, em um
sobrevôo pela culinária ameríndia, “certas receitas indicam a mistura de elementos, mas
em regra geral, uma só planta domina, conferindo à beberagem um sabor e uma cor
bastante distinta. A cerveja de mandioca é branca, a de milho amarelada, a de inhame mais
violeta, ao passo que aquela feita dos frutos da palmeira Bactris tendem ao laranja”
(2004:5). As cervejas que se espalham pela paisagem amazônica recebem denominações das
mais variadas, como caxiri, cauim, caiçuma e chicha. Caxiri é um termo bastante difundido
no norte-amazônico, e em especial na região das Guianas. Já cauim é o termo comumente
utilizado pelos grupos de língua tupi, como os antigos Tupi da costa e os atuais Araweté e
Juruna.
São raros os relatos etnográficos que, ao descrever momentos cerimoniais, não
fazem referência às vastas bebedeiras que ali se desenrolam. Comparando monografias das
mais variadas épocas e lugares, é possível afirmar que tais bebidas atuam como elementos

134
aglutinadores e por assim dizer mínimos, em torno dos quais a sociabilidade pode se
estabelecer. De modo geral, elas ganham o estatuto de “marcador temporal”,
acompanhando os momentos de passagem importantes na vida das pessoas, e sobretudo as
atividades coletivas que envolvem o encontro e o intercâmbio entre diferentes grupos
locais e residenciais. Em grupos distantes uns dos outros, como os Wajãpi, os Juruna e os
Arara, não poderia haver festa sem bebida, e quanto mais importante a festa, quanto maior
o número de convidados que ela mobiliza, maior a quantidade de bebida exigida e,
portanto, maior o grau de embriaguez atingido. Como já insistido no primeiro capítulo, o
teor alcoólico dessas bebidas costuma variar conforme o tamanho da festa: tudo se passa
como se em grandes ocasiões, em que se envolve uma verdadeiro esforço social, a cerveja
tivesse de estar mais “azeda”, mais “forte”, mais “preparada”.
Entre os Matis, por exemplo, grupo de língua pano da Amazônia ocidental,
Philippe Erikson (2004) encontra uma forte distinção entre cerveja de mandioca ou banana
da terra e cerveja de milho. Apenas a segunda provocaria embriaguez. Se a primeira está
ligada às pequenas celebrações, tal a integração do bebê no círculo dos parentes de uma
mesma casa comunal, a segunda é fundamental nos rituais de iniciação, em que os meninos
são integrados ao mundo dos adultos, e essa passagem é marcada pela aplicação de
tatuagens.89 Em províncias como essas aqueles que consomem apenas água estariam
relegados a um estado de selvageria. Segundo Erikson, os Matis alegam que a melhor
cerveja é aquela que contém menos água. Os Matis proíbem fortemente o consumo de água
fresca “associando simbolicamente o elemento líquido à morte” (idem:49). Algo próximo
parece ocorrer com os Chacobo, grupo pano da Amazônia boliviana, que qualificam a água
pura de jënë pasha (“água crua”) em contraste com as preparações fermentadas, concebidas
como jënë ria (“água verdadeira”) (idem:7).
Concordo com a premissa de Erikson de que as bebidas fermentadas sejam tratadas
como uma espécie de “adjuvante do pensamento”. No entanto, gostaria aqui de perseguir
um tema que o autor julga secundário entre os Matis, a embriaguez como disparadora de
um movimento de comunicação entre termos distanciados—humanos e não humanos e
humanos entre si—a partir da produção de um estado alterado, de um êxtase, que não é
nem deve ser atingido individualmente, mas que exige a experiência coletiva. Embriagar-

89
Haveria entre os Matis, ainda, um terceiro tipo de cerveja, obtido da fruta de uma palmeira que, segundo o
autor, é consumida nos momentos de comunicação com os mortos.

135
se é sair de si, é romper as fronteiras entre o eu e o outro, de modo a se experimentar como
outro—tal máxima nos conduz a um problema cosmológico fundamental na Amazônia, que
cabe aqui ser discutido.
A embriaguez como tema foi abordada de maneira atenta notavelmente na
literatura sobre as populações de língua tupi-guarani. Antes de existir qualquer horizonte
de sistematização etnográfica, os viajantes europeus e cristãos, que nos séculos XVI e XVII
visitavam a costa brasílica, já demonstravam espanto e admiração pelos festivais—quiçá
diabólicos—regados a muito cauim, e não raro carne humana. Assim descreve Hans
Staden, que sobreviveu ao cativeiro entre os Tupinambá, inimigos mortais dos
portugueses: “Sentam-se em volta de panelas, alguns sobre a lenha, outros no chão. As
mulheres servem bebidas, como é costume entre eles. Alguns se levantam, cantando e
dançando em torno dos potes. Aliviam-se de suas águas no mesmo lugar em que bebem. O
banquete dura a noite inteira. Eles dançam entre as fogueiras, gritam e sopram seus
instrumentos. Quando ficam bêbados, fazem uma gritaria medonha. É raro observar
alguma briga nesses momentos. São muito prestativos entre si, portanto quando alguém
tem mais comida do que o outro, dá um pouco a este” (1998:149).
O huguenote Jean de Léry é quem oferece provavelmente o melhor relato sobre o
consumo de cauim, que segundo ele era grosso e tinha gosto de leite azedo. No nono
capítulo de Viagem à terra do Brasil, de 1578, ele compara o cauim ao vinho para, enfim,
estabelecer entre essas substâncias a mesma dignidade moral. De fato, religiosos, presentes
na fundação da França Antártica, aceitavam celebrar a Ceia cristã com cauim, encontrando
nele o mesmo potencial celebrativo propiciado pelo seu fermentado de uva (Lestringant
1997). Léry descreve como as mulheres—e sobretudo as virgens—produziam o
fermentado a partir da mandioca ou do milho, aproveitando para sugerir novas analogias
entre a produção de bebida e a de vinho em seu país natal. “Depois de as cortarem [o aipim
ou mandioca] em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres as fervem em
grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas do fogo e deixam-
nas esfriar. Feito isso acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as
depois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com
um pau até que tudo esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a
fermentar em vasos de barro de capacidade a meia pipa de vinho de Bo rgonha. Quando
tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. Esses vasos

136
têm o feitio das grandes cubas de barro nas quais vi fazer-se a lixívia em alguns lugares do
Boubonais e da Auvergne: são no entanto mais estreitos no alto que no bojo” (1980:129-
30).
Não obstante o esforço de aproximar a bebida selvagem à européia, Léry nota entre
os indígenas alguns costumes imperdoáveis para um cristão (e, sobretudo, para um
francês), no que diz respeito à maneira de beber. A começar, o cauim era ingerido um
pouco quente. Em seguida, jamais se comia ao beber cauim, pelo contrário, bebia-se de
barriga vazia e em demasia—toda uma cuia de um só golpe, e logo se via uma rápida
sucessão de cuias—de modo a provocar o vômito. Ou seja, o cauim distanciava-se do que
um francês poderia conceber como “cozinha” e, com efeito, situava-se aquém dela,
aproximando-se de uma espécie de “anti-alimento”. Em uma cauinagem, descreve Léry—e
nesse ponto nos transportamos mais uma vez para as sociedades amazônicas atuais—, era
necessário beber em excesso e até o findar de toda a bebida, e este era um código decisivo
de comportamento, que deveria ser seguido por todos os participantes adultos da festa.
“[...] a primeira coisa que fazem as mulheres é um pequeno fogo em torno dos potes de
barro para aquecer a bebida. Começam então por uma das extremidades a descobrir o
primeiro pote e a remexer e turvar a bebida de que vão tirando as cuias cheias [...]. Os
homens passam dançando, uns após outros, junto das mulheres que entregam a cada um a
sua cuia cheia; e enquanto os homens bebem de um trago elas, no desempenho do ofício de
despenseiras, não esquecem de bebericar sofrivelmente e isso tantas vezes quanto
necessárias para que na centena de potes ali enfileirados não fique uma só gota de cauim.
Com efeito, eu os vi não só beberem três dias e três noites consecutivas, mas ainda, depois
de saciados e bêbados a mais não poder, vomitarem tudo o quanto tinham bebido e
recomeçarem mais bem dispostos do que antes; deixar a função fora em verdade expor-se a
ser considerado efeminado, pior que schelm [sujeito à toa] entre os alemães. O curioso é
que os tupinambás nada comem durante as bebedeiras do mesmo modo porque não bebem
às refeições muito estranhando ver-nos entremear uma e outra coisa á nossa moda”
(idem:131).
A paixão pelo cauim entre os antigos Tupi da costa aparecia sob as lentes dos
cronistas de maneira exacerbada, e grande parte desse espanto devia -se à forte imbricação
entre a cauinagem e a execução—e devoração—do inimigo de guerra, como já ressaltado
no capítulo anterior. Léry descreve o ritual antropofágico como a maior de todas as

137
cauinagens, podendo perdurar por três dias e três noites, o que reenviava para este
religioso a rituais e “transe”, bem como aos grandes bacanais da Antiguidade clássica,
como os cultos dionisíacos, que combinavam a embriaguez do vinho ao sacrifício de
animais de criação. As cauinagens eram vistas sob o prisma do paganismo dos antigos
gregos e romanos, mas essa projeção, decerto investida de entusiasmo, não deixava de
conviver com outra, mais horrorizada, que implicava o horizonte demoníaco e reenviava a
outros ritos que povoavam a Europa da Contra-Reforma, tal o sabá envolto na atmosfera da
feitiçaria. A embriaguez pelo cauim era ao mesmo tempo a serventia da casa para o
visitante amigo que passava pela aldeia, e que era bradado por meio de um choro
cerimonial, e uma maneira definitiva de dizimar o inimigo de guerra (antes de morrer, este
deveria beber, ou seja, participar do festival sua própria morte). A gentileza era
transfigurada em barbárie e esta, de certo modo, em gentileza, uma vez que o inimigo era,
antes de se destinar ao moquém, feito cativo e tornado integrante do corpo social.90 Bebia
ele o cauim das boas vindas sabendo que aquele era o mesmo líquido com o qual
comemorariam, tempos depois, o esfacelamento de seu crânio.
“Eles bebem porque têm muita hostilidade”, argumentava Léry em busca de
alguma explicação para tamanho apreço pela embriaguez. Beber de maneira excessiva, e
não comedida como nos rituais cristãos, seria a expressão de um impulso incontrolável,
irracional, para não dizer desumano, cuja visada seria sempre a guerra, a destruição de
outros seres humanos. Que outro sentido poderia ter essa doação de belicosidade, esse
sentimento intenso de hostilidade, para os cronistas tão imersos na cosmologia cristã
quinhentista que eram Jean de Léry, Hans Staden, André Thevet e tantos outros? O
sentido propriamente dito dessas práticas que o Ocidente alimentou demasiada reprovação
entrou na pauta de autores como Florestan Fernandes (1970). Com este autor, e este é o
ponto que interessa para a presente discussão, foi possível transformar o dado orgiástico
em objeto de indagação teórica. O material etnográfico produzido pelos viajantes foi enfim

90
Como conta Hans Staden, a propósito de sua captura pelos Tupinambá que o confundiram com um
português, povo com quem mantinham relação de inimizade: “Enquanto discutiam, fiquei ali rezando a Deus
e esperando pelo golpe. Enfim, o chefe decidiu que desejava conservar-me vivo. Eu seria levado com vida até
a sua aldeia, para que as mulheres também pudessem ver-me e tivessem seu momento de diversão às minhas
custas. Depois tinham a intenção de me matar a cauim pepica, o que quer dizer que desejavam preparar uma
bebedeira e reunir-se para uma festa, no decorrer da qual eu devia servir de alimento. Com isso, todos
deram-se por satisfeitos. Amarraram cinco cordões em torno do meu pescoço e me obrigaram a subir num
barco. As pontas dos cordões foram amarradas com firmeza no barco e eles lançaram as canoas na água com o
objetivo de remar para casa” (1998:57).

138
sistematizado e, a partir de então, a tarefa de investigação assumiu o caráter de etnologia,
ou seja, esforço de revelação de uma certa coerência subjacente às atitudes tomadas por
irracionais pelas lentes cristãs. Daí que em A função social da guerra entre os Tupinambá,
Fernandes elaborou a tese, ao sabor do estrutural-funcionalismo de sua época, de que o
complexo guerreiro—atualizado fortemente no momento do ritual antropofágico, execução
do inimigo de guerra mediante uma cauinagem—consiste no fator de coesão da sociedade
tupinambá. Trata-se, então, de buscar a ordem na guerra e na festa que a celebra para
entrever ali “conjuntos coerentes de ações sociais” (idem:275).
O sistema ritual constituído pela prática antropofágica culmina, segundo a leitura
de Florestan Fernandes, no momento do sacrifício do inimigo feito vítima. Aí estaria
contido o sentido do canibalismo para os antigos Tupi da costa: com o sacrifício, o cativo,
então incorporado no seio do grupo via laços de “parentesco”, deve ser desligado e
reinimizado. Esse desligamento, marcado ritualmente e prelúdio à destruição, aparece para
o autor como restituição da perda de um membro do “nosso grupo” no passado, então
devorado pelos inimigos do “outro grupo”. O momento do sacrifício representa, de modo
compensatório, a possibilidade por excelência de essa sociedade constituir um “nós
coletivo” coeso. Assim, o ato de beber junto antes da execução seria mais uma
característica dessa comunhão coletiva e poderia ser definido como uma cerimônia de
libação capaz de promover a comunicação entre os humanos e os ancestrais. Em Florestan
Fernandes, como em Durkheim (ver primeiro capítulo), a festa revela suas intenções mais
sociais, e mesmo a entropia propiciada pela embriaguez é mensageira da ordem da
sociedade. O ritual comemorativo e a estrutura social são, sob essa abordagem com sabor
funcionalista, coextensivos.
O tema da embriaguez, que não parece contar muito para o argumento de
Fernandes, é retomado em monografias recentes, dessa vez sobre populações tupi atuais.
Dentre elas, a de Eduardo Viveiros de Castro, que se ateve aos Araweté do sudeste do Pará,
é a que mais se aproxima de uma tentativa de síntese, a bem dizer, um esforço para
construir um modelo conceitual tupi-guarani em que o canibalismo, ou melhor, a máquina
canibal continua a fornecer a chave explicativa e o motor do sistema, mas segundo um
registro significativamente diverso. Devo salientar que essa é uma discussão que exigiria
uma digressão enorme, e não cabe persegui-la neste momento, senão de modo bastante

139
preliminar para situar a discussão etnológica em torno das cauinagens.91 Em poucas
palavras, Viveiros de Castro (1986) refuta a tese de Fernandes ao afirmar que o que o
sacrifício do inimigo, literal ou figurado, não visa a restituição de um nós, mas antes um
devir outro. Mais que um fator de coesão social, a guerra, cujo objetivo é o aprisionamento,
cativeiro e assassínio do inimigo, revela uma ontologia que se define por um estado
contínuo de incompletude. A vingança consumada não restitui o corpo social cindido,
antes reafirma essa qualidade fraturada do social—e que não comportaria uma analogia
com o corpo orgânico—, essa eterna abertura ao inimigo, necessidade e condição de
existência da socialidade. Noutras palavras, a crítica que Viveiros de Castro tece a
Fernandes consiste na acepção de que a vingança guerreira não era um instrumento
religioso capaz de restaurar a integridade do corpo social ameaçado pela morte de um
membro, fazendo a sociedade coincidir consigo mesma, religando-a aos ancestrais.92 Assim,
o problema da guerra tupi não residiria na recuperação da substância de uma coletividade
por intermédio do corpo do morto do inimigo, mas sim na perpetuação de uma relação com
o exterior, sem a qual não haveria vida social. “A vin gança não era um retorno, mas um
impulso adiante; a memória das mortes passadas, próprias e alheias, servia à produção do
devir. A guerra não era uma serva da religião, mas o contrário” (1992:49). É possível
estender aqui o argumento de Viveiros de Castro em relação à festa e à embriaguez que ela
proporciona: matar o inimigo é um ato que embriaga; logo, da mesma maneira que a máquina
da vingança não pode parar, é necessário “estar sempre bêbado”.
Os cronistas quinhentistas apontam que o cauim só poderia ser ingerido por
homens que já mataram inimigos ou por mulheres que já passaram pelos ritos da menarca,
ou seja, pessoas adultas constituídas. Aqui a complementaridade entre o masculino e o

91
Para um balanço dos estudos sobre os grupos de língua tupi-guarani nos anos 1980, que incluem as
monografias de Eduardo Viveiros de Castro e Dominique Tilkin Gallois, ver Schuler (1998). O enfoque da
autora é dado nos conceitos cosmológicos específicos de cada povo e no desenho de uma “filosofia do devir”,
o que implica a leitura da etnografia à luz do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
92
Florestan Fernandes lê o ritual antropofágico tupi como um “culto aos ancestrais” e, nesse sentido, ele
estaria orientado verticalmente para os laços de continuidade entre vivos e mortos. Viveiros de Castro, na
esteira das constatações de Manuela Carneiro da Cunha sobre a relação com os mortos entre os Jê, propõe que
entre os povos de língua tupi-guarani, como entre os Jê, os “mortos são os outros” e o trabalho ritual que os
concerne atua por dispositivos de esquecimento e não de continuidade. No entanto, se entre os Jê a solução
lógica para pensar a oposição entre vivos e mortos ocorre por uma dupla negação, entre os Tupi, o que se
verifica é um ideal de transformação, ou seja, o morto é aquele se faz deus e o deus é o destino de todo vivo,
no entanto essa passagem não é pensada com o permanência, mas como devir. Entre os Araweté, por
exemplo, os mortos e os deuses são afins celestiais que devoram os vivos em um banquete canibal (Viveiros
de Castro 1986).

140
feminino revela-se no que diz respeito à montagem do ritual antropofágico: se aos homens
cabe a captura e a morte dos inimigos, às mulheres cabe a produção do cauim. Ora, o cauim
era pensado por esses grupos—e as populações atuais não parecem negar esse fato—como
homólogo à pessoa humana. Como nota Isabelle Combès (1992), a imagem do processo de
fermentação, ao qual era submetida a bebida, emprestava-se para pensar as diversas
maturações pelas quais deveriam passar as pessoas, entre elas, o matador e o cativo.
Preparar o cauim era como preparar o inimigo: deixá-lo maturar até o dia do ritual. Como
acrescenta a autora: “E tudo se passa como se a estada prolongada do prisioneiro
constituísse também uma espécie de fermentação fazendo passar do tóxico à pureza—como
a mandioca brava é lavada pela água corrente para perder o suco tóxico, o prisioneiro deve
tomar um banho de rio, permitindo o seu consumo” (1992:146). As correlações desdobram-
se e se tornam inevitáveis. O ato de beber se encontra no limiar entre a metáfora e a
metonímia; aproxima-se, aliás, muito mais desta do que daquela.
Viveiros de Castro (1992) confirma as relações estreitas entre o lugar das bebidas
fermentadas e o motivo do canibalismo entre os Tupinambá, e para tanto recorre a uma
evidência histórica. Uma vez submetidos ao jugo dos missionários católicos, essa população
tinha a sua prática antropofágica reprimida e punida, o que representava um ataque direto
ao fundamento de sua socialidade. Contudo, se antes era a devoração “literal” do cativo e
guerra o fator que atualizava e produzia a memória das vinganças, o motor da vida social,
as festas de bebida, realizadas muitas vezes no interior dos aldeamentos jesuíticos,
acabavam por preencher de alguma maneira esse lugar, reencenando o contexto
comunicativo dos festivais de outrora ainda que sem a presença física do inimigo. “Os
índios bebiam para não esquecer, e aí estava o problema das cauinagens grandemente
aborrecidas pelos missionários, que percebiam sua perigosa relação metonímica com tudo
que queriam abolir. [...] Foi mais difícil acabar com os ‘vinhos’ que com o canibalismo, mas
as bebedeiras traziam sempre o espectro dessa abominação. [...] Bêbados, os índios
esqueciam a doutrinação cristã e lembravam do que não deviam, o cauim era a droga da
inconstância” (Viveiros de Castro, 1992:53). Dessas constatações decorre que o canibalismo
“literal” é a expressão máxima, mas não necessária, da vingança, que continua a povoar
não apenas a mente dos nativos, mas também os seus rituais. Ali, confirmava-se o fato,
figurado em sua origem, que beber o cauim e comer o inimigo são atos coextensivos e

141
complementares, ambos capazes de atualizar os ideais de vingança e de relação com o
exterior.
Como argumentaram Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985) para o caso
tupinambá, a vingança deve ser reconhecida como motor da vida social, que se realiza no
tempo. Não se trata, vale ressaltar, de um fator de coesão e uma orientação para o passado
dos ancestrais, mas de um impulso para o futuro que aposta na incompletude como
princípio positivo. À revelia das sociedades do Brasil Central, que se realizam sobretudo
no espaço, as tupi-guarani enfatizam a dimensão temporal, à medida que cada vingança
está implicada na promessa de uma próxima: tal é o recado dos discursos cerimoniais
tupinambá quando a vítima faz juras de que os seus irão vingá-la em um futuro não
distante. Ora, essa cadeia de ameaças—versão forte de um sistema maior de acusações que
pode ser reencontrado, por exemplo, no sistema de agressões xamânicas vigente nas
sociedades atuais—configura o moto-contínuo dessas sociedades, permitindo a formação
daquilo que os autores designam como “memória do futuro”.
O tema das festas de bebida como veículo de uma memória da vingança encontra
variações em grande parte dos grupos tupi-guarani atuais. Viveiros de Castro se refere ao
cauim araweté como um transformador por excelência, tal parece ser a conclusão de um
mito dessa população, que conta como durante uma cauinagem os homens foram
transformados em bichos mediante o trabalho do xamã. Ou seja, o estado de embriaguez
tornou os homens vulneráveis à comutação possível das posições (perspectivas) de humano
e não-humano. O autor acrescenta que o epíteto para o termo awin, inimigo, é justamente
“tempero do cauim”, aquilo que lhe dá sabor, que o anima; o que revela o “horizonte
canibal guerreiro para o cauim alcoólico araweté” (Viveiros de Castro 1986). Os paralelos
são muitos e se desdobram. Da mesma forma que os Tupinambá, os Araweté montam suas
cauinagens sob um clima excessivo, envolvendo idealmente uma reunião pan -aldeã, que
associa bebida, canto e guerra. Hoje em dia, eles encontram-se, contudo, reunidos em uma
única aldeia, o que significa que a tal lógica supralocal teve de ser intronizada, ocorrendo
no interior um mesmo aglomerado, pensado então como composto por seções residenciais
relativamente autônomas—esse quadro é bastante comum em muitos outros casos da
Amazônia atual (ver capítulo anterior).
Na cauinagem araweté, dança-se em volta de um cantador que deve pertencer a
uma parentela distinta daquela do “dono do cauim”, responsável pela fabricação e

142
distribuição da bebida. O cantador assume o papel de líder da caçada ritual que antecede a
festa, e deve iniciá -la tão logo o mingau de milho, do qual é feito o cauim, comece a
fermentar. A expedição de caça reúne todos os homens da aldeia com exceção do anfitrião,
que deve permanecer entre as mulheres e “cuidar” do cauim, bem como o xamã, que deve
executar o “serviço do cauim”, sem o qual a festa não poderia prosseguir. Essa cerimônia
realiza-se na véspera da chegada dos caçadores: o xamã narra uma festa de cauim invisível,
na qual os deuses celestiais (maï) e os mortos bebem excessivamente. Viveiros de Castro
alega que o cauim é designado como “ex-comida dos deuses” e, assim, associado aos
mortos que são devorados pelos deuses e, em seguida, ressuscitados por eles. Isso reenvia,
mais uma vez, à homologia cauim e ser humano, visto que o bebedor de hoje será a bebida
de amanhã, e assim por diante.
Outro paralelo com o festival tupinambá diz respeito ao fato de que a carne—não
do inimigo, mas de caça—é servida apenas ao final da bebedeira. Entre os Tupinambá, a
execução e ingestão do cativo ocorriam tão logo terminada a última panela de cauim: o
defunto era então estraçalhado, e seus pedaços distribuídos entre os convidados e
anfitriões. Entre os Araweté, segundo Viveiros de Castro, come-se apenas no dia que segue
à festa: as mulheres dos caçadores, lideradas pela esposa do cantador, vão até a casa da
dona do cauim e lhe entregam a caça (já moqueada) trazida pelos seus maridos. Os
Araweté, garante o autor, aproximam caça e guerra, sendo alguns animais passíveis de
serem designados como awin. O cantador, rodeado por dançadores, evoca o matador
tupinambá e, mais propriamente, a relação que este perfaz com sua vítima. Isso porque as
palavras cantadas pertencem ao inimigo, o que significa fazer com que aquele que canta
ocupe, de alguma forma, a posição do outro.93
As cauinagens araweté remetem não raro a um horizonte bélico e antropofágico.
Nesse sentido, o inimigo devorado no terreiro central da aldeia cede lugar a um inimigo
cantado, que pode remontar a assassínios tanto atuais como antigos ou mitológicos. De todo
modo, e isso transborda as fronteiras do mundo araweté, o inimigo está lá, e o cauim ajuda
a nos lembrar disso. A respeito desse caráter canibal das cauinagens, Tânia Stolze Lima
indaga: “se a antropofagia dos povos tupi é, como sustenta Viveiros de Castro, comer a

93
Viveiros de Castro (idem) alega que as cauinagens podem servir de palco para as danças opirahë, danças de
guerra, que comemoram a morte de um jaguar ou de um inimigo. Os cantos de opirahë são “música de
inimigos” e remetem sempre a combates. Nesse contexto, o cantador encarna o papel do guerreiro, que trava
com a sua vítima uma relação de “fusão ritual”.

143
posição do inimigo, se a cauinagem juruna é uma antropofagia, o que é que se come,
conceitualmente, bebendo cauim?” (1995:358). A autora alega que as cauinagens absorvem
toda a vida social dos Juruna, grupo de língua tupi do médio Xingu, ocorrendo em poucos
intervalos de tempo, a depender da estação do ano, e lhes imprimindo um certo “estilo”.94
Se a cauinagem que os antigos preparavam reunia apenas homens e guerreiros que haviam
matado índios de grupos inimigos—os antigos Juruna eram, ao que tudo indica,
canibais—, a cauinagem dos dias de hoje é feita para todos. Beber junto, embriagar-se,
passa a fazer parte ativamente das regras sociais. Lima assume que “a cauinagem não tem
necessidade de resvalar em antropofagia, pelo simples fato de que, em certo sentido, ela já
o é” (idem:412). O cauim seria uma espécie de “pessoa simbólica” e, nesse sentido, o
processo de fermentação designaria algo como uma transubstanciação que converteria o
vegetal (a puba de mandioca) em animal (a carne de caça) ou mesmo humano (filho da
mulher que o fabricou). Nesse sentido, a cauinagem não pode ser reduzida a uma forma
meramente metafórica de canibalismo, visto que ela altera a própria noção do que vem a
ser um corpo e, mais propriamente, um corpo humano. A questão envolvida não reside,
pois, na re-presentação de uma prática que já não há, mas na atualização de um princípio
comum que une a prática recente àquela de outrora, qual seja, a possibilidade de passar do
não-humano ao humano e vice-versa, de ocupar uma posição de presa ou predador, enfim, de
se tornar outro. Como frisa a autora, as imagens da cauinagem antiga suscitadas pelos
Juruna devem ser tomadas “menos como eventos que como signos de uma estrutura”
(idem:ibidem).
Um caso análogo ao araweté e juruna pode ser descortinado entre os Arara, grupo
caribe do sudeste do Pará. Márnio Teixeira-Pinto (1997) ilumina o lugar especial conferido
às bebidas fermentadas de mandioca no interior do ieïpari, ritual de sacrifício dos inimigos
de guerra, hoje substituídos pelos animais de caça. O trabalho deste ritual consiste em
transferir o valor do inimigo (da caça) à bebida fermentada (piktu), pensada então como
fonte primordial para a aquisição de substâncias vitais pelos humanos. Estamos diante de
mais um caso de “transubstanciação”, em que beber torna-se, por extensão, um ato de

94
O juruna ou yudjá é uma língua do tronco tupi e não pertence à família tupi-guarani, como a araweté ou a
wajãpi, mas à família juruna. A tese de doutorado sobre este povo, de Tânia Stolze Lima, à qual faço
referência neste livro foi recentemente revisada e publicada em livro, intitulado Um peixe olhou para mim: os
Yudjá e a perspectiva (2005). Inflelizmente, não foi possível incorporar aqui o seu refinamento analítico
teórico, sobretudo com relação à discussão sobre o perspectivismo. De todo modo, devo salientar que esta é
decerto a reflexão mais profunda que dispomos sobre o sentido das cauinagens amazônicas (ver nota 114).

144
consumo do inimigo, que é também um ato de apropriação de energia vital e reenvia à
tópica, bastante difundida na Amazônia, da possibilidade de obtenção de uma vida longa
ou mesmo da “imortalidade”. Ora, esse mecanismo de transferência de substâncias ilumina
um complexo de troca bastante vigente, baseado no intercâmbio de carne por bebida, não
livre de conotações sexuais: enquanto os homens dos grupos residenciais convidados
caçam, as mulheres do grupo anfitrião devem fabricar bebida para retribuir o trabalho dos
caçadores.
Como se pode notar, no âmbito da etnologia da Amazônia indígena, não é possível
sustentar que o tema da embriaguez seja exclusivamente tupi, já que os desdobramentos
invadem toda a Amazônia, embora o canibalismo não apareça invariavelmente como a
figura-chave, sendo encoberto por diferentes idiomas baseados na reciprocidade. Viveiros
de Castro, em trabalhos posteriores à sua monografia sobre os Araweté (1993, 1996b,
2002), empenhou-se em estender aquele modelo tupi-guarani, baseado no princípio do
devir—o “outro” (pensado sob a estética da afinidade) serve ao “eu” como destino e não
como espelho—, e no perspectivismo—sujeito e objeto, humano e não-humano não como
posições fixas, mas intercambiáveis—para outras paisagens etnográficas. A região das
Guianas representa uma delas, onde as cauinagens ou festas de caxiri reúnem pessoas de
origens diversas para celebrar alguma espécie de aquisição cultural no tempo mítico, o que
não pode prescindir da evocação de figuras humanas, como inimigos (antigos ou virtuais),
ou figuras não-humanas, como deuses ou heróis mitológicos, espíritos ou animais. As
celebrações, que têm no horizonte a conjunção do grupo de humanos em oposição ao
mundo não-humano, fazem despontar sentimentos de “estar junto” e um estado de
comunicação generalizada, não raro ausentes do cotidiano, em que o ideal de viver “entre
si” prevalece à necessidade de abertura para o outro.95 Como proposto no capítulo anterior,
nas festas de caxiri guianenses, as diferenças escamoteadas resplandecem.
As populações caribe das Guianas revelam-se, ao seu modo, grandes produtoras e
consumidoras de bebidas fermentadas, e o consumo excessivo destas não pode ocorrer
senão em um festival interlocal permeado por música e dança e que tem duração estendida,
como nos casos tupi. Entre os Waiwai, Fock (1963) tece comentários sobre o consumo

95
Esse ponto fora notado por Peter Rivière (1969) em sua monografia sobre os Tiriyó do Suriname e, mais
recentemente, em um artigo sobre o ideal de convivialidade nos grandes aglomerados, em que o sentimento
de “estar todos juntos” deslocou-se do campo da festa para o cotidiano (Rivière 2000).

145
excessivo de bebidas fermentadas durante os longos festivais de dança que envolviam
mais de um grupo local. Atualmente, com a presença marcada de missionários
protestantes, boa parte desses índios deixou de produzir a bebida, mas é ainda muito cedo
para afirmar que eles abandonaram também o gosto pela embriaguez. Como afirma
Catherine Howard (1993), os Waiwai tiveram de reinventar o seu festival interlocal,
tornando-o uma espécie de farsa cômica, onde os visitantes (pawana) são encenados de
maneira caricatural (ver capítulo anterior). Por meio da farsa, os Waiwai parecem repor o
esquema nativo das relações rituais, que passa pelo oferecimento de carne (pelos
“visitantes”, que chegam da expedição de caça, como nos Araweté, fazendo barulho) em
troca de bebida (pelos anfitriões). Ora, se a bebida não pode ser mais alcoólica, ou seja, se
não há mais embriaguez propriamente dita, seria possível arriscar a hipótese de que
alguma forma de embriaguez ainda resta, e esta pode ser encontrada no sentido mesmo da
comicidade. Em vez de embriagar os visitantes com caxiri, os Waiwai os tornam ridículos
fazendo-os encenar personagens imperfeitos, deformados, excessivos, selvagens. É na farsa
cômica, que permeia a dança e os cantos, que a alegria de estar junto pode ser restaurada.
Antonella Tassinari (2003) atenta para a importância das festivais de bebida
fermentada na vida social dos Karipuna do vale do Uaçá, população que possui uma longa
história de contato com a sociedade não-indígena do norte do Amapá e que hoje em dia
fala uma língua creoula96. Os turés, festas dos clarinetes, devem ser compreendidos como
parte de um conjunto maior de festas, que constitui um sistema de prestação estabelecido
entre as famílias karipuna e os espíritos auxiliares karuãna—compreendem-se aí as
cerimônias que celebram santos católicos (tal a festa do Divino Espírito Santo) e datas
cívicas (tal a festa do Sete de Setembro). No turé, os humanos oferecem caxiri para os
karuãna como forma de retribuição pela cura de doenças. A distribuição da bebida ocorre
por meio de procedimentos formalizados e privilegia relações entre pessoas do mesmo sexo
relacionadas por afinidade. O rito serve como campo privilegiado de atuação dos pajés,
então responsáveis pela conversão de seres perigosos e patogênicos em agentes protetores,
tais os karuãna. O canto dos pajés convida esses espíritos ou “bichos” a participar da
96
O mérito da interpretação de Tassinari reside em demonstrar como essa população pôde reconstituir um
modelo de sociabilidade propriamente indígena mediante uma situação crítica povoada de atores e
concepções contrastantes. Para dar conta do encontro entre o catolicismo e a cosmologia indígena, a autora
não envereda por explicações que tomam o sincretismo como resposta ou que reduz a relação entre as
diferentes visões de mundo como meros empréstimos. Pelo contrário, ela se aproxima de um processo de
tradução dos procedimentos não-indígenas pela lógica indígena do festejar.

146
dança no interior da praça central, uma vez que fora desse espaço a sua presença pode ser
nociva aos humanos. Tassinari descreve o final da festa como marcado pela dança do
urubu, quando os karuãna vêm para acabar com toda a bebida que ainda resta e quando os
participantes encontram-se já ébrios. Finda a festa, os pajés tratam de entoar cantos
capazes de afastar novamente os karuãna, garantindo as boas relações entre estes e os
humanos. Como entre os Araweté e entre os Juruna, o caxiri deve ser antes oferecido aos
espíritos e depois repartido entre os homens, promovendo uma dupla comunicação. No
caso karipuna, todavia, o caxiri remete a um horizonte de predação, mas não para exaltá-
lo, e sim para evitá-lo, pois os karuãna são seres perigosos (quiçá canibais), porém
domesticados.97
Em suma, se as cauinagens araweté e juruna exaltam uma memória das guerras e da
predação, os turés karipuna parecem envolvê-la num ambiente de reciprocidade,
mantendo o que parece ser o principal: a comunicação entre os humanos por meio da
comunicação entre estes e o mundo não-humano. Ora, se em grande parte dos povos
guianenses os rituais coletivos distinguem-se dos rituais mais propriamente xamânicos, em
que não há a participação de pessoas de origens diversas, entre os Karipuna, e também
entre seus vizinhos no Uaçá, as festas apresentam-se como imbricadas no universo dos
pajés, tendo nesses menos a figura de agressores que de aglutinadores de diferentes grupos
e pessoas.
Avancemos para uma paisagem etnográfica que se destaca por uma série de fatores
dos quadros tupi e guianenses, tal o Noroeste Amazônico, onde o caxiri tampouco pode
faltar. No Uaupés, Stephen Hugh-Jones destaca três tipos de festa: os caxiris (festas de
cerveja), os dabacuris (intercâmbio cerimonial) e os ritos de Jurupari, que envolvem
flautas e trompetes sagrados (ver capítulo anterior). Apenas os dois primeiros contam com
a presença do caxiri. Hugh-Jones distingue os rituais de oferecimento de comida (“food
giving house”) ou dabucuris dos meros caxiris, nos quais não se esboça um esquema de
troca, matrimonial ou comercial, propriamente dito, tendo como único intercâmbio
obrigatório aquele estabelecido entre os anfitriões, que oferecem a bebida preparada por

97
Como evidencia Tassinari, entre os Karipuna, a predação é um tema que deve ser mantido fora dos
domínios da vida social, silenciado. Isso pode ser compreendido, quiçá, pela pregnância nessa população de
elementos morais advindos do catolicismo. No caso das festas de caxiri karipuna, tudo se passa como se o
idioma da predação que povoa as cosmologias amazônicas tivesse sido deslocado para o campo da
reciprocidade estabelecido entre humanos e karuãna por intermédio dos pajés.

147
suas mulheres, e os convidados, que devem dançar.98 Segundo o autor, os caxiris podem
envolver comunidades de irmãos e cunhados, já os dabucuris consistem em instâncias para
celebrar e reforçar os laços de matrimônio e afinidade por meio de dádivas ofertadas em
nome de um homem para o seu cunhado ou sogro. Esses intercâmbios, explica Hugh-
Jones, “têm uma dupla lógica e movimento: a curto prazo, os convidados dançam e
oferecem peixe ou carne em troca do caxiri fornecido pelos anfitriões; a longo prazo, as
comunidades trocam um tipo de produto por outro—peixe ou carne ou carne por peixe—e
alternam os papéis de anfitrião e convidado. Ambos os casos estão relacionados ao
matrimônio, o primeiro refletindo a troca de carne ou peixe por produtos de mandioca (o
beiju e o caxiri) entre marido e mulher; o segundo refletindo a troca de diferentes tipos de
mulheres entre os grupos ligados por casamentos” (2003:2).
De modo geral, os caxiris e os dabucuris rio-negrinos podem ser visualizados como
uma variação curiosa das cauinagens tupi e guianenses, devido ao tipo de comunicação
que engendram. Diferente dos rituais de iniciação ou he wi, cuja ênfase é dada no fator de
descendência e no espaço circunscrito da maloca, nos dabucuris é a aliança que figura
como motivo central e, por conseguinte, a comunicação com o exterior da maloca, sendo
esta pensada, em alguns momentos, como modelo reduzido do cosmos. Ora, como já
salientado no capítulo anterior, é preciso compreender esse sistema ritual em seu conjunto
para alcançar a dimensão dos dilemas totais vividos por essas sociedades, que dizem
respeito às suas relações com o mundo dos “outros”—primordialmente, ancestrais e
estrangeiros. Se o he wi opera pela comunicação entre humano s (homens de um mesmo
grupo de descendência) e ancestrais, o dabucuri privilegia o domínio em que ocorre a
comunicação entre diferentes tipos de humanos (o que significa uma diferença ao mesmo
tempo de sexo e descendência), e essa comunicação é pressuposto da aliança. Ambos os
ritos operam por meio de estados alterados, induzidos, respectivamente, pela ayahuasca e
pelo caxiri.

Em torno da variação wajãpi

98
“Os caxiris são fundamentalmente ocasiões sociais quando uma comunidade convida os seus vizinhos a
dançar e beber caxiri, às vezes como um agradecimento pela sua ajuda na abertura de uma roça ou na
construção de uma casa nova, às vezes para marcar a nomeação de uma criança, o casamento de uma mulher,
ou a etapa final da iniciação dos meninos, e às vezes somente por divertimento e reforço dos laços sociais”
(Hugh-Jones 2003:1).

148
Consideremos, após esse rápido sobrevôo etnográfico, a variação wajãpi sobre o tema da
embriaguez e procuremos compreender como ela se inscreve no quadro amazônico mais
amplo, tomando em consideração a articulação entre a simbologia referida à bebida
propriamente dita e as formas de comunicação embriagada que ela engendra, tanto entre
humanos e não-humanos, como entre humanos de diferentes proveniências.99

Entre os Wajãpi, localizados am ambos os lados da fronteira Amapá-Guiana


Francesa, a preparação do caxiri é trabalho exclusivo das mulheres, responsáveis pela
agricultura e seus produtos. Os Wajãpi conhecem e usam tanto espécies de mandioca doce
(aipim ou macaxeira) como espécies de mandioca amarga, mas é com as últimas, que
possuem veneno, que eles compõem a base de sua alimentação. Com a mandioca amarga,
além de cervejas de diferentes tipos, pode-se fazer, entre outras coisas, o beiju do
cotidiano, o mingau matinal (goma do tacacá, servido com restos de peixe ou carne), a
tapioca, a farinha dura, o tucupi e diferentes molhos de acompanhamento. Françoise
Grenand encontra entre os Wajãpi do Oiapoque um conjunto de mitos que narra a origem
do caxiri e sua relação intrínseca com as substâncias femininas. Vale a pena reproduzir um
trecho apresentado pela autora. “A primeira cerveja foi uma beberagem saída do pus que
escorria dos furúnculos de uma sogra, que queria de todo modo agradar o seu genro. Ela
sabia muito bem, contudo, que ele ficaria zangado, e por isso ela tinha de se esconder para
preparar a bebida. Descoberta, a velha senhora ofereceu-se para morrer. Assim, ela
ordenou que seu genro fizesse uma queimada na mata e nela se atirou, morrendo
queimada. Apenas isso poderia restituir nobreza àquele corpo desgraçado, do qual jorrava
uma cerveja fermentada sem cozimento prévio. Calcinado, um corpo feminino oferecia-se
para que os homens pudessem comer e beber até ficarem fartos. A carne feminina se
metamorfoseava em carne de tubérculo, mas o conceito de podridão não desaparecia de
todo, pois a planta, venenosa, necessita um longo e meticuloso tratamento para ser
separada de seu veneno. Quanto à cerveja que daí se extrai, ela passa a se beneficiar de

99
Antes de tudo, no que se refere às passagens dedicadas aos Wajãpi, atento para a incompletude de minha
etnografia, o que me faz recorrer à literatura disponível sobre essa população (no Brasil e na Guiana
Francesa), que aliás parece-me bastante avançada, e arriscar interpretações, pequenos vôos, sobre questões
de cunho teórico.

149
uma fermentação não mais natural, como aquela do escorrimento do pus, mas cultural,
uma vez que representa o resultado do savoir faire feminino” (2004:10).
Este mito trata a um só tempo da origem da mandioca amarga e do caxiri, o
segundo remetendo a um longo processo de fabricação, que implica, em primeiro lugar, a
retirada do veneno e, em seguida, a fermentação.100 Trata também da relação entre uma
sogra e seu genro, esta oferecendo o seu próprio corpo para satisfazer aquele. O caxiri
resulta do líquido “podre” que jorra espontaneamente do corpo da velha no momento de
sua calcinação e, a partir de então, deverá ser fabricado pelas mulheres, então detentoras
de uma técnica de preparação da mandioca amarga, que implica a extração de seu veneno.
Segundo Françoise Grenand, os Wajãpi fazem uma estreita associação entre essa proto-
cerveja de origem humana, um líquido pútrido e repugnante, e o mel (ey), designando-o
como “verdadeiro caxiri” ou mesmo como “cerveja dos espíritos da floresta”. Para os
Wajãpi, acrescenta a autora, o mel é o ideal de bebida pretendido pelas mulheres e também
a “bebida da imortalidade” oferecida aos mortos na grande aldeia do céu. Ora, se o caxiri
deve ser fabricado, o mel, como bem lembrou Lévi-Strauss, é um alimento oferecido pela
natureza, constituindo, assim, uma infra-cozinha. Em Du miel aux cendres (1967), o autor
apresenta uma série de mitos que contam, todavia, que o mel já foi um alimento elaborado
pela cultura, mas, ao contrário do fogo de cozinha, que foi obtido dos animais, este foi
perdido pelos homens, passando para o lado da natureza. Dentro dessa mesma armação, há
como vislumbrar o caxiri como espécie de resgate desse mel mitológico, substância
primordial fabricada pelos humanos, e não meramente extraída da natureza.
Como evidenciou Lévi-Strauss, a associação entre o mel e o caxiri é bastante
difundida na mitologia ameríndia que, de sua parte, encontra nesses elementos a oscilação
entre as “bebidas da imortalidade”—doadoras de vida—e os venenos—causadores de
morte.101 Ou seja, ambos os elementos situam-se numa posição ambígua entre o alimento
supremo e o veneno extremo, o que os coloca também em sistema com o tabaco,

100
Dominique Gallois (1988) alega que os Wajãpi do Amapari acreditam que a preparação da bebida fora, em
tempos muito remotos, ensinada pelo herói cultural Janejar (“nosso dono”), sendo o caxiri concebido como
legado cultural da primeira humanidade.
101
Isso por razões que não se separam do sensível. Como aponta Lévi-Strauss, há muitos méis venenosos e,
além disso, é possível produzir a partir da solução do mel em água uma bebida fermentada conhecida como
hidromel. Já o caxiri é muitas vezes produzido a partir da mandioca amarga, que contém em si um forte
veneno. Além disso, a idéia de veneno parece estar atrelada à própria embriaguez, não sendo incomum
encontrar analogias, na Amazônia, entre os cauins e o timbó, veneno para peixes. Sobre a “função timbó” do
cauim ver Lima (1995) e Erikson (20 04).

150
apresentado por Lévi-Strauss como um elemento supra-culinário. Mas se o mel representa
a natureza que se antecipa à cultura e concede o alimento já pronto, cru, o caxiri
representa o momento em que a cultura ultrapassa a si mesma, pois impõe um processo de
fermentação (e putrefação) posterior ao cozimento. De todos os lados, a idéia de
ambigüidade impera, marcando a fluidez da fronteira que separa o mundo cultural do
mundo natural. Noutras palavras, mel, caxiri e tabaco envolvem paradoxos que povoam o
pensamento indígena, que se recusa a operar categorias fixas sem, no entanto, abrir mão
de impor descontinuidades sobre o real.
Voltemos, pois, aos Wajãpi, entre os quais o caxiri encontra-se situado a meio
caminho entre a fermentação e a putrefação, e sua preparação consiste num trabalho que
pode envolver até quatro dias. Segundo Françoise Grenand, o “fermento natural”
empregado na fabricação da bebida reside sobretudo na saliva da dona da casa, auxiliada
por suas filhas e quiçá por alguma visitante. Os filões de mandioca são mastigados e então
cuspidos em uma grande cuia, onde serão adicionadas batatas-doces raladas, suplemento
de amido necessário para o processo de fermentação. A autora acrescenta nesse trabalho
fermentativo o papel atribuído às drosófilas—diz-se que quando se inaugura uma aldeia, é
necessário oferecer um caxiri exclusivo a elas.
F. Grenand distingue, entre os Wajãpi, dois tipos de caxiri, o kasili pupu, um caxiri
cozido e de preparo mais rápido, e o palakasi, o caxiri feito a partir da caçava, e também o
mais freqüente. Este não pode prescindir de um longo processo de fabricação, que inclui a
desintoxicação dos tubérculos, o cozimento dos filões de mandioca e o tempo de
fermentação. Palakasi e’e é o termo para designar o “caxiri verdadeiro”, aquele que exige
uma preparação mais complexa, que possui cor bege escura e, assim, pode ser destinado às
grandes festas interlocais. Segundo F. Grenand, uma canoa de madeira é preenchida com
cerca de 275 litros da bebida, que cumprem ser esvaziados nessas festas.
O caxiri wajãpi é, predominantemente, feito de mandioca amarga. No entanto,
outros ingredientes podem ser acrescidos, como o milho, a batata-doce, o inhame (violeta e
branco), a mandioca doce e certas frutas. As misturas ficam a cargo das mulheres, cada
qual imprimindo a sua marca numa nova receita. F. Grenand alega que a razão para se
fazer uma festa entre os Wajãpi do Oiapoque é simplesmente beber caxiri e, assim,
produzir uma “exaltação comunicativa compartilhada”, que celebra “o triunfo do estado
de cultura sobre o de natureza, triunfo vivido conscientemente como tal: ‘Os Wajãpi são

151
assim’, é o que escutamos” (2004:17). Parece-me, no entanto, que essas festas, ao celebrar a
aquisição da cultura, não deixam de tematizar o perigo de um regresso à natureza, bem
como a possibilidade de irrupção predatória da sobrenatureza. Ora, a ambigüidade que
povoa o simbolismo do caxiri (e substâncias afins), como desvelado por Lévi-Strauss nas
Mitológicas, indica a necessidade, por parte do etnólogo, de refinar a dicotomia vigente
natureza e cultura com a introdução de categorias e conceitos capazes dar conta de planos
intermediários, como a própria noção de sobrenatureza.102 Ora, se a embriaguez representa
para os índios, a princípio, a “alegria de estarmos todos juntos”, a elevação da coletividade
a um estado de plenitude, não se pode negar que possa também fazer irromper um certo
grau de desordem e conflito, elementos de certa forma incluídos na própria celebração.
Voltarei a esse ponto adiante. Por ora, gostaria de me ater sobre a relação entre as festas de
caxiri e as demais atividades rituais executadas pelos Wajãpi.
Dominique Gallois qualifica, entre os Wajãpi do Amapari, como rituais aqueles
momentos em que se lembra da partilha do cosmos entre os homens, plantas, animais e
seus respectivos “donos”; ou seja, momentos da criação de descontinuidades a partir de
uma massa indiferenciada. Essas atividades, em seu mais amplo conjunto, apontam a
“reencenação das condições originais de comunicação com todos os seres do universo”
(Gallois 1988:55), remetendo a um tempo—o do mito—em que animais (e outros seres não-
humanos) possuíam prerrogativas culturais, transmitidas aos humanos ou roubadas por
eles. Assim, o que é atualmente tido como separado—sociedade humana e mundo
sobrenatural, para falar em termos cosmológicos; próximos e distantes, para falar em
termos sociológicos—é então colocado em contato, de maneira nada gratuita, porém tendo
em conta o devido lugar das coisas no universo. Dessa maneira, “os ritos reatualizam a

102
A inovação do “modelo tupi” sugerido por Viveiros de Castro (1986) consiste, justamente, na superação da
dicotomia natureza e sociedade como pólo explicativo. Para os povos tupi, a natureza alude a uma ordem
infra(retro)cultural, a sociedade, a uma ordem propriamente cultural, e a sobrenatureza, a uma ordem pós ou
meta-cultural. Essa idéia foi expandida aos demais povos amazônicos, na discussão que o autor encabeçou
sobre os pronomes cosmológicos e o “perspectivismo ameríndio” (Viveiros de Castro 1996b). Parafraseando
rapidamente o argumento do autor: cultura relaciona-se à enunciação em primeira pessoa, o que remete à
posição propriamente dita do sujeito; natureza, a uma enunciação na terceira pessoa, designando, de fato,
uma não-pessoa, uma entidade ausente. Com a sobrenatureza, as coisas se embaralham, pois a referência ao
outro na segunda pessoa implica o seu reconhecimento imediato como sujeito e redunda em uma relação
perigosa, que coloca a perspectiva do “eu” em risco. É nesse sentido que Viveiros de Castro define a
sobrenatureza como “noção que serve para designar um contexto específico relacional e uma qualidade
fenomenológica particular. [...] aparências enganam porque não se está jamais certo de que é o ponto de vista
dominante, ou seja, qual mundo está em vigor quando se interage com outros seres” (idem: 88).

152
guerra ou a troca, a aproximação ou a distância, definindo enfim a posição particular dos
Wajãpi no universo” (idem:ibidem).
Como F. Grenand, Gallois alega que as festas de caxiri constituem o ponto de
partida para a descrição da vida cerimonial dos Wajãpi do Amapari. Sua relevância remete
ao significado profundo dos rituais coletivos, que só existem e são concebidos dentro do
caxiri. “Assim, não há canto sem bebida, nem há dança sem uma prévia absorção de
quantidade razoável de mandioca fermentada” (idem:152). Da mesma forma, Jean-Michel
Beaudet (1984), referindo-se aos Wajãpi do Oiapoque, aponta a indissociabilidade entre os
festivais de música coletiva, representados em sua maior parte pelas orquestras de
clarinetas (tule) e a embriaguez proporcionada pela cauinagem. Tais festivais implicam a
encenação de danças coletivas (poraita) organizadas em torno de um caxiri, pois “dançar é
impossível sem cerveja” (Beaudet, 1984:33).
É necessário frisar uma distinção, evidenciada pelos autores acima, entre música
coletiva e individual. Assim, o caxiri estaria associado às manifestações coletivas, faltando
às instâncias “individuais” e “xamânicas”. Beaudet alega que os Wajãpi do Oiapoque
distinguem de maneira rigorosa esses gêneros, guardando para cada um deles diferentes
temas para execução que não podem ser misturados, e cada tipo de música deve obedecer a
uma ocasião prescrita. Não se lança individualmente cantos destinados às cauinagens,
tampouco se entoa cantos individuais em festivais coletivos. Determinadas árias de flauta e
trompa, bem como cantos de amor, são restritas às execuções individuais, ao passo que a
dança das flautas de Pan (elewu) e das clarinetas (tule), os cantos de guerra e de colheita
pressupõem festivais coletivos, marcados pela presença impreterível do caxiri. As
primeiras manifestações dizem respeito a um único executor, remetendo a situações de
calma e repouso, que ocorrem freqüentemente longe da praça da aldeia e das atividades
sociais. As últimas, de sua parte, são necessariamente apresentadas à coletividade, ligando-
se ao jogo do dom e contra-dom, e criando uma atmosfera de excesso. Diferente das
primeiras, elas implicam a participação coletiva, conduzindo a um estágio de
efervescência.
Além das duas formas de execução musical acima descritas, Beaudet e Gallois
destacam uma terceira, os cantos xamânicos, que têm lugar em rituais bastante reservados.
Na forma coletiva é visada a comunicação entre diferentes grupos humanos, sempre
pressupondo uma instância sobrenatural. Já na forma xamânica, entoada sem algazarra, o

153
destinatário das mensagens cantadas são diretamente os espíritos sobrenaturais. Tal esforço
deve se dar sorrateiramente, sem o alvoroço dos encontros propiciados pelo caxiri, visto
que não pode prescindir de uma certa concentração. Muitas sessões xamânicas de caráter
terapêutico são, desse modo, realizadas durante a noite, quando a maior parte dos
habitantes da aldeia está mergulhada em sonhos. Esses ritos apresentam-se de maneira
discreta, mantendo, à sua feição, o mistério que os sustenta: não envolvem o êxtase
coletivo, mas sim a viagem individual, propiciada pelo uso do tabaco, que é um forte e
ativo transformador.103 Gallois comenta que as festas de caxiri são ótimas ocasiões para
fazer consultas com xamãs de outras comunidades, mas desde que estas se dêem de
maneira sutil, ocorrendo apenas na “periferia” da festa.
Segundo Gallois, os rituais terapêuticos xamânicos entre os Wajãpi apresentam três
momentos: 1) aproximação dos agentes sobrenaturais via tabaco e canto (participantes
entoam cantos), 2) manipulação das substâncias vitais do doente para tornar o corpo vazio
e reintegrar o princípio vital, 3) reintegração do princípio vital e despacho das entidades
sobrenaturais. Se lembrarmos que, entre os Wajãpi, toda cura é uma retaliação (vingança)
que tem em vista uma agressão cometida, ou seja, o único modo de restabelecer a saúde do
doente é destruir a causa de seu infortúnio, e esta diz respeito no mais das vezes a um
xamã inimigo, então é possível concluir que, nas sessões xamânicas, promove-se uma
conjunção—por intermédio do tabaco—entre humano s e não-humanos que acarreta uma
disjunção, desta vez entre humanos provavelmente de diferentes grupos locais. Já nas
festas de caxiri promove-se uma conjunção entre humanos provavelmente de diferentes
grupos locais, marcados por uma relação de estrangeiridade, para produzir uma disjunção
entre estes, unidos pela euforia da embriaguez, e o mundo sobrenatural, que constitui a
fonte das prerrogativas culturais, de onde advêm também todo excesso e desmedida. Em
suma, estamos diante de sistemas que mobilizam, no mínimo, três termos: no caso das
sessões xamânicas, nota-se um procedimento de “conjunção disjuntiva”—“captação de um
termo por um outro, às custas de um terceiro” (Lévi-Strauss, 1967:353)—, ao passo que no
caso das festas de caxiri, nota-se o inverso, ou seja, uma “disjunção conjuntiva”, o que

103
Gallois (1988) faz referência a um quarto tipo musical, “os cantos terapêuticos profanos não-
xamanísticos”.

154
principia como oposição em relação à ordem sobrenatural, culmina numa espécie de
congregação das diferenças.104
A música e a dança são pensadas como elo de ligação por excelência de domínios
cósmicos, uma vez que se acredita que os cantos, assim como a cultura, foram fornecidos
por (ou roubados de) entidades sobre-humanas, animais ou inimigos. Executar uma peça
musical é, pois, refazer os laços com essas entidades com as quais se travou trocas ou
conflitos em um tempo mítico. As orquestras de turés marcam a continuidade entre heróis
criadores, sobretudo Janejar, e os homens no tempo, ao passo que as danças com bastão de
ritmo, danças para distanciar o céu que ameaça desabar sobre as cabeças dos humanos,
postulam a necessidade de uma separação entre vivos e mortos no espaço. Gallois afirma
que a dança com os bastões de ritmo (ywyra'i) serve para manter céu e terra apartados, pois
quando da irregularidade no ritmo das estações há o perigo de a abóbada celeste cair sobre
a terra, que então passaria a viver na escuridão.
Esses ritos que contam com um arsenal diferenciado de cantos intervêm sobre o
eixo fundamental na cosmologia Wajãpi, em que se encontram superpostas as plataformas
subterrânea, terrestre e celeste. A festa do paku-wasu, festa dos peixes, o “ritual mais
complexo do ponto de vista da ornamentação dos dançarinos e dos instrumentos musicais”
(Gallois 1988:163), integra o ciclo das danças de animais, no qual o repertório musical é
reconhecido como pertencendo aos antigos Wajãpi, que teriam recebido ensinamentos de
diferentes bichos. Ao lado dessas festas, há também aquelas que contêm cantos, “os mais
bonitos”, que foram roubados dos antigos inimigos, apã-wer, eliminados em guerras muito
remotas. Nessas ocasiões, os dançarinos devem se dividir em dois blocos, um deles
representando a humanidade e o outro, as entidades celebradas, animais ou inimigos, cuja
morte deverá ser dramatizada. O início do canto narra a chegada dos inimigos
representados, para depois introduzi-los na dança e no caxiri e, por fim, executá-los. O
inimigo é sempre representado por um dançarino, ritualmente assassinado por flechadas

104
Viveiros de Castro (1986) e Tânia Lima (1995) localizam, respectivamente, entre os Araweté e os Juruna,
uma outra oposição entre as cauinagens e os rituais xamânicos, estes comumente designados como “serviço
do tabaco”. Viveiros de Castro alega que é o tabaco aquele que consegue promover uma transformação
realmente ativa, ao passo que o cauim é um transformador passivo, pois não pode provocar a metamorfose.
Segundo Lima, o consumo de tabaco entre os Juruna nas instâncias xamânicas remete ao plano do sonho
(i’u’ia) que engendra os espíritos de pajé e se contrapõe à qualidade da embriaguez provocada pelo cauim. O
sonho é reconhecido como mecanismo que abre a comunicação com categorias diversas. Cabe ao tabaco
“iluminar o mundo”, transpor as fronteiras absolutas entre animais e humanos, vivos e mortos.

155
(ou bordunadas) pelo cantador principal. Essas ocasiões dialogam vivamente com as
cauinagens araweté apresentadas acima, dada a centralidade da figura do cantador.
Da mesma forma que as orquestras de turé caracterizam-se pela indiferenciação de
todos os dançarinos, concretizando-se como veículo de comunicação entre Janejar e o
mundo humano, as demais danças dão lugar à celebração das diferenças, transpostas em
termos de afinidade efetiva ou potencial. Noutras palavras, o paradigma que impera é o da
aliança, assumido como valor mesmo que improvável. Em todos os exemplos, subsiste uma
preocupação comum: marcar o lugar da humanidade no universo, “afirmando sua separação
do mundo animal e sua posição de predadores, vencedores na guerra e na caça”
(idem:164). Se no cotidiano a relação com o mundo sobre-humano e sobrenatural é
marcada pelo silêncio e pela incomunicabilidade, na festa esse quadro se desfaz, abrindo
espaço para a comunicação que, no entanto, não está livre de perigos.105
A integração progressiva atestada nos rituais coletivos confere o que os Wajãpi
convencionam chamar de estado ka'o, estado de embriaguez, que designa a sensação de
estar “pesado” e o sentimento de alegria, indícios capazes de expressar a plenitude da
pessoa. Reunidas ao ka'o, e ao canto e à dança que lhe são associados, as diferenças entre os
afins ou entre os diversos grupos locais são suspensas em nome de uma humanidade
comum. Trata-se de uma instância dionisíaca trazida, o mais perto possível, pela “analogia
da embriaguez”, em que “o subjetivo se esvanece em completo auto-esquecimento”
(Nietzsche, 1998). Para Gallois, a festa de caxiri aparece, sobretudo, como afirmação da
vida social: trata-se não da abolição das diferenças, mas da incorporação destas em um
terreno comum, propício para a comunicação, o que redunda numa “manifestação de uma
indiferenciação interna do corpo social”. Enfim, a noite festiva culmina em uma sobre-
excitação generalizada, uma exaltação compartilhada, exprimindo a “alegria de estar todos
juntos” referida por Françoise Grenand. No entanto, como já ressaltado, esse sentimento
de pertencer a uma mesma humanidade não é senão provisório, sendo ameaçado seja pela
irrupção do mundo sobrenatural, seja pela reposição das hostilidades entre os que
festejam.
105
Segundo Lúcia van Velthem (1995), entre os Wayana (Caribe) do Norte do Pará, todo ritual corre o grande
risco da irrupção da sobrenaturalidade. Uma ocasião de júbilo pode redundar, por exemplo, em uma
epidemia. Isso pode ser especialmente atestado nas cerimônias em que são utilizadas as máscaras olok. A
autora nota que a raiz lexical para esse termo é a mesma que para iolok, que pode ser traduzida por "agente
patogênico". Neste ritual, o que se encena são os olokoimë, agentes que representam a quintessência da
sobrenaturalidade e que reúnem todas as doenças.

156
Antes de prosseguir, é necessário tecer algumas considerações em torno da noção
de pessoa wajãpi, uma vez que a festa de caxiri é também um processo de fabricação e
transformação dos seres humanos. A “plenitude” da pessoa humana, o estar vivo, é
pensado pelos Wajãpi como integração entre um envelope corporal e um princípio vital (ã)
ou alma. A qualidade da plenitude consiste na ausência de perigos em relação ao mundo
exterior e deve ser assegurada por meio de uma atitude de moderação, ou seja, de um
controle das relações com a alteridade—a que Gallois se refere como “ética wajãpi”. A
morte, em contrapartida, representa o “não-ser”, um abandono da alma que vai para o céu,
deixando o corpo na terra. “Em vida, a pessoa não seria apenas um ‘entre’ mas um ‘estar’.
Os doentes e, principalmente, os mortos, ‘não estão’ ou ‘são outros’” (Gallois 1988:217).
Decorrem da antinomia envelope corporal/ princípio vital as noções de peso e leveza,
estados de espírito como tristeza ou alegria, que alteram o peso da pessoa e afetam sua
existência como ser humano. Estados mórbidos como o sonho, a tristeza e a morte tornam a
pessoa leve. O sonho (-powai), por exemplo, consiste na viagem do princípio vital para fora
do corpo, acarretando uma perda de controle sobre si mesmo. Da mesma forma, estar triste
pode representar um momento de extremo perigo, pois reflete um esvaziamento do corpo
que pode se tornar por vezes irreversível. O estado provocado pelo caxiri, o ka’o, carrega o
princípio de alegria—o estar pesado—que pode, no entanto, ser revertido se não
controlado. A partir de um certo ponto, o ka’o pode alterar o equilíbrio da pessoa e se
revelar perigoso, pois aquele que não sabe usufruir moderadamente da embriaguez pode
tornar-se vulnerável ao ataque das forças predatórias que habitam o universo. Em suma, o
peso e a presença adquiridos na festa podem tornar-se leveza (do corpo) e,
conseqüentemente, alheamento (do espírito).
Essas constatações parecem apontar um dilema, pois se o caxiri deve ser consumido
em excesso, e se esse é reconhecidamente perigoso, isso significa que os Wajãpi buscam, à
sua maneira, uma situação de perigo. A questão passa a ser, curiosamente, como ser
moderado no próprio excesso, como domesticá-lo. Tudo isso exige que a própria pessoa em
sua integridade seja posta em risco, seja submetida a uma espécie de propulsão
desindividuante.
A idéia da embriaguez como produtora desse estado de “alegria”, euforia que
manifesta o deleite de estar entre outros e que é potencializado pelo movimento da dança,
é tampouco um tema exclusivamente wajãpi. Peter Rivière (1969), por exemplo, encontra

157
entre os Trio (Tiriyó) um sentimento de pertencimento ao universo que decorre dos
festivais de dança. Sasame é a categoria trio para descrever o estado de “felicidade”, que
perfaz a passagem do indivíduo (célula da sociedade guianense, segundo o autor) à
coletividade indiferenciada (instância extraordinária), e que se opõe ao estado de onkem,
tendência à quietude que deve basear as relações cotidianas. O fim da festa, o retorno ao
cotidiano, é todavia compreendido como perda de sasame, o que representa ora o simples
afastamento dos termos em relação, ora a criação de hostilidades e competições entre os
participantes. Como entre os Wajãpi, entre os Trio, a embriaguez apresenta-se como algo
perigoso porque ambivalente, oferecendo um excesso que deve ser contornado. A
embriaguez apresentar-se-ia, ali, como uma curv a, cujo ápice representa a celebração da
humanidade comum, mas cuja descendência implica um alto grau de desequilíbrio,
coincidindo a uma situação de grande risco. Bebe-se para comemorar, mas também para
vingar, para pagar; se a festa sela alianças—matrimoniais, econômicas e políticas—, ela
também pode inaugurar ou desencadear hostilidades.
O sistema leve/ pesado aparece entre os Araweté, como indica Viveiros de Castro,
revelando a vigência, analogamente, de uma “ética araweté da alegria e da tristeza”
(1986:481), que diz respeito essencialmente a “afecções corpóreo-espirituais”. O autor
afirma que o perigo dá-se pela possibilidade da produção da inconsciência, no instante
mesmo em que o sujeito se vê desligado da coletividade, o que pode ocasionar o
descolamento do princípio vital em relação ao corpo. Crianças, que não se constituíram
ainda como humanos, e doentes, que estão presos ao mundo por um fio muito tênue, são
exemplos dessa “inconsciência” que conduz ao estado de leveza. Entre os Araweté, o que
não parece variar muito entre os Wajãpi, sentimentos como raiva, saudade e tristeza seriam
igualmente estados perigosos. Viveiros de Castro observa que os Araweté costumam dizer
que, depois de uma cauinagem, “o sol fica muito vermelho”, o que significa que há perigo
por perto. A pessoa acometida pela má sensação de “ressaca” torna-se vazia e leve, o que
pode propiciar um processo de excorporação: a alma que está presa por um fino cordão ao
lastro corporal corre o risco de desprender-se. Por outro lado, a alegria, tori, é, como entre
os Wajãpi, o sentimento que torna a pessoa pesada, fazendo com que ela se esqueça dos
mortos ausentes e venha somar-se aos vivos. A alegria está ligada à sexualidade e, assim
como a embriaguez, o sexo traz em si uma ambivalência: ao mesmo tempo em que torna

158
pesados os parceiros, os conduz à inconsciência. Noutros termos, ambos, embriaguez e
sedução, estão ligados a experiências prazerosas e perigosas.
Ainda na chave da ambivalência, Lima (1995) afirma que o cauim juruna alegra e
depois mata, conduzindo a sociabilidade ao seu limite, fazendo de amigos inimigos. Essa
superação, que reenvia ao dilema da embriaguez apontado entre os Wajãpi, diz respeito a
um limiar que os Juruna condenam, mas nem por isso deixam de arriscar. “É que o cauim
não é fonte de alegria sem despertar ao mesmo tempo, de um lado, o ciúme e de outro, o
desejo sexual ilícito” (1995:411). No afã de intensificar a comunicação de modo que ela
ultrapasse os moldes cotidianos, ele acaba por dar origem a um sentimento indomável e
anti-social, a raiva. Se embriagar-se é, entre os Juruna e alhures, “sair de si”, é preciso não
deixar que esse movimento perca o controle, daí a importância das coreografias e cantos
sincronizados que conferem sentido coletivo à ação, ao encadear corpos que pesam e se
prendem ao chão e, assim, impedem o desprendimento individual das almas que,
inevitavelmente, aligeiram-se.
Na festa, a distinção entre estado leve e pesado aponta, portanto, a antinomia
isolamento/ coletividade. Ora, a qualidade de estar leve diz respeito a um princípio de
desindividuação e a um devir, uma espécie de impulso para fora do corpo, atração para a
alteridade. Se a leveza provocada pelo caxiri é regulada por uma ação coletiva, que traz os
participantes, que gozam de um estado alterado brando, de volta para “este” mundo, há
outros estados, como aqueles induzidos pelos xamãs por meio da ingestão do tabaco, que
buscam uma alteração mais radical e uma espécie de desprendimento da alma, o que não se
dá com o aporte igualmente coletivo, mas sim dentro de um contexto mais individual. A
pessoa do xamã é, sob este ponto de vista, capaz de se desintegrar e se reintegrar, o que
exige uma aprendizagem especializada, ainda que aberta a todos.
O estar pesado remete, por seu turno, não à experiência mística individual, mas à
exaltação da coletividade, que “puxa” as almas aligeiradas para a terra. Nas festas de
bebida fermentada, há um movimento de desindividuação que, no entanto, não extravasa
os limites da coletividade humana, permanecendo restrito a ela. As festas, ao contrário dos
transes individuais, enfatizam a “manutenção da sociedade que opta por permanecer nessa
terra, assumindo seu lugar no jogo de relações de predação e vingança com as outras
esferas do cosmos”, afirma Gallois sobre os Wajãpi (idem:220). Ou seja, trata-se de fazer da
comunicação com essas esferas a base para a comunicação entre esferas humanas. Festejar e

159
beber, agora quase sinônimos, consistem num momento de afirmação da condição humana
e terrestre do ser, concebida justamente diante da evidência de um mundo não-humano—a
um só tempo infra-humano e sobre-humano. Tudo se passa como se para se conceberem
como parte de uma humanidade maior, os indivíduos e os grupos tivessem de se defrontar
com o outro mundo, pois é dali que advém todo o conhecimento e todas as prerrogativas
culturais de que se tem necessidade. Tudo se passa como se para se fazer plena, a pessoa
tivesse de se deparar com a possibilidade de sua própria dissolução, e para se fazer pesada,
tivesse de experimentar a sua própria leveza. Nesse sentido, a embriaguez revela -se por
uma tensão ou paradoxo: é mais que um simples “pesar”; é, de maneira jamais
contraditória, tornar pesada a leveza, canalizá-la para a construção do sentido da vida
social. Ora, nesse lim iar experimentado, tudo pode descontrolar-se, o que era alegria pode
transpor-se em morbidez e a vulnerabilidade pode dar lugar ao infortúnio. Em suma, é
preciso ressaltar que a festa guarda em si um perigo eminente, um horizonte de
transformação do qual a pessoa não está jamais isenta.
Na viagem à Guiana Francesa que realizei junto aos Wajãpi do Amapari, percebi
que eles guardavam vários receios quanto às bebedeiras dos Wajãpi do Oiapoque. Os
jovens do Amapari temiam sobretudo o tafiá—palavra crioula para designar cachaça ou
mesmo todas as “bebidas de branco”—, bem mais forte do que o caxiri e, se ingerida em
excesso, poderia torná-los por demais vulneráveis à hostilidade dos habitantes do s
setentrionais. Por isso, um desses jovens, Japarupi, quando de uma visita que realizamos a
casa de um Emerillon, um pouco afastada do centro do Camopi, alertou-me para a
necessidade de discrição, controle e moderação. Disse-me para jamais recusar uma cuia de
bebida na casa dos estranhos, pois se o fizesse o anfitrião poderia ficar, com toda razão,
furioso e declarar vingança à minha pessoa. Tal ato seria interpretado como uma
deselegância absoluta, capaz de exprimir o receio de estabelecer uma relação, que se baseia
numa espécie de recusa dos limites individuais, tão prezados por nós, modernos. No
entanto, Japarupi garantiu-me que, naquele dia, iria cuidar de não beber demais e, com
efeito, no dia anterior, na bebedeira oferecida pelos Emerillon na Vila Brasil (ex-vila de
garimpeiros que fica na margem oposta da aldeia Camo pi) tratou de logo ir embora.
Segundo ele, os Emerillon já foram inimigos dos Wajãpi do Amapari e, ainda que eles se
mostrassem amigos cordiais, jamais se saberia ao certo quais poderiam ser suas verdadeiras
intenções quando resolvessem convidá-los para be ber. Sob as palavras de Japarupi, não há

160
dúvida, é sempre preciso agir sob controle e moderação, pois o bem-estar que a
embriaguez propicia é também arma do inimigo para a dizimação. Sempre achei Japarupi
um tanto paranóico, mas isso se devia certamente à minha ignorância quanto aos esquemas
éticos aos quais ele se via atrelado. Mal podia eu perceber naquela época a atmosfera de
perigo que se desenhava no Oiapoque, ao menos na cabeça daqueles jovens do Amapari,
que viam naquelas bebedeiras um atrativo extremamente ameaçador.
A festa de caxiri, por mais desordenada que possa parecer aos olhos do etnólogo,
permanece fiel a certos preceitos que, por sua vez, manifestam-se pela repetição de certos
temas recorrentes. Diferente dos povos que habitam paisagens como o Brasil Central, o alto
Xingu e o Noroeste Amazônico, os Wajãpi, bem como a maior parte dos povos guianenses,
revelam a baixa incidência de cerimoniais importantes de iniciação e morte. Não há entre
eles metades cerimoniais ou grades de idade, grupos baseados na descendência ou mesmo
algo como a exaltação dos ideais de aristocracia. Os ritos que concernem às etapas de
passagem da vida de uma pessoa são entre os Wajãpi, como já salientado, mais discretos.
As festas de caxiri, que comemoram, de modo geral, a aquisição do conhecimento e da
parafernália cultural pela exterioridade inimiga ou não-humana, remetem à necessidade de
“sair de si”, de alterar-se para constituir o lugar da humanidade no cosmos e para
estabelecer as diferenças entre os homens. Ora, a embriaguez consiste nessa tópica
preponderante na vida ritual da coletividade wajãpi e, de modo mais amplo, de grande
parte dos grupos amazônicos. Tópica no sentido de um lugar-comum, intrínseco ao ato de
festejar, algo que permeia manifestações diversas e cuja investigação pode conduzir a
aspectos elementares da cosmologia nativa.

Uma breve etnografia da festa

Cette tentative éperdue, toujours vouée à l'échec, pour rétablir la continuité d’un vécu démantelé
sous l'effet du schematisme qui lui a substitué la spéculation mythique constitue l’essence du
rituel.

—Lévi-Strauss, L’homme nu

Tendo em vista o caráter seqüencial das festas coletivas wajãpi, que implicam o
cumprimento de um programa básico—beber, dançar, cantar e distribuir a caça—,
gostaria de tecer aqui algumas considerações sobre a montagem de uma festa caxiri muito

161
particular que presenciei no alto Oiapoque, região de Trois Sauts, por ocasião da despedida
dos Wajãpi do Amapari, que terminavam ali a estada de algumas semanas (ver primeiro
capítulo).
Como sugere Stephen Hugh -Jones (1985), o ritual deve ser capturado no domínio
da parole, a fala saussuriana, ou seja, uma sucessão de eventos articulados diacronicamente
como um sintagma. Embora associado à fala, aberto à performance e ao acontecimento, o
ritual revela-se combinação de determinadas invariantes, podendo ser reduzido aos seus
termos constitutivos mínimos. Como na análise estrutural dos mitos empreendida por Lévi-
Strauss, é necessário dirigir o olhar às unidades constitutivas do ritual, não como relações
isoladas, mas como “feixes de relações”, pois é “somente sob a forma de combinações de
tais feixes que as unidades constitutivas adquirem uma função significante” (Lévi-Strauss
1976a: 244). Este autor alega haver uma simetria entre rito e mito quanto à estrutura, mas o
último estaria situado em um plano lingüístico, ao passo que o primeiro revela-se
perfomance, tendo mais liberdade na manipulação de categorias. “O rito faz da língua um
uso comum, e opta por significar em outro terreno” (Lévi-Strauss 1993b:251).
Como ressaltado no capítulo anterior, Lévi-Strauss assume que os ritos são sistemas
postos em ação, ao passo que os mitos são sistemas concebidos, ou seja, os primeiros
estariam no plano do fazer enquanto os últimos permaneceriam no plano do discurso. Todo
ritual, prossegue Lévi-Strauss agora no “Finale” de L'homme nu, carrega em si uma
mitologia implícita; contudo, ao propor que esta seja vivida, ao subsumir a linguagem
verbal que lhe apraz ao gesto, ao canto e à música, acaba por inverter sua direção,
impondo à descontinuidade incessante produzida pelo pensamento mítico uma espécie de
desejo de continuidade. Em outras palavras, se o mito multiplica as diferenças ao infinito,
o ritual tem de se defrontar com elas, assume o papel de orquestrá-las sempre sob o intuito
de organizar a experiência no mundo. Isso conduz à definição do ritual como instância de
comunicação entre séries separadas, ato de conjunção de diferenças, constituição de elos
capazes de responder ao problema da entropia que invade a mitologia. O ritual consiste
propriamente em uma aposta, a de que é possível controlar a tendência de pulverização e,
assim, restabelecer os laços que sedimentam coletivos humanos em relação a uma realidade
não ou pré-humana.
Outro contraste estabelecido por Lévi-Strauss entre mito e rito diz respeito às
diferentes formas de associação que um e outro lançam mão, qual seja, metáfora e

162
metonímia, respectivamente. O ritual atua pela lógica da contigüidade, faz com que o
mundo dos diferentes homens e o dos agentes sobrenaturais se confundam, submete partes
e fragmentos em movimento de contato e comunicação intensos, misturando o que se
encontrava apartado na esperança de fabricar uma realidade outra. No caso ameríndio,
sobretudo, a comunicação ritual se faz transformadora: as partes em jogo se aliam, trocam
substâncias (ou mesmo corpos) para, enfim, alterarem-se. O ritual, por metafórico que
possa parecer, aspira à literalidade.
Ainda no “Finale”, Lévi-Strauss aponta um paradoxo inerente ao ritual, visto que
este se alimenta de dois processos por assim dizer inversos: fragmentação e repetição, ou
seja, introdução incessante das diferenças e reprodução, a perder de vista, do mesmo
enunciado. Como no cinema, sugere o autor, “as diferenças tornadas infinitesimais tendem
a se confundir em uma quase-identidade” (1971:603; grifos meus); ou, em outras palavras, o
ritual permite o mesmo efeito de realidade ou continuidade que oferece o filme e, para
tanto, busca escamotear os cortes e remendos que o antecedem e dos quais se nutre para
apresentar um mundo inteiramente experimentável, tão ou mais real do que o real. Com
efeito, a montagem no cinema clássico impõe-se para não ser percebida, para que a
realidade das infindas decupagens seja subvertida por uma impressão de movimento e
continuidade.106 Mas tudo o que há é a ilusão de que a singularidade de cada plano tenha
cedido a uma fusão completa. A ilusão do ritual consiste, por sua vez, na proposta de
perseguir o contrassenso do mito, em refazer o contínuo a partir do descontínuo. Lévi-
Strauss anuncia, com efeito, que a essência do ritual reside em uma “tentativa desvairada,
sempre fadada ao fracasso, de restabelecer a continuidade de um vivido desmantelado sob
o efeito de um esquematismo que lhe substituiu a especulação mítica” (idem:ibidem; grifos
meus). A expressão “sempre fadada ao fracasso”, por fatalista que possa soar, não sugere
que o ritual seja desprovido de qualquer poder de intervenção sobre o vivido, e sim que
ele carrega consigo uma espécie de impossível, qual seja, a submissão de todas as
dissonâncias a uma harmonia idealizada. Nesse ponto, o processo da diferença—da
diferenciação—que constitui a especulação mítica não escapa ao esquema do ritual, que
não faz mais que oferecer uma pausa ou suspensão das descontinuidades. Toda
comunicação é desejada não porque apresente um fim, mas justamente pelo contrário, por

Lévi-Strauss detesta a metalinguagem do cinema moderno. Ver, a esse propósito, a entrevista que
106

concedeu a Jacques Rivette para a revista Cahiers du Cinéma, em 1964 (traduzida em Sexta Feira [1], 1997).

163
instaurar um circuito que só será abandonado por exaustão. O “fracasso” do ritual é,
portanto, o seu próprio sentido: ampliar uma ilusão, tanto de que é possível conjugar
forças e subjetividades díspares do universo quanto de que é possível conviver
harmonicamente sob o signo de uma humanidade comum e compartilhada.
Carlos Fausto (1997), diante da etnografia sobre os Parakanã, propõe que o ritual
seja tratado de forma análoga ao mito, noutras palavras, que ele seja decomposto em
unidades mínimas de significação, que bem poderiam ser denominadas “ritemas”. Não
obstante, essas não poderiam ser reduzidas a um quadro esquemático de linhas e colunas.
As ações rituais, por sua vez, devem ser iluminadas mais pelos seus aspectos sintagmáticos
que paradigmáticos: é pelo fato de possuírem começo, meio e fim que não podem ser
submetidas à análise estrutural típica aos mitos. Os ritemas, ao contrário dos mitemas, são,
como os planos de um filme, unidades carregadas de tempo. Menezes Bastos (1989), de
forma análoga, identifica o jawari alto-xinguano a uma máquina de tempo, que encerra
movimentos progressivos e progressivos-regressivos (retornos presentificadores ao
passado), já que não pode comportar nem puras sucessões, nem puros regressos.
Stanley Tambiah (1986) identifica o ritual a uma “construção estética social” que
apresenta fórmulas convencionais e está subordinada a regras de seqüenciamento. Suas
características estruturais consistem em padrões redundantes fundados em uma totalidade
configuracional, uma sobreposição de seqüências sucessivas. No ritual, forma e simbolismo
não podem ser tratados independentemente, pois ambos apontam a realização de
princípios cosmológicos e a comunicação entre pessoas em situações bem marcadas. Para
Tambiah, os rituais realizam-se em dois planos: horizontal, dado pela conexão dinâmica
entre os diversos eventos seqüenciais, e vertical, dado pela integração de oposições
paradigmáticas e contrastes sintagmáticos—produção de uma mensagem única a partir da
condensação de mensagens fragmentadas.
A análise preliminar de uma festa de caxiri, que acompanhei junto aos Wajãpi no
Oiapoque, deve contar, pois, com a consideração desses dois planos. Em primeiro lugar,
devo me ater à dimensão horizontal, procedendo por meio da decupagem das principais
seqüências da festa para, em seguida, debruçar-me sobre a dimensão vertical de maneira a
desvelar certos arranjos paradigmáticos.

Decupagem

164
Tendo em mente a idéia de Lévi-Strauss do rito como “plano de montagem”, “cuja
realidade só poderia ser inconsciente, mas que tem de qualquer modo um valor heurístico”
(1984: 42), é possível comparar o ritema à noção de plano corrente em cinema, ou seja, à
“verdadeira unidade de montagem, o pedaço de película mínimo que produzirá o filme”
(Aumont 1995:39). Como nos filmes, a ordem dos planos não é dada de antemão, cabe ao
diretor montá-la a partir de sua coleção de fragmentos; o que significa dizer que a
montagem, “organização dos planos em certas condições de ordem e duração” (idem:55), é
a maneira pela qual se confere sentido tanto ao filme como ao ritual. Noutras palavras, para
prosseguir com a analogia, a montagem consiste na manipulação dos planos com o intuito
de construir um discurso coeso. Ela organiza a sucessão das unidades e estabelece sua
duração. É a posição de cada quadro, de cada plano e de cada seqüência que vai fazer de
um filme o que ele é. Como o cinema, o ritual é uma prática de combinação e organização:
sempre mobiliza uma certa quantidade de elementos visuais e sonoros em organizações e
proporções variáveis. É por serem postos em seqüência, por sucederem ao longo do tempo,
que a narrativa fílmica ou o rito podem adquirir um sentido. No ritual, os eventos devem
ser distribuídos segundo uma ordem específica, é só então que eles poderão desenrolar-
se.107
Diferente de um filme, que nasce da autoria de um realizador, aquele que prevê a
disposição e a ordem das seqüências e que visa um determinado discurso ético e estético, a
maestria ritual não se deve, a princípio, a um trabalho individual bem definido. Apesar
dessa ausência de criação dada pela figura do artista, como imaginada pelo juízo estético
ocidental, não é possível negligenciar o papel do dono da festa que, se não inventa uma
nova fórmula, improvisa sobre um tema conhecido e, sobretudo, procura controlar o bom
desenvolvimento das atividades, bem como o grau de embriaguez dos convidados, sob o
risco de tudo descambar numa orgia desmesurada. No exercício aqui proposto, o
importante é iluminar o complexo da festa em seu conjunto, pois é só na articulação de
elementos discretos que pode manifestar sua coerência. Como propôs Lévi-Strauss, acima

107
Nota-se que também a noção de montagem em cinema tem um sentido horizontal e outro vertical. O
horizontal tem a ver com a acepção mais clássica de cinema—ordenamento dos planos em seqüência. O
vertical, de sua parte, diz respeito à construção interna ao próprio plano. Trata-se, no mais, da introdução da
dimensão temporal no próprio plano.

165
parafraseado, a tarefa dos ritos reside justamente em colocar em relação termos distintos,
criando continuidades a partir de descontinuidades.
Seguindo a analogia traçada com a forma do filme, passo à decupagem de uma festa
de despedida—aquela que acompanhei com mais atenção—que os índios do alto
Oiapoque, na aldeia de Yawapá, ofereceram aos do Amapari. Sugiro ao leitor que imagine a
sucessão em dez planos-seqüência, ou seja, planos longos o suficiente para conter o
equivalente fatual de uma seqüência—“encadeamento de uma série de vários
acontecimentos distintos” (Aumont 1995:43). Parto então desse conjunto seqüencial para
encontrar as “unidades mínimas”, temas básicos que perpassam a festa, isolando-as em um
primeiro momento, para depois me debruçar sobre as relações entre elas e buscar uma
lógica subjacente que permita integrá-las em um conjunto maior.

(1) Fim de tarde. Os Wajãpi do Amapari chegam à aldeia Zidock, Alto Oiapoque, depois de
várias paradas para beber caxiri nas aldeias vizinhas, onde travam diálogos formais
com os anfitriões. Trazem muita carne de caça. São acolhidos na casa de hóspedes, na
“periferia” da aldeia, bastante populosa. Pouco depois, se dirigem ao centro da aldeia,
onde são recebidos pelo capitão da aldeia, Robert, já com algumas cuias de caxiri.

(2) Alvorecer. Uma semana depois, no dia anterior à festa de despedida, os Wajãpi do
Amapari vão à caça de voadeira, acompanhados por homens do Oiapoque, obtendo
como presas um macaco guariba e uma queixada, que serão oferecidas ao dono da
festa, aquele que fornecerá o caxiri e com quem travarão uma relação recíproca (bebida
em troca de carne de caça).

(3) Na manhã do dia da festa, na aldeia Yawapá, os Wajãpi do Amapari e seus anfitriões
empenham-se na produção de instrumentos musicais, como as clarinetas (tule) e os
chocalhos (maraká). Em segundo plano, simultaneamente, as mulheres preparam a caça
e começam a se mobilizar para servir o caxiri, após três dias de fabricação.

(4) No começo da tarde, o dono da festa, dono do caxiri, recebe todos os que vão chegando
à praça, servindo-os da parca comida que as mulheres anfitriãs acabavam de preparar.

166
No mesmo momento, as mulheres, então já muito pintadas, começam a servir o caxiri
para os convidados, que não recusam uma cuia sequer. Parece ser tempo de beber, e
não de comer.

(5) Meio da tarde. Já depois de algumas cuias, os Wajãpi do Amapari, sentados, põem-se a
executar na casa cerimonial o som das clarinetas, iniciando a orquestra do turé,
enquanto os demais assistem quase calados, não se poupando, contudo, de comentários
sobre o que acontece. As mulheres mantêm-se à distância, permanecendo ainda em
segundo plano.

(6) Tardinha. Os Wajãpi do Amapari dão início à dança em frente à casa cerimonial e
continuam a serem assistidos. A dança torna-se espetáculo para os habitantes do alto
Oiapoque, que fixam seus olhares de modo entusiasta. Os homens já se mostram ébrios.

(7) Já é noite e outros se juntam aos dançarinos, a começar pelo dono do caxiri. A
empolgação aumenta visivelmente, os lugares antes demarcados parecem se dissolver.
Homens e mulheres estão ébrios. Os passos sincronizados do grupo de dançarinos dão
lugar ao puro improviso.

(8) Noite alta. Findo o caxiri, finda a festa naquela aldeia. Alvoroço. Mas logo alguém
sugere que mais e melhores cuias esperam por todos na aldeia Trois Sauts, num ponto
mais alto do rio, próximo da grande cachoeira. Os homens se dirigem às voadeiras na
margem do rio, partindo para a festa derradeira. As mulheres de Yawapá permanecem
onde estão.

(9) Madrugada. Na aldeia Trois Sauts, a poucos minutos de voadeira, ouve-se o som de
aparelhos possantes, com músicas provenientes da região caribenha. Ainda há muito
caxiri nas canoas e muito tafiá (cachaça, whisky etc.) preenchendo as cuias. A dança
prossegue, mas sem as clarinetas e os cantos tradicionais, que cedem lugar às caixas de
som. As mulheres integram a coreografia caótica e todos se mostram absolutamente

167
embriagados. Abre-se também o momento para flertes. Os rapazes do Amapari
começam a abordar as moças do Oiapoque, e vice-versa.

(10) Na manhã seguinte, os Wajãpi do Amapari já estão de volta a Zidock e se preparam


para retornar às suas aldeias no Brasil. Os habitantes de Zidock ajudam na preparação
das bagagens e trocam presentes com eles. Os do Amapari ficam muito contentes com
as dádivas de seus anfitriões, sempre produtos importados vindos da metrópole
francesa. Tecem mutuamente promessas de um reencontro e de novas viagens. Finda,
assim, a festa e a temporada no alto Oiapoque.

As seqüências parafraseadas acima resumem, de modo breve, a apreensão do evento pelo


olhar estranhado do etnólogo. Logo, perdem de vista as nuanças e a profusão de
significados que o investigador não se vê capaz de captar, reduzindo-se a fragmentos
imagéticos que demandam uma remontagem, desta vez pela escrita antropológica. Enfatizo
a insuficiência do meu olhar apressado principalmente no que diz respeito às seqüências
(8) e (9) que se desenrolaram na noite alta e que fogem do ordenamento presente nas
demais séries vespertinas. É aí que o programa da festa atinge seu cume: todos estão
completamente embriagados e não hesitam em fazer confundir o esquema de coisas
demarcadas que vigia em momentos anteriores. As falas comedidas pela etiqueta e a
conduta reservada entre aqueles que se reconhecem como estranhos dão lugar à falação
desordenada. As mulheres, até então segregadas a uma função de provedoras de caxiri,
integram os círculos de sociabilidade, recorrendo para si um lugar diferente. As relações
conjugais preestabelecidas cedem espaço para encontros furtivos e para novas conquistas.
Isso sem falar nas brigas que tendem a explodir a qualquer momento. Enfim, o universo
das normas sociais perde os seus contornos devido a uma espécie de catarse, em que o “sair
de si” propiciado pelo caxiri acaba por significar também a suspensão—provisória—de
posições sociais operantes. Algo como Tânia Lima (1995) havia afirmado sobre os Juruna: o
ápice da cauinagem é também marcado por um momento, no limite, anti-social. Tudo se
passa como se, para celebrar, fosse essencial experimentar uma outra posição na sociedade
e, para dispor desse “estado alterado”, fosse necessário confundir tudo antes, deixar para
trás certas identidades. Tornar tudo indiferente para depois se ver com a diferença.

168
Na embriaguez, as atitudes e os sentimentos de reserva são substituídos, à primeira
vista, por um estado de indiferenciação geral. Tudo se passa como se todos se entregassem
a relações que fogem às regras de conduta social, como se a ética social fosse assaltada por
um programa de excesso. As barreiras entre os grupos locais são de certo modo abolidas
em nome da celebração das diferenças. É necessário sair de si, experimentar, por pouco que
seja, o sabor de ser outra coisa que aquilo que se é na vida diária; na festa, as identidades
individuais diluem-se em um projeto de desindividuação. É assim que, por exemplo,
Moropi esqueceu das mágoas acumuladas nos dias passados em relação às gentes do alto
Oiapoque para celebrar a festa de despedida. Naquele dia, ele não seria nem sequer
Moropi, nome próprio que se negava a divulgar para os estranhos, mas Júnior Lopes, o
codinome brasileiro que lhe apraz nos galanteios com as moças de fora do Amapari. E
então flertou ele com as primas distantes da Guiana Francesa.

Remontagem

As dimensões verticais-sincrônicas da festa só podem ser recuperadas por meio de um


esforço analítico. Aqui, a etnografia torna-se sinônimo de tradução e decodificação, como
se estivéssemos diante de um texto estranho—para tomar emprestado o jargão de Clifford
Geertz (1978). Há que se capturar, na seqüência, oposições que se transformam umas nas
outras e que revelam o significado do ato de festejar. E mais, buscar em outras
manifestações paralelos edificantes, tendo em vista que o ritual, mais que um texto, revela-
se intertexto, linguagem que pode ser aplicada de maneiras múltiplas.
As seqüências (1) e (2) abrigam um quadro bem definido de oposição: de um lado,
os anfitriões, de outro, os convidados; cada qual com seu papel preestabelecido e suas
atitudes governadas por um conjunto de etiquetas e obrigações rituais. Aqui, é importante
salientar a presença do “dono da festa” (moraita-jar) ou “dono do caxiri” (caxiri-jar), cuja
posição, jamais fixa, é de reputação, devido ao seu amplo conhecimento dos cantos e à sua
criatividade na elaboração de enfeites (Gallois, 1988). 108 A organização cerimonial, que
explicita o antagonismo entre anfitriões e visitantes, é um lugar-comum na Amazônia
indígena. Entre os Araweté, Viveiros de Castro (1986) observa a oposição atuante entre

108
“Note-se ainda que os xamãs evitam ser moraita-jar, pois esta posição exige um esforço físico muito
grande que colocaria em risco as substâncias do -paie, que poderiam ‘cair’ durante as danças” (1988:154).

169
“dono do cauim”, “funcionário da comunidade mais que anfitrião honrado”, e o cantador,
aquele que traz o canto como contrapartida da bebida recebida. O primeiro encarna os
grupos anfitriões e o segundo, os grupos convidados. Ora, como já pontuado, o cantador é
também o líder da caçada cerimonial, que antecede a cauinagem. A caça obtida nesse
empreendimento representa, justamente, a paga pelo cauim, e deverá ser entregue ao dono
da festa tão logo finde a bebida.
Entre os Cinta-Larga, grupo tupi-mondé que habita o norte do Mato Grosso,
estudado por João Dal Poz (1991), é possível colher paralelos interessantes ao caso
enfocado. A festa tem início com a construção de uma casa comunal, a inauguração de um
espaço social exclusivo para a realização de encontros interlocais. É nesse espaço que o
visitante será recebido, alojado e entretido. Tal casa possui um anfitrião principal
(zabiwai), também conhecido como “festeiro” (mêiway) ou como “dono da chicha” (ïiway).
Mais uma vez, a chicha, denominação que os Cinta-Larga usam para a cerveja, aparece
como o elemento ritual central, devendo ser consumida em excesso.109 As atividades
guerreiras são evocadas na festa cinta-larga por meio da simulação de um ataque no
momento de entrada dos convidados na aldeia. A polidez cede lugar à saudação agressiva
que reproduz as táticas bélicas, realizando o contínuo segmentado pelo rito na sua forma
geral. A seqüência ritual remonta, dessa maneira, ao encontro entre dois grupos
inicialmente tidos como antagônicos, partindo de uma expressão de oposição em busca da
articulação da reciprocidade. Com os Waiwai, entre os quais estas relações são lidas sob o
signo da farsa, a festa principia com um ataque simulado do grupo de caçadores pawana
que, como revela Howard (1993), entram na aldeia urrando como selvagens, apresentando -
se de forma bastante agressiva. O desafio da festa será, daí em diante, amansá-los, impondo
a eles o seu modelo de sociabilidade (ver segundo capítulo).
A oposição entre convidados e anfitriões ilumina dois níveis de troca. De um lado,
um nível sincrônico e simétrico—os donos da festa oferecem a bebida fermentada e
recebem dos convidados o canto, a dança e a carne de caça. Trata-se de uma oposição de
109
Os elementos centrais da festa entre os Cinta-Larga compreendem a chicha, alimento diário básico e que
aparece nas festas como anti-alimento (porque azedo), a dança, engendrada pelo tocar das flautas de palheta,
a música, cujos temas devem ser exteriores à sociedade (que os homens só tocam em conjunto em ocasiões
festivas), e o canto (que, em alternância com as flautas, produz um “duplo significante” da dança) que
tematiza as relações com os grupos envolvidos, atuando como a “metalinguagem da festa”, concebendo seus
signos e sancionando seus significados (Dal Poz 1991:219). Os cantos exercem, pois, duas funções: inscrevem
as atividades diárias no âmbito do ritual e salientam aspectos de interação entre convidados e anfitriões,
unindo a história pessoal à vida social, colocando a pessoa na sociedade.

170
tipo simétrico entre termos de naturezas diversas, em que a contrapartida ocorre de modo
imediato, ainda que a carne seja consumida apenas no final do festival. De outro lado, um
nível diacrônico ou assimétrico, em que a bebida figura como bem supremo, e a troca se
estabelece no seguinte sentido: aquele que foi convidado em um dado momento deverá
retribuir o mesmo feito num momento seguinte, ou seja, a oposição que se articula é aquela
entre doadores e tomadores de bebida. Aqui se esboça o desenho de uma troca diferida, que
se realiza no tempo, evidenciando que o tomador de caxiri de hoje será o doador de
amanhã, oferecendo ao dono da festa o que este já lhe ofereceu. A simetria entre anfitriões
e convidados deixa de operar, sobretudo porque quem detém a bebida está também
imbuído de um poder específico, que é o de tornar o convidado vulnerável a seduções e
agressões. Nesse sentido, são sempre os tomadores de bebida que estão em desvantagem,
visto que a oferta de festas revela também o seu caráter agonístico.
As seqüências (3) e (4) apresentam um quadro de oposição deslocado do par
convidados/ anfitriões para o par consumidores de caxiri (homens)/ produtores de caxiri
(mulheres). Ora, a reputação do dono da festa advém justamente dos dotes de suas esposas
em produzir a bebida e cabe, portanto, às mulheres esse papel central que é fornecer ao
ritual seu elemento básico. Viveiros de Castro (1986) refere-se, na cauinagem araweté, à
oposição entre uma função feminina e outra masculina. A primeira estaria dada na figura
do “dono do cauim”, cujo trabalho é visto como análogo à produção de seres humanos, ou
seja, a procriação; e a segunda na figura do cantador, cuja posição no ritual é tida como
análoga à do inimigo tupinambá (aquele que, ao cantar, anuncia sua execução). Ora, se a
função feminina diz respeito à produção, tanto de caxiri como de seres humanos (e o caxiri,
lembremos, é uma espécie de ser humano); a função masculina diz respeito à predação, de
pessoas como de animais (e a caça surge, por toda a Amazônia, como uma espécie de
substituto do inimigo).
De maneira mais ampla, é possível entrever na festa wajãpi uma correlação simples
do tipo convidados : anfitriões :: homens : mulheres :: caça : bebida :: predação : produção. A
posição masculina, relacionada aos convidados, não designa apenas um lugar de recepção
de bebida, mas também de dádiva de caça, basta lembrarmos da primeira seqüência, em
que os visitantes chegam às aldeias do alto Oiapoque carregados de presas animais de
várias espécies, ou da segunda, em que no dia anterior à festa, os mesmos retornam de uma
nova caçada trazendo um macaco guariba e uma queixada como presentes ao dono do

171
caxiri. A prestação de carne de caça pela bebida fermentada remonta às relações entre
masculino e feminino no mundo wajãpi. Tomemos, por exemplo, a complementaridade
entre a iniciação feminina e a iniciação masculina, a primeira servindo de modelo ou mote
à segunda. Após a primeira menstruação da irmã, o rapaz que estiver na puberdade deve
partir em sua primeira caçada. A iniciação das meninas (tapi’ai) consiste em cerimônias de
aplicação de formigas e num longo processo de reclusão, marcado pela abstinência (-
jikoako), concebida pelos Wajãpi como um estado positivo. A menina descansa por um mês
e tem seus cabelos cortados. Pela manhã, apenas alguns afins próximos e consangüíneos
assistem à aplicação dos insetos, vista como uma “prova física”. O caxiri não deve faltar
nessas ocasiões, sendo preparado pelos parentes distantes da moça. A iniciação da menina
demanda então a iniciação do irmão púbere, que deve isolar-se na floresta para ganhar
intimidade com a caça. Não há, no caso dele, um cerimonial bem marcado senão o
contrário. Gallois nota uma correlação crucial extraída da relação entre irmão e irmã: o
transbordamento do sangue menstrual dela implica outro derramamento de sangue, desta
vez de animais e efetuado por ele. No caso da iniciação do rapaz, a caça, produto
masculino, assume o lugar de pagamento pelo cauim, produto feminino, cuja fermentação
coincide com o período final de reclusão da menina. As constatações acima apontam a
centralidade das mulheres na economia simbólica engendrada nos rituais. A caça destina-
se a elas, pois somente elas possuem o poder de produção a um só tempo de pessoas e de
caxiri. O que ocorre de modo sutil—e restrito à esfera do parentesco—no contínuo de
iniciações, estoura no ambiente da festa de caxiri, onde a prestação de carne por bebida
volta a figurar desta vez entre convidados e anfitriões, imaginados como posição masculina
e feminina e entrelaçados por uma relação de afinidade potencial passível de ser
atualizada.
Nota-se que esse “sistema de prestações”, constituído por termos como carne e
bebida, homens e mulheres, assume a forma de um jogo com regras rígidas, dificilmente
burladas. Os visitantes devem, invariavelmente, aceitar as cuias com o caxiri
transbordante que lhes são oferecidas. A recusa e a interrupção da bebedeira significa,
como já foi apontado, uma grave ruptura, um desrespeito à etiqueta da festa e à oferta de
bebida que não pode cessar. Cada convite implica uma dádiva e um compromisso que não
são pensados apenas como generosidade, mas também como bravura. Posso compreender
agora, com mais clareza, porque os Wajãpi do Amapari mostravam-se tão desapontados

172
quando eu recusava uma cuia de caxiri num grupo local do Oiapoque ou mesmo quando
não me sentia disposto a beber tudo de um só lance. Diziam-me que tal ato poderia lhes
causar problemas, e era de fato impensável que alguém recusasse uma dádiva de bebida.
Era como se o processo de estabelecimento de um canal de comunicação entre os diferentes
grupos fosse sabotado. Cabia a mim uma única solução, se não quisesse desapontar meus
companheiros: entregar-me à lógica da festa e esvaziar as cuias de caxiri que me eram
oferecidas. Devo confessar que, aos poucos, para meu reconforto, as mulheres do Oiapoque
se mostravam mais compreensivas para com a minha situação, dirigindo-me apenas cuias
pequenas. Mas, como faziam as mulheres tupinambá em relação ao cativo de guerra nos
ritos que antecediam a sua execução, as mulheres wajãpi, igualmente ébrias, riam
demasiadamente de mim, mostrando-me o quanto restava para eu aprender a me
comportar como “gente” numa cauinagem.
De qualquer forma, foi possível perceber que a dádiva de bebidas comportava um
outro sentido que aquele de simples reciprocidade. Havia ali uma atmosfera de
provocação, isto é, delineava-se não apenas uma arena de troca, mas também de disputa
entre os dois segmentos em oposição. Os visitantes eram de certa forma “castigados” com o
excesso de bebida que os conduzia, aos poucos, a um estado de profunda embriaguez.
Deveriam, pois, mostrar-se hábeis na postura de bebedores, resistindo ao jugo dos
anfitriões. É por essa razão que eu, por os estar acompanhando, não poderia decepcioná-
los. Minha desventura significaria uma vantagem para os “donos” do caxiri do Oiapoque.
Ora, se na trama da festa há posições mais ou menos vantajosas, devo insistir que estamos
diante de uma forma de troca que inclui relações bastante assimétricas. Diferente dos
alimentos comuns, o caxiri alcoólico não nutre, provoca vômitos, sendo, dessa forma, uma
espécie de “anti-alimento”, ao mesmo tempo um presente e um veneno.
As seqüências (5) e (6) contam com outro deslocamento: desta vez, a oposição
central ocorre entre aqueles que executam o ritual e aqueles que o assistem como
coadjuvantes. Estamos em plena realização do turé, cerimônia musical que tem como
objetivo promover a comunicação dos homens com Janejar e com domínios da
sobrenatureza. De um lado, um grupo se responsabiliza pelo desenrolar do ritual,
manipulando os instrumentos e fazendo ecoar o som; de outro, indivíduos mantêm um
comportamento reservado, que nada tem em comum com o silêncio e com a contemplação,
e sim com sussurros e futricos, com a proliferação de comentários sobre o que acontece e

173
com a atualização de fofocas sobre as relações entre as gentes ali presentes. O próprio dono
da festa assume essa posição de reserva, o que o aproxima de uma posição feminina, ou
seja, oferece a cerimônia sem, de fato, gozar dela.
Em suma, o conjunto dessas seis seqüências que constituem a parte por assim dizer
estruturada da festa (seu movimento moderado) revela uma oposição básica entre
visitantes e anfitriões, que se desdobra em outras, de semelhante peso, e que podem ser
esquematizadas, muito simplificadamente, da seguinte forma:

Convidados Anfitriões
Homens Mulheres
Caça (alimento) Caxiri (anti-alimento)
Protagonistas dos cantos e danças Coadjuvantes dos cantos e danças
Música Ruído
Canto Sussurros

A progressão de um estado de estranhamento e/ou hostilidade em direção a uma


espécie de comunhão reenvia às últimas seqüências da festa wajãpi. Nota-se que as
seqüências de (7) a (10) indicam um segundo movimento relacionado à neutralização—
jamais absoluta, vale ressaltar—da oposição entre convidados e anfitriões, momento ápice
da dimensão dionisíaca da festa, em que a possibilidade de individuação é assaltada pela
exaltação de um estado de indiferenciação. Se até então, tudo caminhava para a
diferenciação dos grupos, seja pela imputação de diferentes papéis rituais, seja pela
restrição dos contatos entre pessoas de proveniências distintas, passa a imperar um esforço
de conjunção, uma espécie de fusão de todos em um conjunto maior que os ultrapassa. Na
seqüência (7), os anfitriões juntam-se à dança, abandonando sua posição de meros
coadjuvantes e, na seqüência (8), as próprias mulheres deixam de servir para se somar ao
alvoroço da festa—bebendo, dançando e cantando, vindo da periferia para ocupar o
centro. Nesse sentido, há aqui uma dupla subversão de fronteiras: entre convidados e
anfitriões e entre homens e mulheres. Na seqüência seguinte (9), que se passa não mais em
Yawapá, mas em Trois Sauts, mais a montante, torna-se difícil notar qualquer distinção
estabelecida: o grau de embriaguez é altíssimo e todos parecem ter abandonado seus
postos. Ali, o som dos clarinetes cede lugar para a música caribenha que ecoa dos alto-

174
falantes e as mulheres parecem agora comandar a algazarra. Nas bordas do pátio,
“namoros” e relações extraconjugais são esboçadas.
Nesse ponto, a festa wajãpi conhece sua “fase crítica”, operando por inversões e
“farsas cômicas”. Trazido à dança, o dono da festa está sujeito ao jugo dos visitantes, é ele
que deve obedecer à coreografia que lhe é imposta, e não o contrário. As mulheres,
acanhadas e mudas até então, recobram seu lugar na dança, permitindo-se abandonar o
papel de simples produtoras e flertar com os homens que vêm de longe. De certo modo,
elas encarnam um movimento de predação sexual—senhoras do caxiri e da cozinha, elas
entregam-se muitas vezes à sedução dos convidados, e isso, vale lembrar, pode despertar o
ciúme e a raiva de seus maridos. Nota-se que essa “virada feminina”, que marca não
apenas a festa wajãpi, reenvia mais uma vez à imagem dos antigos festivais antropofágicos,
nos quais as mulheres, responsáveis pela preparação do cauim e da vítima (ornamentando -
a num primeiro momento para, depois, preparar a sua carne no moquém), tomavam parte
decisiva, mostrando-se, inclusive, as devoradoras mais vorazes. Como argumenta Viveiros
de Castro (1992), o repasto canibal talvez represente a porção propriamente feminina do
ritual, pois se para os homens o mais importante era esfacelar o crânio do inimigo, para as
mulheres era na ingestão de seu corpo (mais especificamente, as partes moles, como as
vísceras e os miolos) um meio, como complemento à embriaguez do cauim, de obter a
plenitude. Devoradoras em sentido próprio ou figurado, as mulheres comandam o período
que ia do ápice ao fim da festa, protagonizando uma trama que se apresentava de início
como masculina.
O ápice da festa identifica-se, pois, à alta embriaguez, estágio no qual as diferenç as
tendem a ser neutralizadas em nome de um estado de indiferenciação. Insisto aqui na
consideração da seqüência (7), em que é colocada em cheque a distinção entre
protagonistas e coadjuvantes dos cantos e danças. Aos poucos, a dança absorve todos os
participantes e não é estranho, depois de horas de bebedeira, observar anfitriões e
mulheres juntando-se aos passos dos demais no pátio. Esse ponto de fuga revela uma
característica essencial da festa de caxiri entre os Wajãpi e no alhures amazônico: a
possibilidade de subverter as posições preestabelecidas dentro dos limites da própria
seqüência ritual. E essa subversão é como que programada: menos que um mecanismo de
coesão—a subsunção de convidados anfitriões, homens e mulheres à idéia de um “Nós
coletivo”—em nome da Sociedade, creio estarmos diante de uma tentativa, com o perdão

175
da expressão, sempre “fadada ao fracasso”. Isso porque o estado de indiferenciação, essa
contigüidade total entre os participantes que se constrói pela via perigosa do excesso, não
poderia ser sustentado por muito tempo, visto que, ali, as descontinuidades despontam
como irredutíveis. A curva da embriaguez, revelada na seqüência da festa, conhece, então,
a sua descendência.
Entre os Cinta-Larga, o clímax da festa de chicha consiste no sacrifício de uma
vítima animal, o xerimbabo (gôm), evento que encontra analogia nas execuções simbólicas
dos animais e inimigos em muitos rituais wajãpi e, como não poderia deixar de ser, na
execução de inimigos propriamente ditos, como ocorria em diversas províncias de outrora.
O sacrifício, pensado em uma clave maussiana, revela-se, no caso enfocado, uma “aliança,
uma vez que os convidados representam os outros [...], os afins, na linguagem do
parentesco” (Dal Poz 1991:253). Antes de tudo, o animal recebe um nome, sendo, assim,
socializado pelo grupo. Na festa, no entanto, ele será feito vítima, tornando-se o valor
supremo do ritual, visto que sua morte dá lugar à troca e sua carne é repartida entre os
convidados como contra-dom das flechas trazidas por eles.
O núcleo da troca ritual entre os Cinta-Larga, visualizada por Dal Poz, é, pois, a
contrapartida do alimento por artesanato. Há, entre essa população, uma contradição
inerente ao ritual: os convidados intervêm e forçam, via violência simbólica, o
aparecimento da reciprocidade. A vítima animal, objeto por excelência da troca, explicita
uma equação entre comestibilidade e hostilidade. De modo análogo, Viveiros de Castro
observa que a cauinagem araweté termina comumente com o transe furioso (heti):
dançarinos começam a uivar e se debater, arriscando ferir os demais. Findo o cauim, finda
a festa, abrindo assim novas possibilidades para a comensalidade, que quase havia
resultado em conflito. Volta a figurar o cauim doce (não mais um anti-alimento) e, chega,
então, a hora do pagamento pela bebida alcoólica: a carne moqueada, trazida pelos
convidados. “A circulação de patrocínios não segue ordem preestabelecida, nem cálculos
óbvios de reciprocidade. As oposições centrais que estruturam o cauim alcoólico se
condensam nas figuras do cantador e do dono do cauim" (Viveiros de Castro 1986:340).
Como entre os Araweté, finda-se a festa cinta-larga com o oferecimento da chicha
doce, que marca o retorno ao cotidiano—o alimento é restituído em detrimento do anti-
alimento. Finda-se o excesso, a moderação é reencontrada. Há uma conciliação final
representada pelo rito da polidez, “estado de espírito culturalmente esperado”: “Do ponto

176
de vista do ritual, tudo se passa como se a caça, a guerra e o sacrifício fossem estritamente
equivalentes entre si. Enquanto ‘maneiras de matar’, formam um grupo de transformações
homólogas da mesma relação com a alteridade, moldada por um regime alimentar. Em
síntese, a predação" (idem:275). Justapondo a seqüência cinta-larga à wajãpi, percebemos
um final comum ilustrado por uma forma de retribuição. A transformação que ocorre no
exemplo aludido por Dal Poz é que, ao contrário dos Wajãpi, os visitantes cinta-larga não
trazem a caça, mas consomem a carne advinda do sacrifício, momento crucial da reunião.
Entre os Wajãpi, os convidados são presenteados com artefatos no final da festa, em vez de
terem de trazer eles mesmos artesanato para dar os parentes distantes. Apesar das
diferenças significativas, o que resta das experiências díspares é o mecanismo de
promoção, ou restauração, de uma relação de reciprocidade a partir de uma relação
fundamentalmente assimétrica, passando necessariamente por um momento máximo de
conjunção, promovido pela embriaguez que, como ato libativo, remete diretamente ao
sacrifício. Se entre os Cinta-Larga, o sacrifício é literal—toma-se um animal de estimação
para ser destruído e repartido entre todos—, entre os Wajãpi, este é efetuado de modo
figurado, visto que a intenção de estabelecer comunicação entre os homens e o cosmos,
entre os vivos e os mortos é atualizada, seja por meio da encenação da execução de seres
mitológicos, seja por meio da palavra dos cantos que presentificam essas situações.
No início da festa cinta-larga, os anfitriões reservam-se à sua condição de doadores,
mantendo vantagem em relação aos convidados, tomadores de carne e de bebida. Ao final,
essa relação se inverte, os anfitriões são retribuídos com o artesanato trazido de longe. Há
uma tentativa de compensação, de restabelecimento de uma reciprocidade que, ao que tudo
indica, revela-se bastante precária e em constante ameaça. De qualquer modo, tendo em
vista a pertinência do axioma maussiano, interessa menos o que é trocado do que a relação
de troca que se instaura. No caso que presenciei, os Wajãpi do Amapari, visitantes na
Guiana Francesa, portavam-se como doadores das músicas e coreografias, o que os colocava
em uma oposição imediata aos habitantes do Oiapoque, que permaneciam como
coadjuvantes. Enfim, era possível vislumbrar, nessa experiência, um movimento de
demarcação de posições complementares e antitéticas na busca do estabelecimento de
“relações de qualidade” (F. Cabalzar 1997), então perdidas no domínio cotidiano, em que a
distância e as divergências imperam. O mais interessante é que a festa procurava,
permeada por um idioma de agressão, reconstruir laços entre dois blocos distantes.

177
Findava, pois, a festa sob o signo da cordialidade: satisfeitos com a performance dos
visitantes do Amapari, os Wajãpi setentrionais os presenteavam com artigos
manufaturados da Guiana Francesa, agradando-os e garantindo novos encontros para o
futuro. Nesse ponto, reencontra-se o aspecto propriamente diacrônico dessas manifestações
festivas, que encerram uma reciprocidade que ultrapassa a seqüência aqui descrita,
apontando sempre a montagem de um novo evento, seu moto -contínuo.
Ambos os casos, wajãpi e cinta-larga, manifestam em suas seqüências rituais esse
movimento de busca pelo restabelecimento das “relações de qualidade”. Ora, as festas de
bebida fermentada nada mais seriam do que essa tentativa de transformação da predação,
idioma simbólico predominante, em reciprocidade, o que significa, ao mesmo tempo,
constatar que a reciprocidade, que aqui utilizo como próximo de sociabilidade, não pode
ser obtida senão pelo engendramento da predação. Como conclui Dal Poz: “Este mundo de
interação com os estrangeiros sugere, fortemente, que o ritual não se resume à mera
repetição de mensagens, mas revela-se um instrumento eficaz para se construir relações
sociais” (1991:315). Este esforço de síntese, de conjunção de termos contrários, implica que
a “forma ritual pode ser vista como tentativa de construir a vida social, configurando uma
possibilidade de existência, conferindo-lhe um significado cultural. Dialeticamente, contra
a predação”. (idem:293). Dialeticamente, pois que tem na predação a condição para a
realização da sociabilidade. Ora, isso significa tampouco que a síntese dos contrários,
engendrada nessa dialética, se complete; pelo contrário, ela revela um processo que tende
sempre ao desequilíbrio, daí o sentido da hipérbole lévi-straussiana “fadado ao fracasso”. A
relação entre as partes envolvidas—grupos e pessoas, homens e mulheres—será, segundo
a práxis festeira aqui iluminada, sempre uma relação instável, em que cordialidade
(comensalidade) e hostilidade (agressão) compreendem atitudes que permanecem separadas
por uma linha tênue, facilmente corroída.
Subjacente a toda essa montagem e desmontagem ritual, que aqui busquei analisar,
pode ser verificada a operação de um princípio ontológico que ganha expressão, como
conclui Viveiros de Castro (1993), nas formas da afinidade. As pessoas e os grupos que se
defrontam no campo festivo concebem-se sob a estética da afinidade, isto é, sabem que a
atmosfera de reserva e hostilidade—que equaciona estrangeiros a inimigos—pode ser
transposta em reciprocidade, que faz do estrangeiro ora um parceiro não aparentado (tal o
sentido de termos empregados nas Guianas como pawana e jepe), ora um afim atualizado.

178
Como garante Viveiros de Castro, as formas da afinidade, que transitam entre o ato e a
potência, fornecem um modelo de Relação, que postula que aquele que é reconhecido
como afim e, portanto, passível de estabelecer aliança, é ao mesmo tempo um inimigo. Em
suma, a figura do estrangeiro ambíguo—materializado na figura da vítima sacrificial,
encenado nas danças ou evocado nos cantos—manifesta-se como presença primordial nas
seqüências rituais aqui referidas. Resta aqui refletir, portanto, sobre a relação que há entre
a celebração dessa estrangeiridade e a necessidade de embriagar-se, de sair de si para se
comunicar.

Os sentidos da embriaguez

Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible
fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans
trêve.

—Charles Baudelaire, Le spleen de Paris

Gostaria, neste momento, de introduzir uma discussão acerca do caráter comunicativo


inerente ao caxiri como fenômeno amazônico mais amplo. Conclui-se, das considerações
tecidas há pouco, que a festa de caxiri constitui um sistema de comunicação composto por,
no mínimo, três termos distintos: o meu grupo (anfitriões), o outro grupo (visitantes), e
alguma exterioridade, que pode ser dada na presença—evocada ou atual—de inimigos,
animais ou seres extra-humanos (espíritos da floresta, heróis culturais ou deuses
celestiais). 110 O que move esse sistema, engendrado por mecanismos de conjunção e
disjunção que fazem porosos os limites entre os tais termos, é justamente a circulação de
bebidas fermentadas, elementos considerados por várias populações indígenas como o
“mínimo” para a realização de rituais coletivos ou festas. Essas bebidas produzem,
sobretudo quando combinadas ao movimento propiciado pela dança, um estado alterado—
a embriaguez—que permite que a pessoa “saia de si”, efetuando uma entrega tanto ao
cosmos circundante como à humanidade estrangeira, cuja relação ordinária é baseada em
sentimentos de distância e evitação.

110
Em sua monografia sobre os Wajãpi, Gallois (1988) distingue entre um plano vertical sobre-humano,
composto por heróis mitológicos, ancestrais ou mortos, e um plano horizontal ou sobre-natural, composto
pelos espíritos da floresta, geralmente predadores (os añã). Essa separação remonta não apenas ao conjunto
tupi-guarani, tais os Araweté, mas também às sociedades amazônicas como um todo.

179
A simples idéia da bebida como elemento que instaura a sociabilidade no interior
de um campo composto por pessoas de grupos diferentes não traz novidade alguma.
Poderia, por exemplo, descrever um mutirão no interior de São Paulo ou qualquer
recepção parisiense. Recordo-me, especialmente, de uma passagem de As estruturas
elementares do parentesco (1982), em que Lévi-Strauss, colhendo exemplos que clareassem
para o leitor o sentido do “princípio universal de reciprocidade” e, mais especificamente,
de uma modalidade da “troca restrita”, remetia-se à imagem de um restaurante barato no
sul da França, região onde o vinho é envolvido por uma espécie de “respeito místico”.
Lévi-Strauss prossegue com sua parábola, sugerindo que, no interior desse cenário, dois
convivas, portando a mesma quantidade de comida e a mesma garrafa de vinho, tomam
para com a última uma atitude notável. Cada qual derrama um pouco do seu líquido na
taça do outro, o que nos leva à constatação de que, se a comida representa “as servidões do
corpo” e cumpre sua função de alimentação, o vinho é em si um luxo que agracia o espírito
e serve para “homenagear”, instaurar vínculos sociais lá onde eles inexistem. De certa
forma, o vinho assume o mesmo papel que o caxiri, o que remete a um patamar mais amplo
que não é aquele ao qual pretendo me remeter aqui. Atestada tal faculdade, faz-se
necessário reclamar o diferencial do caxiri, que eu diria estar contido na idéia de uma
comunicação embriagada dotada de um valor cosmológico crucial.
Voltemos ao que foi dito no começo deste capítulo a respeito da associação que
diversos cronistas quinhentistas faziam entre o cauim e o vinho. No caso dos cristãos de
outrora, essa associação tornava-se ainda mais evidente, visto que o vinho era um elemento
decisivo no interior dos rituais católicos por encarnar o mistério da Eucaristia, ou seja, por
consistir (e não apenas representar) na transubstanciação do sangue de Cristo. Ao
incorporar o cauim nas cerimônias católicas, os jesuítas conferiam-lhe dignidade moral e
reconheciam nele a faculdade de promover a comunhão necessária entre os homens e
Cristo. Não obstante, missionários e indígenas divergiam bastante quanto ao uso e sentido
da bebida. Entre os católicos, o estado agudo de embriaguez é visto com maus olhos,
denotando descontrole e imprudência e devendo ser tomado como signo de vergonha.
Basta lembrar do episódio do Gênesis, em que Noé, ébrio, desnuda -se na frente de seus
filhos, causando-lhes constrangimento e provocando a dispersão deles. Tal é a primeira
descrição de um caso embriaguez realizada na Bíblia e, como é fácil de perceber, essa
passagem orientou uma espécie de reprovação moral, tendo que beber excessivamente é

180
um ato que denota imprudência. O vinho permanece sagrado para os cristãos, mas não a
embriaguez.111 Aqui a prática cristã se distancia qualitativamente da indígena, na qual, à
revelia do cálice, cada cuia trocada parece conter subliminarmente a premissa de que “é
necessário estar sempre bêbado”—máxima herética proferida por Charles Baudelaire em
seu Spleen de Paris. Ora, estar sempre bêbado não para “celebrar a si mesmo”, “cantar a si
mesmo”—como convida Walt Whitman—, e sim para se abrir à exterioridade em um ato
fundamentalmente coletivo. Pois não é a si mesmo que se destina o canto; pelo contrário, o
que está em jogo é a própria comunicação.
Para o desconcerto dos religiosos do século XVI, entre os antigos Tupi da costa,
beber em excesso era justamente o esperado. O valor simbólico da substância—o seu
caráter por assim dizer transubstanciativo—era, assim, transferido para o ato da
embriaguez coletiva. O que Lima nota entre os Juruna pode bem servir aos Tupinambá: “O
baixo teor alcoólico do cauim implica que só se realiza o desejo de embriagar-se tomando
uma quantidade que excede os nossos padrões. Poder-se-ia supor que beber
imoderadamente seja um viés meu ao qual os Juruna são indiferentes. Em absoluto. Bebem
demais de seu ponto de vista mesmo. Beber mais do que consegue é um valor por assim
dizer cívico, tanto que isso desperta entusiasmo e mesmo orgulho. Beber além do limite,
além do que se pensa ser capaz, é uma conduta que se traduz em outros planos do
desdobramento da cauinagem, de forma que tudo é elevado à potência” (1995:375). Tendo
em vista a dimensão do excesso, Jean de Léry (1980), protestante que não compactuava
com a Eucaristia, situava as cauinagens tupi ao lado menos dos rituais de comunhão
católicos do que dos cultos dionisíacos da Antigüidade, nos quais as bebedeiras e, por
conseguinte, o apagamento da distância que separam os homens dos deuses e dos animais
era a norma.112 Embebido na cosmologia quinhentista, que não cansava de buscar analogias

111
Ronaldo de Almeida faz referência à tentativa dos missionários protestantes de aproximar, no momento da
tradução da Bíblia para línguas indígenas como o Wajãpi e o Wayana, o vinho do caxiri. “No entanto, como
as missões pregam a abstinência alcoólica, a ingestão do caxiri é condenada pela maioria delas. [...] Alguns
missionários de formação presbiteriana (ao contrário dos batistas) são mais tolerantes e consideram o caxiri
algo ‘próprio da cultura’, o que nesse caso equivale a dizer ‘natural’, logo não sujeito ao código moral.
Assim, o missionário presbiteriano dos Wajãpi traduziu vinho por caxiri” (2000:17).
112
Jean-Pierre Vernant refere-se aos cultos dionisíacos como responsáveis pela instalação, no centro da vida
pública da Grécia Antiga, de comportamentos religiosos que apresentavam aspectos excêntricos. Segundo o
autor, Dioniso, que encarna, segundo a fórmula de Louis Gernet, a “figura do Outro”, estraçalha a ordem
humana e social. Quando Dioniso aparece, “as categorias precisas, as oposições nítidas confundem-se,
fundem e passam umas nas outras: o masculino e o feminino aos quais se aparenta, juntos; o céu e a terra que
une, inserindo, quando surge, o sobrenatural em plena natureza, exatamente no meio dos homens; o jovem e

181
entre as diversas formas de paganismo, unindo os selvagens aos antigos, Léry via naquela
profusão de bebedeiras o desenho de paisagens propriamente dionisíacas, paisagens
capazes de suspender os limites da humanidade como concebidos pelos cristãos.
Entre os antigos Tupi da costa, a constituição da pessoa humana não poderia
prescindir da comunicação generalizada que se estabelecia entre convidados e anfitriões,
homens e mulheres e, também, humanos e deuses. Nessa comunicação, a embriaguez
revelava um papel crucial. É possível estender para o cauim o sentido que Viveiros de
Castro (1992) e Isabelle Combès (1992) encontram no ato de esfacelamento do crânio da
vítima realizado pelo matador, qual seja, a busca da imortalidade, termo que deve ser aqui
empregado com cautela para não recairmos na redução das traduções jesuíticas, que
operam, entre outras coisas, com a dicotomia entre corpo e alma, pouco produtiva entre os
ameríndios. Vê-se, com efeito, que o sentido da imortalidade—e que por vezes aparece
apenas como “vida longa”—entre os antigos Tupi da costa não dizia respeito à
permanência de uma essência imaterial em detrimento da corrupção da matéria corpórea,
mas a uma transformação mais complexa que não consiste na continuidade de uma
identidade metafísica, e sim numa metamorfose divina.113
Viveiros de Castro (1992) demonstra que um tema recorrente entre os antigos Tupi
da costa era a evitação do enterramento e putrefação do cadáver. Da perspectiva da vítima,
ser devorado significava a maneira mais rápida de liberar a sua alma celestial que se
encaminhava à morada dos ancestrais (deuses), terra da abundância. Da perspectiva do
matador, o assassínio garantia o acesso ao tal paraíso pós-morte—ou terra sem mal—que,
vale ressaltar, não era um destino certo para todos os mortais: a princípio, eram apenas os
eleitos, ou seja, bravos matadores, que poderiam chegar a essa morada, ao passo que os
demais—maus, efeminados, covardes—eram condenados à danação eterna (Fernandes
1989:164). Viveiros de Castro aponta que era, contudo, possível escapar dessa rigidez do
destino, acrescentando que a ingestão da carne humana—o canibalismo propriamente
dito—era o método feminino de obtenção da vida longa. Comer a carne humana produzia

o velho, o selvagem e o civilizado, o distante e o próximo, o além e o aqui unem-se nele e por ele. Mais ainda:
ele apaga a distância que separa os deuses dos homens, e os homens dos animais” (1992:84).
113
É preciso ter em mente que, para populações tupi e outras, morrer é submeter-se a uma transformação; o
que desmente tanto o argumento cético que tem na morte o fim absoluto como o argumento cristão que
defende a imortalidade da alma. Aqui não se trata nem de ruptura radical, nem de permanência imaterial.
Trata-se de um processo, como mostraram Carneiro da Cunha (1978) e Viveiros de Castro (1986) , de
alteração,transformação do si em outro.

182
uma espécie de aligeiramento do corpo e poderia ser comparado à ingestão do cauim ou ao
uso xamânico do tabaco, e esse dado parece ser comprovado por outros povos, como os
Juruna, que já conheceram a antropofagia em sentido próprio (Lima 1995) e que
compartilham as mesmas correlações. No festival canibal dos antigos Tupi, as mulheres, e
sobretudo as velhas, buscavam para si o atributo por excelência da pessoa plena encarnada
pela figura do matador, ou seja, buscavam o acesso à morada dos deuses, o que
representava um ideal de imortalidade. Se para um homem, o mais importante era a
execução ritual no terreiro—o esfacelamento do crânio do cativo—, para as mulheres, o
importante era comer vorazmente a sua carne. E, de certo modo, para o grupo como um
todo, beber em excesso. Viveiros de Castro chega a assumir que o abandono do
canibalismo representou uma derrota da parte feminina da sociedade tupi. Ora, se
pensarmos que, embora tivessem abandonado o canibalismo, eles só fizeram aguçar o
consumo de cauim, podemos concluir de um outro modo. O efeito da bebida poderia ser
comparado ao da ingestão da carne humana: ambos conduziam a uma espécie de
comunicação com o mundo não-humano, que envolvia uma espécie de deslocamento,
propiciando uma aproximação em vida, desta vez coletiva e não individual, à terra sem
mal, o que significa, com efeito, um movimento de transformação e de reconhecimento de
todos como potencialmente divinos, imortais.
Como sustenta Isabelle Combès, nesse esforço de aproximação “reside o núcleo
essencial da antropofagia ritual” (1992:152). A associação proposta pela autora conduz a
um paralelo entre as festas de bebida e o conteúdo das pregações dos caraíbas, os assim
chamados “profetas” tupi. Estes incitavam a todos a abandonar a “terra má” e buscar a
terra sem mal, onde o trabalho seria abolido—o milho cresceria por si só, as flechas iriam
sozinhas buscar a caça—, as regras de descendência e casamento, suspensas, e o tempo,
dedicado inteiramente à dança e à bebedeira. Tanto as cauinagens como os movimentos
proféticos permitiam aos homens uma experiência coletiva da divindade ou, em outras
palavras, um devir-deus coletivo. Nesse ponto, elas apresentar-se-iam como alternativa ao
modo do matador, que perfaz esse devir por meio de uma experiência individual. De todo
modo, a idéia de que o destino dos homens é a condição divina e que esta pode ser
antecipada sem que, para isso, seja preciso morrer “de verdade” é o que Viveiros de Castro
(1986) identifica como sendo a base das ontologias tupi-guarani, antigas como atuais. Ora,

183
essa ontologia implica que a condição humana seja pensada sempre em termos de
incompletude, sendo o Ser compassado pelo Devir.
As cauinagens sem fim, prometidas pelos antigos profetas, propiciavam a
experiência coletiva desse devir, visavam a realização de uma utopia no espaço,
convocando membros de diferentes grupos locais, aliados e inimigos, na tarefa de fazer do
tempo de exceção da festa uma regra. Na promessa de vida longa que os profetas
veiculavam, como indicam diferentes cronistas, as velhas pareciam ser as mais
beneficiadas: tornar-se-iam moças e poderiam se casar com quem bem quisessem, o que
expressava a quebra das regras de casamento. Não obstante, se os profetas prometiam uma
mudança radical, quiçá irreversív el, que colocava em suspensão infinita toda a ordem
social; as cauinagens ofereciam, por definição, uma possibilidade de reversão: tudo se
passa como se elas se apropriassem dessa aproximação com os deuses para constituir,
enfim, o mundo dos homens, e novamente o parentesco e a aliança. É justamente este o
núcleo que não se pode perder de vista: tudo se passa como se a experiência de
deslocamento—de fusão entre o humano e o divino e, portanto, de obtenção da
imortalidade—não fosse mais que um meio para a constituição de um ponto de vista
humano no cosmos.
Esses problemas podem ser claramente transpostos à Amazônia atual. Tânia Lima
alega que a embriaguez resultante das cauinagens juruna pode ser tomada em analogia com
os transes xamânicos, nos quais se prod uz um estado alterado que permite a comunicação
seja com os mortos, seja com os animais. Ora, as cauinagens conferem sentido coletivo ao
que no xamanismo permanece individualizado. De forma análoga ao xamã que,
individualmente, efetua a comunicação com as almas dos mortos, a coletividade
ritualística, concebida de modo indiferenciado, entrega-se, outrossim, ao contato com o
outro mundo. Assim como o xamã que transita por entre diferentes pontos de vista,
podendo ocupar, por exemplo, corpos animais; a coletividade embriagada pode imaginar-
se como ocupando um outro espaço que aquele das relações sociais ordinárias. Segundo os
Juruna, o cauim torna possível o acesso a um “além sociológico” mediante um processo
comunicativo pleiteado por subjetividades díspares—mecanismo de forma alguma passivo,
porém transformador, que revela uma ânsia ontológica em (con)fundir-se, em deixar-se
contagiar pela exterioridade, em tornar-se outro. Imersos na embriaguez, os participantes
de uma cauinagem experimentam o deslocamento notado acima: eles se percebem

184
conectados a um meio não-humano, ao domínio dos animais e dos mortos; e é a percepção
dessa possibilidade comum de trânsito o que permite que todos se dêem conta de uma
humanidade compartilhada.114 Noutras palavras, é ali que, segundo Tânia Lima, o problema
da “condição humana”—dado pela mortalidade—parece explicitar-se. Para a autora, o
significado da embriaguez, “longe de limitar-se à experiência psicofísica provocada pelo
álcool, remete a um fato total, sustentado por estreitas correlações com a natureza
simbólica da bebida. Ora, o simbolismo trabalha em prol de um objetivo único: pensar o
cauim através do modelo da pessoa humana. Homem é o sentido do cauim, não só porque
lhe dá o nome como também e principalmente a estrutura, pois, com efeito, a pessoa é
homóloga ao cauim” (1995:413). Ao situar a cauinagem no campo da humanidade, Lima
entrevê um horizonte que não pressupõe a negação deste mundo, mas que busca integrar
nele a existência do outro, onde reina a não -humanidade. Ora se essa integração é já uma
transformação, ela implica um “buscar fora” que não compromete a possibilidade de “estar
aqui”, pelo contrário. Se o problema para os antigos consistia no fato de que para celebrar
a humanidade comum era preciso que os particip antes da festa se experimentassem como
imortais, como deuses (que, de fato, eram mortos transformados); o problema para os
Juruna atuais diz respeito a uma tomada de consciência dessa mesma humanidade por meio
de um enfrentamento direto com a morte e com os mortos. Tanto os antigos como os
Juruna guiam-se pela idéia de que se, no cosmos, todos são potencialmente humanos,
sendo tênues os limites que os separam, é preciso de algum modo transformar essa
potência em ato, e fazer-se plenamente humano, o que significa garantir uma posição
diferenciada diante dos demais.
Um problema análogo pode ser observado entre os Wajãpi. Segundo Dominique
Gallois, as festas de caxiri consistem numa celebração da aquisição da cultura, ou seja,
celebração de sua posição como humanos no cosmos, e isso implica uma alteração nas
relações dos humanos com os outros domínios do universo (1988:82). Ora, no comércio
com esses outros domínios há sempre a possibilidade de dois tipos de transformação. O
114
O trabalho de Tânia Lima sobre as cauinagens juruna é pioneiro, visto que abriu, na etnologia brasileira, a
discussão sobre a propriedade “perspectivista” do pensamento ameríndio, discussão encabeçada por Viveiros
de Castro (1996b). Tânia Lima indicou que os Juruna pensam de modo próximo ao relativismo, um
relativismo porém muito diverso do ocidental. Para eles, a humanidade não se restringe à espécie humana,
sendo, assim, uma condição universal. Algumas espécies podem pensar-se como humanas, o que conduz à
constatação de que a humanidade não seria um atributo fixo, mas uma posição passível de ser conquistada.
Não obstante a sua universalidade—este o ponto talvez mais importante—a humanidade como posição deve
ser conquistada sob o risco de se perder, de dissolver-se no cosmos genérico.

185
primeiro diz respeito a uma transformação reversível, um processo de alteração que atinge
todos os seres. Uma vez ébrios pelo caxiri, os homens experimentam um estado alterado,
que promove a comunicação da coletividade feita indiferenciada com o cosmos, dando
sentido a uma “disjunção conjuntiva” (Lévi-Strauss 1967). Com o findar da festa, tal o
evidenciado, as descontinuidades deverão ser repostas. Há, nessas ocasiões, sempre o
perigo de uma transformação irreversível, qual seja, de os humanos se verem aprisionados
no mundo não -humano, perdendo sua posição de sujeitos, o que, em outros termos,
significa deixar de ser gente ou mesmo morrer. Dito de outro modo, a ausência de medida
e o excesso descontrolado podem produzir esse segundo tipo de transformação, e isso pode
ocorrer no momento de uma festa de caxiri.
Como já ressaltado, os Wajãpi do Amapari designam a embriaguez pela noção de
ka’o, ao mesmo tempo estar alegre e pesado, e é nesse sentimento reside o sentido da
sociabilidade festeira, que ultrapassa o campo da consangüinidade e da afinidade efetiva,
que corresponde idealmente ao grupo local. Não obstante, quando conduzida ao excesso
descontrolado, quando desprendida de seu aporte coletivo, a bebedeira introduz um
perigo grave, tornando a pessoa vulnerável tanto a emoções intensas, como a raiva e a
loucura, fazendo-a cometer atos pouco próprios de um ser humano, como a ataques
místicos e investidas humanas. Noutras palavras, o perigo consiste em fazer a pessoa
deslizar radicalmente do pólo da humanidade para o da animalidade, no qual os dois
extremos são as posições de predador e presa.
Na Amazônia indígena, a troca de bebidas fermentadas não está jamais dissociada
do campo da agressão. Embriagar é, nesses termos, também tornar o outro vulnerável ou,
em uma linguagem canibal, torná-lo presa, fazer dele um objeto de predação. Veja-se o
paralelo com o desfecho de uma tragédia como As bacantes, de Eurípides. Dionisos, furioso
com o não reconhecimento de sua natureza divina pelas autoridades de Tebas, embriaga,
com seu vinho, as filhas de Cadmo, que integram a trupe das bacantes e saem de si. Entre
elas, Agave participa da mutilação de seu próprio filho, Penteu, o jovem rei de Tebas,
pensando se tratar de um filhote de leão. A vingança do deus se consuma: aquele que
combateu com mais fervor os cultos dionisíacos era então executado em um deles:
embebedado para depois ser tornado a vítima animal do sacrifício a Baco. Ora, a
vulnerabilidade provocada pelo vinho, encenada por Eurípides, assemelhava-se àquela do
cauim: ao ver seu filho como presa, Agave revela uma “comutação de perspectiva”

186
(Viveiros de Castro 1986 e 1998), pois somente um animal pode ver um humano como
animal e, no mais especificamente, somente um predador pode ver um humano como
presa. O destino de Agave é trágico: será abandonada ao exílio e errará por entre os
bárbaros.
Algo análogo pode ocorrer a alguém que sucumbe ao excesso descontrolado do
cauim: tornar-se feroz e agredir um parente ou afim ou mesmo aprisionar-se em uma
posição não-humana para todo sempre, transformar-se em animal, em espírito,
abandonando o mundo dos parentes e conterrâneos e, enfim, morrer. Em ambos os casos
há uma tragédia, no sentido de uma incapacidade de controlar (e, de certa forma, integrar)
esse ato de alteração e de fazer dele um ato positivo, ou seja, de transferir a energia
predatória para a construção da vida social. A “tragédia ameríndia” ensina, pois, que os
homens devem se comunicar com o mundo extra-humano, mas, para tanto, têm de
contornar os excessos que os colocam sob o perigo de perder a sua própria posição de
humanidade no cosmos, tornando-se ora predadores desvairados, ameaça para os próprios
parentes, ora presas de fácil captura, destinadas à destruição. Nesse sentido, as cauinagens
nada mais fazem que explicitar o dilema ontológico fundante: para constituir-se como
humano—ou seja, como alguém inscrito em uma rede de parentesco e de aliança—é
preciso antes se abrir à exterioridade e ao comércio que se estabelece entre as posições do
cosmos. Em poucas palavras, comunicar-se é sair de si, mas não para perder-se, e sim para
reencontrar o sentido da humanidade, ainda que se saiba não se tratar aqui de uma posição
fixa e garantida de antemão, e sim de algo que deve ser conquistado e estabelecido. A
cauinagem constrói, assim, a posição da humanidade no cosmos, ela é plena atividade e
não apenas reflexo de uma ordem preestabelecida.115

115
Essa asserção pode ser complexificada a partir dos diferentes casos etnográficos. Não cabe aqui percorrer
esse caminho, mas apenas indicar uma posição. Se a humanidade é um atributo aberto a todos—pois todos os
entes do cosmos são potencialmente humanos, possuem comportamento e intenção—, e se a cauinagem
possibilita o estabelecimento de uma posição efetiva de humanidade, poderíamos indagar se não seria lógico
que os demais entes do cosmos tivessem eles também suas cauinagens. Com efeito, Tânia Lima (1996) alude a
esse problema, mostrando que, segundo os Juruna, o barro no qual os porcos chafurdam é tido por esses
porcos como cauim. Em outras palavtas, os Juruna não diriam que os porcos são de fato gente e que o barro
em que chafurdam é de fato cauim. Eles diriam, por sua vez, que os porcos pensam que são humanos e,
assim, pensam que o barro no qual chafurdam é cauim. Os antigos xamãs, empenhados em atividades
cinegéticas, podiam, segundo os Juruna, ver e tratar com o porco-xamã e os seus e, assim, reconhecer entre
esses animais a marca da humanidade escondida por trás de um disfarce animal. Isso não significa, frisa a
autora, que a relação entre humanos e porcos seja de fato simétrica; afinal, os porcos não saberiam que são
vistos como tais (como porcos) pelos humanos, ao passo que os humanos saberiam que são vistos como
espíritos pelos porcos.

187
O que Tânia Lima aponta para os Juruna deve caber à grande parte dos povos
amazônicos: as cauinagens (e o universo canibal que subjaz a elas) configuram o espaço
mesmo da humanidade efetiva e, nesse sentido, beber cauim revela-se propriamente um
ato de civilização, visto que, justamente, estabelece um campo possível para a
comunicação, inclusive dos homens entre si. Convidar para beber é, assim, uma forma de
incorporar o estranho, de reconhecê-lo como humano, nem que seja para devorá-lo ao
final. Como argumenta a autora: “No âmbito da civilização do cauim, hipoteticamente ao
menos, todo mundo pode ser afim. A aliança sendo efetuada com uma intenção política
clara: criar uma relação de parentesco com o inimigo potencial para que ele não ataque o
grupo do cunhado. E sendo a guerra, em contrapartida, efetuada pelo espírito da traição”
(idem:341; grifos meus).
Se as cauinagens refletem o sentido da existência humana, que reside no
processamento mesmo da alteridade, não surpreende o fato de elas persistirem tão
fortemente em situações marcadas, por exemplo, pela mudança e instabilidade. “Droga da
inconstância”, como bem define Viveiros de Castro (1992), o cauim impede que a vida
social deixe de estar orientada para a exterioridade e sucumba a fórmulas identitárias,
como o fechamento absoluto em uma comunidade de semelhantes, onde afins
classificatórios, inimigos, deuses e espíritos permanecem para sempre ausentes. Este foi e
tem sido, no entanto, o projeto de muitos missionários cristãos, que, ao impor a sua fé,
impunham também uma nova idéia de convivialidade, que expurgava a guerra e os
inimigos, os cultos e os entes sobrenaturais. Ainda que os índios não negassem o
ensinamento da nova fé, algo parecia revelar a sua atividade inconstante, e os lugares para
tanto eram não raro estes das chamadas comunicações alteradas, o xamanismo e a
cauinagem.
Apesar de abdicarem de suas práticas antropofágicas, os Tupi da costa não se
desprendiam de suas cauinagens, o que causava um desconforto tamanho para os jesuítas.
Como aponta Viveiros de Castro, elas guardavam a memória da vingança e da inimizade,
que os permitia prosseguir no tempo. Além disso, elas mantinham o esquema de
comunicação vigente, possibilitando a produção da vida social por meio da comunicação
constante com estrangeiros socializáveis, senão outros Tupi vindos de grupos locais
diversos, certos homens brancos dotados de mercadorias e conhecimentos. Nesse sentido,
as cauinagens eram recriadas mesmo no ambiente domesticado dos aldeamentos, unindo

188
índios e padres sob propósitos algo diversos. Se os últimos viam na comemoração de santos
e nos batismos a possibilidade de converter todos a um ideal de vida cristã, em que o
importante era “amar-se uns aos outros”, os primeiros operavam por outra tentativa de
conversão, qual seja, tornar aquele mundo adepto da “civilização do cauim”, onde matar o
inimigo e aproximar-se dos deuses era ainda o único horizonte possível de humanidade.
Vê-se, com efeito, como esse ingênuo ato de festejar guardava significados tão
fundamentais.
Aparecida Vilaça aponta um processo semelhante entre os Wari’, desta vez em
pleno final do século XX. Mesmo a reconhecida conversão ao cristianismo não foi capaz de
banir as festas de chicha e sua conotação guerreira. Se, em um primeiro momento, marcado
pela presença de protestantes, as festas interlocais foram abandonadas em favor da
valorização da vida em uma comunidade fechada de co-residentes, sua contenção não foi
sustentada em momentos posteriores, quando do convívio com missionários católicos. Os
Wari’ aceitaram a proibição do canibalismo funerário, no entanto, não poderiam suportar
por muito tempo um modelo de céu, tal o céu evangélico, em que Deus não oferecia
bebida, pois junto à embriaguez esvaía-se todo o sentido da afinidade. “Foram crentes e
gostaram. Mas não puderam permanecer cristãos por muito tempo, e devemos nos
perguntar por quê. Talvez [...], justamente porque o que estava em jogo eram seus
próprios pressupostos culturais, mas descoberto que determinados ideais não eram para
ser vividos. Com o tempo, acabaram por confirmar o que a vida em sociedade já lhes havia
ensinado há muito: os afins são um mal necessário. Como se tivesse sido preciso que os
Wari’ abandonassem o canibalismo para se saberem canibais” (1996:371). Já com os padres
católicos, era possível retomar o universo das festas de chicha num clima, no entanto, de
um mal-entendido cultural: onde os padres viam cultos cristãos—batismos—, os Wari’
projetavam o seu modelo festivo próprio: embriagados, eles reinventavam relações de
afinidade, seja na instituição do compadrio, seja pela encenação de cenas de canibalismo.
Estabelecendo uma comunicação profunda com os brancos, eles perfaziam um caminho
inverso ao da aculturação. Se para os antigos Tupi da costa, para ser humano era preciso
devir deus, entre os Wari’ de hoje, atenta Vilaça, entre os quais as figuras da alteridade
tornaram-se outras, ser humano passou a ser uma questão de devir branco. Em ambos os
casos, que se separam no tempo e no espaço, é preciso devir outro para poder existir,
apesar dos riscos aí implicados—riscos sem os quais a vida não valeria a pena.

189
Assim como os Tupinambá e os Wari’, os Wajãpi tampouco se desprendem de suas
festas de caxiri. Quando, pela primeira vez, os jovens do Amapari me contaram sobre os
aparentados do Oiapoque, era uma imagem de índios “sem cultura” que eles pretendiam
veicular. Não obstante, afirmavam que os outros eram também os melhores produtores de
caxiri e também ótimos festeiros. De fato, ao visitar as aldeias do Oiapoque, espantei-me
com a produção de cauinagens, dos círculos mais íntimos aos mais públicos. Lá, as festas
de caxiri pareciam englobar ordens distintas, revelando-se espaço ampliado de
comunicação, envolvendo não apenas grupos locais e blocos wajãpi distintos, mas também
“etnias” diversas e não-índios, como brasileiros e franceses. Em todos os casos, as festas
instauravam o diálogo sob a condição de que todos se submetessem a uma grande
“civilização do cauim”, em que todos poderiam ser afins e, ao mesmo tempo, sucumbir à
inimizade, uma civilização que extrai o sentido da vida social da experiência da alteridade,
que é fundamentalmente uma experiência de alteração. Estranha forma de comunicação
que, para existir, deve antes relativizar os limites entre os termos comunicantes,
golpeando-os pela sedução do caxiri.

190
4. O encontro feito festa

(...)
—Por que de repente essa angústia.
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atônitos às casas?

Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram.


E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.

E nós, como vamos passar sem os bárbaros?


Essa g ente não rimava conosco, mas já era uma solução.

—Konstantinos Kaváfis, “A espera dos bárbaros” (tradução de Haroldo de Campos)

Os usos da festa

Passemos da reflexão geral sobre a constituição, na Amazônia indígena, de redes de


comunicação e os sentidos da embriaguez para a apreciação de um momento muito
particular, que remonta ao encontro de dois blocos wajãpi, mediado, como não poderia
deixar de ser, pelas festas de caxiri. É necessário retomar rapidamente a apresentação do
cenário e dos atores, realizada no primeiro capítulo. Acompanhei, em abril e maio de 1996,
um grupo algo heterogêneo de jovens e velhos do Amapari—Amapá, Brasil—em sua
expedição ao rio Oiapoque, Guiana Francesa, onde viviam outros grupos wajãpi, com os
quais mantinham relações ambíguas, oscilantes entre a qualidade e a hostilidade.
Acompanhei-os por todo o percurso: de Macapá, passando pelas cidades do baixo rio,
Oiapoque (Amapá) e Saint Georges (Guiana Francesa), até as aldeias do alto em Trois Sauts.
Visitamos o município indígena do Camopi, ainda no curso médio do rio, e quatro grupos
locais, situados mais a montante. Era possível notar, nesse longo trajeto, que as relações
travadas ente os visitantes que vinham do sul e os anfitriões do norte passavam
necessariamente pelo oferecimento de bebidas fermentadas.
Em suas primeiras tentativas de estabelecer comunicação com os habitantes do
Oiapoque, os Wajãpi do Amapari experimentavam momentos de profundo desconforto,
não conseguindo distinguir o que lhes parecia familiar—o fato de falarem a mesma língua,

191
de identificarem laços de parentesco e histórias de afinidade, e de serem designados
igualmente como “os Wajãpi” pelos brancos (num caso, brasileiros; noutro, franceses)—do
exótico que se lhes apresentava, qual seja, o fato de encontrarem aldeias com ruas
pavimentadas, cantinas e antenas parabólicas, de não reconhecerem a vigência estrita de
suas regras básicas de etiqueta e de não serem, por vezes, recebidos da maneira tão cordial
como costumam fazer com seus hóspedes no Amapari. Se o estranhamento imperava no
momento inicial do encontro, era nas festas de caxiri que se tornava possível a recuperação
de uma idéia de humanidade comum que permitia, assim, a ativação de antigas redes de
sociabilidade, fortemente ancoradas no comércio, nos matrimônios e sobretudo em uma
“comensalidade de segundo tipo”, baseada no oferecimento de bebidas fermentadas. Era
na embriaguez que eles reencontravam a possibilidade de relação e, assim, de atualização
de um circuito que permanecia sob o risco de se perder e resvalar em conflitos xamânicos.
Minha ênfase na análise dos encontros entre Wajãpi do Amapari e Wajãpi do
Oiapoque, mediados pelas festas e reuniões que pude observar em um período de tempo
reduzido, distancia-se da idéia de construção ou de um projeto de unidade Wajãpi, como
se poderia fazer pensar. Não se trata, nesses encontros, meramente da produção de um
discurso para as sociedades nacionais, baseado na noção identitária e política de “etnia”,
mas do engendramento de uma espécie de dualidade fundamental, formulada a partir das
apropriações de elementos exteriores ao universo indígena. Reitero que “os Wajãpi” como
uma unidade “étnica” operacional era algo negligenciado por ambas as partes. Nas
próximas páginas, tentarei transpor para um plano mais propriamente sociológico a noção
de “desequilíbrio dinâmico”, que Lévi-Strauss, em História de lince , aponta como
invariante do pensamento ameríndio—e especialmente recorrente na mitologia tupi-
guarani—, para refletir sobre o fenômeno da desigualdade relativa revelada pela intriga
entre os blocos wajãpi. Segundo Lévi-Strauss, esse “desequilíbrio” consiste num modo de
operar baseado na recusa da identidade entre as partes em jogo, conferindo à simetria um
valor negativo, e por vezes até mesmo maléfico. “O princípio de desequilíbrio está situado
no interior do par” (1993a:208).
Se no capítulo anterior ocupei-me da decupagem do grande caxiri de despedida em
Yawapá, alto Oiapoque, de maneira a isolar, via análise formal, os elementos mínimos do
ritual, para extrair deles um universo de sentido que estabelece o diálogo com outras
paisagens da Amazônia indígena; neste capítulo, retorno a essa mesma festa de despedida

192
para iluminar ali um momento crucial na definição da relação entre os dois blocos wajãpi.
Assim, o problema dos sentidos da embriaguez destacado no capítulo anterior vem a se
somar ao problema dos usos da festa em um contexto em que o estabelecimento de uma
humanidade comum e de certos laços de aliança, bem como de hostilidade, dizem respeito
a situações bastante particulares vividas pelos agentes em questão. Ora, se os sistemas de
comunicação aqui evidenciados parecem contar sempre com três termos, não seria
equivocado afirmar que, no caso em questão, a relação entre os dois blocos era mediada
pelas suas relações respectivas com as sociedades nacionais, francesa e brasileira. É
importante lembrar que aquele era um período de grande ansiedade para ambas as partes:
de um lado, os visitantes do Amapari viviam a finalização do processo de demarcação de
suas terras e aguardavam inquietos, do governo brasileiro, o processo de homologação
judicial (este seria resolvido em favor deles poucos dias depois de minha partida); e, de
outro, o Oiapoque vivia um momento de transição, em que estava para ser definida a
forma de ocupação das sociedades indígenas no Parque Nacional da Floresta Tropical
Guianense, cuja implementação pela administração francesa passava por trâmites
burocráticos e que até hoje espera por uma resolução.
As festas de caxiri que pude observar no alto Oiapoque colocavam em jogo dois
princípios: a sabedoria dos antigos—saber montar o ritual em suas etapas sucessivas;
conhecer o repertório de cantos, danças e grafismos corporais; e manter atitudes
adequadas na condução das relações com estranhos—e as conquistas da “civilização”
moderna—bebidas destiladas, tecidos coloridos e estampados, salário, assistência médica,
entre tantos outros pontos. Da perspectiva dos habitantes do Oiapoque, o que eu chamei
de sabedoria dos antigos era algo que deveria ser reapropriado, uma vez que corria o risco
de entrar para o mundo do esquecimento. Da perspectiva dos do Amapari, a constatação
desse esquecimento redundava num discurso substancialista, visto que eles se
configuravam em doadores por excelência da “autenticidade wajãpi”, valor exógeno
apropriado para fins de auto-afirmação política. Não obstante, para os Wajãpi do Amapari,
ser “civilizado”, para eles um atributo detido pelos do Oiapoque, era algo que trazia
imenso fascínio; certamente menos para os velhos que para os jovens, atraídos pelo
glamour das novidades do mercado. Ambos velhos e jovens moviam-se, contudo, mais pela
troca que pelas coisas trocadas: era preciso expandir ou ao menos garantir a vigência de
certas redes de relações, por mais assimétricas que essas pudessem parecer.

193
Para dar continuidade a esta discussão, passo a percorrer alguns dos caminhos da
oposição desenhada entre Oiapoque e Amapari, oposição relativa que só ganha sentido
mediante o contexto no qual opera, e que se atualiza de maneira notável nas festas de
caxiri observadas. Noutras palavras, os blocos em questão não correspondem a unidades
rigidamente preestabelecidas, refletindo apenas fluxos históricos diversos. Percorridos
estes caminhos, volto a um único exemplo festivo, aquele que pude observar em Trois
Sauts, para assim tecer reflexões sobre a intriga que lá sucedeu.

História e geografia de um (re)encontro

Os blocos wajãpi permaneceram quatro décadas sem travar contatos diretos. O encontro
que marcou a retomada dessa relação—incluindo sobretudo transações comerciais e
matrimoniais—data de julho de 1991, quando, depois de cinco anos de lentas
aproximações, uma comitiva de chefes do Amapari fora formalmente convidada para uma
estadia no Camopi. Da perspectiva dos meridionais, o que foi marcante para a retomada
deste encontro—aliás, uma intervenção proposital da antropóloga Dominique Gallois,
estimulada pelos relatos da população do Amapari sobre as gentes de lá e a troca de
acusações xamânicas—foram as reminiscências de encontros antigos realizados no
contexto de longas caminhadas (duas a três semanas), que incluíam subir o rio Inipuku,
passar pelo Cuc e chegar ao Oiapoque pelas suas cabeceiras. Realizar o trajeto de ônibus,
passando por Macapá e pela cidade de Oiapoque, era algo comp letamente novo, visto que
aquela geografia nacional consistia numa realidade estranha aos Wajãpi do Amapá.
Quando viajavam pelo trajeto dos antigos, circulavam em terra propriamente wajãpi, sem
se dar conta da fronteira nacional. É notável que, a partir de 1991, as relações entre
Amapari e Oiapoque começavam a se intensificar, o que trazia conseqüências importantes
e duradouras para a nova configuração dos dois blocos então reconhecidos como distantes
e alheios um ao outro.
Pautando-se na experiência da visita dos Wajãpi do Amapari aos Zo’é do
Cuminapanema (Norte do Pará), grupos que compartilham muitas semelhanças culturais e
lingüísticas, Dominique Gallois e Vincent Carelli (1996) visualizam os processos de
interação entre grupos indígenas distintos como atendendo “menos a uma política interna
de ‘resgate’ cultural que às necessidades de abertura impostas pela política externa de cada

194
grupo. A relação que cada povo mantém, ou pretende manter, com outros índios foi
construída em função das relações que mantêm com os brancos. Por isso, os encontros são
ilustrativos do movimento de construção de identidades ‘disseminadas’ e ‘multilocalizadas’
mencionadas por [George] Marcus” (1995:213).116 Para Gallois, o diálogo que se estabeleceu
entre os Wajãpi e os Zo’é foi percebido pelas duas partes como oportunidade para
construir, mutuamente, uma nova versão de suas relações históricas com os Outros, índios
e não-índios. O encontro tornava explícitos interesses mútuos, cada um tendo na
apropriação de elementos da cultura alheia a possibilidade de se reposicionar no sistema
mais amplo, constituído tanto pelas relações empíricas travadas no cotidiano como pelo
imaginário alimentado a partir do que ouvem falar dos povos distantes e do mundo dos
brancos. Foi nesse sentido que os Wajãpi do Amapari, reclamando a semelhança entre os
atuais Zo’é e seus antigos ou “avós” (tamo-ko), procuravam enquadrar os primeiros em
suas redes de relações. Esse encaixe era surpreendentemente recíproco, ambos passando a
se referir por termos que exprimem relações de aliança—anã (Wajãpi) e ruwanã (Zo’é). Isso
representava uma solução para a relação tensa do tipo convidados e anfitriões e os incluía
numa categoria mais abrangente—“gente do mesmo povo”, “propriamente humanos”.
Gallois entrevê aí uma aliança orientada pela situação interétnica, operando por meio de
“uma manipulação da história para justificar os interesses do presente e construir uma
aliança efetiva entre grupos indígenas que têm uma mesma história de confronto com os
brancos (...), uma manipulação do tempo e do espaço do contato, criando novas continuidades”
(idem:236; grifos meus).
Acredito ser possível traçar um paralelo entre o encontro parafraseado acima e
aquele que se realizou entre os Wajãpi do Amapari e os Wajãpi do Oiapoque. É preciso, no
entanto, colocar as devidas restrições a essa comparação, uma vez que no segundo caso não
estamos diante de dois grupos propriamente estranhos entre si, mas sim de blocos que
falam a mesma língua (apesar de pequenas variações dialetais) e afirmam a continuidade de
suas relações, virtuais ou efetivas, ao longo do tempo. Como já salientado, o emprego do
mesmo etnônimo não parece ser um fator de tamanha importância para eles, sendo este
acionado apenas em momentos muito precisos. Não pretendo me ater propriamente ao
âmbito da “etnia”, sobretudo porque desejo investigar as relações entre os dois blocos

116
A experiência de encontro, a que se referem Gallois e Carelli, foi registrada no vídeo A arca dos Zo’é
(1993), dirigido por ambos.

195
wajãpi, e não a produção de um “Nós coletivo” que poderia aspirar à visibilidade perante
o contexto internacional, mesmo porque, no sítio em questão, essa produção não parece
avançar de modo acentuado. Como também já ressaltado, Oiapoque e Amapari não
constituem unidades a priori, mas antes segmentos apartados por uma fronteira nacional, e
que constróem um significado cada qual ao seu modo para dar conta de sua
autodeterminação. Eles podem, desse modo, viver separadamente, pois viver sem essa
idéia de todo, de unidade, parece ali mais uma solução que um problema. “Ser”, ou
melhor, “estar” Wajãpi possui sentidos diversos no Brasil e na Guiana Francesa, devido,
inclusive, às posturas divergentes desses países em relação aos índios e à política
indigenista. Como no caso Zo’é-Wajãpi, é possível afirmar que os encontros entre Amapari
e Oiapoque são reordenadores à medida que evidenciam interesses paradoxais, articulam
alianças e revelam um embate entre contextos significativamente desiguais de integração
às sociedades nacionais a que se vêem subordinados. Em ambos os casos, procura-se
evidenciar continuidades apesar das descontinuidades, tendo em vista um terceiro termo,
a(s) sociedade(s) não-indígena(s) e os desafios e angústias que esta(s) lhes impõe(m).
Em contraste com o cenário brasileiro, caracterizado pela tutela da Funai e pelo
estatuto diferenciado da categoria “índio” na Constituição nacional, a política da Guiana
Francesa para a sociodiversidade investe em um ideal assimilacionista, tendo como meta
fazer dos índios cidadãos franceses passíveis dos mesmos direitos e obrigações que
qualquer outro cidadão metropolitano. Se a Funai representa, no Brasil, um órgão oficial
de assistência diferenciada, mantendo ambíguo o estatuto da cidadania para os índios,117 o
governo francês, que não conhece aparelhos destinados a esse tipo de intervenção, tem no
horizonte um ideal de emancipação —e de atribuição de cidadania francesa aos índios, sem
levar em conta seus dados de diferença—, operando pela política de “francização”:
imposição de currículos nacionais de ensino, assistência médica não-diferenciada, projeto
de urbanização das chamadas comunidades indígenas etc.118 Enfim, a postura do governo

117
Atualmente, no Brasil, o caráter da tutela, assegurada pelo Estatuto do Índio vigente desde 1973, que toma
os índios como apenas “relativamente capazes”, encontra-se em contradição com a Convenção 169 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho) que, desde 1989, reconhece as aspirações dos “povos indígenas e
tribais” para assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento
econômico, mantendo e fortalecendo suas identidades, linguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados
onde moram (ver www.socioambiental.org/pib/portugues/direito).
118
A oposição Brasil/ Guiana Francesa será um tanto exacerbada ao longo da análise que segue. Pretendo
carregar as tintas neste contraste, não apenas porque ele existe de fato, mas porque ele ajuda a pensar as
relações entre as partes em questão. Trata -se, no mais, de um recurso analítico.

196
francês para com os ameríndios é pautada por um desejo de expansão de um ideal
civilizatório, veiculado desde a Revolução Francesa, de que é preciso submeter toda a
diferença a um princípio racional que postula os homens como livres e iguais entre si.119
A luta, familiar ao Amapari, pela autonomia política e pela demarcação de um
território reconhecido como próprio aos índios é pouco conhecida no Oiapoque, onde se
conforma uma política de representação comunitária integrada às formas do governo
nacional—vigência de cargos políticos oficiais, tais como o de prefeito e de vereadores—e
uma definição do território em termos de “zonas de direito de uso coletivo tradicional e de
subsistência” (Lepretre 1996). Não se trata, ali, de pensar o território indígena como
“espaço de afirmação política da diferença” (Gallois 1996:10), mas sim como “zona de
vida” dentro de uma área reservada à conservação ambiental, como propõe o projeto para
a criação do Parque Nacional da Floresta Tropical Guianense.120 Este, longe de propor
qualquer direito à posse do território, relega os índios ao papel de meros ocupantes,
aqueles que lá estão apenas para conservar o meio ambiente, e protegê-lo de predadores
externos. É neste sentido que, com o advento do Parque Nacional, a postura do governo
francês e de seus assessores fazem transparecer o paradoxo que lhes é constitutivo: como
conciliar um ideário de salvaguarda da natureza—de índios a meio caminho entre a
natureza e o naturalismo—com a imagem de índios emancipados, “civilizados”.
É então possível apontar um abismo entre as relações que cada bloco vem travando
com as sociedades nacionais nas quais se vêem inseridos. Mais que a consciência de
estarem submetidos a contextos desiguais, os índios de ambos os lados passam a avaliar, a
partir das notícias que correm (nos últimos tempos mais intensamente) por entre a região,
vantagens e desvantagens de pertencer a uma ou a outra província. Pude perceber, no
momento de minha estadia no Oiapoque, que as trajetórias de cada lado da fronteira
provocavam interesse e curiosidade mútuos. Por mais que cada parte afirmasse a
preeminência de suas escolhas, depreciando as dos outros, era perceptível um movimento

119
Assim, a escola oferecida aos habitantes do Oiapoque, que ignora temas nativos e negligencia qualquer
esforço por uma educação bilíngüe, pode ser vista como um dos estandartes desse movimento de
“francização”.
120
A idéia da criação do Parque Nacional da Floresta Tropical Guianense consiste no isolamento da porção sul
do território deste país de maneira a estabelecer uma área de proteção de espécies naturais ou, mais
especificamente, a conservação daquilo que se convencionou denominar “patrimônio ecológico”. Noutras
palavras, pode-se qualificar a criação do Parque como mais um esforço de promover uma “unidade de
conservação” e um “conjunto de sítios ecológicos e de relevância cultural criados pelo poder público”
(Lepretre 1996).

197
de aproximação. Os índios do Oiapoque mostravam-se muito interessados nas políticas de
autodeterminação—que incluíam práticas de mineração e o processo de demarcação de
terras—que os meridionais vinham desenvolvendo e, sobretudo, na postura que esses
conseguiam manter como “guardiões” da cultura wajãpi diante da sociedade brasileira. Os
índios do Amapari, de sua parte, pretendiam dar cabo à imagem de “índios pobres” que os
outros projetavam sobre eles, mostrando-se tão hábeis para trabalhos “de branco” como o
garimpo, como para trabalhos “de índio” como a preparação de rituais e artefatos, coisa
que os do Norte pareciam estar cada vez mais esquecendo. Ao mesmo tempo, vinham de
longe para procurar os reputados xamãs, ainda os mais respeitados entre os Wajãpi, que
incorporavam elementos mundanos do universo não-índio (bebidas destiladas, remédios
etc.) às suas práticas terapêuticas. A viagem era também uma maneira de fazer consultas
xamânicas, obter curas, enfim, aprender com os pajés de lá.
Durante a pesquisa de campo, muitas vezes atado (o que seria inevitável dada
minha posição semelhante de visitante) às lentes do grupo meridional, e em especial dos
mais jovens121, presenciei o mesmo descompasso, dessa vez em uma atmosfera menos de
espanto pela diferença que de aproximações graduais e restritas sob um clima de
desconfiança e ambivalência—o que, de fato, já havia se tornado um ponto de vista
estrutural na relação entre as duas partes. Antes de chegarmos ao Oiapoque, Japarupi,
Kaintona e Moropi, os jovens do Amapari que, como eu, realizavam a viagem pela primeira
vez, alertavam-me que os de lá estavam perdendo sua cultura, mas não negavam o fato de
eles serem ótimos produtores (e consumidores) de caxiri, o que prometia mais e melhores
festas, em que eles, os jovens do Amapari, poderiam exibir suas habilidades rituais e,
assim, conquistar belas meninas e receber estimados presentes. Havia, no entanto, um
receio de que os do Oiapoque se revelassem maus anfitriões, visto que eles se gabam de sua
posição de índios “ricos” e “civilizados” para subjugar os demais. São muitos os
critérios—e não pretendo apresentá-los aqui de maneira sistemática—que apontam a
diferenciação entre as duas partes wajãpi. Procurarei enfatizar a relação estabelecida entre

121
Há decerto um embate de pontos de vista entre o “jovens” e os “velhos”, com quem mantinham laços de
parentesco e/ou afinidade. Trata-se de um embate entre a “tradição” e a “inovação” wajãpi. O discurso dos
velhos que presenciei consistia justamente na repreensão dos jovens quanto ao seu comportamento
desregrado e maior volubilidade em relação ao modo de vida setentrional. Nota-se que, juntos, “jovens” e
“velhos” faziam as mesmas ressalvas quanto ao modo de vida setentrional, identificando ali um estágio de
perda e esquecimento das tradições. Mas, mesmo assim, todos se embriagavam.

198
elas, tendo em vista menos o caráter de unidade que as diferenças manipuladas no
encontro.
Longe de querer estabelecer aqui um inventário das diferenças entre Wajãpi do
Oiapoque e Wajãpi do Amapari, mesmo porque elas são moventes e incertas, gostaria de
tecer, em linhas gerais, considerações a respeito do que se entende pela distinção entre
esses dois blocos, distanciados no tempo e no espaço por diversos fatores e que se
apresentam hoje quase como grupos diferentes, a não ser quando insistem na continuidade
de laços comerciais e matrimoniais, apontando um intento de restabelecer “relações de
qualidade ” (F. Cabalzar 1997) tendo em vista um quadro marcado durante anos pela
hostilidade e pelo estranhamento. Noutras palavras, a produção dessa qualidade implica a
regulação de comportamentos agressivos e dissimulados, que deslocam o sentido da aliança
e da afinidade para a inimizade e para a guerra. O encontro entre índios do Amapari e do
Oiapoque, que presenciei em 1996, foi povoado por sentimentos bastante ambíguos, que
ora apontavam um impulso de reciprocidade (disposição para a troca e a retribuição), ora
revelavam antagonismos acirrados e sentimentos como receio e medo. Assim, a Guiana
Francesa era tida pelos Wajãpi do Amapari como lugar da incerteza, onde os parceiros
potenciais poderiam revelar-se inimigos perigosos. Gallois, de sua parte, acredita que as
visitas ao Camopi deixavam claro que “a memória dos Wajãpi do Amapari sobre suas
antigas relações com segmentos do grupo Wajãpi setentrional enfatizava mais os
confrontos que as relações amistosas, sendo necessário distingui-las para entender as
expectativas de cada grupo no reencontro” (1988:5).
No final da década de 1970, por exemplo, quando os Wajãpi do Amapari eram
recém-contatados pela Funai, os do Oiapoque eram classificados por eles como amõ-ko,
uma categoria aberta de alteridade que inclui a classe dos possíveis agressores, ou mesmo
como etãrã-rowã, não-parentes (Gallois, 1986 e 1988).122 Flora Dias Cabalzar afirma que os
termos wajãpi para “parentes” e “não-parentes” revelam menos uma oposição rígida que
um gradiente de distância social: assim, há aqueles que são “pouco” parentes (etãrã a’u), os
parentes “falsos” (etãrã ra’anga), os parentes “verdadeiros” (etãrã we’a), os parentes
“outros” (etãrã amõ) e, por fim, os não-parentes (etãrã-rowã). Os discursos que ocorrem em

122
Esse contexto é também marcado pela intensificação de relações com os Wayana e Aparai—então
relegados a uma categoria de agressores por excelência, humanidade residual—no novo cenário da política
indigenista. Os Wajãpi se encontram freqüentemente com eles em Macapá, sobretudo na Casa do Índio.

199
situações de visita ou de encontro—ocasiões que se configuram para além do âmbito
doméstico—marcam de maneira formal essas posições que revelam menos identidade que
alteridade, menos a proximidade que a tensão entre as partes. A autora vê essas atitudes
para com o distante como circunscritas em uma certa moralidade, visto que “manter
relações de qualidade requer moderação no campo discursivo” F( . Cabalzar, 1997:92).
Dispositivos formais, como posturas de respeito e o recurso à brincadeira, são fatores que,
por exemplo, garantem a reordenação das relações ameaçadas por comportamentos
ambíguos e dissimulados, que caracterizam a alteridade no parentesco. Por isso, o limiar
entre a brincadeira, “expressão concreta de um estado de sociabilidade pleno” (idem:103),
e a intriga, uma manifestação de hostilidade que visa o enfrentamento, mostra-se bastante
sutil; e a saída para essa ambigüidade reside na explicitação das tensões de modo a
contorná-las de imediato.123 O parentesco revela-se, entre os Wajãpi, campo capaz de
conter a alteridade, o que pressupõe também seu caráter expansivo. Noutras palavras, é
possível fazer parentes, fazer afins a partir de situações de distância social. O reverso
também é verdadeiro, podendo o próximo distanciar-se.
É importante lembrar que os Wajãpi, como grande parte dos povos guianenses, não
deixam de ver na figura de seus afins, tantos os efetiváveis como os potenciais, um perigo
eminente. Ora, o grau de perigo é atenuado conforme o grau de domesticação—
“amansamento” —, ou seja, os parentes distantes só deixam de representar uma ameaça
quando inseridos em esferas próximas de troca. É necessário familiarizar o afim para que
ele possa participar das redes de sociabilidade e fazer parte do “Nós coletivo”, tomado
idealmente como um todo endogâmico. Gallois garante que a categoria “todos nós”,
Wajãpi-ko, adquire seu significado apenas no contexto das relações com as sociedades
nacionais, e é especialmente enfatizada nas reinterpretações da história de contato com os
brancos. Inimigos, no início da década de 1980, ou parceiros comerciais e matrimoniais, a
partir de 1990, os habitantes do Oiapoque sempre serão, para os do Amapari, possíveis
agressores com os quais as relações tendem a um certo grau de perigo. Mas nem por isso
eles deixam de atraí-los: mais uma vez, é o veneno que vem do norte que mobiliza os
habitantes do sul.

123
A autora cita um exemplo observado por ela na aldeia Mariry, Amapari, em que Seremeté, ébrio em uma
festa de caxiri, flechou o chão dessa aldeia e foi mal interpretado, como se ele quisesse por meio de tal ato
flechar Mariry como um todo. Trata-se de um caso em que uma brincadeira foi transferida para uma
modalidade de intriga.

200
Segundo Gallois, “a essência da sociedade wajãpi está fora da unidade real”
(1988:149) e “a abrangência das categorias do ‘mesmo’ tem, portanto, fronteiras fluidas no
tempo” (idem:130). Aqui, a constante revisão dos limites entre próximos e distantes
deslinda um modelo cosmológico—que Viveiros de Castro (1993) prolonga para toda a
Amazônia—baseado na lógica da afinidade, em que o sentido deve ser buscado na
exterioridade. Não por menos, guiados pela idéia de que, após a intensificação do contato
com os brancos, “a terra cresceu”, os Wajãpi de ambos os lados têm suas categorias de
classificação social desdobradas de modo a incluir a diversidade étnica e cultural de seu
atual universo. Tendo em vista esse movimento de transformação contínua das figuras de
alteridade, esses índios, situados dentro da paisagem guianense, deparam-se com a
ampliação de suas redes de sociabilidade, apontando uma “gradual neutralização das
categorias periféricas de inimigo” (idem:149).
Wajãpi do Oiapoque e Wajãpi do Amapari podem ser, em suma, distinguidos
histórica ou geograficamente: separados no espaço, apresentam diferentes percursos
históricos, mais precisamente no que diz respeito ao tempo e à intensidade de contato com
a sociedade não-indígena. Ambos revelam, no entanto, relações acentuadas que remetem
tanto ao plano do discurso mítico sobre a sua origem e diferenciação como ao plano dos
laços comerciais que mantêm há muito. Como apontam os trabalhos de P. Grenand (1982),
Gallois (1988) e Hurault (1972), o comércio entre eles assume a forma de necessidade social,
o que pressupõe a extensão de uma rede de reciprocidade que efetua essa (re)ligação. Mais
uma vez, volto a frisar que a troca de arcos por espingardas e munição, tão observada nas
viagens realizadas, ilumina a vitalidade de uma relação que não se reduz ao seu aspecto
utilitário.
Dominique Gallois contrapõe-se à tese de Pierre Grenand, em seu estudo etno -
histórico, de que o atual estado de descentralização espacial e política corresponderia à
dissolução de um sistema centralizado no passado, em que vigiam grupos corporados
baseados na descendência. O autor vislumbra para os antigos Wajãpi, que teriam migrado,
entre 1680 e 1720, do baixo Xingu à região das Guianas, uma certa organização segmentar,
que promoveria a integração dos diversos subgrupos, identificados a “clãs” ancestrais de
ordem agnática. Estes só teriam deixado de vigorar no início do século XX , devido à
redução populacional significativa. Ele entrevê aí o momento crucial de transformação da
organização sociopolítica wajãpi: fragmentação dos clãs formadores e estabelecimento de

201
alianças de natureza endogâmica. Para Gallois, os Wajãpi já se encontravam em meados do
século XIX divididos em blocos independentes, ou seja, não seria possível corroborar com a
tese do autor a respeito de uma “unidade tribal”.124 Para a autora, a origem dos subgrupos
do Amapari não estaria na dissidência em relação a um grande bloco situado no Oiapoque,
e sim na conjunção de vários bandos isolados na mesma região de origem de todos eles.
Para Gallois, o estado de dispersão dos grupos locais wajãpi consiste num dado da
estrutura social e impede, justamente, a dedução de uma unidade tribal propriamente dita.
Noutras palavras, as distinções internas aos Wajãpi, bem como as diferenças entre os
blocos do Amapari e do Oiapoque, escapam à idéia de uma homogeneidade de outrora, e
devem ser explicadas em termos de um percurso particular de migrações e relações.
Pierre Grenand aborda a desintegração das confederações wajãpi e, por
conseguinte, da hierarquia social como função do fim das guerras. Para o autor, é a guerra
que faz com que as sociedades indígenas busquem uma forma de organização mais
complexa, baseada na figura de lideranças capazes de unificar grupos dispersos.
Apoiando-se em Pierre Clastres (1981), para a quem a guerra age contrariamente como
motor de fragmentação do social e como recusa de um poder unificador, Gallois reitera o
caráter descentralizador próprio às sociedades guianenses, contrapondo-se, mais uma vez,
às teses de P. Grenand. Os Wajãpi seriam, nesse sentido, estranhos a uma unidade
centralizada, tendo vivenciado em suas diversas frentes movimentos migratórios
múltiplos, que foram produzindo, ao longo do tempo, “concentrações históricas”, as quais,
ao contrário do que propõe o autor, não conheceriam uma arquitetura rígida, porém
inconstante, podendo incorporar elementos de fora ou pulverizar-se por meio de
movimentos descontínuos de dispersão.
Com efeito, Gallois evidencia que a presença, comum no Oiapoque, do papel
integrador do capitão geral, ponto frisado por P. Grenand como resquício de uma
organização mais centralizada, é menos uma característica do sistema político wajãpi que o
resultado de uma política metropolitana de “nomeação”, empreendida desde 1850 pelo
governo francês. Na década de 1960, com o avanço da política de “francização”,

124
Gallois (1986) afirma que os Wajãpi que estão atualmente na Guiana Francesa constituíram-se por grupos
que migraram da região do baixo Jari e afluentes do médio Jari e Cuc e, só depois, teriam chegado ao
Oiapoque. Para a autora, todos os grupos wajãpi são provenientes do baixo Xingu, local de origem das
dispersões no século XVII . O sudeste das Guianas teria servido para eles, assim, como “zona de refúgio”
bastante propícia.

202
representantes políticos passam a ser escolhidos desta vez por meio do sistema eleitoral. Se
atualmente o regime de “capitania geral” deixou de operar, a escolha de líderes, tais o
prefeito e os vereadores municipais, refaz o movimento de intervenção de uma estrutura
política alheia—a política nacional e suas regras do jogo—capaz de configurar novas
formas de organização entre os índios, baseadas em princípios que lhes são alheios, como o
próprio sistema representativo. Entre os Wajãpi, com efeito, é baixa a incidência de
lideranças capazes de estar à frente de uma unidade de tipo regional, restringindo -se no
mais das vezes ao grupo local. Como alega Sílvia Tinoco, para os Wajãpi do Amapari, “a
chefia é definida circunstancialmente conforme a atividade a ser exercida. (...) Não afirmo
com isso que não há chefia entre os Wajãpi. Os joviña são reconhecidos enquanto tal e há
uma hierarquia de importância entre eles. As relações de parentesco e afinidade,
principalmente a relação de tipo sogro-genro, a capacidade oratória, o conhecimento das
histórias do grupo, a capacidade de tomar decisões e ‘ir na frente’, a escolha do espaço
para abertura de uma nova aldeia, a capacidade de apaziguar conflitos e a maestria do
caçador, entre outras qualidades citadas em trabalhos clássicos como o de Pierre Clastres,
definem a chefia” (2000a:94).
Se P. Grenand enfatiza a origem diferenciada dos indivíduos nos aglomerados no
Oiapoque atual, devido ao seu pertencimento aos “clãs formadores”, a essas unidades
agnáticas, Gallois atenta para a importância de pensar a autonomia dos grupos locais de
base uxorilocal, onde o líder do grupo local não é mais que um sogro capaz de reunir o
maior número possível de genros, dentro de um contexto de fusões entre parentelas
distintas propiciadas pela vigência de redes de aliança. A diferença, nesses termos, é dada
pelos laços de aliança. O primeiro confere acento à base territorial, ligada a um sistema de
descendência de tipo clânico que entra em colapso com o fim das guerras, ao passo que a
última enfatiza outro aspecto: a aliança, a incorporação dos outros. Segundo Gallois, as
parentelas localizadas w
( anako), unidades cognáticas, estabelecem entre si relações de
aliança—matrimonial, ritual ou comercial—sem que isso implique a constituição de uma
unidade política centralizada por uma delas. Como no modelo yanomami, mencionado no
capítulo anterior, o sistema político que resulta dessa rede ampla de alianças, mobilizada
por rituais e pela troca de agressões, é por definição acéfalo, sendo o seu centro definido
sob a perspectiva de cada parentela que traça, a partir de si, um gradiente de círculos
concêntricos, que define posições de distância social (Albert 1985). Juntando essas

203
evidências, seria possível concluir, com Gallois, que as confederações baseadas num
sistema hierarquizado e centralizado, como vislumbradas por P. Grenand, nada mais
seriam que um sistema segmentar, onde as posições de centro e de periferia são definidas a
partir de múltiplos pontos de vista, que não apontam possibilidades de totalização.125
Alguns relatos sobre as diferentes migrações revelam as disparidades entre os
grupos do Amapari e do Oiapoque, constituídos de facções variadas. Por um lado, os
grupos do Amapari oscilaram entre movimentos de aproximação e distanciamento em
relação à população não-indígena, optando pela dispersão na floresta, fechando um círculo
de casamentos e de comércio com populações caribe da região, sobretudo com os Wayana e
Aparai. Já os grupos do norte escolheram a ocupação das margens do rio Oiapoque,
enveredando por uma experiência intensiva de contato com os franceses, a partir do século
XIX . Dessas configurações específicas, uma primeira distinção pode ser notada: os índios do
rio, que optaram por viver próximos aos franceses e suas mercadorias, e os índios da
floresta, cujo contato com a sociedade brasileira tornou-se mais intensa apenas com a
instalação de um posto da Funai na área, em 1973.
Ora, a relação atual entre o bloco setentrional e o bloco meridional não pode ser
compreendida sem a alusão à existência, no passado, um terceiro bloco, os Wajãpi do Jari e
do Cuc. Amapari e Oiapoque seriam, pois, pontos extremos em relação às trocas, ao passo
que a região do Cuc teria ocupado, até o segundo quartel do século XX , uma posição
intermediária de extrema importância.126 Gallois (1986) vislumbra, entre 1780 e 1890, um
processo de diferenciação dos três blocos ou grupos territoriais, baseado, entre outras
coisas, em levas migratórias sucessivas e contatos com diferentes povos. Foi nessas
diferentes “misturas” que eles puderam adquirir feições diversas. Por volta de 1850, esse
processo teria se estabilizado. Se o final do XIX e o começo do XX conheceram uma história
de grande expansão, sobretudo no que diz respeito das rotas comerciais, que envolviam

125
A hipótese de um sistema pan-wajãpi centralizado, como defendida por Pierre Grenand, não parece se
sustentar mediante os dados oferecidos por ambos os autores. Já o problema da descendência envia a uma
discussão mais delicada. Ainda que não se possa falar com todas as letras em descendência nas Guianas, é
possível atentar à formação de grupos que têm na base o reconhecimento de uma continuidade no tempo, que
não diz respeito ao sistema horizontal da aliança. Esse ponto foi notado por Denise Grupioni (2005) em seu
balanço sobre a literatura da região. Embora haja exemplos claros desse tipo de formação entre os Tiriyó e os
povos do Uaçá, pouco se pode dizer ainda sobre os Wajãpi.
126
Gallois (1986) afirma que a região entre os rios Jarí e o Cuc aparece muitas vezes na mitologia como local
da criação da humanidade pelo herói civilizador Janejar. Como se verá, as situações vividas interferem
fortemente na composição da cosmografia wajãpi.

204
outros grupos da região como os Wayana (Caribe) e os Boni (negros refugiados), o período
que se prolonga de 1900 a 1960 apresentou um crescente abalo demográfico e, por
conseguinte, a contração dessas redes de troca. É no contexto das grandes epidemias que,
entre as décadas de 1930 e 1940, ocorreu a atração dos índios do Cuc para a Guiana
Francesa, o que representou uma séria alteração nas rotas comerciais. Um médico de nome
Heikenroth teria convencido boa parte dos Wajãpi do Cuc a migrar para o Camopi e,
então, gozar da proteção francesa. Com efeito, em 1960 seria criado pelo Governo da
Guiana um posto de assistência para os Wajãpi que viessem de longe e que passaria a
compor um poderoso pólo de atração. Até 1972, foram várias as levas migratórias que
deixavam o Cuc em direção ao Camopi. Resulta disso que, nesse mesmo ano, no Cuc,
restavam poucas famílias, muitas delas subjugadas pelos garimpeiros que aos poucos
tomavam a região. Como informa Gallois, as famílias do Cuc que partiram ao Camopi
mantiveram sua autonomia em aldeias ou habitações separadas dos demais. Uma porção
pequena dessa população foi transferida, no início dos anos 1970, para o alto Jari, na aldeia
Moloko-pota e, após muitas brigas, que causaram a morte de vários membros desse
pequeno grupo, os últimos remanescentes foram retirados, em 1981, pela Funai e levados
ao Parque Indígena do Tumucumaque. É apenas a partir desse momento que se pode
mencionar a polarização dos Wajãpi em dois grandes blocos, ainda que estes revelem uma
forte heterogeneidade interna.
A distinção entre Oiapoque e Amapari revela uma disposição ao distanciamento
que liberta os dois blocos de uma homogeneidade histórica e geográfica, para reuni-las,
sob o nexo de troca—cada qual assumindo uma posição particular em um sistema de
diferenças que tem por objetivo o intercâmbio. Noutras palavras, a dispersão e a
descentralização (e mesmo uma não-identidade do grupo como tal) implicam, antes da
autonomia e do isolamento, o estabelecimento de trocas matrimoniais, comerciais e rituais.
Vale repetir que estamos diante de sociedades que pensam o parentesco em termos de um
gradiente de “distância social”, ou seja, permanecem em revisão constante das fronteiras
que delimitam os grupos sociais. É, pois, necessário pensar as relações entre Oiapoque e
Amapari em termos desse gradiente, ou seja, as atitudes para com os outros tendem a ser
remodeladas conforme os diferentes contextos. É nessa direção que Flora Dias Cabalzar
apreende as trocas matrimoniais entre Oiapoque e Amapari na chave dos “casamentos
distantes” que implicam a incorporação de tensões políticas no seio do grupo local. Trata-

205
se, antes de tudo, do casamento com “não-parentes”, ora concebidos como “parentes-
distantes” ou “parentes-outros”. Como já discutido, esta não é a forma preferencial de
casamento entre os Wajãpi que, como os demais grupos guianenses, preferem manter-se
fiéis à endogamia local. Não obstante, são esses mesmos casamentos um dos pilares para a
consolidação de redes interlocais. Em suma, “casar perto” e “casar longe” correspondem,
sobretudo, a estratégias distintas para lidar com o problema político da alteridade, e devem
ser compreendidos tendo em vista contextos específicos.
Se na década de 1970, presenciou-se no Amapari um movimento de concentração
em torno do posto da Funai, e por um movimento de aliança com os setentrionais, a década
seguinte foi marcada por um grande grau de dispersão residencial e pela aliança apenas
entre os grupos meridionais, que se concebiam, todos, como “parentes”. Apenas no final
dos anos 1980, as relações de intercâmbio com o Oiapoque, sobretudo o Camopi, eram
retomadas por alguns indivíduos que inauguravam uma nova dinâmica de trocas
interpessoais, “parcerias de modo pouco rígido” (F. Cabalzar 1997:256), tão conhecidas na
paisagem guianense. Já no início dos anos 1990, essa retomada revelou-se por uma
circulação constante de mercadorias e, em menor escala, de cônjuges. Além de propósitos
rituais e xamânicos, as visitas de habitantes do Camopi ao Amapari, que foram se tornando
cada vez mais freqüentes, têm como horizonte a negociação de casamentos. E, de fato,
muitos visitantes, como Sisiwa, reconhecido xamã do Oiapoque e cunhado de Waiwai,
chefe da aldeia Mariry, tornaram-se co-residentes, passando de uma posição de “não-
parentesco” para uma de “parentesco”, ainda que não no sentido pleno do termo. Ora, essa
não é uma transformação que possa ocorrer tão facilmente. Testemunha de tamanha
dificuldade é Takyri, um setentrional sem conexões genealógicas com o Amapari, que
acabou por envolver-se, durante uma festa de caxiri, em um conflito acentuado com seu
novo genro. Como argumenta F. Cabalzar, Takiry será um eterno “não-parente” na aldeia
Mariry, apesar de já estar enquadrado numa rede matrimonial mais ampla, visto que
trouxe consigo três filhas para se casar no Amapari. Já o caso de Sisiwa é bastante diverso:
todas as parentelas desejaram aliar-se a ele, contabilizando o “investimento posterior na
superação das tensões potencializadas”. A consideração desses casos indica, pois, que
“‘estrangeiros’ ou ‘parentes’ distanciados (etãrã amõ) inserem-se em posições ambíguas e
pouco determinadas no que tange à afinidade, promovendo dissenções internas”
(idem:260).

206
É preciso atentar ao fato de a relação comercial entre Oiapoque e Amapari remontar
a contextos conflituosos e até mesmo ataques guerreiros. Durante os anos 1950 e 1960,
como salientado, as relações comerciais entre os dois blocos foi mediada pelo bloco do rio
Cuc. Com o advento da Funai e a intensificação da onda de garimpo, o Cuc deixou de ser o
grande pólo de obtenção de manufaturas. Os Wajãpi do Amapari, por seu turno, inseriam-
se numa rede de intercâmbios que tinha nos Wayana os intermediários com os negros
mekoro; os primeiros ofereciam itens, como redes, arcos e flechas, em troca de bens
manufaturados. Nas Guianas, e não apenas entre os Wajãpi, a forma tradicional das trocas
interlocais supõe circuitos extensos e um comércio a longa distância, visto que “buscar
longe” é tomado em si como um valor. Os objetos que atraem o interesse são, pois, aqueles
que se destacam pela sua estrangeiridade, tais os artigos manufaturados, que incluem
rifles, espingardas e tecido colorido para fazer tangas. Nessas redes supralocais, proliferam
relações de parceria comercial que, no caso dos Wajãpi, são reconhecidas pelos termos
banaré e jepé, e, no caso dos Wayana, seus vizinhos, pelo termo pawana, bastante
difundido entre os povos caribe.127
O advento de mercadorias manufaturadas põe em movimento novas configurações
comerciais, que fazem nascer a figura de intermediários, capazes de estabelecer pontes
entre brancos e índios. Essa relação de intermédio comercial revela uma assimetria
fundamental: aqueles que têm acesso às mercadorias acabam por instaurar uma certa
hegemonia cultural na região, subordinando aqueles que se encontram na posição de por
assim dizer “pouco para trocar”. É num contexto como esse que a comunidade indígena do
Camopi foi se tornando um importante centro de atração (em detrimento do que era então
Trois Sauts), sobretudo devido às possibilidades que oferecia no que diz respeito às trocas
com os brancos.128 Não por acaso, as relações entre setentrionais e meridionais

127
Para um mapeamento, na região das Guianas, de sistemas regionais constituídos historicamente por redes
de troca de natureza diversa, ver Dreyfus (1993), Farage (1991) e Barbosa (2005). Segundo Barbosa, a
“parceria formal de troca” é uma instituição pan-guianense e se estabelece com alguém com quem não se
possui um laço de parentesco relevante, nem de proximidade geográfica. Ou seja, estabelece-se em geral com
um membro de uma outra etnia, não necessariamente de origem indígena. Trata-se de uma relação diádica de
oferta de presentes, troca de bens e de hospitalidade, concebida por exclusividade e lealdade. Entre os
parceiros de troca, um pedido não pode jamais ser recusado, um compromisso jamais esquecido, mesmo que
ele se conclua após anos. Esta relação é tida como simétrica e duradoura, repousando numa forma de
reciprocidade diferida, baseada em adiantamentos e endividamentos mútuos.
128
Ao contrário do que se observa entre os Wayana e Aparai, a convivência entre Wajãpi e Emerillon não
resulta de uma integração, mas sugere uma subordinação dos últimos em relação aos primeiros, ainda que os

207
intensificavam-se nos anos 1950 com a ascensão da política assistencialista (posto de
assistência e enfermaria) francesa que tentava recuperar o abalo demográfico causado, na
década anterior, por uma forte epidemia. Nessa mesma década, o Oiapoque constituía um
foco importante devido aos privilégios conferidos aos índios que ali se instalassem. Isso
permitiu que, em 1954, grupos do rio Cuc se deslocassem para lá. Nos anos 1960, era a vez
da nacionalização do município do Camopi, intensificando a política de benefícios aos
índios: garantia de cidadania francesa, educação na língua francesa, política de
assalariamento, salário-desemprego etc. Dava-se, assim, a sedentarização dos índios ao
redor do próprio município e nos grupos locais do alto Oiapoque (Trois Sauts), onde foi
criada uma espécie de subprefeitura. É nesse quadro que Gallois (1986) situa o intercâmbio
entre os Wajãpi do Amapari e os do Oiapoque, antes da retomada dos contatos na década
de 1990: uma relação comercial, na qual a hegemonia pertence aos últimos, visto que são
eles, os “índios do rio”, que estão mais próximos das mercadorias e, portanto, do mundo
dos brancos. Os Wajãpi do Oiapoque passam a a ocupar, para os Wajãpi do Amapari, o
lugar de dominação comercial antes ocupado pelos Wayana e Aparai.129
Esses contextos de dominação comercial equiparavam superioridade à posse de
mercadorias importadas e às relações “positivas” com os brancos (fácil acesso aos bens). Os
Wajãpi do Oiapoque, cujo comércio com os brancos fora facilitado de antemão, podiam
assim ocupar um lugar privilegiado na rede. No entanto, o ideal de subordinação não pode
ser esgotado apenas nesse comércio desigual. Como salientado ao longo de todo este
trabalho, outro âmbito em que se desenrola esse embate entre os blocos wajãpi é
justamente o conhecimento ritual, uma das razões, senão a principal, pelas quais os

Emerillon sejam temidos devido ao seu suposto poder de pajelança. Contudo, pode-se afirmar que entre estes
dois grupos, cada qual mantém sua relativa autonomia.
129
A análise da passagem de um sistema simétrico de relações para outro, assimétrico no que diz respeito à
troca comercial nas Guianas, pode ser encontrado no trabalho etno-histórico de Nádia Farage, As muralhas
dos sertões (1991). Para ela, as redes de troca estabelecidas entre os povos guianenses devem ser
compreendidas à luz do conceito (caribe) de poito, que aponta a princípio uma relação hierárquica entre
afins, do tipo sogro e genro, doador e tomador de esposas. Gallois (1986) alega, de sua parte, que, entre os
Wajãpi, poiti é utilizado também para designar o escravo de guerra, mas se aproxima do termo tairo, que
significa cunhado, parente incorporado via aliança. Farage evidencia como o conceito de poito, ao se deparar
com determinados eventos, sofre deslizamentos semânticos, que se não significam o sacrifício de sua lógica
subjacente, não deixam de submetê-la a uma espécie de risco. “A definição de poito se alargou para
incorporar os holandeses, mantendo-os enquanto doadores, em posição hierarquicamente superior”
(1991:116). Ora, se essa superioridade era lida, de início, sob os termos nativos, isto é, como dotada de certa
reversibilidade, ela passava a significar outra coisa à medida que poito passava a designar também o escravo
de guerra e, desse modo, a sua instituição submetia-se à economia das mercadorias ostentada pelos
holandeses. As boas relações entre holandeses e Caribe encontravam seus limites justamente nesse momento
em que o sentido da parceria era sobreposto pelo sentido da subordinação.

208
habitantes do Amapari, conhecidos como os detentores de uma parte considerável do
repertório de cantos e danças dos antigos, são convidados a visitar o Oiapoque. Isso
implica que os meridionais, diante da hegemonia comercial de seus parentes distantes,
podem reivindicar uma certa hegemonia “cultural”—e, de certa forma, ali, a cultura
também acaba por se converter em mercadoria.

Cartografias xamânicas

Em 1990, famílias do Camopi, trazendo rapazes solteiros, deslocaram-se para o Amapari e


se fixaram na aldeia Mariry. Durante sua estadia, persuadiam alguns dos seus parentes
para acompanhá-los na viagem de volta ao Norte, alegando que lá eles poderiam fazer
muito dinheiro e, principalmente, estariam livres da intervenção da Funai. Nutridos pela
imagem da fartura, muitos do Amapari chegavam a cogitar o êxodo, junto às suas famílias,
ao Oiapoque. No entanto, esse parecia ser mais um argumento contra a Funai, da qual
exigiam mais recursos, que uma intenção efetiva. Jamais houve uma mobilização em massa
em torno dessa possibilidade, antes razões interpessoais para fazê-lo.
Em maio de 1991, o chefe do grupo local Mariry, Waiwai, que já havia realizado
expedições ao Cuc, partia com uma comitiva ao Camopi para reencontrar os parentes de
sua esposa. Chegando lá, queixou-se de não ter sido recebido devidamente como um
“chefe”, sentindo-se desrespeitado devido à ausência, ali, de hierarquias e etiquetas, bem
como o desinteresse pelas atividades tradicionais. Impressionava-se fortemente com os
casamentos mistos—por exemplo, com crioulos de Saint Georges e com os Emerillon—, o
que para ele contribuía para o afastamento progressivo em relação à cultura nativa. Enfim,
sua visita fora marcada por frustrações tamanhas, que seriam compensadas apenas nos
encontros com Sisiwa e Wapirã, xamãs poderosos e de muita reputação na região.
Na mesma ocasião, Kumai, chefe do grupo local de Aramirã, movido pela mesma
curiosidade que Waiwai, verificava a eficácia dos xamãs do Camopi buscando,
principalmente, apaziguá-los em seus ataques maléficos ao Amapari. Dominique Gallois,
que estava presente na expedição do Amapari e registrou os fatos com sua filmadora, narra
o encontro de Kumai com Sãsõ, grande pajé e também o mais velho de todos os Wajãpi
naquela época. Sãsõ era nascido no baixo Jari (grupo local rival a Aramirã) em uma “linha”
de grande reputação. Nota-se, assim, que, para os Wajãpi do Amapari, o suposto

209
esquecimento das tradições pelos habitantes do Oiapoque tinha como contraponto o
desenvolvimento agudo das técnicas xamânicas. Esse fato intrigava sobremaneira os chefes
meridionais, então movidos pelo desejo de estreitar laços com os parentes distantes.130
O retorno de Waiwai, em julho do mesmo ano, acompanhado por outras lideranças
importantes (como o próprio Kumai) da aldeia de Aramirã, tinha como objetivo oficial,
além da busca de apoio material, a afirmação do “prestígio do grupo do Amapari e,
decorrentemente, somar-se aos ‘parentes’ para fazer aumentar a ‘força’ (iane poijy) da etnia
como um todo” (Gallois, 1991:8). Vislumbrava-se um esforço de congregação que visava
justamente “juntar forças” para lutar contra os inimigos invisíveis, altamente patogênicos,
identificados freqüentemente aos Aparai, aos mekoro e aos brancos. A constituição de uma
“unidade” wajãpi, baseada sobretudo na busca do reconhecimento da terra indígena,
aparecia curiosamente como novidade diante do caminho de diferenciação que ambos os
blocos haviam tomado para si. Com efeito, Gallois demonstra como surgiu no Amapari o
interesse em compor, para fins políticos, uma unidade “perdida” (e jamais alcançada) e,
por conseguinte, um discurso sobre a gênese da etnia. A autora insiste, no entanto, que
esse problema só pôde ser formulado como medida de oposição aos brancos, surgindo
“como construção lógica inversa à utilizada para embasar as diferenças internas" (1994:64).
O novo contexto de dependência em relação aos bens e serviços dos brancos, o trânsito na
cidade, bem como a defesa dos direitos territoriais permitiam a elaboração de exegeses para
sustentar argumentos discursivos de autonomia cultural.
O trânsito entre as duas províncias sob a justificativa de rever parentes e afins,
buscar novas formas terapêuticas e adquirir objetos manufaturados pode ser
compreendido como mecanismo que revela, mais do que a ampliação das parentelas, novas
possibilidades de cura e satisfação de necessidades imediatas de consumo. Trata-se da
apropriação mútua, por ambos os blocos, de elementos alheios ao seu contexto local, pois,
como afirma Gallois: “se por um lado a contaminação com a alteridade representa perigo,
ela também é fonte de poder—o contato controlado com essas categorias garante a
manutenção da vida social” (1988:149; grifos meus). A necessidade de se apropriar de itens

130
As razões que levavam os Wajãpi do Amapari para o Oiapoque eram diversas. Kumai, por exemplo, queria
manifestar apoio ao Camopi para recuperar o território na margem brasileira, Vila Brasil, e, assim, “expulsar
os brancos”. Naquela época, ele estava fortemente imbuído de um discurso de defesa do território—
necessidade de um controle da terra e da representação de algo genuinamente “nosso” (Gallois, informação
pessoal). Temos aqui a base de um discurso “culturalista”, como se verá a seguir.

210
e conhecimentos pertencentes ao outro para obter “força” é um tema recorrente entre os
Wajãpi. Segundo versões de sua mitologia, brancos e índios viviam juntos no início dos
tempos, quando a humanidade era indiferenciada. No momento da diferenciação, cada
qual efetuou suas escolhas: os tami-wer (ancestrais) ficaram com os arcos e as flechas e os
karai-ko (brasileiros) com as máquinas e ferramentas de trabalho. Janejar, furioso com a má
escolha dos Wajãpi, abandonou-os, entregando -os a um mundo violento em que eles
deixavam de ser imortais e se tornavam vulneráveis e mortais. Doravante, índios e brancos
não mais partilharam a morada celeste do herói cultural, passando a demarcar nichos
distintos.131
O mito wajãpi da perda das ferramentas, no momento mesmo da separação das duas
“humanidades”, integra um conjunto maior de mitos sobre a “má escolha”, espalhados por
toda a América do Sul. A mensagem desses mitos permanece sempre a mesma: devido a
uma conduta equivocada, ingênua ou mesquinha, os índios perdem bens culturais
preciosos para os brancos, associados a demiurgos, xamãs ou meros estrangeiros. A partir
de então, são estes que passam a deter poderes importantes, ao mesmo tempo materiais e
imateriais, podendo curar e matar, o que instaura uma relação fundamentalmente
assimétrica, reenviando ao tema do “desequilíbrio perpétuo”, como sugere Lévi-Strauss
(1993a). Inscreve-se nessa mesma mitologia uma possibilidade de reversão, que implica, no
mundo atual, esse mundo de abandono, um movimento contínuo de apropriação de
elementos do mundo dos brancos, e esse pode ocorrer tanto ao modo da predação
propriamente dita, daí a identificação dos brancos com os inimigos, como pelo viés da
parceria, que implica a incorporação destes em circuitos de troca e de festa. A escolha
entre os pólos da inimizade e da aliança varia, como sempre, conforme a situação vivida.
Assim, os Wajãpi do Amapari não se cansam de atribuir à exploração de ouro em suas
terras e adjacências um apressamento do cataclismo, da queda do céu ou do apodrecimento
da terra. Mas, por outro lado, sabem que é preciso compor alianças para preservar seu
território e para adquirir as mercadorias que tanto os fascinam.
O impacto das mercadorias dos brancos não pode ser visto unicamente pelo prisma
da “revolução tecnológica”, pelo seu valor de uso, mas como algo capaz de aguçar uma

131
Gallois compreende a figura dos brancos como “totalmente incluída no sistema, assumindo uma posição de
mediação no movimento cósmico onde se inscreve o devir da humanidade. Pelo potencial tecnológico, pela
violência e pela contaminação, os brancos têm influência sobre o movimento, apressando, por via de seu
comportamento inadequado, o cataclismo que, mais uma vez, destruirá a humanidade” (1988:348).

211
reflexão sobre o que Carlos Fausto designa como “signos dos poderes da exterioridade que
cumpre capturar, incorporar e fazer circular” (1997:316). Noutras palavras, o desinteresse
pelas ferramentas como meros aparatos tecnológicos, mas sim como reivindicação de uma
posição no cosmos, deixa transparecer uma necessidade de ordem intelectual que deve ser
compreendida. O problema todo reside, pois, na gestão dos poderes advindos da
exterioridade, que parecem ser identificados muitas vezes no mundo dos brancos. Na
Amazônia, mais especificamente, é na figura dos xamãs que essa possibilidade de gestão se
revela com mais êxito, pois que eles são concebidos pela sua capacidade de subverter
fronteiras entre os mundos, atual e mitológico, humano e não-humano, indígena e não-
indígena. Nesse trânsito, eles podem obter conhecimentos que os possibilitam ao mesmo
tempo curar e agredir, revestindo-se, portanto, de uma espécie de poder cósmico (que, a
princípio, não se confunde com o poder político). No momento específico da retomada dos
contatos entre meridionais e setentrionais, como descrito acima, o deslocamento relativo da
fonte dos poderes xamânicos para o Oiapoque revela uma espécie de equação entre o
acesso às mercadorias e o próprio xamanismo, e confere à região do Oiapoque uma posição
privilegiada na rede regional de intercâmbios. Privilégio em duplo sentido, pois que
visível e invisível, material e imaterial. Noutras palavras, os habitantes do Oiapoque
assumem, de um certo ponto de vista, uma “função xamânica”, qual seja, a de mediadores
entre dois mundos, desse modo, eles passam a deter mais fortemente o que Joanna Overing
(1983) denominou de “forças da cultura”, conhecimentos extraídos do mundo extra-social
ou não-humano, sem o qual a vida social não pode se estabelecer.
Mais uma vez, a geografia parece servir de metáfora para esses deslocamentos: os
próprios Wajãpi do Amapari passaram a reconhecer, dada a retomada dos contatos inter-
regionais, o rio Oiapoque, que traz espanto pela sua largura, como o lugar da criação, o
“centro” propriamente dito. Gallois explica: “Vários de seus trechos são conhecidos por
representarem lugares importantes da criação: as grandes pedras redondas são as panelas
nas quais os pássaros recém-criados se banharam nos dejetos da cobra grande, adquirindo
suas cores diferenciadas; embora existam várias nas margens do rio, comenta-se na região
que garimpeiros derrubaram a árvore kumaka na qual os pássaros pousaram, fazendo com
que seus galhos abaixassem; há ainda um trecho reto do rio que foi delineado pelo vôo
inicial dos pássaros, a quem se atribui a formação de todos os rios; os saltos e as cachoeiras,
enfim, foram feitos pelo criador Janejar quando abandonou os homens etc.” (1991:19). Se o

212
norte torna-se abrigo da “força” no singular ou das “forças da cultura”, de todo modo,
uma espécie de excedente metafísico e material, os Wajãpi do Amapari, diante de grandes
xamãs de lá, vêem-se relegados a uma posição de desvantagem, abandono e submissão. Os
pajés do Camopi passam a ser comparados a médicos especialistas, tornando-se conhecidos
no Amapari como capazes de curar males que nem os remédios dos brasileiros dão conta.
Ao investigar o sistema etiológico wajãpi, Gallois (1988) busca compreender o
espaço social pelo viés das redes de intercâmbio e de acusações xamânicas, o que reenvia
inevitavelmente às teorias nativas sobre a alteridade.132 A doença entre os Wajãpi é
definida pela autora como resultado de um desequilíbrio da ordem social, ecológica e
cosmológica, relação entre a sociedade e o mundo dos outros. A teoria wajãpi da agressão
xamânica revela a constituição de um sistema de retaliação e vingança que passa pelas
práticas terapêuticas, que representam a reparação de uma agressão, definindo e
delimitando “as possibilidades e opções de intercâmbio entre domínios do universo em
conflito, ou mais claramente—entre os -ijar, donos das diferentes esferas cósmicas”
(1988:225). Gallois refere-se, assim, à imbricação lógica entre o sistema terapêutico/
etiológico e um sistema maior, que atualiza uma rede de relações sociopolíticas, orientada
muitas vezes pelo motor da vingança. “As alternativas concretamente escolhidas para o
tratamento de doenças reproduzem, de fato, todo o leque de relações concretas com a
alteridade: mortos, animais, inimigos, brancos...” (idem:285). A terapia como ritual
confirma a ameaça sofrida pelo doente, seu grupo residencial ou a comunidade envolvida,
introduzindo a possibilidade de retaliação. A cura, por sua vez, envolve um diagnóstico
para a identificação da causa externa, intimamente associada ao jogo político de alianças e
aos dissensos entre os grupos locais. Todo diagnóstico, acrescenta Gallois, é
fundamentalmente uma acusação de natureza política, altamente manipulável: o xamã
identifica a “causa última”, orientando o rumo das relações interlocais. No jogo de

132
Nota-se a estreita relação entre as teorias indígenas de agressão e a delimitação de categorias de distância
social. Farage (1991) analisa, na Guiana Ocidental, os entrecruzamentos entre a instituição de vingança—
guerras e acusações xamânicas—e as redes de comércio, reguladas sobretudo pelas populações caribe da
região. Assim como as mercadorias, circulavam pelo território guianense inúmeras acusações de feitiçaria.
Como em outras paisagens ameríndias, não se acreditava em mortes naturais, todas as fatalidades eram
atribuídas a uma certa classe de espíritos, os kanaimé, figuras míticas de povos belicosos ou indivíduos
particulares, canibais de natureza animal que matam sem jamais derramar sangue humano. Simone Dreyfus
(1993), de sua parte, identifica, numa região contígua, um paralelismo entre parceria comercial e canibalismo:
a primeira consistiria na transformação pacífica da segunda. Para um desenvolvimento desse tema entre os
Yanomami, ver Albert (1985) e o segundo capítulo deste livro.

213
acusações, que toma forma de um espiral, o xamã detém o papel central; na figura de um
visionário que trata de equilíbrios externos, ele atua como um retaliador, responde aos
outros xamãs e promove a comunicação com o mundo invisível, também um modo de
mediação entre a humanidade e a sobrenatureza. A cura, nesse sentido, aparece como
declaração de guerra aos agentes causadores da doença, acarretando a intensificação dos
conflitos entre xamãs e, conseqüentemente, entre os grupos locais, que manifestam sua
posição na longa história de conflitos regionais. O fenômeno do xamanismo entre os
Wajãpi desvela, assim, menos a constituição de uma coletividade una que o movimento
contínuo de divisão do espaço social, de articulação entre unidades precárias que ora se
aproximam, ora se repulsam.
A análise do xamanismo wajãpi efetuada por Gallois atenta para a impossibilidade
de separação entre o plano cosmológico e o sociopolítico. A maior proximidade do
Oiapoque em relação ao mundo das mercadorias resultava também na maior detenção de
poderes predatórios, capazes de causar doenças ou mesmo matar. Era preciso, com efeito,
neutralizar esses poderes, de modo a reverter a posição de vantagem que o Oiapoque
acabava por assumir no sistema regional. Era esse o sentido das viagens dos chefes do
Amapari: domesticar o potencial agressivo do norte e buscar restabelecer a troca de
maneira menos desigual. Tendo em vista questões semelhantes, Manuela Carneiro da
Cunha (1998) aponta o papel decisivo dos xamãs amazônicos em situações contemporâneas
marcadas por formas de subordinação comercial produzidas com o advento da economia de
mercado e com o estreitamento do convívio com os brancos. A autora toma como exemplo
mais preciso a bacia do Juruá, localizada no estado do Acre, onde grupos de língua pano e
aruak compõem, desde tempos imemoriais, redes interlocais baseadas na troca de bens,
serviços xamânicos e agressões. A partir do advento da política de aviamento, que deu
início à exploração econômica das populações indígenas e ribeirinhas, as redes vigentes
estabelecidas entre os diversos grupos indígenas passaram por certas transformações,
principalmente devido à criação de uma relação, por definição assimétrica, de crédito e
dívida. Alguns índios passaram a ocupar a posição estratégica de intermediários,
alimentando a assimetria. Noutras palavras, o sistema passaria a abrigar um centro e uma
periferia mais definidos, e um ponto de vista dominante sobre os demais, contrastando
fortemente com a arquitetura tradicional dessas redes, onde cada ponto de vista
estabelece-se como centro, e onde a idéia de um ponto de vista do todo não faz sentido

214
algum. Com a política do aviamento, no entanto, a fonte do que se poderia chamar de
poder ou conhecimento desloca-se para uma direção precisa, a jusante, ou seja, para o local
onde desembocam os rios e aonde correm todas as mercadorias—o mar, as grandes cidades.
Carneiro da Cunha procura ater-se às transformações históricas do sistema regional
do alto Juruá sem perder de vista os princípios indígenas que estão na base da geração
dessas redes. Um desses princípios diz respeito ao “perspectivismo” que embasa o trabalho
de tradução xamânico, ou seja, de passagem do mundo não-humano ao humano, do nível
mais exterior ao mais local. Traduzir, nesse sentido, é como transitar por entre dois
mundos, ser capaz de unir dois extremos. Trata-se de “interpretar o inusitado, conferir ao
inédito um lugar inteligível, uma inserção na ordem das coisas. Essa inserção não se faz
sem contestação e, freqüentemente, é objeto de ásperas disputas que se assentam tanto na
política interna quanto nos sistemas de interpretação” (1998:12). Ao operar a sobreposição
entre o mu ndo sobrenatural ou sobre-humano, dado num plano invisível ou imaginário, e
o mundo das mercadorias, dado num plano empírico, os xamãs amazônicos assumem um
papel de suma importância, revelando-se ao mesmo tempo seres interespecíficos e
interétnicos. Da mesma forma que, tradicionalmente, eles podem ocupar corpos animais e
traduzir essa experiência para os homens—tal o que propõe Viveiros de Castro (1996b)—
eles podem transitar pelo mundo dos brancos e apropriar-se de seus conhecimentos e
prerrogativas culturais, transmitindo-as aos índios.133 Noutras palavras, o xamã é, por
definição, aquele que tem acesso ao mundo estrangeiro, uma vez que desenvolve a
capacidade de assumir, inclusive de maneira psicofísica, um ponto de vista alheio.
Unindo a propriedade perspectivista ao sistema assimétrico baseado no crédito, o
xamanismo desponta na bacia do Juruá como lugar de mediação entre dois mundos
desiguais e, nesse sentido, ele passa a ter um destaque e uma configuração antes

133
A discussão sobre a capacidade do xamã “ver longe” ou “ver com outros olhos” é vasta na etnologia
indígena. Um estudo como o de Viveiros de Castro (1996b, 1998) sobre o “perspectivismo ameríndio”
representa, como já apontado, uma ótima síntese a esse respeito. Lima (1995) e Vilaça (1996) abordam sob
ângulos diferentes o mesmo problema enunciado pelo autor. Trata-se de pensar o xamanismo como lugar
epistemológico crucial das sociedades ameríndias, um modo particular de ver. O pensamento perspectivista,
segundo Viveiros de Castro, parte da idéia de que, por mais distintos que sejam os pontos de vista, a
realidade que se vê é sempre a mesma. Para o xamã, que vê certos animais como humanos, não há uma
pluralidade de culturas, e sim uma só cultura, ou seja, um único espírito para uma multiplicidade de corpos.
Pensam os índios, segundo o autor, que as formas animais e humanas nada são senão disfarces provisórios. A
diferença, que está no corpo, escamoteia a universalidade das formas culturais. A passagem desses
argumentos para os de Carneiro da Cunha é mais ou menos o seguinte: essa comutação de perspectivas não
ocorreria apenas entre a série humana e a não-humana, mas entre séries humanas descontínuas. O xamã
pode, desse modo, ocupar novas posições em um sistema que extrapola seu universo nativo.

215
desconhecidos. O argumento de Carneiro da Cunha reside menos na idéia de um novo tipo
de xamanismo que emerge numa situação afetada pela introdução das mercadorias
ocidentais do que na constatação de que, nas sociedades ameríndias, o xamanismo é
justamente o lugar da apropriação do novo, seja ele provindo de um demiurgo, um inimigo
virtual ou um branco. E, estendendo o argumento da autora, é possível afirmar que esse
novo é justamente o que significa a cultura para esses povos, ou seja, o conjunto das
prerrogativas que devem ser continuamente apropriadas de fora, doadas ou roubadas de
figuras da alteridade. Como veremos, essa acepção de cultura como algo que se extrai do
exterior depara-se com outra, que envia ao horizonte de autenticidade e que entra em cena
quando da reivindicação de certos direitos.
Na vasta paisagem que abriga ambos os blocos wajãpi, a geografia sofre uma
alteração comparável àquela descrita no caso do alto Juruá. Isso porque os poderes
xamânicos passam a estar identificados a uma posição específica, qual seja, os rios que
levam facilmente às cidades, onde abundam as mercadorias. Entre elas, eu não poderia
deixar de mencionar as bebidas alcoólicas, como a cachaça e o whisky, que, não por acaso,
encontram-se fortemente inseridas nas sessões xamânicas do Oiapoque. O tafiá, como são
chamadas essas bebidas pelos Wajãpi, possui, para os habitantes do médio e alto Oiapoque,
um poder de alteração decididamente maior do que o do caxiri: diz-se que, com ele, é
possível mesmo “ver” os agentes patogênicos, as causas das aflições. Assim, ele desponta
como uma espécie de mediador entre a “função caxiri” e a “função tabaco”, assumindo
lugar tanto nas festas coletivas, sendo muitas vezes misturado ao caxiri, como nas sessões
xamânicas. Ora, ao mesmo tempo em que o tafiá propicia uma alteração, qu e se empresta
como veículo de comunicação, ele aumenta qualitativamente, nos homens, o grau de
vulnerabilidade e, se não consumido em espaços seguros de controle, como as sessões
xamânicas, pode representar um grande perigo. O seu consumo nas grandes festas
interlocais pode representar uma ameaça, visto que faz irromper a violência entre os
participantes. Desse modo, justifica-se a tensão dos Wajãpi do Amapari em suas viagens ao
norte, onde o consumo de tafiá parece estar intimamente ligado ao universo das
agressões. 134 E, desse modo, não surpreende a desconfiança que muitos Wajãpi revelavam

134
Em certas circunstâncias, o tafiá assume uma “função tabaco”, aquela de mediação entre o mundo humano
e o sobrenatural, sendo introduzido em sessões de cura mais privadas, almejando não uma bebedeira
coletiva, mas um acesso ao universo do xamanismo, que inclui a possibilidade de ver agentes invisíveis,

216
em relação a Joseph, o prefeito emerillon do Camopi: dono do bar, ele vendia bebidas
alcoólicas, fazia acordos políticos com os franceses e era acusado por muitos atos de
feitiçaria. Por isso, os Wajãpi do Amapari jamais juntavam-se a ele, preferindo manter a
atitude de reserva.
A consideração dessa cartografia xamânica complexifica a imagem construída a
respeito dos Wajãpi do Oiapoque. Se tomarmos em causa os discursos dos Wajãpi do
Amapari, vemos o esboço de um intrigante paradoxo: de um lado, uma fala depreciativa,
que focaliza o abandono dos costumes, das festas e das regras de casamento; de outro, o
reconhecimento de uma posição de “vantagem cultural”, dada pela detenção tanto de
mercadorias como de poderes xamânicos. De um lado, um discurso que fala sobre a perda
da cultura; de outro um discurso que enfatiza, pelo contrário, a sua aquisição e o perigo
que isso pode significar. Esse paradoxo, que diz respeito à própria definição de cultura
para esses índios, pode, com efeito, esclarecer-se quando considerado o encontro que pude
presenciar entre ambos os blocos, que, como já salientado, foi mediado pela festa de caxiri.

O encontro mediado pela festa

Voltemos a julho de 1991, ocasião em que os índios do Amapari recebiam um convite


especial da Associação dos Ameríndios da Guiana Francesa (AAGF ) e da prefeitura do
Camopi para uma “festa-reunião” neste mesmo município. Pela primeira vez, o encontro
não era iniciativa de famílias isoladas, mas sim dos órgãos governamentais. A Associação
AAGF , a gendarmerie e o prefeito mostravam-se muito interessados com a retomada das
relações além-fronteiras, tanto que resolveram formalizar o convite, enviando um pedido
de permissão à Funai para que os Wajãpi do Amapá participassem do evento. A carta
oficial foi destinada aos chefes costumeiros das aldeias convidadas, enfatizando que o povo

como os espíritos causadores das doenças e os espíritos auxiliares do xamã. Nesse sentido, diferente do
cauim, o tafiá facilitaria a comunicação direta com o mundo dos seres sobrenaturais, os donos das espécies e
os espíritos terrestres. Segundo Laércio Fidelis Dias e Juliana Rosalem (2006), entre os Wajãpi do Amapari,
assim como entre os pov os do vale do Uaçá (baixo Oiapoque), a cachaça acaba por ser revestida de caráter
terapêutico, sendo muitas vezes aplicada aos corpos dos doentes ao mesmo tempo em que a fumaça do tabaco
está sendo posta em ação pelos xamãs. Segundo os autores, esse valor xamânico da cachaça poderia ser
explicado pelo caráter exógeno dessa substância. Afinal, no pensamento indígena, quanto mais distante a
procedência de uma substância, mais perigosa (ou poderosa) ela tenderá a ser. Os xamãs do Uaçá, assim como
da Guiana Francesa, seriam aqueles que se apropriam de substâncias alheias – no caso, européias,
industrializadas – para domesticar a sua agência e, assim, convertê-las em um poderoso instrumento capaz de
ser empregado tanto para curar como para matar.

217
do Amapari seria recebido como hóspede especial. Dois eram os interesses dos franceses:
que os do Amapari dançassem e que contassem aos outros de suas experiências fundiárias,
tendo em vista todos os problemas enfrentados com o garimpo em suas terras, além de uma
longa história de reivindicações por direitos territoriais, história desconhecida pelos
Wajãpi na Guiana Francesa. Os interesses crescentes do Oiapoque em relação ao Amapari
podem ser sintetizados com a seguinte afirmação do prefeito do Camopi, Paul (um Wajãpi):
“queremos lembrar que somos índios, dançando todos juntos...” (apud Gallois, 1991:11).
Como nos episódios anteriores, a experiência de encontro que acompanhei em 1996
apontava, apesar de alguns esforços por parte da gendarmerie e dos índios de ambos os
lados, a artificialidade do projeto de construção de uma unidade propriamente wajãpi para
além das disparidades entre os blocos apartados por uma fronteira multifacetada. Como
expus no primeiro capítulo, até o momento da festa de despedida na aldeia Yawapá do alto
Oiapoque, pairava a certeza entre os do Amapari de que não seria mesmo possível uma boa
comunicação com as gentes de lá, já que elas teriam se distanciado por demais de um modo
de vida propriamente wajãpi. Não lhes parecia que os setentrionais buscavam estabelecer
qualquer harmonia, ainda que a experiência de 1991 tenha sido relatada pelos mais velhos
como positiva. O prefeito emerillon, Joseph, era referido como um sujeito muito perigoso,
feiticeiro voraz e político inescrupuloso que “não gosta” dos Wajãpi do Sul. Contudo,
como retratado nos capítulos anteriores, a vontade de comunicação não cedeu à
perplexidade diante dos primeiros encontros. Algum tempo depois de terem chegado ao
Camopi, jovens e velhos do Amapari partiam ao alto Oiapoque, onde diziam encontrar
“parentes” e onde os esperavam muitas canoas de caxiri. Afinal, eles já estavam fartos das
beberagens de tafiá, substância que embriaga rapidamente e torna os visitantes
vulneráveis aos caprichos dos anfitriões, ou seja, menos uma serventia que uma ameaça.
A festa de despedida na aldeia Yawapá, que fechava o período de encontro, foi
resultado de uma ação conjunta das quatro aldeias do alto Oiapoque em homenagem à
visita dos meridionais. Havia naquele dia o sabor especial das grandes comemorações
multilocais, realizadas com freqüência no Amapari. A celebração ocorria entre grupos
bastante distintos, e essa distinção aumentava o entusiasmo dos participantes, reunindo
interesses das duas partes envolvidas e acirrando o contraste entre convidados—os
estrangeiros do Amapari—e anfitriões—os residentes dos quatro grupos locais do alto
Oiapoque e, de certo modo, de todos aqueles do Oiapoque, já que muitos do Camopi

218
haviam viajado conosco só por causa desse evento. A descrição do festival foi realizada no
capítulo anterior, no qual propus que visualizássemos uma seqüência de planos, cada qual
representando uma unidade de significação fundamental para o desenrolar do ritual. Por
um lado, o Oiapoque preparava a festa para os aparentados que raramente lhes faziam
visita, aproveitando para esbanjar o ótimo caxiri, produzido em grande escala e qualidade
pelas suas mulheres, suas mercadorias importadas da metrópole, seus aparelhos de som e
suas bijuterias trabalhadas. Como “donos” da bebida, eles permaneciam, ao menos na
primeira metade da festa, como coadjuvantes das performances atuadas pelos convidados.
Por outro, os do Amapari contavam, finalmente, com o espaço para exibir seus talentos
como caçadores e, principalmente, como dançarinos, músicos e cantadores.
Na fase de preparação da festa, todos produziam, em cooperação, as tabocas e os
chocalhos de buriti que completariam a cerimônia do turé. O caxiri, como sempre, abria e
fechava a celebração. Em rápidos golpes, cada qual virava sua cuia e, como era de se
esperar, em pouco tempo estavam todos ébrios, prontos para cantarolar as primeiras
estrofes e para executar a música dos instrumentos. Na seqüência, levantavam-se os do
Amapari, dirigindo-se ao pátio, onde se desenrolava a dança. Seguiam-nos na dança alguns
dos membros do grupo anfitrião, enquanto as mulheres, eficientes e dadivosas, dirigiam-
lhes novas cuias. Os anfitriões impressionavam-se com o brilho que aqueles do Amapari
conduziam a festa, não deixando jamais de seguir as etiquetas tradicionais nos diálogos
mais informais em torno de problemas fundiários e políticos. Os convidados, por sua vez,
impressionavam-se com a profusão de bebidas alcoólicas (então vislumbradas pelo seu
poder fortificante, quase como um remédio) ingeridas com o caxiri.
“Tire mais fotos”, dizia-me Japarupi. Era importante para eles que tudo fosse
registrado: que eles haviam dançado bem, que haviam caçado com destreza, que haviam
despertado interesse nas mulheres do lado de lá. Já era tarde e, quando chegamos ao
quarto grupo local do alto Oiapoque, as mulheres, então completamente ébrias, nos
aguardavam com ansiedade. Em vez dos sons das tabocas e dos cantos masculinos, um
aparelho de som entretinha, com melodias da Martinica, danças desordenadas que não
tinham a menor preocupação em terminar. Era o tempo da embriaguez que atualizava a
vontade de “dançar todos juntos” e que fazia esquecer por alguns momentos as diferenças
marcadas no início da festa. Um “quase-congraçamento” ou, mais que isso, a criação de um
espaço para a comunicação entre posições distintas.

219
Na manhã seguinte, ouvi dos jovens do Amapari histórias de seus êxitos noturnos.
Contavam-me, orgulhosos, que haviam bebido muito, “ficado porre”, como dizem, que
haviam dançado muito e, sobretudo, que haviam conquistado muitos corações. Mas esse
excesso era por eles receado, afinal estavam felizes em voltar para casa, não cogitavam
casamentos naqueles lados. Finda a embriaguez, era preciso retomar uma atitude de
moderação perante aquela terra plena de novidades, que haviam como que desbravado na
noite anterior. O dia da partida reproduzia, inversamente, a seqüência da chegada.
Parávamos em cada uma das quatro aldeias para despedidas e, para recompensar os do
Amapari pela sua bela performance, os anfitriões ofereciam-lhes presentes dos mais
variados tipos, no mais das vezes, artefatos da metrópole, como pentes, espelhos, tecidos e
perfumes. O alto Oiapoque afirmava sua generosidade interessada, retribuindo o máximo
possível a presença daqueles estrangeiros, com quem pretendiam estreitar laços rituais,
comerciais e matrimoniais. Por sua vez, os meridionais aceitavam com alegria os presentes
concedidos, prometendo um regresso e reafirmando convites para uma futura viagem ao
seu país.
De volta ao Camopi, no dia seguinte, não pude presenciar qualquer manifestação
festiva (eu guardava o entusiasmo das festas dos dias passados), já que meus
companheiros, exaustos, desejavam retornar aos seus lares. Além disso, um mal-estar em
relação ao prefeito do município foi responsável pela ira dos Wajãpi do Amapari e pelo
nosso repentino abandono do território francês com destino à cidade do Oiapoque. Ao
negar-nos auxílio para obter combustível para o retorno e, mais uma vez, oferecer-nos uma
péssima instalação, a hostilidade era refeita em detrimento do entendimento vislumbrado
no dia anterior. A contrariedade voltava a operar, e os Wajãpi que lá habitavam não
pareciam manifestar qualquer ato solidário. Fazia-se em relação a eles, novamente, o
estranhamento.
Na certeza de que obtiveram êxito em suas empreitadas rituais pelas terras
francófonas das Guianas, os Wajãpi do Amapari revestiam-se de um discurso engajado pela
autonomia cultural. Ao abandonar o município do Camopi, ressentidos com os maus tratos
do prefeito emerillon, eles prometiam um retorno, justificando que era preciso “ensinar”
os Wajãpi do Oiapoque a tradição das festas e o modo de ser Wajãpi. É assim que, diante
da paisagem desfigurada das comunidades setentrionais, os meridionais assumem para si,
no dizer de Gallois, o estatuto de “depositários de todas as tradições, uma espécie de

220
antídoto contra a extinção” (1991:22). Para tanto, era necessário “limpar” a região e, nesse
sentido, o discurso do Amapari torna-se notadamente moralizante: “os jovens de lá têm de
dançar para deixar a cachaça, têm de reaprender os costumes tradicionais para não deixar
de ser Wajãpi”, afirmou Japarupi, indignado.
O sucesso da festa de despedida em Trois Sauts, evidenciado pela retribuição da
população local com presentes, estreitamento de laços e convites para visitas futuras,
indicava uma reversão no quadro de subordinação vivenciado nos primeiros dias de
estadia no Oiapoque. Se, no momento de chegada, os Wajãpi da banda brasileira eram
tidos como aqueles que tinham pouco para trocar, com a partida, eles assumiriam uma
posição privilegiada de detentores por excelência de uma memória ritual e, de certa forma,
da cultura wajãpi em sua expressão mais geral. Doravante, sua posição no circuito desigual
de intercâmbios era alterada, sobretudo, devido à definição da cultura como patrimônio a
ser trocado. Esse redimensionamento das relações Oiapoque-Amapari, em uma espécie de
“autoconsciência da cultura como expressão das demandas políticas e existenciais”
(Sahlins 1997), se deve, de forma mais ampla, às transformações da auto-imagem que cada
grupo foi constituindo para si em sua experiência na fronteira.
A conversa que presenciei entre os Wajãpi meridionais e Freddy, o gendarme do
Camopi, poucos dias antes de nossa partida derradeira, foi muito esclarecedora. Foi
possível entrever uma situação em que a comunidade indígena do Oiapoque (incluindo os
grupos locais do alto e do médio curso do rio e seus interlocutores não-índios) afirmava
uma certa dependência em relação ao Amapari no que dizia respeito à construção da
imagem de “índios autênticos”, “índios de verdade”. O gendarme, com o apoio de grande
parte dos Wajãpi setentrionais, retomava a proposta, lançada em 1991 quando das visitas
de Waiwai e Kumai, de trazer para o Oiapoque famílias do Amapari.135 Valendo-se de um
discurso que associava a situação dos índios no Amapá à pobreza e à precariedade de
recursos sanitários, educacionais e relativos à segurança, o guardião da fronteira abria a
possibilidade para que estes se instalassem junto aos seus na Guiana Francesa. Prometia
ainda que, em alguns anos após a instalação, poderiam adquirir o estatuto de cidadãos
franceses plenos, o que lhes garantiria direitos e regalias. Nota-se que Freddy articulava

135
De certo modo, a atração dos Wajãpi do Brasil para o Camopi sempre esteve na pauta do governo da
Guiana Francesa—basta lembrarmos o longo movimento migratório dos Wajãpi do Cuc ao Oiapoque no
século XX (ver, neste capítulo, o item “História e geografia de um (re)encontro”).

221
muitas das trocas materiais com as gentes do Amapari, encomendando arcos e flechas em
troca de espingardas e munição, entre outras coisas, refazendo a tradição comercial
estabelecida entre os blocos. Seu trabalho de salvaguarda e fiscalização da fronteira,
impedindo a invasão de garimpeiros e aventureiros em geral vindos de diversas partes do
Brasil, assumia também a função de produção de uma imagem do ameríndio da Guiana,
freqüentemente calcada em ideais de pureza e intimidade com a natureza. Confessando-se
preocupado com a situação no Oiapoque, revelava também o desejo de aproximação com
os meridionais, à medida que eles teriam aprendido a preservar sua cultura e seus
conhecimentos—especialmente aqueles relativos à montagem dos rituais. Para o gendarme,
as puras bebedeiras que se faziam notar ali jamais supririam o ideal de indianidade que ele
mantinha em mente.
O desfecho da conversa foi, entretanto, brusco e inconcluso. Japarupi, Moropi e
Kaintona, os jovens, se recusaram assumidamente a aceitar o convite, já que acabavam de
finalizar o processo de demarcação de suas terras no Amapá, o que para eles representava
uma conquista importante dos Wajãpi do Amapari perante a sociedade brasileira. Seria,
sob sua ótica, incoerente migrar após todo esse trabalho em nome da autonomia, da
autodeterminação e da conquista do território. Quando perguntei a Moropi o que achava
da proposta do gendarme, ele me respondeu assertivamente: “Acho ruim, porque nós já
somos brasileiros. Não queremos mais outro lugar. Ninguém manda mais na gente, nem
branco. Nosso cacique nos respeita, só manda nos seus filhos. Mas os caciques deles vão
mandar a gente trabalhar. Não gostamos quando eles falam para virmos todos para o
Camopi. Para que a gente demarcou a nossa terra? Foi para vir para cá que a gente
trabalhou tanto? Quando pessoal vier para cá, eu não vou vir. O pessoal do Camopi quer
que a gente se misture com eles, para juntar todo mundo e para fazer aumentar os índios.
Para quê?” Apenas o capitão Matapi, um dos representantes dos velhos, mostrou-se
confuso diante da proposta, deixando-se seduzir pelas promessas do oficial francês e pela
possibilidade de desvincular-se da Funai e ascender economicamente. De qualquer forma,
a proposta indicava que uma nova situação se configurava: a cultura wajãpi era tomada
como valor dentro de um sistema mais amplo de interesses. Tudo isso apontava um estado
de coisas em que a cultura, tomada em seu sentido substancialista, deixava de ser, para os
setentrionais, percebida como empecilho à civilização, tornando-se algo de que se deveria
orgulhar. Em tal contexto, a diferença cultural passava a representar um dado importante

222
para a construção de um ideal nacional menos expansionista, adequado às novas demandas
de conservação ambiental e preservação de patrimônios etnológicos.136
Como já indicado, nas décadas de 1980 e 1990, relatos de antropólogos e
indigenistas atentavam ao caráter etnocidário da política oficial de “francização” e à
conseqüente deterioração das formas tradicionais de subsistência e sociabilidade entre os
índios do Oiapoque. O Camopi, em particular, era retratado por pesquisadores franceses e
também por indigenistas brasileiros (com os quais os do Amapari travam contato), como
cenário de atrocidades, onde a população encontrava -se quase rendida às perversões da
modernidade. Nessa paisagem fáustica, um futuro trágico era atribuído aos índios que
trocavam suas atividades “primordiais”—a caça, os rituais etc.—pelo consumo de
mercadorias importadas e, sobretudo, pelo vício alcoólico. Se a crítica que os Wajãpi do
Amapari fazem ao alcoolismo dos habitantes do Oiapoque pode ser relativizada uma vez
consideradas as práticas de intercâmbio de “gentilezas” entre as duas facções, a crítica
presente nos relatos de pesquisadores franceses, como Hurault (1972), Navet (1981, 1984,
1986), Françoise e Pierre Grenand (1982, 1984, 1986) parece traçar um destino fatalista
para esses índios, apontar poucos horizontes para a sociabilidade. Ambos, índios
meridionais e antropólogos, partem de uma premissa um tanto aproximada: o alcoolismo é
um fator desestruturador. Trata-se da gênese de um discurso que oscila entre a tópica da
aculturação e do etnocídio.
Hurault faz menção ao processo de contato com os brancos estabelecido mais pelos
seus vícios que pelas suas virtudes: as tentativas de assimilação teriam ocasionado a perda
das qualidades indígenas: “com os piores da população branca, eles se tornaram
mendicantes e bêbados” (1972:209). O geógrafo dirige, nesse sentido, críticas à política de
assimilação francesa, cujo principal efeito seria a desorganização gerada pela convivência
com estrangeiros, muitos deles políticos geralmente corruptos que procuram se aliar aos
chefes indígenas, então dotados de cargos administrativos diversos. O sistema jurídico-
administrativo imposto pelo governo francês resultaria na marginalização dos índios que
não se adaptavam ao esquema e que, aos poucos, tornavam-se mendicantes, mentirosos e,
sobretudo, bêbados. A vulnerabilidade dos índios estaria estampada na propensão ao

136
As estratégias do Departamento Francês na Guiana de se apropriar de um discurso culturalista constituem
um tema altamente fecundo, e que, infelizmente, não poderei desenvolver aqui. Reitero o que propus no
primeiro capítulo: deter-me prioritariamente ao que diz respeito à perspectiva indígena.

223
alcoolismo, índice da destruição da organização familiar. Pierre e Françoise Grenand
(1990), por sua vez, identificam no alcoolismo e no garimpo de ouro as duas maiores fontes
de desestabilização, referindo-se à realidade no Camopi como algo próximo de um western
norte-americano, dado o crescimento da população heterogênea—comerciantes,
garimpeiros, aventureiros—instalada na Vila Brasil. Esses, segundo as estimativas de 1986,
já chegavam a 400 habitantes. O que era antes apenas um descompasso aparece na lente
dos autores como deterioração final ou “fatal” da população indígena, quadro fidedigno do
etnocídio: “Os índios do médio e do alto Oiapoque estão na via da destruição (via da auto-
destruição). Os caminhos para sair desse impasse são estreitos e difíceis. O problema grave
que se coloca, daqui para frente, é o de saber se nós devemos agir contra a vontade dos
índios” (Grenand, F. & Grenand, P., 1987:4-5).
O etnólogo Éric Navet não vê com melhores olhos o destino cultural dessas
populações. As implicações da política assistencialista francesa estariam dadas, segundo
ele, nas contradições entre o “tradicional” e o “moderno”, “espírito da comunidade”
versus “individualismo”. A noção de crise subjacente às suas palavras reafirma os
prognósticos drásticos: “Argumento pouco científico, bem sei, mas essas impressões
apontam, no Camopi, uma certa atmosfera de mal-estar, de incerteza, que parece dominar o
cotidiano” (1981:25). Navet denuncia a ideologia do progresso e a demagogia presentes na
proposta assistencialista—“dar aos nativos as vantagens da civilização”—, que ecoa nos
discursos políticos dos próprios índios. Isso levou o autor, em 1981, a assumir
explicitamente o antagonismo em relação ao prefeito emerillon, denunciando seu
envolvimento com uma ala de extrema direita do governo e com os gendarmes que
gostariam de fazer do Camopi uma pequena comunidade francesa. A corrida pelo ouro,
acirrada na região, teria sido a “gota d’água” desse processo de desmoralização, uma vez
que a presença dos garimpeiros, com os quais os índios deveriam competir no
aproveitamento dos recursos naturais, era acompanhada, de modo inevitável, da
penetração de um mercado de bebidas alcoólicas. Em um artigo de 1990, “Camopi,
‘commune indienne’: où en est la politique de la France?”, Navet dirigiu ataques explícitos
ao governo francês e à prefeitura do Camopi, aludindo a uma política oficial de não-
informação. O alvo de sua critica era o paternalismo vigente, instrumento que tira a voz e
tapa os ouvidos dos índios, tornando-os atores silenciosos. Segundo o autor, os índios
dizem sempre “sim”, pois “não sabem o que querem e, assim, decide-se sempre em seu

224
lugar” (1990:19; grifos meus). Por sua assumida oposição em relação tanto aos governantes
como aos índios, então reduzidos a uma imagem de cordeiros passivos e corruptíveis,
Navet se afastou e foi afastado do Camopi, interrompendo, assim, a pesquisa etnológica.
Os atritos, acima apontados, entre os pesquisadores franceses e as autoridades
indígenas e não-indígenas acabaram por gerar um modelo de más relações entre
antropólogos e nativos. Não que os antropólogos não fossem queridos pelas populações
que estudavam, mas, como se sabe, não existe sociedade suficientemente coesa para
compartilhar os mesmos afetos, e o que lá se verificou foi uma oposição, por parte dos
indivíduos ligados à prefeitura, à entrada de qualquer pesquisador na área. Os
representantes da comunidade não aceitavam mais a imagem da decadência e, desse modo,
a pesquisa antropológica deixava de ser interessante para eles para se tornar uma ameaça.
O conceito tradicional e exclusivista de cultura, que os antropólogos criticavam, mas com
o qual acabavam por se ver às voltas, parecia pouco produtivo no Oiapoque, uma vez que
não lhes permitia ser ao mesmo tempo Wajãpi e “franceses”, “civilizados”.
Não me oponho, de modo algum, às denúncias realizadas por Éric Navet que, com
toda razão, atentou para o sistema de corrupção vigente no município do Camopi, sistema
devido, especialmente, à sobreposição do modelo político francês ao modelo indígena. No
entanto, a etnologia tem a obrigação de ir além da denúncia e repor a questão o que querem
os índios—pressupondo, tal um ato-de-fé, que eles querem alguma coisa—para encontrar,
ainda que na “confusão”, a instância mínima de produção de sentido. Que o mundo dos
brancos tenha alterado a configuração das redes de relações indígenas, isso é inegável.
Mas, como discutido há pouco, a respeito do problema do xamanismo, essa alteração anda
às voltas com os esquemas de pensamento e ação nativos. Aqui recaímos no problema da
“cultura” como algo que deve ser extraído de fora, da estrangeiridade e, por esse viés, a
relação com os brancos não pode ser simplesmente reduzida ao movimento de
aculturação—perda—, mas deve ser apreendida também como doadora de sentido. Os
habitantes do Oiapoque faziam da idéia de “civilização”, apropriada dos franceses, a sua
maneira de se diferenciarem dos demais índios e, assim, se destacarem num co ntexto
regional. Contudo, eles foram se dando conta, com o tempo, de que ao proceder assim eles
deixavam de corresponder à imagem esperada, eles deixavam escapar uma outra noção de
“cultura”, menos ligada à exterioridade, e sim à autenticidade, uma cultura que não era

225
“virtual” ou “heraclitiana”, como aquela que advinha dos outros, mas sim “identitária” ou
“platônica”, pois que pensada como um produto de si.137
Em suma, diante dos discursos que se veiculava sobre os Wajãpi do Oiapoque e
que tinham efeito maior na opinião pública—algo do tipo “os franceses estão aculturando
e destruindo seus índios, assim como o capitalismo está destruindo o ecossistema
amazônico”—, os índios se sentiram ofendidos em sua auto-imagem: era-lhes destituído o
estatuto de autenticidade cultural, o que os situava também em um patamar de degradação
moral. Diante desse estado de coisas, o Amapari passou a representar uma possibilidade de
reversão para o Oiapoque: seria possível, por meio da promoção de novas situações de
intercâmbio com esses, (re)construir para si uma imagem de autenticidade. É assim que a
experiência dos Wajãpi no Amapá, com sua saga reivindicatória, passa a interessar a
comunidade do Norte: é preciso saber se colocar diante da sociedade mais ampla, forjar
para si uma unidade, por improvável que ela possa ser.
É fundamental acrescentar que o projeto de implementação do Parque Nacional da
Floresta Tropical Guianense gerou um sério debate sobre o lugar das populações indígenas
dentro de um território supostamente predestinado à conservação ambiental. Dessa forma,
o esforço dos ideólogos desse projeto, que contam com a participação de pesquisadores de
várias áreas, tem sido o de promover a associação entre a figura do índio e a salvaguarda
da natureza. A proposta exige que os índios sejam definidos como sintonizados com o meio
ambiente, dada uma disposição de sua cultura à conservação. O “índio naturalista”
(Descola 1998), então projetado sobre a figura dos habitantes do Amapari (uma vez que os
do Oiapoque são reconhecidos como por demais civilizados), é o que orienta a iniciativa do
governo francês em atrair a população do sul.138 Trata-se, assim, de uma estratégia de

137
A oposição entre os sentidos platônicos e heraclitianos da cultura pode ser encontrada em Carneiro da
Cunha (1996).
138
O discurso da conservação toma os chamados “povos tradicionais” como guardiões inatos do mundo
natural, e não é de se espantar a apresentação de projetos, como o da Guiana Francesa, que defendem que os
territórios nativos devam constituir “zonas de vida” ou “zonas antropológicas” integradas a parques
nacionais, cuja definição assenta-se justamente na ausência de qualquer ação humana. Nesse sentido, os
indígenas seriam genuinamente ecologistas, não por sua consciência de causa, mas por sua própria
constituição a um só tempo cultural e genética, capaz de servir de garantia para a manutenção de áreas
protegidas. Como argumenta Barretto Filho (2001:147), em um debate amplo sobre a relação entre o
conservacionismo e os “povos tradicionais”, estes últimos “são definidos como partes dos ecossistemas a
serem protegidos e como seres que estão em uma espécie de sintonia natural com a natureza, como
populações animais reguladas por parâmetros naturais, independentes da práxis simbólica humana. Algo
muito próximo do ‘selvagem nobre’ em suas vestes clássicas de Rousseau, Catlin e Thoreau”. Como a
natureza, com a qual vivem harmônica e simbioticamente, os indígenas seriam frágeis e vulneráveis e, por

226
reconstrução de uma “identidade” menos especificamente wajãpi que genericamente
indígena a partir da incorporação dos conhecimentos dos índios do outro lado da fronteira.
Assim, os interesses da política oficial ressoam em muitas das famílias que habitam o
Camopi e Trois Sauts, que, tendo em vista um horizonte de articulação política—vide o
cenário das associações indígenas em Caiena—e a conquista de direitos diferenciados em
relação à permanência e usufruto em seu território, tornam-se seduzidos pela reformulação
de sua auto-imagem perante a sociedade na qual estão inseridas. Isso porque foi criada
entre eles uma imagem de ausência—ao mesmo tempo de uma relação harmônica com a
natureza e da cultura original, transmitida pelos antigos, que parecia estar confinada nos
sítios além fronteira. Nesse sentido, para esses “índios civilizados”, tudo se passa como se
lhes fosse vital recuperar de um só golpe a sua cultura e a Natureza, na qual ela se vê
fundada.

As formas da diferença

O encontro mediado pela festa opera pela redefinição das posições no interior da rede
interlocal, “sistema movente de fronteiras incertas”, para voltar à expressão de Menezes
Bastos (1994). Ou, como prefere F. Cabalzar, um sistema constituído por “relações
assimétricas, ambíguas e freqüentemente tensas” (1997:291).
O ritual articula oposições sociológicas da assimetria inicial, partindo dos
antagonismos na busca da continuidade, mesmo que se saiba que esta não pode durar. No
terceiro capítulo, vimos como no desenrolar das festas de caxiri, os pares de oposições—
convidados/ anfitriões, homens/ mulheres, carne/ bebida—transformam-se uns nos outros.
O ápice da festa, seu momento crítico que abre para a comunicação embriagada, opera pela
suspensão das contrariedades em nome de um solo de humanidade comum. Mas essa
suspensão define apenas um horizonte projetado, não pode se completar e, na
desmontagem do ritual, as diferenças voltam a operar. Como insiste Lévi-Strauss (1971),
esse esforço conjuntivo, característico dos ritos em geral, está fadado ao fracasso, todo o
empreendimento para criar a continuidade a partir da descontinuidade enfrentada no

isso mesmo, devem ser protegidos: “custa crer que sejam, ao final, grupos humanos – sujeitos políticos
coletivos, cultural e historicamente específicos, capazes de refletir sobre o seu próprio destino e de decidi-lo”
(idem:148).

227
plano vivido derrapa. Isso não significa, no entanto, que a festa apenas reponha o que já
existia de antemão, a ordem estabelecida; de sua parte, ela se realiza segundo um modelo
de transformação em que as oposições não são jamais estanques. O que é reposto de fato é a
diferença, e isso não exclui a possibilidade de algo ter sido alterado. A festa é, vale
ressaltar, um processo ativo de fabricação de pessoas, de grupos, enfim, de fabricação de
relações a partir de relações.
O caxiri, como apresentado nas páginas passadas, longe de designar a celebração de
uma unidade—a Sociedade, a Comunidade—, deve ser compreendido como espaço de
comunicação e elaboração das diferenças. Não é possível, desse modo, afirmar a celebração
sociedade por ela mesma, o que é celebrado deve ser buscado alhures, jamais entre si, mas
entre outros. O “Nós coletivo wajãpi” como um corpo uno é destituído de sentido para
aqueles que festejam, os grupos envolvidos não procuram firmar um pacto de união,
tampouco se redimir das rivalidades passadas para forjar um futuro em que finalmente
todos serão iguais. Pelo contrário, reiteram a memória das diferenças, produzindo um
futuro em que a unidade é excluída como solução, mesmo quando apontada como “a”
solução pelos interlocutores não-indígenas. O espaço social wajãpi, vale reiterar, é um
espaço cindido pela diferença.
No contexto específico trazido à baila, o encontro de blocos wajãpi no Oiapoque
mediado pela festa, marcar a diferença passava pela apropriação de signos exógenos, de
uma linguagem de caráter nacional e, assim, pela redefinição das posições de cada parte no
sistema mais amplo. As relações entre elas eram repensadas à luz de noções emprestadas e
que, imediatamente, se tornavam metáforas para a diferença que se procurava afirmar.
Imaginemos que os anfitriões assumiam a posição daqueles que esbanjavam signos da
civilização, que vinham forçosamente de fora, ao passo que os convidados posicionavam-se
como detentores da cultura dos antigos. Tanto civilização como cultura figuravam nessa
intriga interlocal como signos de prestígio, ora representados em seu aspecto material
(bens), ora em seus aspectos imateriais (conhecimentos). Refiro-me, bem entendido, a
estados reversíveis, jamais condições inerentes, e atento para os pontos de vista
divergentes que remetem à diferença.
De certo modo, a festa de caxiri era lida, naquele momento muito particular, pela
experiência do contato com as sociedades nacionais, francesa e brasileira. Ora, no que diz
respeito ao esquema da festa aludido nos capítulos anteriores, se os termos eram

228
fortemente alterados, as relações permaneciam as mesmas. Assim, a oposição inicial entre o
grupo anfitrião e o grupo visitante era lida sob a oposição entre índios civilizados e índios
tradicionais. Como sempre, era necessário um terceiro termo, indicando a exterioridade e,
no caso iluminado, este deixava de ser o mundo sobrenatural ou sobre-humano (ou mesmo
dos inimigos de guerra) para se tornar o mundo dos brancos (genéricos), de onde
provinham prerrogativas importantes, como as mercadorias e os direitos. A embriaguez do
caxiri propiciava, pois, a conjunção dos dois primeiros termos como forma de marcar a
dissolução da oposição inicial e, por conseguinte, celebrar um horizonte de humanidade
comum, alcançado nesse movimento mesmo de apropriação de elementos externos. No caso
em questão, isso significava a possibilidade de ser ao mesmo tempo civilizado e tradicional,
sem incorrer no risco da aculturação e, assim, experimentar-se como “Wajãpi”, ainda que
se saiba que esse sentimento de unidade, de pertencimento a um “mesmo povo” não pode
durar.
No início da década de 1990, como já salientado, os índios do Oiapoque
identificavam os do Amapari aos seus antigos, “avós”, buscando neles algo como a figura
de bárbaros. Por sua vez, eles se imaginavam como “avançados”, “civilizados”, capazes de
estabelecer intimidade com o mundo dos franceses, dado o acesso que tinham às
ferramentas, barcos a motor, tecidos, alimentos industrializados; além das regalias
institucionais e jurídicas, como salário-desemprego, direito à educação e garantia à
assistência médica. Com o advento da política de “francização”, esses índios vislumbravam
um estado de “bem-estar”, se comparado com o colapso demográfico, a onda de epidemias
e alta taxa de mortalidade conhecidos outrora. Quando afirmo que eles passaram a se
imaginar “civilizados”, penso sobretudo na apropriação da noção de “civilização”,
desenvolvida historicamente pelos franceses.139 Diferenças de sentido, na apropriação do
termo por franceses ou pelos Wajãpi, são inegáveis. O que me intrigou no caso em questão
foi justamente como essa categoria por assim dizer emprestada era inserida no discurso
indígena para fins políticos.
Norbert Elias (1996) discorre sobre a sociogênese, nos séculos XVII e XVIII, na
França, do conceito de civilisation, identificando-o a um projeto de ampliação da sociedade
aristocrática e de incorporação da burguesia. Isso implicava, por certo, a propagação de

139
Não no sentido, por exemplo, empregado por Lima (1995) quando se refere à “civilização do cauim”.

229
certas maneiras de comportamento pretensamente universais em contraposição a um modo
de ser bárbaro, atrasado, que deveria ser expurgado. Nota-se que a categoria
problematizada por Elias, interessado na reconstituição do processo de formação das
nações modernas, mostra-se ainda vívida e operante nos encontros dessas sociedades
nacionais com populações tradicionais. O caso da Guiana Francesa é exemplar, visto que o
cerne da política de “francização” consiste em levar a politesse, a civilité, valores tomados
como fundadores de qualquer modo de vida social, para a barbárie original a que estão
submetidas as populações ameríndias. E isso encontra eco inclusive no cenário brasileiro: o
projeto de pacificação e integração à sociedade nacional, desenhado pelos órgãos oficiais de
assistência e tutela, integra um movimento civilizatório bem delineado, ainda que regido
por princípios diversos daqueles em pauta no caso francês. O que pretendo frisar aqui não
é, contudo, a recorrência de um modelo ocidental de contato, mas o fato de uma categoria
ser tomada, num determinado contexto, pelos índios da Guiana Francesa como distintivo
em contraposição aos do Amapá.
A exaltação da civilização no plano discursivo pode conduzir a um sentimento de
potência diante do comportamento de outras populações que não receberam tais benefícios
e, além disso, atualizar distinções entre os povos expressas em outros termos. Peter Gow
(1991) identifica entre os Piro do baixo Urubamba (Amazônia peruana) a vigência de um
discurso do tipo “somos todos civilizados”, que se cruza com outro, “somos gente
misturada”. Ambos se contrapõem à posição assumida pelos Campa (Ashaninka), “índios
da floresta”, “gente selvagem”. Como os Wajãpi, os Piro enfatizam a oposição entre o rio,
para denotar proximidade e intimidade com agentes da sociedade nacional, e a floresta,
para designar isolamento e ignorância. Para os Piro, que mantêm a memória do tempo em
que eram escravizados por senhores brancos, viver nos dias de hoje em “comunidades
nativas” criadas pelo governo peruano, adquirir conhecimentos por intermédio da escola,
saber produzir “coisas finas”, entre outras tantas aquisições, representam uma arma
decisiva contra a ameaça de extermínio físico e tornam possível uma vida entre “parentes”,
fator realmente relevante para eles. O parentesco revela-se, entre os Piro, o idioma
privilegiado de sociabilidade e também o substrato sobre o qual eles constroem sua
memória e sua história. De modo diverso, selvagens habitantes da floresta não contam com
os privilégios que fornecem essa posição privilegiada de ver o mundo, que aglutina o
status da “gente civilizada” e da “gente nativa”, e se situa no meio caminho entre um nível

230
de infra-civilização (ou selvageria) e o nível de supra-civilização (ou o mundo dos brancos).
Ora, tanto uma ponta como a outra representam horizontes indesejáveis e mesmo
perigosos, daí a apologia ao sangue misturado, garantia desse lugar do meio.
Um sentido análogo para o emprego do termo “civilização” aparece entre os
Waiwai de Roraima que, segundo Catherine Howard (1993), tomam por desafio socializar
os “povos não-vistos”, tidos por eles como bárbaros e imperfeitos. Os Waiwai dizem-se
cristãos (crentes) e, da mesma forma que foram convertidos, buscam converter os demais,
levando a eles um ideal de civilização que se contrapõe a uma idéia de selvageria. Como
demonstra Howard, a conversão, embora inegável, potencializou uma disposição que já era
dada: o expansionismo e o desejo de atrair outros povos, incorporando-os em suas teias de
sociabilidade. Com a conversão, o impulso já existente passava a ser levado às últimas
conseqüências, sobretudo porque os Waiwai passaram a se impor como aqueles que têm
mais para oferecer e trocar. Apropriando-se do discurso missionário ao seu modo, os
Waiwai incumbiram-se da tarefa de pacificar os demais povos para, então, englobá-los em
seus esquemas sociais. Os povos recém-contatados, tidos como bárbaros, são então
gradualmente submetidos à “waiwaização” quando passam a residir junto a esse grupo, a
aprender sua língua, a compartilhar a mesma alimentação, o mesmo trabalho e os mesmos
bens, e ao adotar uma conduta pacífica, considerada adequada e que permite a distinção
em relação aos “índios bravos”.
Antonella Tassinari (1998) examina a construção de uma certa identidade brasileira
que permite aos Karipuna do vale do Uaçá se diferenciar das demais populações que
habitam a margem francesa e que lhes garante o estatuto de índios “civilizados” e
“avançados”. Esse processo pode ser observado durante as comemorações de datas cívicas
brasileiras, como o dia do índio e o dia da pátria, que ganham a forma das festas grandes,
regadas com caxiri e com atividades esportivas, como os campeonatos de futebol, que
envolvem diferentes grupos da região do Uaçá. Junto às assembléias dos povos indígenas
da região, as festas grandes evidenciam o esforço de construção da categoria “povos
indígenas do Oiapoque” e de estruturação das interações entre índios e brancos.140 O dia do

140
Tassinari aponta que o evento do sete de setembro, organizado por professores não-índios, aparece como
celebração da cidadania brasileira e, desse modo, como celebração do contato com a sociedade brasileira.
Investe-se, assim, da simbologia do “um só abraço”, tendo como horizonte a formação da nação apresentada
de maneira idílica como o estreitamento dos laços entre as três raças, o que promove o contraste em relação
ao 14 de julho dos vizinhos franceses.

231
índio, por seu turno, representa a reação à idéia de “aculturação” apropriada pelo senso
comum local e, nesse sentido, enfatiza um movimento de valorização não mais da
“civilização”—ser e reconhecer-se como cidadão brasileiro—, mas da “cultura” e das
tradições indígenas, o que reenvia, contudo, ao que a autora chama de “purismo sem
conteúdo” (idem:315). Tassinari chega a apontar iniciativas que conotam uma volta às
origens, ao “índio do mato”—figura negada no sete de setembro—que se realiza por meio
das reproduções de motivos de pintura corporal (no mais das vezes, “importados” de
outros grupos), pela execução de turés, entre outras exibições de elementos que são
julgados, por eles e pela audiência não-indígena, como tipicamente nativos.141
A mesma oscilação entre o discurso pela “civilização” e o discurso pela “cultura”
aparece entre os Wajãpi. Contudo, no momento do encontro aqui relatado, havia algo
como uma polarização. Quando os conheci, os Wajãpi do Amapari referiam-se aos
setentrionais como “aculturados”—jargão que herdavam das conversas com os chefes de
posto da Funai e com outras tantas figuras do meio indigenista142—, ao passo que se
imaginavam como detentores exemplares da cultura dos antigos143. Não está em jogo aqui,
vale reiterar, um conceito nativo de cultura, mas a apropriação de uma noção
substancialista e primordialista, que também tem se mostrado bastante valiosa ao Ocidente
moderno. Mais uma vez, é interessante traçar uma analogia com o conceito de Kultur, a
que se refere Norbert Elias. O autor se ocupa, em O processo civilizador, da antítese,

141
Conclui-se, com a autora, que o sete de setembro e o dia do índio revelam-se opostos e complementares.
Se, no primeiro, vislumbra-se a celebração da brasilidade—da civilização—, no segundo, vislumbra-se um
elogio à tradição, à cultura. Nenhuma dessas comemorações é “mais karipuna” que a outra, ambas
representando a possibilidade de construção de um discurso nativo a partir de categorias emprestadas do
mundo dos brancos e, nesse sentido, de demarcação de um espaço próprio diante da pluralidade criada no
estreitamento das relações com a sociedade nacional.
142
O conceito de aculturação, que parte da idéia da cultura como conjunto de traços específicos que vão se
fragmentando no correr das relações interétnicas, foi desenvolvido no Brasil em trabalhos como os de Charles
Wagley & Eduardo Galvão (1961) e Egon Schaden (1965), e continua até hoje vivo em alguns setores da
política indigenista do país, para não falar do senso comum. Os temas predominantemente tratados por esses
autores eram a transferência do indígena e do camponês e de sua problemática inserção no mercado
capitalista competitivo. A noção subjacente era a de assimilação. Não por acaso, Darcy Ribeiro (1993), um dos
idealizadores dos moldes atuais da política indigenista oficial, retoma essa mesma problemática
acrescentando a esse quadro de assimilação a figura do índio genérico, substituindo a noção de aculturação
pela de “transfiguração étnica”—perda das especificidades mas garantia de um diferencial diante da
sociedade dominante.
143
Voltemos ao início do segundo item deste capítulo, quando eu comentava o encontro entre os Wajãpi do
Amapari e os Zo’é: nesse caso, eram os segundos que representavam a proximidade com os “antigos”. Os do
Amapari colocavam-se, por seu turno, como índios que conhecem o modo de vida dos brancos. Essa nota
serve, portanto, para lembrar que estou me referindo aqui a distâncias relacionais. As posições em questão
são alteradas conforme os diferentes contextos. Por isso, é necessário insistir na sua dessubstancialização e,
sobretudo, na dessubstancialização das categorias aqui propostas de cultura e civilização.

232
justamente, entre os conceitos de Kultur (que pode ser traduzido apressadamente como
“cultura”), valioso para os alemães, e o de civilisation, abraçado pelos franceses. Seriam
estes dois modelos recorrentes, e em operação até hoje, para pensar as nações modernas. O
mais importante é notar que eles só ganham sentido quando tomados em oposição.
O conceito de Kultur encontrava-se associado ao estado de isolamento e fechamento
da nobreza alemã, carregando uma idéia forte de moralidade, o que o define como
expressão altamente ideológica, propriamente uma reação à civilização francesa. Se a
civilização representa o resultado de uma expansão—minimização das diferenças entre os
povos tendo em vista um modelo universal de convivência—a cultura traz à baila a
identidade particular dos grupos, a tendência à demarcação dos territórios e ao
detalhamento exacerbado das especificidades. Ora, esse agarrar-se a uma tal categoria de
cultura não seria entre os Wajãpi do Amapari, tal como sugiro aqui, também um
movimento de reação à suposta hegemonia dos seus vizinhos que proclamam civilizados?
Prossigo com a analogia.
Marshall Sahlins diria que estamos diante de um movimento decisivo: essa noção
de cultura há tempos confeccionada, condenada pelos antropólogos do final do século XX
justamente pela sua coerência excessiva, pelo seu papel de contorno e de totalidade,
reaparece desta vez como auto-consciência dos povos estudados. “No exato momento em
que tanta gente está anunciando a existência da cultura, os antropólogos resolveram negá-
la” (1995:14). Noutras palavras, o que é uma ferramenta conceitual para os antropólogos,
aquela que lhes permitia compreender diferentes formas de racionalidade, passou a
aparecer para os índios como uma ferramenta capaz de conectá-los ao mundo que se
alargou e servir-lhe na elaboração de suas estratégias. Como quer Homi Bhabha (1998),
estamos diante de uma estratégia discursiva que coloca no centro a fixidez do estereótipo,
uma apropriação do próprio discurso do colonialismo: produzir o colonizado como um
Outro inteiramente visível e apreensível, dar feição à diferença, conferir realismo à
cultura. Bhabha refere-se ao estereótipo como ponto primário de subjetificação colonial:
“cena de uma fantasia e defesa semelhantes—desejo de uma originalidade que é de novo
ameaçada pelas diferenças de raça, cor e cultura” (1998:117). A cultura torna-se, nesse
sentido, uma figura fundamentalmente retórica—afinal, o estereótipo é sempre um objeto
impossível, exprime o desejo da mesma forma impossível de uma origem pura, não-
diferenciada.

233
Em sua luta pelo direito à posse da terra, os Wajãpi do Amapari foram levados a se
definir, diante da nação brasileira, como aqueles que mantêm suas tradições, aqueles que
permanecem índios. Tudo isso implicou, como alega Dominique Gallois (1994, 2001, 2002),
um longo processo de aprendizado: do território como unidade circunscrita, da idéia de
etnia “Wajãpi”, da sua identificação como índios. Foi preciso também aprender a
linguagem de um engajamento político, tomando conhecimento das diferentes populações
indígenas que, como eles, reivindicavam seus direitos junto aos órgãos oficiais, em cidades
como Macapá, Belém e Brasília.144 Nesse sentido, à medida que os do Oiapoque se tornavam
franceses, os do Amapari tiveram de se tornar índios, forjando para si um discurso sobre a
gênese da etnia que, entretanto, não abole a opção pela fragmentação interna. Esse
aprendizado da indianidade observa-se com menor clareza no Oiapoque, onde se conhece
muito pouco da trajetória de outras populações ameríndias, e se confunde, por exemplo, os
Kayapó do Sudeste do Pará com os Apache vistos nos filmes americanos. A cultura como
problema, bem como o discurso da indianidade, são assuntos que lhes causam baixo
interesse, a não ser em situações precisas quando se dão conta das cobranças que advêm do
exterior.
Arjun Appadurai (1996) propõe que, em contextos como o vislumbrado na região
do Oiapoque, tomemos a cultura como processo de “naturalização das diferenças”. O autor,
que pretende deslocar a questão do terreno da etnicidade, aponta o quadro de emergência
de novos “culturalismos”, mobilização consciente das diferenças, ainda que essas tenham

144
Gallois escreve: “Eu penso que a coisa mais difícil para eles é aprender que são índios. Eles se pensam
como humanos e não como índios. Aprender a ser índio parece um contra-senso lógico, além de muito pouco
atraente, pois eles se vêem privados de uma série de coisas. A idéia de que o território tornou-se uma área
fechada não pode ser pensada fora da relação que eles constroem com o homem branco. Para tanto, primeiro
construíram a noção de ‘Wajãpi’, um coletivo amplo, inexistente na representação e na prática de sua vida
social, para depois construir a noção de terra, de maneira gradativa. A maioria dos Wajãpi sabe que a terra
que demarcaram está cercada, mas em seu pensamento não faz sentido não poder ir além, pois a vivência do
território cresce à medida do movimento de descentralização que continua vigente, sem grandes alterações
desde que foram colocadas placas e abertas picadas” (Gallois 2001:207). A noção jurídica de terra é, pois, uma
dessas categorias que teve de ser incorporada, ainda mais entre um grupo tupi-guarani que conheceu, em sua
trajetória, inúmeras migrações e divisões em diferentes grupos territoriais. Dar-se conta dos limites
territoriais, demarcar essa terra é, assim, concomitante com a percepção de si próprios como Wajãpi, em
contraposição a outros grupos “étnicos” vizinhos, como os Wayana e Aparai, os Tiriyó e os grupos do
Oiapoque. Todos esses são, no entanto, vistos como índios em contraposição, desta vez, a população não-
índia que habita seus entornos, as cidades de Macapá e Belém, o Brasil e o mundo. E esse rótulo, índios,
passa a ser visto como produtivo e necessário à medida que se descobre um universo de direitos e
reivindicações possíveis. Como índios, esses grupos têm acesso a um território exclusivo, a programas de
saúde e educação garantidos pelo governo, à proteção de sua propriedade intelectual, para não falar da
projeção que podem receber na mídia, visto que representam a porção de exotismo que ainda resta no
mundo moderno e globalizado.

234
de ser, para tanto, naturalizadas, capturadas pelo discurso da substância. De modo
análogo, Sahlins (1997) e Carneiro da Cunha (1998a, 1998b) apontam a necessidade de levar
em consideração os discursos indígenas que se apropriam de categorias ocidentais como
um passo adiante na compreensão dos movimentos pela diferença. “Que a cultura seja um
fluxo, não uma coisa, produção e não produto, é, a essas alturas, ponto pacífico em
antropologia. Não obstante, os antropólogos levaram muito tempo para se desfazerem do
conceito essencialista de cultura e talvez seja nossa responsabilidade tê-lo fixado na lei e,
portanto, no que se pede que as populações indígenas exibam no judiciário. A cultura é
inventada, mas não se deixa lá por isso de morrer por ela” (Carneiro da Cunha 1998b:96).
Como atenta a autora, não basta definir um conceito acadêmico de cultura para denunciar
os perigos do substancialismo, e sim que se volte a atenção à dinâmica de apropriação de
diferentes discursos sobre a diferença, para se compreender, enfim, as posições alcançadas
no interior da rede de relações em pauta.
Como propõe Appadurai, a cultura deve ser tomada antes de tudo como movimento
de produção de diferenças e não como fixação de substâncias. Trata-se de pensar, como
quer Bhabha, o processo da diferença como passível de ser conhecido, adequando-se à
construção de sistemas culturais e a mecanismos de significação por meio do qual
afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção
de campos de força e referência. Para o autor, a enunciação da diferença cultural
“problematiza a divisão binária do passado e presente, tradição e modernidade, no nível
da representação cultural e de sua interpelação legítima. Trata-se do problema de como, ao
significar o presente, algo vem a ser repetido, recolocado e traduzido em nome da
transição, sob a aparência fiel de um passado que não é necessariamente um signo fiel da
memória histórica, mas uma estratégia de representação da autoridade em termos do
artifício do arcaico” (1998:65).
Diante desse quadro, quando da referência ao termo cultura, é preciso ter cautela e
notar (ao menos) quatro diferentes acepções. As duas primeiras dizem respeito ao conceito
antropológico e, designam, como quer Carneiro da Cunha (1996), de um lado, (1) um
conceito “platônico”, que toma a cultura como conjunto de traços imutáveis, ou seja, como
coisa; de outro, (2) um conceito “heraclitiano”, que toma a cultura como processo, fluxo ou
atividade, algo que não é jamais idêntico a si mesmo, mas que varia de acordo com uma
coerência interna. As duas últimas acepções de cultura dizem respeito ao universo dos

235
próprios índios. De um lado, (3) a cultura possui um sentido cosmológico, é aquilo que
deve ser apropriado do exterior; daí a noção de “forças da cultura” (Overing 1983),
prerrogativas que devem ser recebidas ou roubadas de diferentes seres e patamares
cósmicos. As festas wajãpi, como sustenta Dominique Gallois, não são senão a celebração
da aquisição dessa cultura, o que significa a incorporação no seio do grupo de algo que
vem de fora. Nesse sentido, a cultura consiste em algo por definição estrangeiro.145 Por fim,
(4) temos cultura empregada pelos índios num sentido retórico. Se a cultura como algo que
vem de fora remete ao conceito heraclitiano, não permanecendo jamais como idêntica a si
mesma, pois que depende do exterior, este sim estruturante; a retórica culturalista aponta
uma espécie de reificação desse fluxo contínuo, buscando a imagem de uma interioridade e
de uma distintividade capaz de demarcar as fronteiras entre o eu e o outro. A retórica
indígena apropria-se, desse modo, do conceito de cultura como coisa.
Tomemos, nesse momento, esse aspecto a um só tempo “coisa” e “retórica” da
cultura, tal como ela se vê apropriada pelos índios. Em um primeiro momento, os do
Amapari foram subjugados pelos do Oiapoque por serem pouco ou nada civilizados,
assumiam, na trama de relações, uma posição de índios “atrasados” e “pobres”, com pouco
para trocar146. Com a retomada dos contatos, no início dos anos 1990, e sobretudo com a
profusão de convites por parte do pessoal do Oiapoque para as festas de caxiri, eles
acabavam por assumir uma nova posição, por certo mais positiva, de detentores da cultura
wajãpi. No mais, uma nova assimetria se revelava, visto que eram os setentrionais que
permaneciam em uma posição de pouco para trocar. Noutras palavras, os do Amapari,
situados num primeiro plano como tomadores de civilização, aqueles que iam ao Oiapoque
somente para banhar-se no mar de benefícios que os outros dispunham, tornavam-se, no
momento posterior, doadores de cultura. Esse estatuto de índios “civilizados” e índios
“tradicionalistas” só faz sentido, é claro, em determinadas circunstâncias. Como comentei
em outro lugar (Sztutman 1999), ora o ponto de vista da civilização englobava a cultura—
no que se refere à posse de artefatos e à maior proximidade do mundo dos brancos, o que
145
É possível concluir, com Viveiros de Castro (1996b, 2002), que para os ameríndios a cultura é dada,
devendo ser apropriada, ao passo que a natureza deve ser, ela sim, construída. Em poucas palavras, isso
significa dizer que é por meio da apropriação da cultura que se faz possível esculpir corpos.
146
O fator dinheiro é bastante importante nesse jogo. As famílias do Oiapoque são quase todas remuneradas,
seja pelo fato de alguns membros serem assalariados, por prestarem serviços à comunidade (enfermeiros,
assistentes do gendarme e/ou prefeitura etc.), seja por terem seu próprio comércio (donos de cantina), seja por
receberem do governo francês o salário-desemprego, direito de qualquer cidadão francês. O consumo
excessivo de bebidas alcoólicas é, portanto, também um resultado dessa aquisição.

236
traz reflexos nas práticas xamânicas—ora o ponto de vista da cultura englobava a
civilização—no que se diz respeito ao corpus de conhecimentos dos antigos, das danças e
dos cantos.
A hegemonia que se apresenta naquela porção da Guiana Oriental não é jamais fixa,
não há como se referir a um esquema hierárquico que subordina o Sul ao Norte, tal como
poderia ter se concluído, uma vez focalizado nesse sistema apenas as redes de trocas
comerciais. Em tal contexto, a cultura turva-se em mercadoria. Tal o discurso dos
setentrionais, sustentado pelo gendarme, de que é preciso trazer arcos e flechas do Amapari
para o Oiapoque, trazer os “bons selvagens” para o território francês. Não é possível situar
Oiapoque e Amapari como dois pólos absolutamente opostos, muito menos como frações de
uma mesma totalidade, mas antes como constituindo entre si “um sistema que não se basta
a si mesmo e que deve sempre ao meio que o circunda” (Lévi-Strauss 1976a:177).
No encontro mediado pela festa que pude observar, civilização e cultura revelavam-
se como duas posições menos excludentes que intercambiáveis. Tudo se passa como se
depois do caxiri fosse possível ser ao mesmo tempo uma e outra coisa, como se o sentido da
embriaguez coletiva, naquele contexto, fosse nada mais que o desejo de ocupar a posição
de seu contrário. O tradicional tornava -se o civilizado e o civilizado, o tradicional. Todos
combinavam caxiri e tafiá, dançavam ao modo dos antigos, mas também ao modo dos
franceses, fazendo misturar as melodias dos turés às batidas dos hits musicais da Martinica
e da metrópole. Dessa troca de perspectivas, dada no auge da embriaguez, revelava-se uma
gente ao mesmo tempo civilizada e tradicional, como se a convivência entre esses dois
estados não correspondesse à forma alguma de contradição. Pelo contrário, ébrios, os
Wajãpi de ambos os lados provavam que podiam ser uma coisa e outra e, nessa fusão,
destacavam-se dos brasileiros e franceses de quem, inevitavelmente, advinham as imagens
de cultura e civilização.
Em seu intento de promover a convivência pacífica entre os blocos setentrionais e
meridionais, Freddy, o gendarme do Camop i, desconhecia essa tendência avassaladora à
inflação das diferenças. Estimulava ambas as partes a montar festas grandes de caxiri,
promovia trocas de itens “modernos” pelos “arcaicos” (sobretudo armas e munições por
arcos e flechas), imaginando que daí se poderia restituir um acervo cultural, bem como a
unidade tribal perdida. Dessa forma, o gendarme alimentava uma ilusão de unidade, não
percebia que a encenação de uma tal conjunção reavivava em seu interior princípios em

237
plena oposição. Para os Wajãpi, de ambos os lados, tudo se passava de modo diverso. A
festa se revelava como lugar do agenciamento da afinidade, mantendo viva a tensão entre a
convivência pacífica—o reconhecimento do Outro como um ser domesticável,
amansável—e a hostilidade explosiva—a percepção do Outro como inimigo potencial,
ameaça inevitável, figura que se quer ausente. Como pensa Rivière (1984), importa mesmo
a fragmentação e a imagem fugidia do que se pretendeu convencionar como uno. Contudo,
tal fragmentação deve ser tomada em seu aspecto positivo. Afinal, o sentido da festa de
caxiri não reside senão no convite para uma nova festa de caxiri, na perpetuação de uma
relação. A diferença acentuada não aponta o confinamento, pelo contrário, institui a
necessidade de comunicação. Se a congregação propiciada pela embriaguez é aqui uma
ilusão, o atomismo, congelamento da tendência à fragmentação, também o é. Tudo se passa
como se cada parte existisse para um todo desconhecido que permanece por fazer. Um
todo aberto, jamais uno—como o tempo perdido de Proust ou a árdua tarefa de Sísifo, ele é
inalcançável, interminável, carece ser a todo momento reinventado.
Longe de representar uma simples exibição de sinais diacríticos de uma
indianidade que se pretende “resgatar”, a festa apresenta-se como evento de comunicação,
sempre uma atividade ambígua que opera ao mesmo tempo pela demarcação das
diferenças—nós e eles—e pela fusão das partes envolvidas em um sentimento de
indiferenciação propiciado pela embriaguez de caxiri. Não se trata aqui de um ato
exclusivamente político, para fora, “para francês ver”, mas de um ato cosmológico e
existencial, mitoprático no sentido que Sahlins (1990) atribui ao termo. Assim, não somos
bem-sucedidos quando procuramos motivações utilitárias e/ou puramente identitárias para
a montagem das festas de caxiri. Naquela região em que o Oiapoque é fronteira que separa
e une Wajãpi setentrionais e meridionais, e também no alhures amazônico, os encontros
mediados pelas festas certamente não cessarão de existir.

238
Epílogo

Os problemas levantados neste livro foram tecidos longe do campo de pesquisa, deixado
em maio de 1996. Notícias sobre a fronteira, o Oiapoque, não faltaram, mas sempre da
perspectiva dos Wajãpi do Amapari, que mantêm contatos freqüentes com minha
orientadora, Dominique Tilkin Gallois. Conforta-me saber que as viagens, as festas e os
encontros não cessaram, pelo contrário, continuam a movimentar a vida daquelas
populações. Durante algum tempo, recebi convites por parte dos meridionais para retornar
ao Oiapoque, no entanto, as dificuldades encontradas pela burocracia do Departamento
Francês e pela resistência da comunidade do Camopi à pesquisa antropológica
determinaram minha resposta negativa. Esse olhar que se distanciou do foco primeiro da
pesquisa conduziu-me a um esforço de revisão do material bibliográfico disponível e à
ampliação de meu campo de visão. Afinal, aquilo que eu havia visualizado no Oiapoque
revelava-se antes de tudo em um tema tipicamente amazônico—então, por que não a
comparação? Aqueles tantos momentos festivos—inebriantes—no Oiapoque enviavam-me
à pesquisa de gabinete, ao mergulho, ainda que preliminar, no mundo etnográfico da
paisagem amazônica. Um mundo livresco, pleno de interpretações instigantes.
A consideração da pluralidade de manifestações rituais na Amazônia, que tinham
na festa de caxiri uma expressão fiel, e muitas vezes reduzida ao mínimo, permitiu-me
entrever o desenho de redes de relações sociais fundamentais que englobam a vida social
nos âmbitos mais locais, a bem dizer, a vida “entre si” nos grupos locais dispersos na
floresta ou, noutros termos, no interior das relações cognáticas, da proximidade garantida
pelo parentesco. Na esteira desse argumento, persegui armações, códigos e mensagens
veiculadas por tais espécies de rituais, o que me fez reencontrar as festas de caxiri, então
ponto de partida de toda investigação. Ora, a transmissão da mensagem festeira não escapa
à embriaguez, fator de maior júbilo e rendimento cosmológico: é preciso sair de si para
incorporar a experiência da estrangeiridade num projeto de humanidade. Eis o cimento
cosmológico daquilo que foi observado nas redes conformadas pelos sistemas rituais: nas
trocas estabelecidas, reside também um princípio de transformação (Gallois 1988), impresso
em um “idioma generalizado de predação” (Albert 1985, Viveiros de Castro 1993, Lima
1995).

239
Não há tanto porque opor, nessa abordagem, cosmologia e sociologia, pensamento e
ação. O pensamento informa a ação que, imediatamente, responde ao pensamento, e o
pensamento em questão orienta-se antes de tudo pelo problema particular que impõe a
alteridade. Daí a inevitabilidade de esbarrar na discussão sobre as “filosofias de
alteridade”, lançada por Joanna Overing (1983) na tentativa de promover uma síntese
sobre as topologias sociais construídas nas terras baixas sul-americanas. O grande desafio
colocado pelas teorias nativas para pensar a vida em sociedade reside, nas palavras desta
etnóloga, em admitir a necessidade ontológica das diferenças para a vida social ao mesmo
tempo em que o seu perigo eminente. Esse paradoxo institui um grande problema não só
para o pensamento, mas sobretudo para a ação: o que fazer diante do perigo, visto que a
semelhança define um mundo a-social, inerte. A única resposta possível é, pois, domar
toda essa diferença, controlar o que Overing denomina de "forças da cultura", que não
podem jamais ser propriedade de um único homem ou grupo. Entre a ameaça do caos
causada pelo excesso de diferença e a aniquilação do social pelo estabelecimento de um
mundo unicamente habitado por semelhantes, flutua a vida em sociedade. Ora, no que
consiste o ritual, a festa, senão num dos momentos privilegiados da busca por uma solução
a esse dilema? Para voltar à expressão enfatizada por Michael Houseman e Carlo Severi
(1994) em seu estudo sobre o naven melanésio, a festa deve ao menos “tornar visíveis”
esses dilemas da existência social, apostando em figuras complexas capazes de condensar o
sentimento de perigo e o prazer da sociabilidade. Em todas as paisagens etnográficas, esse
parece ser o grande desafio para o ritual, importando menos a sua variabilidade
morfológica. Nas Guianas, como procurei apontar, por mais que o jogo das diferenças seja
escamoteado no espaço em que se inscreve o cotidiano, ele garante sua continuidade no
tempo, promovendo uma cadeia de dádivas e retribuições. No ritual guianense, a diferença
ganha visibilidade, é feita, desfeita e refeita. O dilema no pensamento então se revela
moto-contínuo da ação.
As conclusões de Overing enviam para as reflexões mais recentes, igualmente
ansiosas por uma síntese mais ampla do continente sul-americano, de Lévi-Strauss que, em
História de lince (1993a), debruça-se sobre uma suposta “abertura ao outro”, manifesta, por
exemplo, nos primeiros encontros entre índios e europeus. Como Overing, Lévi-Strauss
não se refere a qualquer abertura, o que o faria coincidir com um princípio universal, o
princípio de reciprocidade que funda toda possibilidade de vida social. No mais, essa

240
abertura implica uma escolha particular: o privilé gio da complementaridade sobre a
semelhança, da cunhadagem sobre a irmandade, do Dois sobre o Um (Lévi-Strauss 1982).
Argumenta o autor que outras mitologias, como aquelas encontradas em povos de origem
indo-européia, situam o problema da diferença de modo diverso, uma vez que a questão
reside em como produzir a dualidade (a dos sexos e aquela que a aliança matrimonial
implica) a partir da unidade ou, mais especificamente, a partir da imagem bastante
ambígua da unidade para que se possa conceber a diversidade (Lévi-Strauss 1993a). Ora,
na América do Sul, a dualidade contida nos mitos e ritos não pode ser jamais reabsorvida
na imagem aproximada da unidade pela qual é representada, tampouco pode apresentar
caráter irreversível. Trata-se, no dizer de Lévi-Strauss, de uma dualidade instável, que
contém um princípio de desequilíbrio dinâmico, apresentada sob a forma de desigualdades
relativas: o problema deixa de residir em como produzir a diferença a partir da unidade,
mas nas soluções graduadas para tamanha irredutibilidade. Os mitos americanos, de norte
a sul—tal a tese do autor—trazem a figura de companheiros distintos fisicamente (gêmeos
de pais diferentes ou de caráter inconciliável), que vivem as mesmas aventuras e cooperam
entre si, mas em geral, “param por aí, como se renunciassem a tornar os gêmeos
homogêneos” (idem:206).
No final de História de lince Lévi-Strauss compara os mitos dos gêmeos Tupinambá
com os mitos dos gêmeos gregos e indo-europeus. Se o mito ameríndio recusa a síntese das
personalidades contrárias, demonstrando que a diferença interna ao par é irredutível,
outros mitos optam pela solução contrária, ora aniquilando um dos termos, ora fundindo-
os. O caso de aniquilamento se dá entre Caim e Abel – Velho Testamento – e Rômulo e
Remo – fundação de Roma. Não é possível a convivência dessas personalidades contrárias,
uma tem de ser suprimida. O caso de fusão pode ser observado na história de Castor e
Pólux, que, como na narrativa tupinambá, são filhos da mesma mãe—o último com um
imortal (Zeus), o primeiro com um mortal. Com morte de Castor, Pólux revolta-se aceitando
dividir com o irmão amado a sua imortalidade. Inseparáveis, eles resolvem passar metade
de seu tempo no Olimpo e a outra metade no Hades. No caso bíblico e romano, a alteridade
é suprimida num ato de coerção; no mito grego, ela é negada. Em ambos os casos, tudo o
que temos é uma valorização da identidade em detrimento da alteridade. Com os mitos
ameríndios, salienta Lévi-Strauss, passa-se o contrário: valoriza-se a alteridade – a

241
diferença – em detrimento da identidade e, nesse sentido, nega-se também que a assimetria
inerente ao par se torne uma hierarquia propriamente dita.
Ao seu modo, Lévi-Strauss leva adiante a idéia de uma ênfase ameríndia no caráter
perverso ou mesmo maléfico de um regime constituído pelo horizonte de semelhança, tal
como havia proposto Overing. O tema dos gêmeos distintos, que continua bastante
recorrente entre os povos de lígua tupi-guarani atuais, postula a impossibilidade de
desenvolvimento do idêntico—a notável desigualdade entre eles é o que move a
situação—em detrimento do que se verifica na matriz indo-européia e grega, em que os
gêmeos são admiravelmente retratados como iguais ou que encontram entre si uma solução
de igualdade. O desequilíbrio que resulta desse par ganha progressivamente todos os
domínios: a cosmologia e a sociologia indígenas lhe devem sua mola mestra. Trata-se, para
o autor, do alto rendimento da fórmula dualista, que jamais deve ser confundida com a
idéia de simetria, mas sim como geração contínua de disparidades, recusa à identidade,
esse “estado revogável ou provisório que não pode durar” (idem:208), visto que entre os
ameríndios “parece indispensável uma espécie de clinâmen filosófico para que em todo e
qualquer setor do cosmos ou da sociedade as coisas não permaneçam como em seu estado
inicial e que, de um dualismo instável em qualquer nível que se o apreenda, sempre
resulte um outro dualismo instável” (idem:ibidem).
As idéias de Lévi-Strauss caminham ao encontro do tema da recusa de uma forma
fixa de identidade e de fechamento absoluto discutido nos quatro capítulos deste livro. O
tema da embriaguez, relevado no terceiro capítulo, lança luz justamente sobre um
movimento de abertura ao outro, de celebração da alteridade, que se impõe como condição
para o estabelecimento da vida social e para a constituição de pessoas e grupos. Ora, esse
movimento implica a produção de um estado alterado, em que as fronteiras entre os
participantes da festa são diluídas de maneira a fazer transparecer o caldo comum em que
todos se vêem imersos. Como escreve Georges Bataille a propósito da experiência do “sair
de si”: “o êxtase é comunicação entre termos (esses termos não são necessariamente
definíveis), e a comunicação possui um valor que os termos não possuem: ela os aniquila—
do mesmo modo, a luz de uma estrela aniquila (lentamente) a própria estrela” (1961:50).
Em poucas palavras, os limites dos termos—“meu grupo” e “outro grupo”, coletividade
humana e cosmos—são menos enfatizados que a sua conexão, o que não significa o
apagamento de suas diferenças. A embriaguez do caxiri envia aos laços que unem os

242
homens ao mundo não-humano e, por conseguinte, àqueles que unem os homens entre si e
que produzem o sentido de uma humanidade plena. Ora, a subversão desses limites
consiste também em perigos: de perder a posição de humano—transformar-se de modo
irreversível, morrer—, de perder a qualidade da sociabilidade e incorrer na violência.
Nesse sentido, o excesso deve ser contornado de modo que o estado de indiferenciação
volte a ceder lugar às diferenças irredutíveis, ainda que transformadas.
Como propõe Eduardo Viveiros de Castro (1986) para as cosmologias tupi-guarani,
o limite entre o eu e o outro, entre identidade e alteridade deve ser dissolvido pelo ideal de
devir—o eu traz como destino sua transformação no outro, e o outro pode fundir-se à
perspectiva do eu. Tal concepção confere dinamismo ao sistema: as oposições não são
jamais estanques, fazem referência a estados e posições transitórios e não a substâncias.
Avançando para a paisagem amazônica como um todo, Viveiros de Castro estende o seu
argumento ao par consangüíneos e afins, divisão que funda uma sociabilidade particular
na Amazônia: não há posições fixas, essas estão para ser intercambiadas e obedecem a um
gradiente variável mediante o contexto no qual se desenrolam as relações. Subjaz a isso um
esquema geral da diferença em que a codificação é dada pelo paradigma da predação e da
apropriação: “sujeito e objeto se interconstituem pela predação incorporante, cuja
reciprocidade característica, aliás, indica a inexistência de posições absolutas (do sujeito
como substância e do predicado como acidente)” (1993:185). A diferença e a hostilidade
atuam como termos não-marcados do sistema, “regentes da estrutura global”
(idem:ibidem). Nesse ponto, Viveiros de Castro retorna ao paradoxo guianense do ideal de
endogamia e de consangüinização dos afins em um mundo em que a abertura ao outro é
concebida como condição para a vida social. Se para Peter Rivière tudo se explica pela
escassez de recursos humanos—é preciso reter mulheres e manter sob controle o tamanho
dos grupos locais, o que indica uma solução de fechamento—, Viveiros de Castro
redimensiona o debate ao afirmar que “o escasso é o sentido: é ele que está sempre em
falta, e que está sempre fora” (1993:188). Mais uma vez, a solução reside na abertura: é
preciso “sair de si”, “buscar fora”, para reencontrar o sentido na vida social, ou seja, para
se constituir ao mesmo tempo como humano e como parente.
O ritual, vale reiterar, torna visíveis os dilemas que invadem o pensamento e, nesse
sentido, ele opera essa “saída de si” perfazendo não apenas um caminho reflexivo, mas
também pragmático. Ao pensar as condições da vida social, ele acaba por atuar na sua

243
fabricação. O ritual realiza a vontade de comunicação entre esferas distintas do mundo social
e do cosmos. No entanto, essa vontade não deve ser confundida com um desejo de
construção de unidade, pelo contrário, as relações entre as partes revelam uma prioridade
ontológica em relação às unidades sociais em constituição. Mais uma vez, vemos
reproduzir-se aquele estado de “desequilíbrio dinâmico” dado na impossibilidade da
síntese dos contrários: tal o que procurei apontar no caso observado no Oiapoque. Wajãpi
do Oiapoque e Wajãpi do Amapari redefinem sua posição no sistema mais amplo, não em
termos de uma relação simétrica, ou simetricamente desejável, mas em termos de posições
intercambiáveis, assimétricas conforme a variação do contexto. “Mito e rito juntam-se para
sublinhar a assimetria inerente a toda a troca—que, quando simétrica, faz tanto dois
ganhadores, como dois perdedores; o jogo das perspectivas é aqui crucial” (Viveiros de
Castro, 1993:191).
Demonstrei, no quarto capítulo, como num primeiro momento o jogo
intercomunitário revelava-se constituído pelo par doadores de civilização e tomadores de
civilização, e, num momento posterior, o par relevante passava para doadores de cultura e
tomadores de cultura. Vale repetir que ambas as noções, cultura e civilização, foram
tomadas em seu sentido retórico, apropriação livre de uma nomenclatura própria ao
Ocidente. A vigência desses pares remetem a uma variação do par mais fundamental—e,
portanto, mais simples—que funda a festa: doadores de bebida (anfitriões) e tomadores de
bebida (convidados), reunidos também para marcar a oposição em relação à exterioridade
mais radical e não-humana, de onde provêm as prerrogativas que compõem a sua vida
social. Nenhuma das oposições possui caráter equipolente, apontando novamente para a
assimetria, visto que há sempre uma parte em dívida em relação à outra, situação
reversível, mas cuja neutralização está “fadada ao fracasso”. Essa impossibilidade de
equilíbrio, esse jogo perpétuo entre estados desiguais, permite a continuidade das relações
e a promessa de novas festas e viagens. O sistema jamais se fecha, permanece em pleno
desenrolar-se.
A intriga interlocal brevemente descrita realiza-se em um contexto marcado pela
presença das sociedades francesa e brasileira, que constituem, de sua parte, o terceiro
termo do ritual. Minha proposta foi pensar esse contato com a realidade nacional em
termos do engendramento de um sistema de comunicação nativo. Em linhas gerais, este
trabalho procurou refletir sobre uma teoria ameríndia da comunicação, consideradas

244
algumas de suas variações, sempre da perspectiva das manifestações rituais. Parti em
direção de uma gramática subjacente a todo esse processo comunicativo, para só depois
analisar um caso de execução desse esquema conceitual em um momento muito particular.
Meu objetivo foi, nesse ponto, acompanhar práticas indígenas no interior de um mundo
cambiante vivido na fronteira com a sociedade não-indígena, e vislumbrar como princípios
conceituais se atualizavam em redes de relações sociais, que não pressupunham a
estabilidade dos grupos. Um próximo passo a ser dado consistiria na análise de uma
situação que envolvesse a comunicação dos grupos indígenas com setores da sociedade
nacional, em que o esforço de intertraduzibilidade—familiar, aliás, a qualquer processo
comunicativo—ganha novo fôlego e escala. Tratar-se-ia de perseguir questões semelhantes
de como ocorre a construção de um espaço de inteligibilidade mútua, aventando para a
possibilidade de rupturas significativas em detrimento da continuidade verificada. Quais
seriam, então, os limites da comunicação entre grupos indígenas e não-indígenas? Tal
questão implicaria um novo investimento na literatura, sobretudo naquela centrada nas
questões de tradução cultural, e na pesquisa de campo, em que o problema poderia ser
construído de maneira mais clara.
Essas considerações finais, rapidamente grafadas, servem de pistas para um
trabalho futuro, que continue a perseguir o problema da comunicação estabelecida a
despeito das distâncias entre os diversos grupos sociais. Enquanto isso, resta a apreciação
desse quadro preliminar, essa fotografia por certo pouco precisa, que buscou, ao seu
modo, condensar indagações relevantes, tanto para o pensamento etnológico como para o
pensamento dos nativos com os quais este se encontra constantemente defrontado.

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