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A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS NA EJA A CONTRAPELO DO

DISCURSO NEGACIONISTA: A ATUALIDADE DAS CONTRIBUIÇÕES DE FRANTZ


FANON COMO ARGUMENTO DECOLONIAL AO RACISMO1
Resumo: manifestações de ódio racial vem ocorrendo com lamentável regularidade nos tempos atuais,
no Brasil e no exterior. Uma deletéria onda negacionista animada por ideólogos de ramificações das
mais diversas naturezas – evangélicos neopentecostais, fascistas, neocolonialistas, ex-Chicago boys
reconvertidos à mão invisível do ‘mercado’ – mas sempre alinhadas à direita do espectro político, têm
se dedicado a vãs tentativas de solapar, tanto as conquistas sociais obtidas pelas lutas do movimento
negro, quanto os resultados estampados por robustas pesquisas acadêmicas que apontam para o racismo
como uma espécie de sociopatia a envolver as modernas sociedades ditas globalizadas. O presente
estudo propõe o estreitamento do diálogo entre algumas teses das ondas raciais do pensamento social
brasileiro – Gilberto Freyre; Florestan Fernandes; Carlos Hasenbalg – com as proposições do pensador
martinicano Frantz Fanon, no que procura esboçar algumas considerações válidas para orientar, em
termos do pensamento decolonial, a educação das relações étnico-raciais e o discurso antirracista.
Palavras-chave: Relações Étnico-Raciais; Ondas teóricas do pensamento racial brasileiro;
Decolonialidade; Lei 10.639/03.
Apresentação pessoal: somos Professores na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
Antonio Carlos Figueiredo Costa é Doutor em História (UFMG), e Walesson Gomes da Silva é Doutor
em Educação (UFMG). Atuamos em Unidades Acadêmicas da UEMG, respectivamente Ibirité e
Cláudio, onde há cursos de formação de Professores em Pedagogia.
Introdução (Justificativa e objetivos)
O presente trabalho procura inquirir acerca das possibilidades de realizar intervenções na
Educação de Jovens e Adultos (EJA) no tocante à educação das relações étnico-raciais. O alunado dessa
modalidade de ensino constitui, via de regra, um público privilegiado para ações dessa natureza, a priori
consideradas de grande potencial heurístico. Suas histórias de vida e seus percursos acadêmicos quase
sempre representam um verdadeiro ordálio, tanto na trajetória acadêmica, quanto nas experiências
profissionais, pois componentes de uma força de trabalho de baixa qualificação, e por força dessa
circunstância, tradicionalmente mal remunerada.
Essa clientela escolar costuma auto declarar-se – evidentemente haverão variações entre as
regiões brasileiras – majoritariamente como pretos e pardos2, e embora a exclusão social à qual
ordinariamente são submetidos não seja apanágio exclusivo de negros e mestiços, pesquisas robustas
(HASENBALG, 2005) demonstram que esse grupo se encontra super representado nas classes mais
baixas da população brasileira. Com efeito, oferecer a essa população estudantil uma narrativa que
venha ressignificar a História e Cultura afro-brasileira corresponde também a re-orientar no presente os
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Antonio Carlos Figueiredo Costa. Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Ibirité, Brasil. E-mail:
antonio.costa@uemg.br; Walesson Gomes da Silva ( UEMG). Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG). Cláudio, Brasil. E-mail: walessongomes@gmail.com
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SILVA; MATOS, s.d., <https://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/cadernos/article/viewFile/2072/1396> Acesso em: 12 Jun.
2021.
passos no horizonte de expectativas dos afro-descendentes, oferecendo os recursos à práxis vital
humana junto aos contingenciamentos colocados no crisol das lutas coletivas.
Percurso Metodológico
A proposta visa encarar o desafio da fragmentação dos conteúdos e disciplinas tomando a
transversalidade proposta nos PCN’s, para fazê-la dialogar com os cinco temas transversais alinhados
para a realidade brasileira, e determinados para a educação nacional – ética; pluralidade cultural,
saúde, orientação sexual e meio ambiente – fazendo com que venham a convergir a um percurso
temático afinado com questões colocadas pelos problemas do ‘mundo do trabalho’, fazendo dialogar o
passado – entendido com campo de experiência, onde a tônica é apontar as realizações pretéritas
(conhecimentos sobre agricultura tropical, pecuária extensiva, siderurgia) que fizeram os portugueses
prosperar nos trópicos, para realçar o valor da cultura dos trabalhadores escravizados trazidos para a
América, passando a inquirir acerca da necessidade de engajamento nas lutas coletivas do povo negro,
e da justiça que se encontra na realização das ações afirmativas em prol dos afro-descendentes.
Referencial Teórico
A temática das teorias raciais ocupa as agendas dos pensadores sociais desde priscas eras3,
assumindo contornos mais incisivos em termos de discursos e práticas consideradas racistas ao início
da Idade Moderna, durante o processo de expansão européia que culminou na imposição às demais
civilizações do modo de produção capitalista e sistema de propriedade capitalista, além da exigência de
conversão de povos nativos ao cristianismo (QUIJANO, 2005).
Parte do Império Colonial Marítimo Português, a montagem do aparato colonial de exploração
na América foi instituída sob a tríade do latifúndio, monocultura e escravidão, tendo esse último
instituto sobrevivido por cerca de 350 anos, sendo alongado entre 1822 e 1888 pela continuidade do
regime de trabalho escravista. Como se sabe, o Brasil foi o último país do Ocidente a emancipar seus
trabalhadores escravizados.
Em diversos momentos no entanto, ficava demonstrada a sistemática negativa das elites
brasileiras em assimilar os antigos escravos e seus descendentes, bem como aqueles que à época da
emancipação já se encontravam livres. Um dos eventos mais escandalosos acerca dessa negativa seria
O Decreto nº 528, de 28 de Junho de 1890, que em seu capítulo 1, art. 1º, determinava “E' inteiramente
livre a entrada, nos portos da Republica, dos individuos válidos e aptos para o trabalho, que não se
acharem sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da Asia, ou da Africa que
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Em trabalho anterior (COSTA, 2017) demonstramos que desde a Antiguidade os homens procuraram marcar uma espécie
de separação fundamental entre aqueles que consideravam como sendo os “de dentro” e os “de fora”. Os “de fora” seriam os
estrangeiros ou ainda no vocabulário da época, os“bárbaros”. Estes seriam aqueles que não pertenciam à vida da polis.No
mundo grego, os africanos eram discriminados, assim como outros povos, não pelo não pertencimento a Atenas, Esparta,
Corinto, ou qualquer outra cidade-estado grega. A discriminação ocorria por serem esses estrangeiros, o que implicava
consequentemente não serem proprietários de terras e escravos nessas cidades-estado. Disso resultava não poderem
constituir o corpo político de seus cidadãos. No discurso de gregos como Hesíodo, os seres humanos que desconheciam os
valores da polis grega – a lógica, a política, as leis escritas – deveriam ser entendidos como dominados pelos costumes, e
portanto, subjugados ao “reino da necessidade”. Autores como Aristóteles não ligavam a cor da pele à noção de escravidão, e
Platão e Hipócrates não distinguiam entre etíopes e os habitantes das regiões mais frias da Europa. A escravidão era
justificada pelas dívidas, pelo nascimento em ventre escravo ou pelo aprisionamento em guerra.
sómente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as
condições que forem então estipuladas.” 4
Resistências dessa natureza ocorriam nos mais variados setores da sociedade brasileira, à época
em vias de se consolidar como uma sociedade de classes emergente, que, aprioristicamente deveria
estar voltada para substituir papéis adscritos pela prática dos papéis adquiridos, em compromisso com
o discurso burguês (cínico) acerca da meritocracia. As práticas e discursos racistas prosseguiram nas
instituições estatais e da sociedade civil, e uma extensa tradição em termos de pensamento racial5 foi
estabelecida em torno das obras de Gilberto Freyre (FREYRE, 1999); Florestan Fernandes (1978); e,
Carlos Hasenbalg (HASENBALG, 2005). Se a partir de Casa-Grande&Senzala Gilberto Freyre
conseguiu reabrir o futuro brasileiro ao concerto das civilizações, “re-habilitando” o mestiço ao afastar
a sombra do atavismo que a ‘sociologia consular’ teimava em lhe impor, o autor insistia em negar o
racismo, o qual, segundo ele, apresentava-se pouco relevante, no que acreditava Freyre, se extinguiria
no curso normal da evolução social brasileira.
A tese de Florestan Fernandes (FERNANDES, 1978) era menos elogiosa à herança ibérica, e
apontava para a sociopatia da sociedade brasileira, que havia abandonado os negros na instauração do
trabalho livre, omitindo-se quanto à sorte da população afro-descendente, ao apostar na imigração
européia e no branqueamento da população brasileira ao passar das gerações.
Representando a terceira onda teórica, Carlos Hasenbalg (2005) assinalou a continuidade do
racismo, apontando para a sua especificidade na formação nacional, com o ‘contínuo de cor’, e a ‘saída
de emergência’ oferecida aos talentos e potenciais lideranças negras, por intermédio das variadas
formas de cooptação, revelando a desorientação dos brancos escolarizados acerca da discriminação
sofrida pelos negros, ao considerar que estes sofreriam injúrias e preconceitos, não por serem negros,
mas por apresentarem marcas de pobreza. Essa terceira onda teórica, capitaneada por Carlos
Hasenbalg, sugere as ações coletivas como forma de implementar, na agenda pública, as demandas do
povo negro.
O lugar político-epistêmico no qual discursou Frantz Fanon (2005; 2008) parece oferecer
alguns pontos de contato com os mencionados pesquisadores brasileiros, sobretudo com as teses
esposadas por Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg. Formado em psiquiatria, e tendo atuado em um
hospital argelino, Fanon falava em uma máscara branca (FANON, 2008) à qual os negros deveriam
utilizar para serem aceitos (ainda que com muitas ressalvas) ao espaço de determinação do poder
(ainda que marcado pela subalternidade) que eventualmente lhes eram oferecidos nos dois lados do

4
Disponível em <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-528-28-junho-1890-506935-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20Mar. 2021.
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Devemos levar em conta que, anteriormente a Gilberto Freyre, haviam pensadores sociais como Nina Rodrigues, Sylvio
Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna que, cada um à sua maneira, e em diversos graus, realizavam,
conforme a fala de Bernardino-Costa (2018) uma sociologia consular, pois considerada uma expansão cultural da Europa e
EEUU, ao analisar a sociedade brasileira mediante categorias próprias, valores e intencionalidades europeus e norte-
americanos. Nesse sentido, a obra de Gilberto Freyre, ao substituir a categoria da raça pela cultura, representa um ponto axial
de virada nessa situação.
Atlântico, e comentava:“como explicar, por exemplo, que um jovem estudante preto, chegando à
Sorbonne com o objetivo de se graduar em filosofia, antes mesmo de entrar em contato com qualquer
organização conflitante que o espera, assuma uma atitude defensiva?”(2008, p.130).
Formulando no alvorecer da década de 1960 um pensamento ‘proto-decolonial’, assim se
pronunciava Frantz Fanon na sua obra mais conhecida: “A Europa assumiu a direção do mundo com
ardor, cinismo e violência. E vejam como a sombra dos seus monumentos se estende e se multiplica.
Cada movimento da Europa empurra os limites do espaço e do pensamento. A Europa se recusou a toda
humildade, a toda modéstia, mas também a toda solicitude, a toda ternura. Ela se mostrou parcimoniosa
com o homem, mesquinha, carniceira, homicida. Então, irmãos, como não compreender que temos algo
melhor a fazer do que seguir a Europa? Essa Europa que nunca para de falar do homem, de proclamar
que só se preocupa com o homem, sabemos hoje com que sofrimentos a humanidade pagou cada uma
das vitórias do seu espírito” (2005, p.361-362).
Resultados e Discussões
Os negros foram sistematicamente submetidos, conforme revelou Kabengele Munanga (2004),
a um sistema monocultural e eurocêntrico, apartados assim de uma memória cultural que lhes é de
pleno direito. No decurso dos encargos didáticos da disciplina eletiva História e Cultura Afro-
brasileira, determinada pelos efeitos da Lei 10.639/03, nossos esforços têm consistido em prover os
cursos de formação de Professores sob esse enfoque, no que sistematicamente, estampamos na
imprensa universitária textos envolvendo temáticas que gravitam pela História da Educação Brasileira
(COSTA,2017); reflexões que objetivaram recensear publicações e experiências docentes
(COSTA,2018a), ou que buscaram iluminar práticas de ensino (COSTA, 2018b; COSTA, 2018c;
COSTA, 2018d); ou ainda, com vistas a ressignificar páginas da História Brasileira (COSTA, 2020).
Consideramos que esses temas devam assumir prioridade na formação de Professores, com especial
relevância para o público docente que atuará junto à EJA.
Considerações Finais
Há muito a se avançar no trabalho da Educação das relações étnico-raciais. Conectar
bibliografias com potencial convergente (decolonialidade) se apresenta como um trabalho essencial.
Sensibilizar professores que atuam na Educação de Jovens e Adultos consiste no entanto em peça
essencial para atingir um público escolar (discente) potencialmente apto a ocupar os espaços públicos,
investindo nas lutas coletivas de forma voluntária e autônoma, para inscrever as justas e incontornáveis
demandas dos afro-descendentes na agenda pública, de forma democrática e consciente.
Referências Bibliográficas
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COSTA, Antonio Carlos Figueiredo. Voos teóricos&Aventuras Epistemológicas: a vivência da
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COSTA, Antonio Carlos Figueiredo; ALMEIDA, Daniella Custódia de; SILVA, Tayane Alves da. Os
temas transversais e a Lei 10.639/03: o desafio da sua aplicação nas séries iniciais de ensino.
Querubim. Niterói, ano 14, n. 34, v.1, 2018c, p. 119 – 124.
COSTA, Antonio Carlos Figueiredo. Relações Étnico-Raciais em questão: as ondas teóricas do
pensamento racial brasileiro e o racismo trans-histórico. In: COSTA, Antonio Carlos Figueiredo;
OLIVEIRA, Aciomar de (orgs.). Relações étnicas: conexões possíveis. Ibirité: Poesias Escolhidas,
2018d, p.67-82.
COSTA, Antonio Carlos Figueiredo. A Revolta da Chibata: um balanço historiográfico. In:
COSTA, Antonio Carlos Figueiredo; OLIVEIRA, Aciomar de (orgs.). Relações Étnico-Raciais:
Interlocuções. Contagem: Escola Cidadã, 2020, p. 8 – 28 .
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: EdUFJF, 2005.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3.ed. São Paulo: Ática,
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FREYRE, Gilberto. Casa-Grande&Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
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HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. 2.ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG/IUPERJ, 2005.
MUNANGA, Kabengele. A importância da História da África e do negro na Escola brasileira.
Palestra realizada para o curso "Diversidade e Educação: o desafio para construção de uma escola
democrática", oferecido a professores da rede municipal da cidade de Mauá, SP, 2004. 6 f.
Mimeografado.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo.
A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais (perspectivas latino-americanas).
Buenos Aires: CLACSO, 2005.

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