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SEVERO VASOESPASMO CORONÁRIO

JORGE HUMBERTO GUARDADO, HUGO VINHAS, CRISTINA MARTINS, ERNESTO PEREIRA,


HELDER PEREIRA
Unidade de Cardiologia de Intervenção – Serviço de Cardiologia do Hospital Garcia de Orta, EPE
Almada

Rev Port Cardiologia

RESUMO/ABSTRACT
Homem de 50 anos, insuficiente renal crónico em hemodiálise, submetido a
cateterismo cardíaco, no contexto de síndrome coronário agudo que revelou lesões
estenóticas focais (tipo A) localizadas na descendente anterior proximal e circunflexa
média. Efectuou-se angioplastia ad-hoc dos dois vasos com implantação directa de
stent. Imediatamente depois observa-se abrupta queda tensional e o angiograma
revela “novas” lesões com redução do fluxo em toda a árvore coronária. Em choque
cardiogénico, durante as manobras de reanimação e em ritmo de dissociação
electromecânica é administrado verapamil intracoronário com obtenção fluxo coronário
TIMI 3, ritmo sinusal e pressão arterial adequada. Assistiu-se progressivamente à
melhoria e estabilização clínica. Foi implementado tratamento com antagonistas do
cálcio e nitratos registando-se mais duas admissões hospitalares por angor instável. A
coronariografia voltou a revelar locais na árvore coronária que poderiam ser facilmente
interpretados como novas lesões, mas as “estenoses” angiográficas são solucionadas
após administração de nitratos intracoronários.

Male, 50 years old, chronic kidney disease on dialysis, submitted to coronary


angiography in acute coronary syndrome setting. Focal lesions (type A) in proximal left
anterior descendent and medial circumflex were observed. Ad-hoc PCI was performed
for both lesions with direct stetting technique. Immediately, a drop in arterial blood
pressure was observed and the angiogram showed “new” lesions with flow reduction in
coronary tree and progression to cardiogenic shock and electromechanical
dissociation. During cardiopulmonary resuscitation manoeuvres, intracoronary
verapamil was administered and TIMI 3 flow, sinus rhythm and raise of BP were
obtained. Progressively, clinical stabilization was restored. Patient was discharged with
calcium antagonists and nitrates. In follow up, two admissions for unstable angina were
registered. The coronary angiogram revealed coronary findings which could be easily
identified as new obstructive lesions, solved after intracoronary nitrates administration.

Palavras-Chave / Key Words


Angioplastia Coronária; Vasoespasmo Coronário; Choque Cardiogénico; Verapamil

Coronary Angioplasty; Coronary Vasospasm; Cardiogenic Shock; Verapamil

1
INTRODUÇÃO / Á entrada no serviço de urgência
encontra-se oligossintomático (apenas
INTRODUCTION angor muito residual) sendo admitido
O Vasoespamo coronário espontâneo por síndrome coronária de baixo risco
está associado a alterações do sistema (electrocardiograma sem alterações
nervoso neurovegetativo1 (alteração do significativas e biomarcadores de
equilíbrio do tonus simpático/vagal) e necrose aguda do miocárdio negativos).
disfunção endotelial2,3 (com redução da No dia seguinte é submetido a
biodisponibilidade de óxido nítrico). cateterismo cardíaco. A coronariografia
Esta entidade é considerada a base revelou lesões estenóticas focais (tipo
fisiopatológica da angina variante / A) localizadas na descendente anterior
angina Prinzemetal e ocorre entre 1-5% proximal e circunflexa média (fig.1).
dos procedimentos de diagnóstico e
intervenção percutânea, que pela
possibilidade de motivar agressão ou
trauma endotelial, podem desencadear
ou agravar o espasmo coronário4. A sua
localização, distribuição e severidade
determina a gravidade do quadro
clínico. Enfarte agudo do miocárdio, Fig.1 Angiograma coronário diagnostico. Observam-
arritmias graves, choque cardiogénico e se lesões angiográficas correspondentes a estenose
morte são eventos que podem surgir crítica na descendente anterior proximal e muito
neste contexto5. Na base do tratamento grave na circunflexa média.
na fase aguda estão os vasodilatadores
arteriais coronários.
Efectuou-se angioplastia ad-hoc dos
dois vasos utilizado stent directo (fig.2),
sendo utilizadas próteses intracoronárias
convencionais (3.0mmx12mm a nível
TEXTO / TEXT da descendente anterior proximal e
Homem de 50 anos, insuficiente renal 3.0mmx15mm a nível da circunflexa
crónico em programa regular de média).
substituição da função renal por
hemodiálise, fumador e hipertenso, sem
antecedentes de patologia cardíaca
conhecida ou de eventos
cardiovasculares, admitido por dor
retroesternal em repouso de breve
duração, vespertina, durante a sessão de
hemodiálise.
Encontrava-se já referenciado para
Fig.2 Intervenção coronária percutânea sobre as
coronariografia invasiva por nos
últimos meses ter tido episódios clínicos lesões observadas no angiograma diagnóstico.
de características similares embora sem Técnica utilizada – stent directo.
evidência de significativo compromisso
isquémico do miocárdio na cintigrafia No controle angiográfico da última
de perfusão do miocárdio. lesão abordada (descendente anterior
proximal) observa-se bom resultado

2
angiográfico nos locais de implantação
prévia de stent, mas é agora visível
“nova lesão” pré-stent a nível da
circunflexa proximal (fig.3).

Fig.4 Na Imagem 4A observa-se retenção de


contraste em vários pontos da arvore coronária e
Fig.3 Angiograma coronário de controlo após redução abrupta do fluxo coronário. A imagem 4B é
implantação de stent. Bom resultado angiográfico a obtida após administração intracoronária de
nível do local de intervenção. Observa-se “lesão de verapamil com recuperação do fluxo coronário e
novo” na circunflexa proximal. resolução do intenso vasoespasmo difuso da arvore
coronária esquerda.

Imediatamente depois observa-se queda


tensional e o angiograma revela outras Foi necessária ventilação invasiva e
“novas lesões” e redução do fluxo em suporte hemodinâmico com balão intra-
toda a árvore coronária. O doente entra aórtico durante 48H, assistindo-se
em choque cardiogénico e o angiograma progressivamente à melhoria e
coronário releva retenção de contraste estabilização clínica.
em vários pontos da coronária esquerda, Durante o internamento observaram-se
principalmente intrastent e fluxo distal vários episódios angor associados a
TIMI 0 (fig.4A). São iniciadas elevação transitória do segmento ST
manobras de suporte básico e avançado (derivação III, e V5 like) na
de vida, implantação de electrocatéter monitorização electrocardiográfica
provisório (ritmo de BAV completo contínua, com resolução após
seguido de assistolia ventricular) e administração de vasodilatadores
colocação de balão de contrapulsação coronários.
intraórtico. Posteriormente, teve alta hospitalar para
Neste cenário são colocadas várias ambulatório, assintomático e sob
hipóteses etiológicas como dissecção tratamento com antagonistas do cálcio e
coronária ou fenómeno de no reflow nitratos. Até à data actual registaram-se
mas aquela que parece mais provável, mais duas admissões hospitalares por
pelo contexto clínico e angiográfico é a angor instável, ambas com quadro
de espasmo difuso e severo da árvore clínico muito sobreponível à primeira
coronária, sendo administrado, mesmo admissão. Em ambos os eventos o
com o doente em manobras de doente suspendeu total ou parcialmente
reanimação e em ritmo de dissociação as recomendações terapêuticas.
electromecânica, verapamil No último internamento voltou-se a
intracoronário, que obteve sucesso, proceder ao estudo invasivo das
juntamente com todo o restante arsenal coronárias. A coronariografia, mais uma
farmacológico, associado à tentativa de vez, revelou locais na árvore coronária
ressuscitação, com obtenção de fluxo que poderiam ser facilmente
coronário TIMI 3 (fig.4B), ritmo sinusal interpretados como novas lesões, mas o
e pressão arterial eficaz. “defeito” angiográfico foi solucionado

3
após tratamento vigoroso com nitratos angina vasoespástica. Contudo, na
intracoronários (fig.5). primeira abordagem hospitalar os
electrocardiogramas seriados, ainda
com angor residual não revelam
alterações ST-T valorizáveis e na
coronariografia diagnóstica a
administração inicial de nitratos não
alterou o aspecto angiográfico das
lesões observadas. Estes dois últimos
achados contribuíram de alguma forma
Fig.5 Coronariografia invasiva obtida na última para se avançar para angioplastia
admissão hospitalar. Observa-se intenso espasmo coronária, convencido os operadores
coronário da descendente anterior média que é que estavam em presença de doença
solucionado com administração de nitratos por via coronária obstrutiva “fixa”.
intracoronária.
Embora os espasmos coronários tenham
tendência de resolução espontânea,
episódios prolongados podem conduzir
a enfarte do miocárdio, arritmias e
DISCUSSÃO / DISCUSSION morte cardíaca súbita. No nosso caso,
em que a intervenção coronária teve um
Doentes com angina variante
importante papel no agravamento do
apresentam angina típica em repouso
espasmo coronário e instalação de
associada com supradesnivelamento
choque cardiogénico8, a morte só foi
transitório do segmento ST que tende a
evitada por uma atitude rápida e
ocorrer principalmente à noite ou nas
consistente no diagnóstico e na
primeiras horas da manhã6.
implementação do tratamento adequado.
O angiograma coronário diagnóstico,
A administração de verapamil
envolvendo a administração de nitratos
intracoronário, mesmo no quadro de
por via intracoronária e se necessário a
choque cardiogénico com dissociação
injeção de contraste com cateterização
electromecânica, foi providencial.
não selectiva exclui na maioria dos
casos, a possibilidade de estarmos Sendo até uma contra-indicação o seu
uso neste contexto, foi o elemento
perante espasmo coronário e não doença
chave para a resolução do severo
aterosclerótica obstrutiva7.
vasoespasmo que existia e desta forma
Estes aspectos clínicos e imagiológicos
alterar o prognóstico vital do doente.
típicos da doença vasoespástica
Como se veio a registar também no
coronária não estavam completamente
nosso caso, o vasoespasmo pode
presentes na admissão do nosso doente.
reaparecer em locais distintos do
Apesar de ter tido vários episódios de
segmento tratado, incluindo espasmo
angor em repouso, estes foram quase
multivaso9.
sempre durante a sessão (vespertina) de
A revascularização coronária
hemodiálise. Certo que não existia
(percutânea e/ou cirúrgica) não está
evidência de importante compromisso
indicada no espasmo coronário isolado
isquémico do miocárdio, dado
sem estenose coronária ateromatosa
objectivado pela cintigrafia de perfusão
obstrutiva “fixa”2. Nos internamentos
do miocárdio realizada no mês anterior
seguintes, foi novamente efectuada
à primeira admissão hospitalar. Estes
avaliação da anatomia coronária, agora
achados poderiam ter sido argumento
já com o conhecimento e cautela em
para se ter equacionado a hipótese de

4
relação ao evento ocorrido no primeiro Atenção deve ser dada à administração
internamento e com administração de de potentes vasodilatadores coronários
doses generosas de nitratos (nitratos intracoronários e/ou verapamil)
intracoronários de forma a estabelecer o no angiograma diagnóstico para um
diagnóstico diferencial entre correcto diagnóstico da severidade da
vasoespasmo isolado (o que se veio a lesão angiográfica antes de avançar para
verificar) e doença aterosclerótica a intervenção percutânea.
obstrutiva.
Arritmias são achados frequentes
durante as crises vasoespástica agudas, PEDIDO DE SEPARATAS /
ou seja, bloqueio AV e arritmias ADDRESS FOR REPRINTS
ventriculares graves.
Na maioria dos casos de angina variante
o tratamento adequado com Pedido de separatas para: / Address for
vasodilatadores previne novos episódios Reprints:
de vasoespasmo.
A implantação de cardioversor- Jorge Humberto Guardado
desfibrilhador deve ser contemplada nos Unidade de Cardiologia de Intervenção
quadros de angina vasoespástica Hospital Garcia de Orta, EPE – Almada
refractária com síncope e/ou arritmias E-mail: jobeguardado@gmail.com
ventriculares graves10
O prognóstico é bom quando a angina
variante coexiste com coronárias
normais e tem boa resposta ao BIBLIOGRAFIA /
tratamento com bloqueadores de canais
de cálcio ou nitratos. A incidência de
REFERENCES
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