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25: e106175
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/106175
Dossiê
RESUMO
Entre 1821 e 1824, uma grande circulação de impressos tomou conta do Rio de Janeiro,
procurando esclarecer a população sobre os significados dos novos termos associados às ideias
daquele momento. Tornavam-se instrumentos de intervenção naquilo que seus autores
concebiam como um espaço público. Busca-se, então, identificar o sentido das mensagens que
traziam; esclarecer a retórica de argumentação a que recorriam; e, apontar os fatores que
limitaram ou inviabilizaram o alcance do que pretendiam.
Palavras-chave: Pedagogia Cívica, Educação e Independência, Civilização, Panfletos Políticos,
Periódicos.
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
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RESUMEN
Entre 1821 y 1824, una gran circulación de impresos inundó Rio de Janeiro. Buscaban aclarar a
la población el significado de los nuevos términos de aquel momento. Se convirtieron así en
instrumentos de intervención en aquello que sus autores concebían como un espacio público. Se
busca entonces: identificar el sentido de los mensajes que traían, relacionándolos con los
lenguajes políticos en voga; aclarar la retórica de la argumentación a la que recurrían; e indicar
los factores que limitaban o impedían el alcance de lo que pretendían.
Palabras clave: Pedagogía Cívica, Educación y Independencia, Civilización, Panfletos Políticos,
Periódicos.
ABSTRACT
Large amounts of circumstantial printed material flooded the city of Rio de Janeiro between 1821
and 1824. Its intent was to inform the population on what the new terms associated with current
ideas meant. They became instruments of intervention in what their authors perceived as a public
space. This paper aims at identifying what their messages meant, clarifying their rhetorical
arguments and also pointing out the factors that limited or prevented them from achieving their
goals.
Keywords: Civic Pedagogy – Education and Independence – Civilization – Political Pamphlets
– Periodicals
RÉSUMÉ
Entre 1821 et 1824, Rio de Janeiro fut envahi par une grande circulation d’imprimés, qui se
préocupaient d’éclaircir la population sur la signification des nouveaux mots associés aux idées
du moment. Ils devenaient des instruments d’intervention dans ce que l’on concévait comme
l’espace public. On essaye d’identifier le sens des messages qu’ils apportaient; d’éclairer la
rhétorique de l’argumentation qu’ils employaient et de signaler les facteurs qui limitèrent la
portée de ce que les auteurs avaient à l’esprit.
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INTRODUÇÃO1
1Apesquisa que permitiu a produção desse artigo é financiada pelo CNPq, na modalidade de bolsa
de Produtividade em Pesquisa, pela FAPERJ (Cientista do Nosso Estado) e pela UERJ
(Programa do Prociencia).
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Para Silva Lisboa, a moral do bem comum volta-se para uma ação em que todos estavam
engajados em uma singular e comum empresa. Nesse sentido, diferencia-se da moral da
individualidade, estabelecida por uma espécie de contrato entre indivíduos soberanos e
distintos, em que cada um age em função de seus interesses e em que a moralidade é arte de
uma acomodação mútua, como significa a moral em Hobbes. Cf. M. OAKESHOTT, 1991, p. 295-
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297.
4 Para um estudo sobre o Semanário Cívico, ver SILVA, 2008.
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podia ser alcançada por uma boa educação, sendo necessário que “os meninos
bebam com o leite os princípios elementares das ciências e que, pelo menos,
[aprendam a] ler, escrever, Aritmética e Gramática” (Semanário Cívico, 1 de
março de 1821). Na perspectiva de uma cultura política5 do liberalismo, afirmava
ainda que um “Governo opressor e ignorante tem mais medo das Luzes, do que
uma armada inimiga”. Se com esta ainda era possível capitular, tal governo, que
vigorava até 1821, não conseguia “contractar as luzes com as trevas, os vícios com
a virtude, o despotismo com a Liberdade”. Daí, ser fundamental uma reforma que
possibilitasse progressos na instrução pública, a fim de elevar o povo à categoria
de cidadão (Semanário Cívico, 1 de março de 1821).
5 Aqui, cultura política é entendida como o “conjunto de discursos e práticas simbólicas que
caracterizam essa atividade política em qualquer sociedade”. BAKER, 1993, p. 14-16; Cf. ainda
SIRINELLI, 1992, p. III-IV e NEVES, 2003, p. 25-26.
6 O método Lancaster, como se tornou mais conhecido no Brasil, teve sua origem na Inglaterra,
no final do século XVIII e início do século XIX, quando aquele país conhecia um processo de
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o que está hoje adotado geralmente em todas as nações cultas, é esse que devemos
adotar em todas as cidades” (Diário Constitucional, nº 5, 13 de fevereiro de 1822).
Opinião semelhante era defendida por um periódico fluminense que apontava o
atraso da educação pública, fosse pela “imperícia dos Mestres”, fosse “pelo
inveterado péssimo método de aplicação”. Daí, a necessidade de se introduzir o
mais breve possível “o Ensino mútuo, conhecido pelo nome de Método
Lancasteriano” (Correio do Rio de Janeiro, nº 108, 23 de agosto de 1822).
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7 Para o conceito de geração de 1790, ver MAXWELL, 1999, p. 157-207. Resultante dessa
formação, originou-se a elite coimbrã. Mais cosmopolita, com passagem pela Universidade de
Coimbra e larga experiência da vida pública, era dotada tanto de capital econômico quanto de
capital social e cultural, lendo autores como Locke, Montesquieu, Constant e os ideólogos da
Restauração francesa. Ao assumir postura crítica face ao Antigo Regime, não endossava, porém,
qualquer proposta de ordem nova por meios revolucionários. Acreditava num ideal reformista
de cunho pedagógico, capaz de conduzir a uma reforma pacífica, harmoniosa, promotora da
felicidade e da liberdade nacional. (CARVALHO, 1980, p. 51-70; BARMAN, 1988, p. 65-96 e
NEVES, 2003, p. 86-88).
8 As elites brasilienses constituíam um grupo jovem, que cresceu sob influência da Corte na
América, dispunha de um horizonte de expectativa mais circunscrito à realidade do Brasil.
Próximos do ambiente de uma camada média urbana, que se formara após 1808, regra geral,
fizeram seus estudos no próprio Brasil, tendo a palavra impressa seu maior e, algumas vezes,
único contato com o mundo estrangeiro. Acreditavam que a soberania residia na nação. De
maneira ousada para o meio em que viviam, incluíam, por conseguinte, em suas reflexões,
alguns princípios de teor democrático. (BARMAN, 1988, 65-96 e NEVES, 2003, p. 86-88).
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Pela ironia e pela crítica, o dicionário procurava fazer com que o leitor
restituísse a tais palavras a “sua genuína significação”, para além daquela que
encontrava no registro dos dicionários de época. (LIMA, 1821, p. 1). Afinal, como
já afirmara Fénelon, no início do século XVIII, os dicionários serviriam, quando
a língua tivesse sido modificada, para compreender os livros dignos da
posteridade, que foram escritos em outros tempos (FÉNELON, 1864, p. 2).
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orações comumente recitadas pelo povo em suas preces diárias. Era fácil recitar
a paródia, pois sua melodia lembrava a das verdadeiras orações religiosas. Dessa
forma, apreendia-se o novo conteúdo constitucional. Verifica-se, portanto, tal
aspecto na paródia do Sinal da Cruz escrita, no momento das guerras de
independência. Os brasileiros deviam repetir todos os dias, o Sinal da Cruz, em
uma postura análoga do mesmo símbolo que dá início às orações religiosas,
enquanto não fosse expulso da Bahia, o general português Madeira de Melo:
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11 É interessante observar que esta paródia sobre o Sinal da Cruz apareceu na época napoleônica
e continuou a ser repetida até o início do século XX.
12 Há registro do oferecimento desse Catecismo no Diário das Cortes, 25 setembro 1821, nº 184,
p. 2395.
13 Algumas vezes, tais catecismos eram também publicados em vários números dos periódicos.
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exemplo:
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Era necessário transmitir uma educação cívica que pudesse fazer do povo
um elemento civilizado como previam as linguagens do liberalismo. E quem eram
os responsáveis por essa transmissão? Os atores históricos – redatores de jornais
e de panfletos políticos, elites intelectuais, representantes eleitos da política – ou
seja, membros de uma elite ainda restrita que devia conduzir a opinião pública
que despontou nos debates políticos, desencadeados pelo movimento
constitucionalista e pelo processo de Independência (MOREL, 1998, p. 300-320
e NEVES, 2009, p. 1011-1023). Afinal, como afirma Pocock (2013, p. 69-72) o
contexto pode levar a uma mudança nos atos de fala, por meio do uso de um novo
vocabulário político. Foram estes atores históricos, os responsáveis por
intervirem no político por meio de atos de enunciação, que se eram emitidos por
meio de novas linguagens – idealizando, à maneira de Kant, uma batalha
pedagógica e instrutiva, a fim de transformar o povo, antes súdito, em verdadeiro
cidadão, baseando-se na premissa das “Luzes do século”. Desse modo, o
Despotismo de outrora tornava-se o inimigo – a própria negação da liberdade –
bem como a censura, promovida pelos governos do Antigo Regime, o sinônimo
de atraso e práticas despóticas. Logo, a sociedade necessitava da instrução
pública para que este processo de luzes e civilização fosse iniciado. Afinal, para
Kant, o homem começava a sair de sua “menoridade”, quando não havia o desejo
de se atingir o conhecimento. A política ultrapassou o círculo privado da Corte e
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Se, ao longo do Antigo Regime, povo designava uma ordem social, que se
colocava em oposição ao clero e à nobreza, a partir dos movimentos
constitucionais o significado de povo ganhava novos contornos. De uma noção
global, povo no Brasil diferenciava-se da “classe dos grandes” mas também da
“classe ínfima da plebe”. Se a primeira se compunha de “empregados, nobres e
sábios”, pessoas sãs e cordatas, a segunda era formada pela populaça, em que
reinavam “a ignorância, os vícios, a superstição e um ódio nato à gente superior”.
No início do oitocentos, o “povo do Brasil” não devia ser igualado à “plebe” ou
“populacho”. Aqui, eram os escravos e os libertos que formavam a “classe da
populaça”. Povo era composto por indivíduos de “ofícios mecânicos”, entre os
quais se encontravam diversos portugueses e alguns brasileiros, que não exibiam,
contudo, “a ferocidade europeia” (Cartas Políticas nº 3. Diário do Governo, nº
86, 18 de abril de 1823). Nessa compreensão do conceito de povo inseriam-se
membros de uma camada que já possuíam algum grau de educação que,
comparado a outros países, os elevava acima do que se chamava vulgarmente de
povo, como afirmava Silvestre Pinheiro Ferreira em sua informação às Cortes de
Lisboa em 1822 (FERREIRA, 1822). Logo, no Brasil, a classe do povo era
proporcionalmente menor do que na Europa, porque excluía-se desta “a classe de
escravos e libertos”15. A plebe representava a “populaça”, ou seja, as camadas
mais ínfimas da sociedade (Cartas Políticas nº 3. Diário do Governo, nº 86, 18 de
abril de 1823).
15
Optou-se pela utilização do termo escravos, pois assim eram denominados nos documentos de
época. Não cabe então uma discussão sobre a questão recente na historiografia de escravos x
escravizados. Para o significado do termo, ver HARKOT-DE-LA-TAILLE & SANTOS, 2012, p. 1-
13.
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FINALIZANDO ...
16 As palavras entre aspas aparecem nos escritos como pseudônimos ou se constituem parte do
título de periódicos, por exemplo, Atalaia, Rio de Janeiro. 1823; O Argos da Lei, São Luís do
Maranhão, 1825 e Atalaia da Liberdade. Rio de Janeiro, 1826.
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Coleção das Leis do Brasil, 1821. Parte 1. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1889.
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Literária: panfletos da Independência (1820-1823). Vol. 1: Cartas. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2014.
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lucia; BASILE, Marcello (org.). Guerra
Literária: panfletos da Independência (1820-1823). Vol. 2: Sermões, Diálogos,
Manifestos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
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SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Bahia, a corte da América. São Paulo:
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Sinal da Cruz, com que todo o fiel Christão Brasileiro deve benzer-se
todos os dias, logo que acordar do somno, enquanto não for expelido
da Bahia o Madeira, e seus sequazes. Rio de Janeiro: Typografia Nacional,
1823.
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