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Gragoatá

n. 21 2o semestre 2006

Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.

ISSN 1413-9073

Gragoatá Niterói n. 21 p. 1-400 2. sem. 2006


n. 154 p. 1-140 2. sem. 2003
© 2007 by Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense
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Periodicidade: Semestral
Tiragem: 500 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense.— n. 1 (jul./dez. 1996) - . — Niterói : EdUFF, 1996 – v.17 : il. ;
26 cm.

Semestral
ISSN 1413-9073.
1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em Letras.
CDD 800

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Vilma Arêas (Unicamp)
Walter Moser (Univ. de Montreal)
Gragoatá
n.21 2º semestre 2006

Sumário
Apresentação .................................................................................... 5

ARTIGOS

Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no


português escrito no Brasil nos séculos XVIII e XIX................ 11
Mário Eduardo Martelotta
A estrutura argumental das construções deverbais em -dor...27
Nubiacira Fernandes de Oliveira
Correlações função-forma em dois períodos do século XX:
indícios de especialização funcional............................................43
Maria Alice Tavares
Gramaticalização de conjunções coordenativas: a história de
uma conclusiva................................................................................. 59
Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi
Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de......73
Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga
Mudança no sistema verbal do português: as variantes do
futuro do pretérito e a questão da gramaticalização................. 87
Ana Lúcia dos Prazeres Costa
Transitividade verbal: uma análise funcional das
manifestações discursivas do verbo fazer................................. 101
Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva
Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto
direto................................................................................................ 115
Maria Angélica Furtado da Cunha
“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem
funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”....133
Maria Beatriz Nascimento Decat
Gramaticalização e dessentencialização de construções com
predicados de atitude proposicional.......................................... 147
Sebastião Carlos Leite Gonçalves
A gradação tipológica das construções de voz.......................... 167
Roberto Gomes Camacho
Ressonância e graus de transitividade na conversação
espontânea em português............................................................. 191
Maria Elizabeth Fonseca Saraiva
Aspectos semântico-cognitivos da intensificação ..................201
José Romerito Silva
Usos morfológicos: os processos marginais de formação de
palavras em português.................................................................. 219
Carlos Alexandre Gonçalves
Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e
análise..............................................................................................243
Ida Rebelo e Paulo Osório
O uso do modo subjuntivo em orações relativas e
completivas no português afro-brasileiro.................................269
Vívian Meira
O papel da mesclagem conceptual na construção do
significado do angulador um tipo de..........................................289
Angelina Aparecida de Pina
Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos
multirepresentacionais.................................................................303
Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon e Márcia Cristina
Pontes Vieira
A construção da referência e do sentido: uma atividade
sociocognitiva e interativa............................................................ 319
Cláudia Roncarati e Sílvia Regina Neves da Silva
Identité sociale et identité discursive, le fondement de la
compétence communicationnelle................................................339
Patrick Charaudeau
Representação e intervenção: produção da subjetividade na
linguagem........................................................................................355
Décio Rocha
Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos
sentidos no tratamento editorial de textos................................ 373
Luciana Salazar Salgado
Apresentação

O tema deste número 21 da Revista Gragoatá, usos lin-


güísticos, contempla reflexões acerca das seguintes questões:
continuidade, variabilidade e mudança dos usos lingüísticos;
derivação e estabilidade de sentido e de forma na língua; a ex-
pressão lingüística como história e como atualização; o passado
e o presente no continuum das línguas; as relações entre língua,
sociedade e sujeito; e relações interpessoais, tais como: negocia-
ção, polidez e conflito.
Buscando adequar-se à natureza do tema a que se dedica,
a Gragoatá 21, no que diz respeito à ordenação dos artigos que
reúne, apresenta-se organizada em forma de um continuum: os
trabalhos voltados para o estudo de unidades lingüísticas me-
nores ou de fenômenos mais específicos antecedem aqueles que
se detêm na investigação de unidades maiores ou de fenômenos
de caráter mais abrangente.
De acordo com tal disposição, o primeiro artigo, de autoria
de Mário Eduardo Martelotta, trata da ordem dos advérbios
qualitativos em –mente, nos séculos XVIII e XIX. Analisando a
ordenação que caracteriza tais advérbios em cartas escritas no
Brasil da época, Martelotta se propõe a demonstrar o gradual
desaparecimento da tendência, já detectada em fases anteriores
da evolução do português, ao posicionamento desses advérbios
antes do verbo.
No artigo seguinte, de Nubiacira Fernandes de Oliveira,
o centro de interesse é a estrutura argumental de construções
deverbais com o sufixo –dor. Em seu trabalho, a autora busca
examinar os processos de interação entre propriedades morfos-
sintáticas, semânticas e pragmáticas, visando ao estabelecimento
de traços gerais de interpretação caracterizadores de tais constru-
ções. Para tanto, investiga a relação entre o sufixo e a estrutura
temática das bases com as quais o sufixo ocorre, focalizando, em
particular, as seguintes questões: (1) em que medida a estrutura
argumental da construção deverbal corresponde à estrutura
argumental da base? (2) como o caso agente se manifesta nas
construções derivadas em -dor?
Partindo da constatação de que, como resultado de seus
processos de gramaticalização, os conectores e, aí e então pos-
suem funções sobrepostas no português brasileiro, Maria Alice
Tavares, à luz do suporte teórico da lingüística funcional, estuda
os padrões de correlação entre e, aí e então e três dessas funções:
seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito.
Tavares analisa dados oriundos de As vinhas da ira, romance
escrito por John Steinbeck em 1939 (cuja tradução brasileira,
Niterói, n. 21, p. 5-10, 2. sem. 2006 
datada de 1940, apresenta marcas do dialeto usado nos anos
trinta pelas classes populares do estado do Rio Grande do Sul)
e de 48 entrevistas provenientes do Banco de Dados VARSUL,
que foram coletadas ao longo da última década do século XX.
A partir dos resultados encontrados, Tavares chega às seguin-
tes conclusões: (1) e, aí e então intercalam-se na codificação da
seqüenciação textual, da seqüenciação temporal e da introdu-
ção de efeito na primeira e na segunda metade do século XX; e
(2) houve mudanças nos padrões de correlação função-forma,
uma vez que, na década de trinta, aí e então são muito menos
utilizados para codificar algumas das funções em tela do que
na década de noventa.
Aspectos relativos à gramaticalização de conjunções co-
ordenativas constituem o foco de atenção do artigo escrito por
Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi. Apoiando-se no pressu-
posto de que fatores de ordem cognitiva e pragmática interagem
para a criação de novos itens gramaticais, a autora adota uma
concepção de coordenação fundamentada em critérios semânti-
co-funcionais e busca reconstruir o percurso histórico-evolutivo
da conjunção conclusiva logo, com base em fontes históricas do
português.
Maria Luiza Braga e Maria da Conceição Paiva discutem,
em seu trabalho, os empregos de por causa (de) que, no discurso
oral, buscando identificar as equivalências e diferenças que
apresentam os usos dessa locução conjuntiva em relação à con-
junção prototípica porque e ao sintagma preposicional por causa
de no discurso oral. Através de uma análise comparativa de
algumas propriedades sintáticas e semântico-discursivas dessas
três construções causais, as autoras destacam as restrições ao
uso da conjunção perifrástica por causa (de) que e a pertinência
de distingui-la da conjunção inteiramente gramaticalizada por-
que, apresentando evidências favoráveis à conclusão de que o
processo de gramaticalização de uma locução conjuntiva opera
inicialmente no nível representacional.
Pesquisas recentes têm abordado a gramaticalização do
verbo ir/movimento em verbo auxiliar. O estudo realizado por
Ana Lúcia dos Prazeres Costa intenta mostrar: (1) que este au-
xiliar não ocorre somente na expressão do futuro, mas também
em variação com o futuro do pretérito; (2) que o uso da perí-
frase verbal com ir tem se tornado mais freqüente; (3) que, até
a primeira metade do século XX, este auxiliar concorria com
outro, haver de, no contexto de variação considerado. Visando à
realização de um estudo de mudança em tempo real de longa
duração, o material objeto de análise foi extraído de amostra
constituída por peças teatrais.
No artigo de Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva,
cumprem-se os seguintes objetivos: analisar a transitividade do

 Niterói, n. 21, p. 5-10, 2. sem. 2006


verbo fazer em dados de textos reais (orais e escritos) e compa-
rar o desencontro entre o conceito de transitividade puramente
teórico, trabalhado pela gramática tradicional, e aquele que, no
âmbito da lingüística funcional contemporânea, refere-se ao ato
discursivo/comunicativo do falante. São também discutidas, com
base nos resultados encontrados na análise dos dados, diversifi-
cadas possibilidades de se analisar a transitividade a partir da
manifestação discursiva do verbo.
Maria Angélica Furtado da Cunha focaliza, em seu texto, a
relação gramatical objeto direto sob a perspectiva funcionalista
do estudo da língua. Analisa os aspectos sintáticos, semânticos
e pragmáticos relacionados ao objeto direto, tomando as pro-
priedades sintáticas como derivadas de propriedades semânti-
cas e sintáticas do verbo a que o objeto direto está relacionado.
Os dados empíricos submetidos à análise correspondem a oito
narrativas conversacionais extraídas do Corpus Discurso & Gra-
mática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. . Com base
nos resultados obtidos, a autora propõe um tratamento gra-
diente da relação gramatical em estudo, através de uma escala
que ordenaria os objetos diretos de acordo com o seu grau de
prototipicidade.
O artigo de autoria de Maria Beatriz Nascimento Decat
apresenta uma análise de cunho funcionalista das estruturas de
“ilhas” (denominação oriunda da teoria gerativista), objetivando
demonstrar que as restrições estabelecidas por tais ilhas, em re-
lação à ocorrência de constituintes em determinados lugares da
estrutura, devem-se ao fato de elas constituírem, funcionalmente,
“unidades de informação”, não permitindo, portanto, a extração
ou movimento de constituintes para fora de seus limites.
Recorrendo a dois tipos de construção com predicados
matrizes (parecer e achar/crer), diferentes no estatuto argumen-
tal da completiva (sujeito ou complemento, respectivamente) e
semelhantes na codificação das atitudes subjetivas do falante
(evidencial/modal epistêmico), Sebastião Carlos Leite Gon-
çalves mostra, em seu artigo, a tendência a gramaticalização e
dessentencialização dessas construções que, segundo evidências
encontradas, desvinculam-se de suas orações encaixadas e reca-
tegorizam-se como satélites atitudinais. Essa alteração sintática,
observa o autor, afeta a construção complexa, que passa de bi-
clausal para monoclausal.
Roberto Gomes Camacho ocupa-se, em seu artigo, da
caracterização tipológica da passiva. Nesse sentido, desenvolve
análise pautada em dados extraídos do corpus compartilhado
do Projeto de Gramática do Português Falado, que consiste
numa amostragem do material coletado pelo Projeto da Norma
Urbana Culta (NURC)/Brasil, gravados com informantes cultos
procedentes de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto
Alegre. Baseando-se na noção givoniana _ segundo a qual a mul-
Niterói, n. 21, p. 5-10, 2. sem. 2006 
tifuncionalidade da voz verbal envolve três domínios funcionais:
atribuição de um tópico, impessoalização e detransitivização _,
Camacho estabelece como principal interesse de seu trabalho o
de fornecer, com base nos referidos domínios, uma caracteriza-
ção escalar e não discreta para as diferentes construções de voz
disponíveis na gramática do português.
O artigo de autoria de Maria Elizabeth Fonseca Saraiva
examina e quantifica o grau de transitividade (segundo a acepção
de THOMPSON & HOPPER, 2001) de enunciados ressoantes,
isto é, enunciados proferidos por interlocutores diferentes em
que se estabelece uma relação de mapeamento tanto estrutural
quanto lexical. A análise é norteada por princípios da abordagem
funcionalista, em seu modelo norte-americano, e os dados ana-
lisados foram extraídos de conversações espontâneas que fazem
parte do banco de dados do Grupo de Estudos Funcionalistas
da Linguagem (GREF).
José Romerito Silva estuda os processos de intensificação,
no que diz respeito aos seus aspectos semântico-cognitivos. Para
tanto, busca subsídios teóricos da Semântica Cognitiva, segundo
a qual a linguagem codifica os esquemas cognitivos estruturados
a partir de nossa experiência com a realidade. Essa codificação,
propõe o autor, reflete combinações metafóricas existentes entre
domínios de natureza mais “concreta”, adquiridos a partir do
modo como conceptualizamos nossa relação com o mundo, e
outros de natureza mais abstrata. A análise e os resultados en-
contrados têm como suporte dados extraídos do Corpus Discurso
& Gramática, constituído de textos orais e escritos, e de textos
avulsos coletados, principalmente, de jornais e revistas.
Carlos Alexandre Gonçalves, no artigo “Usos morfológicos:
os processos marginais de formação de palavras em português”,
abre uma série de trabalhos que, a partir de perspectivas teórica
e metodológica diversas, abordam a rica e complexa questão
dos usos lingüísticos. Em seu texto, com base na morfologia
prosódica, Gonçalves circunscreve o foco de análise aos proces-
sos não-concatenativos de formação de palavras do português
brasileiro. Para tanto, o autor propõe que tais operações mor-
fonológicas sejam distribuídas em três grupos de fenômenos:
afixação não-linear (reduplicação), encurtamento (truncamento
e hipocorização) e fusão (mesclagem lexical e siglagem).
No texto seguinte, Ida Rebelo e Paulo Osório apresentam
e analisam distintos usos do verbo ficar na norma brasileira do
português contemporâneo. Os autores, partindo dos postulados
da gramática funcional de Dik e das variadas acepções de ficar
articuladas na comunidade lingüística do Brasil, levantam,
descrevem, classificam e interpretam esses usos, levando em
consideração os moldes de predicado e os definidores semânticos
envolvidos nessas articulações. Em análise pautada em parâme-
tros semântico e funcional-pragmático, Rebelo e Osório traçam
 Niterói, n. 21, p. 5-10, 2. sem. 2006
a diversidade de usos de ficar, concluindo ser esta uma forma
verbal mutacional.
Em “O uso do modo subjuntivo em orações relativas e com-
pletivas no português afro-brasileiro”, Vívian Meira investiga,
com base no suporte teórico-metodológico da sociolingüística
variacionista, a expressão do subjuntivo em construções oracio-
nais complexas de quatro comunidades rurais afro-brasileiras
do interior da Bahia. Em sua pesquisa, diferentemente dos re-
sultados obtidos sobre o estudo desse modo verbal no português
urbano do Brasil, Meira observa que o subjuntivo ganha espaço
em relação ao indicativo, revelando um processo de aquisição
que passa, necessariamente, por fatores de ordem morfológica e
semântica. Tal condição faz com que a autora confirme a realidade
bipolarizada do português brasileiro, fruto de duas trajetórias
históricas diversas – a urbana e a rural, com suas específicas
realidades lingüísticas.
Angelina Aparecida de Pina, com base na lingüística cog-
nitiva e na teoria dos espaços mentais, trata do papel da mescla-
gem conceptual desempenhada na construção do significado do
angulador do português um tipo de. A autora analisa sentenças
articuladas por esse angulador, chegando à conclusão de que
o significado de um tipo de depende da mesclagem conceptual
que a construção incita: um mapeamento entre um espaço input
(entidade) e um outro espaço input (categoria / membro mais
prototípico de uma categoria), um espaço genérico, uma projeção
parcial para o espaço mescla (a entidade, a categoria / membro
mais prototípico de uma categoria e algumas propriedades
partilhadas) e uma estrutura emergente (categoria flexível /
hiperonímia).
No artigo “Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos
multirepresentacionais”, Christina Abreu Gomes, Aline Ro-
drigues Benayon e Márcia Cristina Pontes Vieira apresentam
os resultados de três pesquisas que focalizam a aquisição da
variação estruturada de padrões fonológicos por crianças do
Rio de Janeiro, tendo os modelos baseados no uso como referencial
teórico. Nessa abordagem, as autoras assumem que a variação
sociolingüística é representacional, não uma regra, conforme a
tradição dos estudos sociolingüísticos, e é parte do conhecimento
lingüístico do falante, que deve ser adquirido. Abreu, Benayon e
Vieira propõem que distribuições de freqüência das variantes ob-
servadas na produção das crianças por faixa etária sejam vistas
como reflexos da maneira como as variantes são armazenadas
e adquiridas, defendendo ainda que gradualidade e efeitos de
freqüência permeiam o processo de aquisição lingüística.
No artigo seguinte, Cláudia Roncarati e Sílvia Regina Ne-
ves da Silva ampliam o foco de abordagem dos usos lingüísticos,
ao tratarem da noção de cadeia referencial na progressão textual
e da questão dos usos referenciais e atributivos no processo de
Niterói, n. 21, p. 5-10, 2. sem. 2006 
construção do objeto-de-discurso. Em “A construção da referên-
cia e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa”, as
autoras adotam enfoque metateórico, pautando-se na teoria da
referenciação de base sócio-cognitiva interativa, para identificar
cadeias referenciais na progressão de três textos de gêneros
diversos, na demonstração de que a construção da referência e
seus mecanismos de articulação é traço constitutivo de todos os
objetos-de-discurso.
Os usos discursivos, na perspectiva dos sujeitos comuni-
cantes e interpretantes, são também objeto de investigação de
Patrick Charaudeau em “Identité sociale et indetité discursive,
le fondement de la compétence communicationnelle”. Aqui o
autor destaca a complexidade de que se reveste a questão da
identidade, tanto a social quanto a discursiva, que resulta do
entrecruzamento de uma série de fatores ou motivações. A par
da diversidade apontada, Charaudeau destaca a tensão entre o
caráter multifacetado da identidade e a tentativa de fazê-la una
e essencial.
A complexidade e a subjetividade dos usos lingüísticos é
abordada por Décio Rocha no artigo “Representação e interven-
ção: produção de subjetividade na linguagem”. O autor, a partir
do conceito de cenografia de Maingueneau, analisa declarações
concedidas pelo presidente Bush imediatamente após o 11 de
setembro de 2001. Com base no duplo papel da linguagem – re-
presentação e intervenção, Rocha levanta, descreve e interpreta
as marcas lingüísticas do discurso presidencial norte-americano
em sua articulação relacional entre o sujeito e o mundo, proble-
matizando ainda as conexões entre identidade e alteridade.
No último artigo, “Um ethos para Hércules – considera-
ções sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de
textos”, Luciana Salazar Salgado aborda o tema dos usos lin-
güísticos numa feição distinta dos demais. A autora, com base
em Maingueneau, discute a questão da autoria e seu processo
de constituição, analisando excertos de tratamento editorial de
uma versão dos Doze Trabalhos de Hércules, nos quais alterações
sutis da cenografia discursiva alteram o ethos que dela participa,
matizando o mito. Salgado enfatiza que, para a reflexão sobre
a produção editorial e para uma prática de edição proveitosa,
é necessário compreender a maneira pela qual os diferentes
atores envolvidos com a publicação dão sentido aos textos que
transmitem, imprimem e lêem.

Jussara Abraçado e Mariangela Rios de Oliveira

10 Niterói, n. 21, p. 5-10, 2. sem. 2006


Ordenação dos advérbios qualitativos
em –mente no português escrito no
brasil nos séculos xviii e xix
Mario Eduardo Martelotta
Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 15, ago. 2006

Resumo
Este trabalho consiste em uma análise da ordena-
ção que caracteriza os advérbios qualitativos em
-mente, em cartas escritas no Brasil nos séculos
XVIII e XIX. O objetivo é demonstrar o gradual
desaparecimento, que se dá do século XVIII para
o século XIX, da tendência que esses advérbios
possuem de se colocar antes do verbo, já detectada
em fases anteriores da evolução do português.
Palavras-chave: advérbio, ordenação, gramati-
calização, mudança lingüística.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006


Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

O objetivo do presente trabalho é fazer uma análise das


tendências de ordenação dos advérbios qualitativos1 derivados
em -mente em textos escritos nos séculos XVIII e XIX. Busca-se
observar, sobretudo, os advérbios referentes a verbos, já que os
qualitativos em -mente que modificam adjetivos, particípios e
outros advérbios não apresentam mudanças em suas tendências
de ordenação no período de tempo analisado.
Para que se tenha uma noção mais precisa dos objetivos
deste trabalho, é importante ressaltar que, embora o foco esteja
nos séculos XVIII e XIX, o que se busca aqui é observar um pro-
cesso de mudança mais amplo. Em outras palavras, esta pesquisa
é parte de uma análise mais geral, que observa a mudança nas
tendências de ordenação dos advérbios qualitativos do latim ao
português atual (MORAES PINTO, 2002; MARTELOTTA; BAR-
BOSA; LEITÃO, 2002; MARTELOTTA, 2004; MARTELOTTA;
PROCESSY, 2006).
Em Martelotta e Processy (2006), observa-se um levanta-
mento de ocorrência de advérbios qualitativos, temporais e es-
paciais em textos do latim clássico. Os resultados dessa pesquisa
apontam para o fato de que, no latim clássico, os advérbios, de
um modo geral, tendem fortemente a ocorrer antes do verbo,2
tendência já mencionada em Marouzeau (1949) para os qualita-
tivos bem e mal e os intensificadores muito e pouco.
Analisando textos escritos em língua portuguesa, Marte-
1
lotta (2004) apresenta uma comparação entre as tendências de
Estamos aqui chaman­
do de qualitativos os vo-
ordenação dos advérbios qualitativos bem e mal nas fases arcai-
cábulos tradicionalmen- ca e atual, que demonstrou características distintas para esses
te classificados como
advérbios de modo. dois períodos da evolução de nossa língua. Esses advérbios,
2
Essa tendência se man- na fase arcaica, podem aparecer não apenas depois do verbo,
tém mesmo em casos em
que a frase não termina como ocorre atualmente, mas também antes do verbo. O mesmo
com o verbo. ocorre com advérbios qualitativos em -mente, como se observa
3
De acordo com Hopper
e Traugott (2003) as cláu-
nos exemplos abaixo:
sulas hipotáticas (tradi- (1) [...] nos daram com a graça de nosso senhor deus e de
cionalmente chamadas
de adverbiais) e as su- nosa senhora santa marya grande auantajem pêra bem
bordinadas, sobretudo e folgadamente desenbargarmos [...] (DIAS, 1982)
as reduzidas, apresen-
tam níveis maiores de (2) Creo uerdadeyrame~te que Jhesu Christo he uerdadeyro
gramaticalização.
4
Deus [...] (MALER, 1956)
Essa propensão se ma-
nifesta mais fortemente Nota-se que, no exemplo (1), o advérbio folgadamente apa-
com os advérbios qua- rece antes do verbo (desenbargarmos) e, no exemplo (2), depois
litativos bem e mal do
que com os terminados do verbo (creo). Entretanto é nas cláusulas com altos graus de
em -mente, que parecem
ter mais mobilidade na
gramaticalização3 que se encontra a grande maioria das ocor-
cláusula. Isso, provavel- rências pré-verbais de qualitativos no português arcaico:
mente, se dá pelo fato de
bem e mal serem monos-
(3) [...] que Deus faça dyno pera por uos dignamente orar
sílabos, tendendo a se [...] (DIAS, 1982)
fixar junto aos verbos a
que se referem, chegan- Os textos do português atual, diferentemente, demonstra-
do, em alguns casos, a ram uma propensão, que se manifesta quase categoricamente, de
se tornarem prefixos
(bendizer, maldizer). esses advérbios4 ocorrerem após o verbo, em cláusulas gramati-
calizadas (reduzidas de infinitivo) ou não. Eis um exemplo:
12 Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006
Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no brasil nos séculos xviii e xix

(4) As festas de família, os aniversários, os batizados, os ca-


samentos, as doenças e a morte estreitam calorosamente
os laços. (BOFF, 1998)
No que se refere ao século XIX, Martelotta e Vlček (2006),
em uma pesquisa sobre os advérbios qualitativos em -mente
em cartas de leitores e de redatores, escritas em três fases, ou
períodos de tempo, do século XIX, apontaram uma tendência
de as ocorrências pré-verbais desses advérbios desaparecem
gradualmente com o passar do tempo. Na primeira fase (de 1808
a 1840), há mais ocorrências de posições pré-verbais do que na
segunda (1841 a 1870), que, por sua vez, apresenta maior tendên-
cia à pré-posição do que a terceira (1871 a 1900). Isso aponta para
uma mudança, no século XIX, da ordenação desses advérbios
em direção à pós-posição, característica desses elementos no
português atual.
Nesse sentido, trabalha-se aqui com a hipótese de que há
uma trajetória de mudança gradual a partir do latim, segundo
a qual os advérbios qualitativos passam progressivamente da
posição pré-verbal para a pós-verbal. Essa mudança se inicia nas
cláusulas menos gramaticalizadas5 e vai passando, em seguida,
para as mais gramaticalizadas.
A posição pré-verbal latina começa a desaparecer nas cláu-
sulas justapostas ou coordenadas, ficando ainda perceptível, do
português arcaico ao português do século XIX, nas cláusulas
hipotáticas e subordinadas, sobretudo, na formas reduzidas, que
apresentam maiores graus de encaixamento ou gramaticalização.
Isso ocorre porque as mais gramaticalizadas apresentam graus
maiores de cristalização e, conseqüentemente, graus maiores
de pressuposicionalidade (GIVÓN, 1979). Com o tempo, essa
tendência vai desaparecendo também nas cláusulas encaixadas
e o século XIX parece ser o período em que essa mudança se
efetivou.
Com base nesses dados, este trabalho partiu das seguintes
hipóteses:
a) Serão encontradas mais ocorrências de qualitativos em
-mente em posição pré-verbal no século XVIII do que no
século XIX, já que a mudança nas tendências de ordena-
ção desses elementos se dá de modo gradual.
b) As ocorrências de qualitativos em -mente em posição pré-
verbal tenderão a aparecer em cláusulas com graus maio-
res de gramaticalização em ambos os séculos analisados.
Na base dessa hipótese, está a proposta de Givón (1979),
segundo a qual essas cláusulas são mais conservadoras
5
Entre as menos gra- em termos de ordenação, o que significa que elas tendem
maticalizadas estão as
cláusulas justapostas e
a preservar a antiga colocação pré-verbal latina.
coordenadas, que Ho- c) A distribuição das ocorrências pré-verbais se apresentará
pper e Traugott (1993)
caracterizam como ca- de modo diferente nos dois séculos analisados. A tendên-
sos de parataxe. cia é o desaparecimento dessas ocorrências em cláusulas
Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006 13
Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

menos gramaticalizadas durante século XIX, já que essas


cláusulas são afetadas inicialmente pela mudança. Isso
significa que o século XVIII tenderá a exibir mais quali-
tativos em -mente pré-verbais em cláusulas justapostas e
coordenadas do que o século XIX.
d) Os qualitativos em -mente tenderão a aparecer próximos
ao verbo. Subjacente a essa hipótese está o subprincípio
icônico da proximidade (GIVON, 1990), que propõe uma
relação entre proximidade semântica e proximidade sin-
tática. Segundo esse subprincípio, entidades que estão
próximas funcionalmente, conceptualmente ou cogni-
tivamente ocorrerão próximas no nível da codificação.
Ou seja, os qualitativos, que indicam o modo como se
dá a ação verbal, interferindo substancialmente em seu
sentido, tendem a ocorrer próximos ao verbo.
Metodologia
Este trabalho visa a apontar as tendências de ordenação
dos advérbios qualitativos em -mente em textos escritos nos sé-
culos XVIII e XIX. Para que um trabalho comparativo entre estes
dois séculos pudesse ser feito, foram analisadas as ocorrências
destes advérbios em cartas escritas no Rio de Janeiro nos dois
períodos.
O material analisado do séc. XVIII é constituído de cartas
oficiais e de comércio, bem como de documentos particulares e
cartas comuns; pertencentes ao acervo do PHPB-RJ (BARBOSA;
LOPES, 2003). Foram também analisadas duas cartas de adminis-
tração pública, representações oficiais do Rio de Janeiro, obtidas
no corpus do Museu da Língua Portuguesa - Estação da Luz.6
Embora as ocorrências de qualitativos em -mente, nesses textos,
seja muito reduzida, será feita uma leitura das tendências gerais
de ordenação neste século.
Os textos do séc. XIX englobam, na medida do possível,
documentos de natureza semelhante aos do século XIX: cartas
oficiais e cartas escritas no Rio de Janeiro. Foram também obser-
vadas cartas pessoais, como as cartas a Rui Barbosa, bem como
cartas de leitores e redatores publicadas em jornais cariocas.
Todo o material referente a este período foi obtido a partir do
corpus do PHPB-RJ (BARBOSA; LOPES, 2003).
Buscou-se observar as ocorrências dos advérbios com base
em duas variáveis: posição na cláusula e grau de gramaticalização da
cláusula. A partir de agora será feita uma exposição acerca dessas
variáveis, começando pelas posições na cláusula:
Posições pré-verbais

6
a) Advérbio + Verbo (AV)
Dispon ível em:
<http://estacaodaluz. (5) ... porem nossa consciencia tranquilla nos affiança de
org.br >. | não termos offendido o melindre, e nosso correspondente |

14 Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006


Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no brasil nos séculos xviii e xix

a quem cordialmente respeitamos. (PHPB - Carta de Redator


no 8, 1a Fase)
Posições pós-verbais
a) Verbo + Advérbio (AV):
(6) O futuro te espera grandioso: - prepara-te dignamente
para êle. (séc. XVIII, Carta a Rui Barbosa, no 217.1.(2))
b) Verbo + X7 + Advérbio (VXA)
(7) ... atiram-se sedentes de sangue como | féras, sobre a
pobre victima que desprevenida | assistia ao espetaculo impu-
nemente, de que elles | proprios se tinham tornado actores na
noite de | 13 do corrente: e o povo ainda teve de sujar as | mãos,
medindo n’aquella occasião, a sua força | com a espada de um
sicario. (PHPB - Carta de Leitor no 6, 3a Fase)
Além dessas posições, encontramos alguns casos em que o
advérbio se relaciona a em locuções verbais (ex: hão de judiciosa-
mente convir, deve surprehender inteiramente). Foram encontrados
casos em que o advérbio ocorre ao final e no meio da locução.
Por apresentar características sintáticas distintas, optou-se por
não levar em conta esses dados na análise quantitativa.
Grau de gramaticalização das cláusulas
De acordo com Hopper e Traugott (2003), os períodos
complexos baseiam-se em uma trajetória com três pontos de
aglomeração, como se segue:
1 - Parataxe ou independência relativa, exceto como restrin-
gida pela pragmática de fazer sentido e relevância.
2 - Hipotaxe ou interdependência, em que há um núcleo e
uma ou mais cláusulas que não podem ficar sozinhas
e que são, por conseguinte, relativamente dependentes.
Entretanto elas não se incluem completamente em qual-
quer constituinte do núcleo.8
3 - Subordinação, ou, em sua forma extrema, encaixamento;
em outras palavras, dependência completa, em que uma
margem está completamente incluída no núcleo.
Esses pontos de aglomeração podem ser caracterizados
pela seguinte trajetória de gramaticalização em direção a es-
truturas mais encaixadas, ou, em outras palavras, mais grama-
ticalizadas:

7
X é qualquer elemento parataxe > hipotaxe > subordinação
lingüístico que ocorra -dependente +dependente +dependente
entre o advérbio e o ver-
bo, como um elemento -encaixada -encaixada +encaixada
de natureza argumental
ou outro advérbio.
8
As hipotáticas incluem Isso significa que as cláusulas subordinadas são mais gra-
as tradicionalmente cha­
madas subordinadas maticalizadas do que as hipotáticas, por apresentarem níveis
adverbiais e adjetivas
explicativas.
maiores de dependência e encaixamento. Do mesmo modo,

Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006 15


Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

as cláusulas hipotáticas são mais gramaticalizadas do que as


paratáticas.
No que se refere às cláusulas reduzidas, partiremos, com
Givón (1990), da proposta de que a redução da subordinada
reflete graus maiores de integração. O autor propõe ainda que
a existência de diferentes graus de encaixamento ou integração
entre a cláusula principal e sua subordinada com função de obje-
to relaciona-se ao conceito de iconicidade, mais especificamente
ao subprincípio da proximidade. Segundo essa proposta, há um
isomorfismo entre a semântica e a sintaxe da complementação
verbal, no sentido de que os graus de integração sintática entre
as cláusulas não refletem aspectos arbitrários, sendo, ao contrá-
rio, a expressão gramatical dos níveis de vinculação semântica
entre o evento expresso pela cláusula principal e o expresso
pela subordinada.
Givón (1990) propõe os seguintes princípios de iconicidade
para a sintaxe da complementação:
a) Quanto mais integrados são dois eventos, mais integra-
dos são os verbos que os exprimem. Uma das principais
manifestações da vinculação semântica é o nível de
controle do sujeito da principal sobre o sujeito da subor-
dinada: em João fez Maria sair, por exemplo, o controle do
sujeito da principal sobre o da subordinada é maior do
que em João pediu que Maria saísse, em que não há garantia
de que Maria, de fato, tenha saído.
b) Quanto mais integrados são dois eventos, menor a proba-
bilidade de eles serem separados por um subordinador,
ou mesmo por uma pausa física.
c) Dada uma hierarquia de graus de agentividade, AG >
DAT > ACC > OUTROS, quanto mais integrados são os
dois eventos, menos agentivo será o sujeito da cláusula
complemento.
d) Dada uma hierarquia de graus de finitude (em oposição
a graus de nominalidade), da forma verbal, os mais in-
tegrados são os casos que apresentam o verbo da subor-
dinada com características mais nominais e com menos
morfologia verbal.
Gramaticalização e estrutura sintática
De acordo com Givón (1979), a maior liberdade e variedade
de elementos significativos tende a ocorrer na cláusula principal,
declarativa, afirmativa, ativa. Por outro lado, tanto no que se refere
a itens lexicais quanto a construções sintáticas, a distribuição dos
elementos significativos, em todos os outros tipos de cláusula,
é sempre mais restrita.
Isso ocorre em função do fenômeno da pressuposição dis-
cursiva, ou seja, o grau de pressuposicionalidade no qual uma
sentença é usada. Esse fenômeno está relacionado ao nível de
16 Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006
Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no brasil nos séculos xviii e xix

dificuldade que o falante acha que o ouvinte terá em determinar


uma única referência para um referente no discurso. E, segundo
Givón (1979), a cláusula principal, declarativa, afirmativa, ativa apre-
senta a complexidade pressuposicional mais baixa no discurso,
se comparada a todos as outras variantes sintáticas.
Givón (1979) apresenta várias propriedades formais dessas
variantes sintáticas, em relação ao seu grau de pressuposicio-
nalidade:
1- Variantes mais pressuposicionais exibem maior comple-
xidade sintática.
2- Variantes mais pressuposicionais apresentam maiores
restrições distribucionais do que os padrões neutros.
3- Variantes mais pressuposicionais são gramaticalizadas
mais tarde por crianças, ou pelo menos sua sintaxe é
adquirida mais tarde do que as variantes menos pressu-
posicionais.
4- Variantes mais pressuposicionais freqüentemente ten-
dem a exibir grande conservadorismo sintático, mais
comumente na área da mudança de ordenação.
5- A cláusula principal declarativa, afirmativa, ativa, neutra e
menos pressuposicional é também a mais freqüente no
discurso.
Dentre essas propriedades, são especialmente interessantes
para este trabalho as de número 1, 2 e 4, já que se propõe aqui
que as cláusulas gramaticalizadas, e, portanto, mais restritas
distribucionalmente e mais complexas sintaticamente, tendem
a ser mais conservadoras, apresentando as tendências de distri-
buição dos advérbios em -mente mais antigas.
As pressuposições discursivas das construções sintáticas
A noção de pressuposição é entendida aqui como um con-
junto de informações que estão fora da sentença e que são assu-
midas pelo falante como evidentes ou indiscutíveis. Em outras
palavras, aquilo que é pressuposto tende a refletir conhecimentos
compartilhados, crenças comuns ou conhecimento presumido
como conhecido.
Seguindo Givón (1979), esta pesquisa não adota a distinção
entre pressuposição lógica e pressuposição pragmática, já que
parte do princípio de que todo fenômeno pressuposicional nas
línguas naturais é pragmático. Nas palavras de Givón (1979), o
fenômeno da pressuposição, tem a ver com: “as hipóteses que
o falante assume acerca da habilidade do ouvinte de identificar
unificadamente (‘estabelecer uma única referência para’) um
argumento-referente.” (p. 50)
Nesse sentido, Givón (1979) apresenta as variantes sintá-
ticas que se caracterizam por maior grau de pressuposiciona-
lidade:
1. Construções estritamente pressuposicionais. Cláusulas rela-
Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006 17
Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

tivas, clivadas, pseudo-clivadas e perguntas QU.


2. Cláusulas encaixadas.
3. Outros atos de fala. Imperativo, interrogativo e negativo.
4. Construções envolvendo graus de definitude-topica-
lidade dos argumentos. Mudança de tópico, passiva,
pronomes anafóricos, etc.
De acordo com o autor, essas construções apresentam or-
denação mais conservadora dos elementos argumentais. Mas
esse raciocínio pode ser estendido para as características de
ordenação de elementos adverbiais. De fato, como já foi mencio-
nado, o nível de encaixamento ou gramaticalização da cláusula
tem influência sobre as tendências de ordenação de advérbios
qualitativos.
O português arcaico caracteriza-se por uma variação na
colocação dos advérbios, ou seja, apresenta advérbios qualitativos
nas posições pré e pós-verbais em todos os tipos de cláusulas,
apresentando uma pequena predominância de anteposição
nas cláusulas mais gramaticalizadas. Por outro lado, textos de
épocas posteriores à fase arcaica – pelo menos até o século XIX
- apresentam cada vez menos anteposições de advérbios, que
vão ficando cada vez mais restritas a cláusulas com altos graus
de gramaticalização. Isso sugere que, de fato, esses parâmetros
de pressuposicionalidade podem ajudar a descrever mudanças
no comportamento diacrônico desses elementos, no que diz
respeito à sua ordenação.
Análise dos dados referentes ao século XVIII
A análise dos dados será feita separadamente. Primeiro
serão observados os textos do século XVIII e, em seguida os do
século XIX. A tabela abaixo apresenta a distribuição das ocor-
rências dos qualitativos em -mente pelas diferentes posições ob-
servadas, sempre levando em conta o grau de gramaticalização
das cláusulas que contêm essas ocorrências:

XVIII -gramatical. +Gramatical.


Hipotaxe Hipot. Rel. Subordinação Subord. Rel
NR NR R NR NR Total
AV 2 2 5 1 - 3 13
VA 4 - 2 2 2 - 10
VXA - - 1 3 1 - 5
Total 6 2 8 6 3 3 28

Tabela 1: Ocorrência de advérbios no séc. XVIII

Cabe registrar logo de início a quantidade extremamente


pequena de dados de ocorrências dos advérbios em estudo.
Isso, obviamente, impede qualquer conclusão mais definitiva
acerca de suas tendências de ordenação nos textos observados

18 Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006


Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no brasil nos séculos xviii e xix

durante o século XVIII. Entretanto, é possível observar algumas


regularidades interessantes, sobretudo quando se comparam
esses resultados com outras pesquisas referentes à ordenação
de qualitativos, feitas com base em outros corpora e em outros
estágios da evolução do português (SILVA E SILVA, 2001; MO-
RAES PINTO, 2002; MARTELOTTA; BARBOSA; LEITÃO, 2002;
MARTELOTTA, 2004; MARTELOTTA; VLČEK, 2006).
Era de se esperar, por exemplo, uma predominância não
muito acentuada das posições pós-verbais. De fato, a tabela apre-
senta 15 ocorrências (distribuídas por VA e VXA), ou 53,6% do
total 28 advérbios. Essa tendência já se manifesta desde a fase
arcaica do português, como observam trabalhos desenvolvidos
não apenas acerca da ordenação de qualitativos em -mente, mas
também sobre os qualitativos bem e mal, que demonstram não ser
incomum a ocorrência de qualitativos pré-verbais no português
arcaico (MORAES PINTO, 2002; MARTELOTTA, 2004). Esses tra-
balhos também registram que, no português atual, a pós-posição
dos advérbios qualitativos é praticamente categórica.
Por outro lado, 13 ocorrências pré-verbais (46,4% do total)
constituem uma quantidade bastante significativa, se comparada
aos resultados do século XIX, que serão apresentados adiante.9
Isso é importante, porque pode apontar para o fato de que, até
o século XVIII, era mais forte a inclinação que os qualitativos
apresentavam de ocorrer antes do verbo, reforçando os resulta-
dos obtidos em Martelotta e Vlček (2006), segundo os quais essa
tendência começa a enfraquecer no início do século XIX e acaba
por desaparecer na virada para o século XX.10
Outro resultado interessante se apresenta quando se
relacionam as posições dos advérbios com o grau de gramati-
calização da cláusula em que ele ocorre. Do total de 13 casos
de advérbios pré-verbais, 11, ou 84,6% ocorreram em cláusulas
mais gramaticalizadas (hipotáticas e subordinadas). Isso aponta
para a tendência já detectada no português arcaico, segundo a
qual a anteposição do advérbio em relação ao verbo, caracterís-
tica do latim, se mantém em cláusulas com graus mais altos de
gramaticalização, que são mais conservadoras em termos de
ordenação (GIVÓN, 1979).
9
Apenas 21,6% do total É claro que se pode alegar que esse resultado perde signi-
de advérbios no século ficância, quando se leva em conta o fato de que há também mais
XIX ocorreu em posição
pré-verbal. casos de ocorrência pós-verbal em cláusulas com altos graus
10
No português con- de gramaticalização (11, ou 73,3% do total de 16 ocorrências de
temporâneo, ainda po-
dem ser encontradas posições pós-verbais VA e VAX). Em outras palavras, pode-se
algumas raras ocorrên- concluir que essa diferença se dá simplesmente pelo fato de que
cias de qualitativos pré-
verbais em construções existem mais cláusulas com altos níveis de gramaticalização
cristalizadas ou em tex-
tos altamente conserva-
nesses textos e que, somente por isso, os números referentes aos
dores. Esses casos não advérbios pré-verbais são mais altos nessas cláusulas.
ref letem a tendência
atual de ordenação des- Contra essa análise, podem se apresentados dois tipos de
ses advérbios. argumentos. O primeiro pondera que, comparando-se a distri-
Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006 19
Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

buição das posições pré e pós-verbais pelos tipos de cláusulas,


percebe-se uma superioridade na percentagem da posição pré-
verbal nas cláusulas gramaticalizadas: 84,6% das ocorrências
na posição AV, contra 73,3% de ocorrências distribuídas pelas
posições pós-verbais VA e VXA. Ou seja, a ordenação pré-verbal
parece ser numericamente mais significativa do que a pós-verbal
em cláusulas com altos graus de gramaticalização.
O segundo argumento, que também visa a atenuar as limi-
tações referentes à pequena quantidade de dados, se relaciona
ao fato de que outros trabalhos de natureza histórica, referentes
à ordenação de qualitativos, demonstraram essa tendência das
ocorrências pré-verbais para as cláusulas mais gramaticalizadas.
Essa tendência se dá, como já foi mencionado, pelo fato de que
essas cláusulas, mais conservadoras em termos de ordenação,
mantêm mais fortemente a ordenação pré-verbal, tipicamente
latina.
Resta apenas comentar o predomínio da posição pós-verbal
VA sobre a VXA, fato que não pode deixar de ser relacionado
à não ocorrência de uma posição pré-verbal AXV, que é muito
comum, por exemplo, na fase arcaica do português (MARTE-
LOTTA, 2004). Parece haver uma forte tendência de os advérbios
qualitativos ocorrerem imediatamente próximos ao verbo, ao
contrário dos temporais e dos locativos, por exemplo, que apre-
sentam uma mobilidade maior na cláusula.
Martelotta (2004) atribui isso ao subprincípio icônico da
proximidade (GIVON, 1990), que propõe uma relação entre
proximidade semântica e proximidade sintática. Segundo esse
subprincípio, entidades que estão próximas funcionalmente,
conceptualmente ou cognitivamente ocorrerão próximas no
nível da codificação, isto é, temporal e espacialmente. Ou seja,
os qualitativos, que indicam o modo como se dá a ação verbal,
interferindo substancialmente em seu sentido, tendem a ocorrer
próximos ao verbo, ao passo que os temporais e os locativos, que
nada dizem acerca da natureza da ação e se limitam a localizá-la
no tempo ou no espaço, podem se afastar do verbo.11
Análise dos dados referentes ao século XIX
Foi encontrado um número bem maior de dados no século
XIX em função de dois fatos distintos. O primeiro – e menos
importante – refere-se à maior quantidade de material do século
XIX disponível para análise. O segundo – e mais interessante – é
11
conseqüente de haver menos quantidade de advérbios qualita-
Isso, é claro, não se
limita aos qualitativos.
tivos em -mente no século XVIII do que no XIX.
O mesmo subprincípio Para se ter uma idéia dessa diferença quantitativa entre
pode atuar, por exem-
plo, de modo a impelir os dois séculos analisados, é interessante observar que foram
um advérbio locativo a encontradas 28 ocorrências de advérbios qualitativos em -mente
se posicionar próximo
a um verbo de movi- nos textos do século XVIII, que, juntos, apresentam um total de
mento. 21.512 palavras. Isso significa um percentual de 0,13% desses
20 Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006
Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no brasil nos séculos xviii e xix

advérbios em relação ao total de palavras que compõem o corpus


referente a esse século. Por outro lado, ocorreram 88 qualitati-
vos em -mente nos textos do século XIX, que, ao todo, reúnem a
quantidade de 42.281 palavras, o que dá um percentual de 0,21%
desses advérbios em relação ao total de palavras que compõem
o corpus. Nota-se, então, uma superioridade numérica de usos
de qualitativos em -mente no século XIX.
Isso pode remeter a uma maior produtividade desses
advérbios no século XIX, e deixa a curiosidade de observar,
ao longo dos anos, a quantidade de advérbios em -mente com
outros valores, distintos do valor qualitativo, como o valor mo-
dalizador, por exemplo. Fica também o interesse em observar a
produtividade dos qualitativos em -mente, nas fases anteriores
do português. Seria possível afirmar que os advérbios em -mente
se tornariam progressivamente mais produtivos ao longo dos
anos? Tendo essa formação de advérbios se concretizado no latim
vulgar (CÂMARA JR., 1976), ou seja, constituindo um processo
de gramaticalização relativamente recente, essa hipótese não
seria inteiramente absurda.
As ocorrências de qualitativos em -mente no século XIX,
relacionadas às variáveis posição na sentença e grau de gramatica-
lização da cláusula, podem ser vistas na tabela abaixo:

XIX -gramatical. +Gramatical.


Hipotaxe Hipot. Rel. Subordinação Subord. Rel
R NR R NR R NR R NR Total
AV 1 1 4 1 3 2 1 1 5 19
VA 20 4 10 3 1 10 10 - 7 65
VXA 1 - - - 2 - 1 - - 4
Total 22 5 14 4 6 12 12 1 12 88
Tabela 2: Ocorrência de advérbios no séc. XVIII

No caso do século XIX, há uma quantidade maior de ocor-


rências de qualitativos em -mente, embora essas 88 ocorrências
estejam longe de constituir a quantidade necessária para se che-
gar a conclusões mais precisas. Como foi mencionado na análise
das ocorrências do século XVIII, acredita-se ser possível, apesar
dos poucos dados, observar regularidades interessantes, que
se tornam significativas, quando comparadas com tendências
detectadas em outras pesquisas referentes à ordenação de qua-
litativos, feitas com base em outros corpora e em outros estágios
da evolução do português.
Assim como aconteceu com o século XVIII, era de se espe-
rar que o século XIX apresentasse uma relativa predominância
das posições pós-verbais. Isso de fato ocorreu: a tabela apresenta
69 ocorrências nessa posição, ou 78,4% do total 88 advérbios.
Esses dados refletem a tendência, já mencionada anteriormente,
que vem se delineando desde a fase arcaica do português (MO-

Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006 21


Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

RAES PINTO, 2002; MARTELOTTA, 2004). Mas, é importante


registrar aqui que a quantidade de advérbios nessa posição
cresceu de 53,6% no século XVIII para 78,4% no XIX: isso reflete
um enfraquecimento da propensão desses advérbios para as
posições pré-verbais no século XIX.
Por outro lado, a tabela apresenta 19 ocorrências pré-ver-
bais (21,6% do total de 88 dados), o que é significativo, uma vez
que houve um decréscimo, em termos percentuais, de ocorrên-
cias pré-verbais do século XVIII para o XIX (de 46,4% para 21,6%).
Isso, como foi dito anteriormente, pode apontar para o fato de
que, até o século XVIII, ainda era relativamente forte a vocação
dos qualitativos para a ocorrerem antes o verbo, reforçando os
resultados obtidos em Martelotta e Vlček (2006) para o século
XIX.
Outro resultado interessante se apresenta quando se re-
lacionam as posições dos advérbios com o grau de gramatica-
lização da cláusula em que ele ocorre. Do total de 19 casos de
advérbios pré-verbais, 18, ou 95% ocorreram em cláusulas mais
gramaticalizadas (hipotáticas e subordinadas). Cabe ressaltar
aqui o aumento percentual que ocorreu em relação aos 84,6%
encontrados de anteposições em cláusulas mais gramaticali-
zadas no século XVIII. Mais uma vez se evidencia a mudança
desses advérbios para as posições pós-verbais, já que eles ficam
praticamente restritos às cláusulas com alto grau de gramatica-
lização, mais conservadoras em termos de ordenação.
Comparando o resultado acima, referente à posição pré-
verbal, com a distribuição das posições pós-verbais pelos diferen-
tes graus de gramaticalização das cláusulas, percebe-se a maior
tendência das ocorrências pré-verbais para as cláusulas com
níveis mais latos de gramaticalização: 18 ou 95% contra 48 ocor-
rências (de VA e VXA), ou 69,6% do total de casos de advérbios
pós-verbais, apareceram em cláusulas mais gramaticalizadas.
Mais uma vez nota-se uma distribuição maior – agora no século
XIX – das ocorrências pós-verbais pelos tipos de cláusulas.
Com relação à proximidade do advérbio qualitativo em
relação ao verbo, nota-se, também nos dados do século XIX, a
forte predominância da posição VA, com 65 casos, que represen-
tam 94,2% do total de 69 ocorrências de qualitativos em posição
pós-verbal, contra apenas 4 casos de VXA, ou 5,8% do total. Por
hipótese, entra em ação, nesses casos, o subprincípio icônico da
proximidade, que, como já foi mencionado na análise referente
ao século XVIII, prevê que entidades que estão próximas funcio-
nalmente, conceptualmente ou cognitivamente ocorrerão pró-
ximas no nível da codificação, isto é, temporal e espacialmente.
Assim, os advérbios qualitativos, indicadores do modo como se
dá a ação verbal, interferindo substancialmente em seu sentido,
tendem a ocorrer próximos ao verbo.

22 Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006


Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no brasil nos séculos xviii e xix

Conclusão
Foram muito poucos os dados encontrados nos corpora ana-
lisados, em função do fato de que, de um modo geral, advérbios
qualitativos são, de fato, pouco usados no discurso escrito – as-
sim como no falado. Isso, obviamente, impede que se chegue a
conclusões mais definitivas acerca das tendências de ordenação
dos qualitativos em -mente nos textos observados. Entretanto, é
possível vislumbrar, entre esses poucos dados, algumas regu-
laridades interessantes, sobretudo quando essas regularidades
são localizadas dentro de um processo de mudança mais geral,
observado em outras pesquisas referentes à ordenação de qua-
litativos, feitas com base em outros corpora e em outros estágios
da evolução do português.
Como foi dito anteriormente, embora este trabalho focalize
os séculos XVIII e XIX, busca-se aqui observar um processo de
mudança mais amplo, que compreende o período de tempo en-
tre o latim e o português atual. Durante esse período de tempo,
ocorreu uma trajetória de mudança gradual, através da qual
os advérbios qualitativos passam progressivamente da posição
pré-verbal para a pós-verbal. Tudo indica que essa mudança se
inicia nas cláusulas menos gramaticalizadas e vai passando,
em seguida, para as mais gramaticalizadas, que são mais con-
servadoras, por apresentarem graus maiores de cristalização
e, conseqüentemente, graus maiores de pressuposicionalidade
(GIVÓN, 1979).
Os poucos dados coletados nos textos dos XVIII e XIX,
que estão no meio desse processo, ratificaram essa hipótese.
Nos dois séculos observados foi encontrada, por exemplo, uma
quantidade maior de ocorrências pré-verbais do que é comum
nos português atual, em que a pós-posição é praticamente cate-
górica. Além disso, nota-se que o século XVIII apresentou mais
essas ocorrências do que o XIX, o que aponta para essa mudança
gradual.
Outro resultado interessante pode ser visto no fato de que
as ocorrências de qualitativos em -mente em posição pré-verbal
tenderão a aparecer em cláusulas com graus maiores de grama-
ticalização em ambos os séculos analisados. Isso era esperado
com base na proposta de Givón (1979), segundo a qual essas
cláusulas são mais conservadoras em termos de ordenação, o
que significa que elas tendem a preservar a antiga colocação
pré-verbal latina.
Cabe ressaltar também o aumento percentual do século
XVIII para o XIX das ocorrências pré-verbais em cláusulas gra-
maticalizadas. Isso evidencia a mudança desses advérbios para
as posições pós-verbais, já que a anteposição fica praticamente
restrita, no século XIX, às cláusulas com alto grau de gramati-
calização, mais conservadoras em termos de ordenação.

Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006 23


Gragoatá Mario Eduardo Martelotta

Resta apenas comentar o predomínio, nos dois períodos


de tempo analisados, da posição pós-verbal VA sobre a VXA,
assim como a inexistência da posição AXV, detectada no por-
tuguês arcaico (MARTELOTTA, 2004). Isso, por hipótese, está
relacionado ao subprincípio icônico da proximidade (GIVON,
1990), que propõe uma relação entre proximidade semântica
e proximidade sintática. Segundo esse subprincípio, entidades
que estão próximas funcionalmente, conceptualmente ou cogni-
tivamente ocorrerão próximas no nível da codificação. Ou seja,
os qualitativos, que indicam o modo como se dá a ação verbal,
interferindo substancialmente em seu sentido, tendem a ocorrer
próximos ao verbo.

Abstract
This paper consists of an analysis of the word or-
der change that characterizes the uses of manner
adverbs formed with the suffix -mente in letters
written in Brazil in the 18th century and in the
19th century. The analysis aims to show, within
this period of time, the gradual disappearance of
the tendency of these adverbs of occurring in pre-
verbal positions, which had already been detected
in the early historical evolution of Portuguese.
Keywords: adverb, word order, grammaticali-
zation, linguistic change.

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A estrutura argumental das
construções deverbais em -dor
Nubiacira Fernandes de Oliveira
Recebido 25, jun. 2006/Aprovado 28, ago. 2006

Resumo
análise da estrutura argumental de construções
deverbais com o sufixo -dor, com o objetivo de
depreender em que medida o caso ‘Agente’ nelas
se manifesta, considerando a interação entre as
propriedades morfossintáticas, semânticas e prag-
máticas dessas formações derivadas. Assume-se
como pressuposto que há um paralelismo entre a
categorização conceptual e a categorização lingüís­
tica. A análise se baseia na utilização concreta da
língua pelo falante.
Palavras-chave: construções deverbais; estrutu-
ra argumental; agentividade.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 27- 42, 2. sem. 2006


Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

1. Introdução
Este trabalho, inserido no domínio da lingüística funcional
norte-americana, segue a linha de investigação que vem sendo
desenvolvida por Givón, Hopper, Thompson, Bybee, Goldberg,
Du Bois, entre outros. Apresenta resultados preliminares de uma
pesquisa, cujo objetivo é examinar os processos de interação
entre propriedades morfossintáticas, semânticas e pragmáticas,
visando ao estabelecimento de traços gerais de interpretação
caracterizadores da estrutura argumental de construções dever-
bais com o sufixo –dor. Examinando a relação entre o sufixo e a
estrutura temática das bases com as quais ele ocorre, focaliza, em
particular, as seguintes questões: (1) em que medida a estrutura
argumental da construção deverbal corresponde à estrutura
argumental da base? e (2) como o caso Agente se manifesta nas
construções derivadas em -dor? A principal fonte de pesquisa
empírica é o Corpus Discurso & Gramática: a língua falada escrita
na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), constituído
de textos falados e escritos de tipos diversos: narrativa expe-
riencial, narrativa recontada, descrição de local, relato de proce-
dimento e relato de opinião. Dados adicionais foram coletados
da Revista VEJA - anos 2004-2006. A análise se processa à luz
do conceito de Estrutura Argumental (DU BOIS, 2003) e das
noções de Transitividade (HOPPER; THOMPSON, 1980) e de
categorização prototípica, tal como proposta por Taylor (1995).
Nesse modelo, as análises lingüísticas se baseiam na utilização
concreta da língua pelo falante e assume-se como pressuposto
que há um paralelismo entre a categorização conceptual e a
categorização lingüística.

2. Sobre o conceito de estrutura argumental


A noção de Estrutura Argumental provém da filosofia, em
que era concebida, de acordo com Frege, como um instrumento
para a formulação do ‘pensamento puro’, usado precisamente
para descrever os significados proposicionais em termos lógicos.
Os lingüistas se apropriaram do conceito para seus propósitos
e, em vista de seu interesse intrínseco pela linguagem, o ponto
focal é a relação da estrutura argumental com a organização da
expressão lingüística.
Em princípio, a noção de estrutura argumental diz respeito
às relações semântico-gramaticais que se estabelecem entre um
predicado – tradicionalmente o Verbo – e seus complementos ou
argumentos – o Sujeito e o Objeto. Mais recentemente, a comple-
xidade da estrutura argumental vem sendo posta em evidência
em vários modelos da teoria lingüística.
Segundo Du Bois (2003, p. 17), a estrutura argumental
implica uma estrutura organizacional que estabelece relações
combinatórias entre elementos, em pelo menos duas dimensões

28 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006


A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

paralelas – a gramatical e a semântica. Ao longo das dimensões


combinatórias, gramaticalmente, os nomes se relacionam aos
verbos, desempenhando funções como sujeito, objeto, etc. e, se-
manticamente (e/ou conceptualmente), entidades conceituais se
relacionam a eventos conceituais, assumindo papéis como agente,
paciente, etc. Entre esses dois níveis, há um mapeamento siste-
mático entre o conjunto das relações semânticas (ou temáticas)
co-presentes e o conjunto das relações gramaticais co-presentes.
O processo (ou princípios) de mapeamento tem sido caracteri-
zado de modo variável como alinhamento, ligação, seleção de
argumento, etc.
Os tipos de orações básicas (compostas de um predicado)
de uma língua como o português, por exemplo, são conside-
rados como construções de estrutura argumental, nas quais o
verbo, tomado como elemento central ou predicador, mantém
uma relação abstrata (relação valencial) com os termos que dele
dependem – seus argumentos. Em outras palavras, o verbo tem
a capacidade de abrir determinados lugares na oração e de se-
lecionar os argumentos para preenchê-los. Assim, por exemplo,
tomando-se uma oração básica como Pedro feriu José, diz-se que
temos um predicado de dois lugares. O verbo ferir – núcleo do
predicado ou predicador – seleciona obrigatoriamente dois argu-
mentos SNs: Pedro e José. Trata-se de uma construção transitiva
prototípica, que descreve um evento no qual um agente exerce
uma ação que afeta um paciente. O agente é realizado no papel
de sujeito transitivo (A), expresso na posição pré-verbal pelo
SN – Pedro, e o paciente é realizado no papel de objeto direto
(O), na posição pós-verbal, expresso pelo SN José.
Do ponto de vista semântico, o evento transitivo prototí-
pico é definido pelas propriedades do agente, do paciente e do
verbo envolvidos na oração que codifica esse evento. Em prin-
cípio, a delimitação das propriedades desses três elementos é
uma questão de grau. Do ponto de vista sintático, as orações – e
verbos – que têm um objeto direto são, em geral, consideradas
transitivas; as que não o têm são intransitivas. Segundo Givón
(2001), embora as caracterizações semânticas e sintáticas da
transitividade pareçam independentes, elas normalmente se
sobrepõem: a maioria das orações que são semanticamente
transitivas também são sintaticamente transitivas. Desse modo,
se uma oração codifica um evento semanticamente transitivo,
o agente e o paciente do evento são, via de regra, respectiva-
mente, o sujeito e o objeto direto dessa oração. Na prática, essa
sobreposição não é, contudo, categórica, devido à possibilidade
de elipse. No nível semântico, um dos argumentos nucleares de
comer, por exemplo, diz respeito à substância colocada na boca
e engolida: não é possível pensar em comer sem pensar em algo
que é comido. Mas, é perfeitamente normal dizer Ele tem comido,
sem mencionar o que é consumido (ausência do objeto). Por outro
Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 29
Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

lado, certos aspectos, tais como a chamada dimensão afetamento,


pertencem à transitividade semântica e não à sintática. Assim,
numa oração como João correu cinco milhas, a presença de um
objeto direto (cinco milhas) não implica que o SN sujeito (João)
é CAUSA + afetamento; nem a ausência de um objeto direto
implica que o sujeito é CAUSA – afetamento, como se pode ver
no exemplo, Mário escreve para ‘O Times’, em que não há objeto
direto, porém há afetamento, pois, pode-se dizer que O Times é,
de algum modo, enriquecido pela contribuição de Mário.
Numa referência a Levin e Rappaport Hovav (1995), Du Bois
(2003) chama atenção para o fato de que, se o papel semântico de
um argumento (agente, paciente, etc.) é, em parte, determinado
pelo significado do verbo que o seleciona e se argumentos que
dão suporte a certos papéis semânticos regularmente se associam
a expressões sintáticas particulares, essa regularidade de associa-
ção reforçaria a idéia de que o significado do verbo é um fator na
determinação da estrutura sintática das orações. Estudiosos da
estrutura argumental e da gramática de construção, entre eles o
próprio Du Bois e Goldberg (1995), questionam parcialmente essa
idéia com base no conceito de construção. Segundo Goldberg, as
orações básicas de uma língua, como o inglês, por exemplo, são
instâncias de construções, entendidas como correspondências de
forma e significado que existem independentemente dos verbos
particulares. Ou seja, uma construção carrega em si mesma um
significado independente das palavras que a compõem. A des-
peito de sua importância, uma discussão detalhada sobre esse
ponto ultrapassa os limites do presente trabalho.
A propósito da relação entre verbos e nomes de ‘atividade’,
a pesquisa morfológica confirma a existência de SNs que exibem
uma estrutura de predicado similar à de um SV: o núcleo do SN
(o Nome) determina argumentos, do mesmo modo que o núcleo
do SV (o Verbo) o faz. Além disso, a própria categorização dos
argumentos em externo (sujeito) e interno(s) (complemento(s))
é mantida nesse paralelismo. Comparem-se, por exemplo, as
construções em (1) abaixo:
(1) a. O MLST invadiu o parlamento brasileiro.
b. A invasão do parlamento brasileiro pelo MLST.
O verbo invadir, em (1) a, exige a presença de um argumen-
to externo (sujeito), representado na oração pelo SN O MLST, e
um argumento externo (complemento - objeto direto), repre-
sentado pelo SN o parlamento brasileiro. De modo semelhante, na
construção (1) b, o nome invasão determina a presença de um
argumento interno (correspondente ao complemento - objeto
direto), que se manifesta através do SP do parlamento brasileiro, e
de um argumento externo (correspondente ao sujeito), expresso
através do SP pelo MLST. Com efeito, SNs tais como ‘A invasão’
teriam o estatuto de construções de estrutura argumental, assim
como o SV. Citando Demonte (1985), Neves (1996) lembra que,
30 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006
A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

para esse autor, o SN, no que diz respeito “a sua natureza for-
mal, compartilha características dos sintagmas verbais e pode
ser concebido também, em certo sentido, como uma estrutura
similar à oração”. Do ponto de vista semântico, diz ela, o SN é
“uma entidade paradoxal porque, tomada em seu conjunto [...],
é um argumento, porém internamente, deve distinguir-se entre
elementos receptores e atribuidores de papel temático”.
Essas observações vêm reforçar a idéia comum à teoria da
Gramática de Construção segundo a qual não há divisão estrita
entre o léxico e a sintaxe (GOLDBERG, 1995). Construções lexi-
cais e construções sintáticas diferem em complexidade interna
e na especificidade da forma fonológica, mas ambas constituem
essencialmente o mesmo tipo de estrutura de dado declarativa-
mente representada: ambas são pares de forma e significado. A
esse propósito, Croft; Cruse (2004, p. 254) afirmam que, assim
como a sintaxe, a morfologia representa unidades gramaticais
complexas, no caso, compostas de morfemas. De um ponto de
vista estrutural, a única diferença entre morfologia e sintaxe é
que os morfemas são limitados no interior da palavra, enquan-
to as palavras são morfologicamente livres no interior de um
sintagma ou oração. Os autores argumentam que muitas são as
palavras a que se podem chamar de ‘palavras idiomaticamente
combinadas’, em que o significado de um morfema é específico
para a raiz com a qual ele se combina (ou uma subclasse de raí-
zes). Por exemplo, em inglês, o sufixo derivacional –er refere-se
ao agente do evento denotado pela raiz do verbo, quando esta
pertence a uma classe que inclui write, run (escrever, correr) e
assim por diante, mas se refere a um instrumento, se a raiz do
verbo é clip (cortar, tosquiar), staple (grampear) e semelhantes,
ou a um paciente se a raiz do verbo é fry (fritar), broil (assar). A
observação parece ser igualmente válida para as construções
deverbais com o sufixo –dor, em português. Ou seja, o significado
do sufixo -dor depende da raiz verbal com a qual ele se combina
(ou da subclasse de raízes), mas, seguindo a proposta da teoria da
gramática de construção, as propriedades semânticas de ambas
as partes interagem para produzir o significado construcional,
de tal forma que o significado da construção é dado unicamente
pelo todo.
Tudo que essas observações sugerem é que, realmente, a
morfologia é muito parecida com a sintaxe e que uma represen-
tação construcional é motivada para a morfologia também.
Alguns nomes de ação-processo, tais como repressão, cassa-
ção, por exemplo, de fato, remetem a um evento que facilmente
prevê uma configuração envolvendo um argumento subjetivo
(A1) e um argumento objetivo (A2), este último, em muitos casos,
afetado pela ação-processo. Sob essa ótica, no exemplo (2) abaixo,
o nome cassação (em destaque) é um predicado de dois lugares,
cuja estrutura argumental comporta um argumento objetivo
Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 31
Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

(A2), expresso pelo SP de direitos políticos, e um argumento sub-


jetivo (A1), aqui representado pelo SN uma proposta, recuperável
no contexto imediatamente anterior.
(2) “A lei precisa ser aperfeiçoada para acabar com essa farra”,
protesta o deputado Orlando Desconsi, do PT gaúcho, autor de
uma proposta que prevê a cassação de direitos políticos para o
culpado em qualquer momento, com ou sem renúncia. (VEJA,
26.10.05, p. 53).
Observe-se que, se por um lado, o SN a cassação de direitos
políticos é, em si mesmo, uma estrutura predicado-argumen-
to – uma predicação -, em que o nome cassação é o núcleo do
predicado e o SP de direitos políticos é o argumento objetivo (A2),
por outro lado, esse mesmo SN constitui o argumento objetivo
(A2) do predicado sintático, cujo núcleo é prevê. Ou seja, predi-
cações encaixadas funcionam como termos dentro de outras
predicações. Trata-se de nomes (resultantes ou não de processos
de nominalização) que ativam no interior do SN o sistema de
transitividade. Os derivados deverbais em –dor exibem nitida-
mente essa propriedade.
A observação dos dados indica que a base verbal envolvida
na produção de derivados com o sufixo –dor é geralmente do
mesmo tipo daquela que codifica o predicado que se denomina
de ação-processo: evento com afetamento de y, controlado por
x, sendo x o agente-prototípico. Assim, em princípio, uma ora-
ção transitiva prototípica (cf. Hopper; Thompson, 1980) e uma
construção deverbal em -dor se assemelhariam em dois pontos:
classe semântica do predicado (verbo de ação-processo) e papéis
semânticos relacionados (agente ou causativo e paciente afetado).
Em vista desse fato, poder-se-ía admitir, como pressuposto, que
os deverbais são construções de estrutura argumental que, em
princípio instalam, numa estrutura menor, o esquema temático
da base (ou do verbo primitivo). Os dados, no entanto, revelam
que, ao assumir o seu status nominal, alguns derivados passam
a ter características sintático-semânticas próprias, controlando a
manifestação de sua estrutura argumental. Assim, por exemplo,
quando se observa a relação verbo-nome deverbal, a correspon-
dência entre a estrutura argumental do verbo e a do derivado
nominal nem sempre é perfeita, podendo ocorrer uma limitação
no número de papéis temáticos da estrutura nominal em relação
à verbal. No caso, sugere-se que, ao se avaliar o problema da não
expressão dos argumentos dos deverbais, é preciso considerar
o contexto maior do que o sintagma. Em nosso corpus, para al-
guns dos derivados sob análise, não foi preenchida totalmente
a estrutura argumental dentro do próprio SN. A hipótese é que,
se a estrutura sintática da oração já fornece informação sobre o
(s) argumento (s) do nome deverbal, dispensa-se sua expressão
sob a forma canônica de sintagma preposicional. O argumento

32 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006


A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

não vem, então, expresso, mas pode ser depreendido do contexto


maior, isto é, da organização sintático-semântica do texto, em
qualquer ponto dele, dentro ou fora da oração. Pode-se supor que,
muitas vezes, a saturação informativa da estrutura argumental
dispensa, e até bloqueia, a expressão de argumentos, como se
verifica em (3) abaixo:
(3) ... saí feito uma louca ... na escola ... procurando o diretor ...
procurando o supervisor... (Corpus D&G, p. 52)
Nesse exemplo, diretor constitui, em tese, o núcleo de um
predicado de dois argumentos, correspondente a ‘x dirige y’
ou ‘x diretor de y’. Nota-se, porém, que a estrutura argumental
do predicado não está totalmente preenchida, ou seja, diretor
aparece desacompanhado de seus argumentos. Acontece que,
como substantivo, diretor traz implicitamente a representação
do papel semântico Agente no sufixo –tor, de modo que diretor
equivale a ‘aquele que dirige’. Por sua vez, o argumento-objeto,
que deveria figurar na forma do SP ‘da escola’, pode ser depre-
endido do quadro geral em que se realiza a predicação (situação
de enunciação e enunciado maior), o que torna desnecessária a
sua expressão. Na visão de Schlesinger (1995), dirigir, administrar,
governar, etc., de fato, envolvem ou denotam atividades e, como
verbos, pode-se dizer que descrevem eventos. Mesmo assim,
quando se diz, por exemplo: Atualmente, João dirige uma empresa
estatal e Ele governou o Estado por dois anos, aparentemente o que
está sendo focalizado não são propriamente os eventos, mas
os cargos ocupados por João, de modo que os verbos (dirigir
e governar) apontam, certamente, para um indivíduo numa
certa posição (diretor e governador). No caso, os limites entre
atividade (evento) e coisa (cargo) parecem difusos. Para nós, na
medida em que construções deverbais como diretor, governador,
etc., denotam mais propriamente cargos ou funções (e não even-
tos em si), a presença do conteúdo ‘atividade’ nesses derivados
parece naturalmente tênue; o traço dinamicidade e a dimensão
afetamento (que caracterizam os verbos de ação-processo) tor-
nam-se opacos, o que, por hipótese, poderia também favorecer
a omissão do argumento objeto (na forma de SP), nas referidas
construções.
No corpus examinado, foram identificadas 72 ocorrências
de derivados em –dor, cujo verbo base normalmente envolve dois
argumentos – sujeito e objeto, tais como: jogador, vendedor, orien-
tador, etc. Desse total, apenas 9 construções contendo o derivado,
isto é, cerca de 12,5%, apresentam o argumento objeto explícito e,
desse grupo, a maioria absoluta (7 ocorrências) é de construção
predicativa, com cópula, em que o deverbal (causadores, em (4))
aparece na função de predicativo do sujeito, ou seja, remete para
o argumento externo (cartolas). Veja-se o exemplo abaixo:

Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 33


Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

(4) Na minha opinião os cartolas são os principais causado-


res dessa situação ... (Corpus D&G, p. 36).
Ao que tudo indica, o nome deverbal evoca a informação
dada na oração predicada pelo verbo de que deriva, apesar das
diferenças entre as estruturas argumentais das duas construções:
a nominal e a verbal. Cabe, portanto, investigar as motivações
que levam a essas diferenças.
Os fatos mostram, por exemplo, que de um verbo proto-
tipicamente transitivo, tal como conquistar, trair, etc. resulta um
adjetivo – conquistador, traidor – que regularmente figura em
construções predicativas do tipo SN + cópula + Adjetivo, tais
como: João é um conquistador ou João é traidor. Em casos como
esses, não se verifica um paralelismo completo entre as cons-
truções verbais e as construções deverbais correspondentes. A
construção predicativa dispensa ou bloqueia a realização do
argumento interno, com papel semântico de paciente afetado ou
estímulo, normalmente presente na construção verbal. No caso,
a estrutura argumental específica da construção deverbal parece
refletir uma restrição do próprio processo morfológico, pois, na
conversão do verbo em adjetivo, ocorre a perda do traço dinami-
cidade (inerente ao verbo), o que afeta, naturalmente, as relações
temáticas. Além disso, vale observar que essas formações em –dor
têm um valor aspectual. Envolvem, digamos, o caráter habitual
imperfectivo da agentividade, ou seja, permitem reconhecer
agentes habituais. Na oração João é um conquistador, acima, con-
quistador equivale a “pessoa que conquista”, indicando-se pela
paráfrase com o presente a freqüência ou habitualidade da ação.
Parece que, nesses casos, a habitualidade da ação imprime uma
certa genericidade ao argumento objeto (paciente/estímulo)
– conquista todo mundo ou tudo - e, assim, reduz o seu grau de
relevância informacional, de modo que a expressão do objeto
pode (ou até deve) ser dispensada. Por outro lado, o objeto afe-
tado ou o estímulo também podem ser facilmente inferidos do
contexto discursivo ou do contexto pragmático - por exemplo,
num enunciado como: “O Presidente é um traidor”, proferido
por alguém, no atual contexto político brasileiro. Vejam-se os
exemplos (5) e (6) a seguir, do nosso corpus:
(5) Algum tempo depois, chegou ao solar (casa) um homem que
sabendo da história da prisão assumiu a identidade do advogado
e pediu abrigo. Este era um traidor e assassino e estava sendo
procurado pela polícia Francesa. (Corpus D&G, p. 45)

(6) ... eu me sinto um buscador ... um cara que quer é:: que quer ser
útil em alguma coisa ... (Corpus D&G, p. 86)
Em (6), novamente diante do deverbal, a expressão do
argumento objeto é inibida ou restringida. O derivado busca-
dor supostamente se enquadra no tipo de categoria com valor

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A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

aspectual referido acima e, se isso é verdadeiro, tal construção


deve ser analisada de modo semelhante a traidor, conquistador,
etc. A restrição provavelmente está ligada a um fator de ordem
semântica: o argumento objeto é não-referencial, exibindo, por-
tanto, baixo grau de informatividade, o que favorece a sua não
explicitação e justifica, em parte, a especificidade da estrutura
argumental da construção. A favor da análise aspectual de
buscador, é interessante considerar o fato de que o Dicionário de
Aurélio Buarque fornece para essa forma o mesmo significado
que é dado para buscante, outra forma agentiva, essa sim, com
nítido valor aspectual. Consta no dicionário que buscador per-
tence à categoria Adjetivo e significa aquele que busca e buscante,
também Adjetivo, significa que busca; buscador.
Basílio (2004, p. 41) indica motivação de ordem textual para
o uso de deverbal com estrutura argumental específica: os dever-
bais têm uma função anafórica, que corresponde ao uso de nome
derivado de verbo para fazer referência a uma estrutura verbal
anteriormente utilizada no texto. Segundo a autora, a utilização
de formas nominalizadas para substituir frases predicadas por
verbos é essencial na construção do texto escrito, na medida em
que permite representar de modo unificado e através de uma
única palavra toda uma proposição. Para ilustrar, Basílio fornece
o exemplo (7):
(7) O presidente eleito decidiu indicar pessoas de sua confiança
para as posições-chave do governo. A decisão terá implicações
complexas.
Argumenta-se que, nesse exemplo, o nome decisão subs-
titui todo o período anterior, assim transferindo a informação
para o período seguinte; a forma nominalizada é crucial para a
continuidade do tópico na construção do texto.
Diferentemente de sufixos nominalizadores como – agem,
-mento e –ção, o sufixo –dor mantêm com sua base uma relação
que podemos chamar de actância, em que o sufixo remete a um
participante da situação, em geral o argumento externo, com
papel semântico Agentivo. Todavia, conforme afirma Du Bois
(2003), o processo de seleção de argumentos, com seus respec-
tivos papéis semânticos, é bastante complexo, envolvendo, de
modo particular, a consideração da estrutura do evento como
um todo. No nível da oração, tomando-se uma relação gramatical
isoladamente, como, por exemplo, a de sujeito num conjunto de
verbos, a diversidade das relações semânticas que ela codifica
parece difícil de delimitar ou de caracterizar e a observação de
dados lingüísticos reais tem demonstrado que divergências se-
mânticas sutis são capazes de motivar estruturas argumentais
distintas.
A atenção ao aspecto semântico das relações gramaticais
leva à pesquisa dos tipos de papéis desempenhados pelos par-

Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 35


Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

ticipantes ligados às ações-processos expressas pelos deverbais


(Agentivo, Instrumental, Experienciador, Objetivo, etc.), toman-
do-se como pressuposto que, também no nível das construções
morfológicas, é preciso considerar como a interação entre as
diversas relações gramaticais atua no processo de seleção desses
papéis, atentos ainda para as características do contexto discur-
sivo-pragmático circundante.
Dado o caráter preliminar dos resultados e em razão dos
limites impostos pela natureza do presente trabalho, a análise
será circunscrita apenas à manifestação do traço Agentividade
nos derivados em -dor.

3. O complexo Agentivo
De acordo com Basílio (2004, p. 44), a formação dos cha-
mados nomes de agente tem como produto palavras que desig-
nam um ser pela prática ou exercício de uma ação ou atividade,
especificada pelo verbo envolvido na derivação. O processo de
formação também se estende à nomeação de objetos instrumen-
tais, cuja função principal é definida pelo significado da base
verbal. Como construções de estrutura argumental, tais formas
implicam na interpretação de uma ação-processo ou de uma
causatividade, direta ou indireta, ou seja, atribuem agentividade
a seu argumento externo, seja de modo literal - se tal argumento
se refere a agentes propriamente ditos (cobrador) - ou por extensão
metafórica a partir do protótipo, se ele denota outros tipos de
causadores, como instrumentos (cortador), mecanismos abstratos
(redutor), substâncias ativas (fixador), etc. Ainda, segundo Basílio,
o modo preferido pelos falantes do português para exprimir
morfologicamente agentividade seria o acréscimo do sufixo –dor
a raízes de verbos de ação e/ou de ação-processo. Portanto, os
derivados em –dor, traduzíveis informalmente como ‘aquele que
V’ (sendo V uma forma verbal), são os principais membros da
classe dos Agentivos no português.
Constatada a existência de Agentivos com o sufixo –dor,
passou-se a investigar o significado de toda e qualquer forma
deverbal em –dor, a fim de observar que tipos de conteúdo se-
mântico poderiam nelas estar presentes, para além do agentivo.
Ou seja, interessa saber se esse conteúdo é exclusivo, dominante,
ou convivente com outros.
Segundo Lyons (1977), é difícil precisar a noção de agenti-
vidade. Mas o agente prototípico (que serve como paradigma) se
refere a uma entidade animada x, que usa intencional e respon-
savelmente sua própria força ou energia para desencadear um
evento; e o exemplo típico de evento em que a agentividade está
mais obviamente envolvida é aquele que resulta numa mudança
na condição física ou locação de y, característica dos verbos de
ação-processo. O ponto de vista de Lyons é o de que cada um dos

36 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006


A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

traços, ou propriedades, que compõem o conceito de agentivida-


de padrão – traços como [Animado], [Intencional], [Responsável],
[Usuário da própria força ou energia], [Modificador de si próprio
ou de outrem] – é destacável do conjunto, funcionando de modo
independente na caracterização de situações não prototípicas,
porém semanticamente aproximadas do tipo padrão. Essa idéia
harmoniza-se com o conceito de prototipicidade, central para a
Teoria Funcionalista e para a Lingüística Cognitiva, a partir do
qual entende-se que categorizar uma entidade não é uma questão
de saber se ela possui um determinado atributo ou não, mas de
considerar o quanto as dimensões da entidade em questão se
aproximam das dimensões ideais para ela. À luz da teoria dos
protótipos, a agentividade seria uma propriedade escalar, e não
categórica. A classe dos nomes agentivos comportaria membros
que compartilham muitos traços comuns, constituindo-se nos
protótipos da categoria, e entidades que compartilham apenas
alguns atributos, integrando-se como elementos marginais na re-
ferida classe. Sob essa ótica, seria possível construir formulações
mais detalhadas no interior da definição de Agentividade.
A análise da definição de agente prototípico proposta
por Lyons permite depreender que ela repousa em três tipos
de critério: um critério de sentido, que orienta para o papel
de x, Desencadeador, Auto-afetador ou Afetador de y; um critério
de seleção denotativa, tanto do evento/situação (que deve ser
dinâmico) quanto da entidade que se candidata a agente (que
deve ser um animado); e critérios de seleção discursiva, pois é
no discurso que se obtém a informação sobre a intencionalida-
de e responsabilidade da entidade animada no que concerne à
mudança denotada.
Acima mencionou-se o fato de que a observação preliminar
dos dados indica haver, entre os termos de uma relação oracional
transitiva e os termos de um derivado deverbal argumental, uma
semelhança em dois aspectos: tipo denotativo (ou classe semân-
tica) do predicado (verbo de ação-processo) e papel semântico
dos argumentos selecionados (agente ou causativo e paciente
afetado). De fato, embora no presente estágio da pesquisa não se
tenha feito levantamento quantitativo, os dados levam a supor
que o sufixo –dor combina-se quase sem restrição com verbos
que exibem a propriedade [+Dinâmico]ou [+Controle], por parte
da entidade animada que ocupa a posição do argumento exter-
no, ou as duas propriedades. Contudo, o que esses derivados
parecem não se comprometer a representar, necessária e exclu-
sivamente, é o tipo denotativo do agente prototípico, conforme
será demonstrado adiante.
Considerando a oração transitiva canônica, o agente pro-
totípico pode ser definido pela presença das seguintes proprie-
dades: Causativo, Controlador, Animado, Intencional e Responsável.
Com relação ao derivado argumental, o causativo nem sempre
Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 37
Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

denota um agente prototípico. Podem perfeitamente faltar-lhe


algumas das propriedades características do protótipo. Os da-
dos demonstram que há derivados em –dor com a propriedade
Causativo, mas que são marcados negativamente quanto ao traço
Animado. Enquadram-se nesse caso os deverbais que denotam
instrumento, máquina, aparelho, dispositivo e peça de máquina,
que embora Causativos, não são agentes, considerando-se que,
neste trabalho, o caso Agente é caracterizado em termos de feixes
de traços semânticos, ao invés de um traço discreto (GIVÓN,
1984, p. 107).
É fato que um derivado em –dor, como grampeador, por
exemplo, pode referir-se a um agente prototípico, se usado vir-
tualmente numa oração como O grampeador de textos hoje foi
Gabriel, em que a situação denotada pela base verbal é compatível
com a atuação de um ser humano. Contudo, no plano lexical,
e principalmente pragmático, grampeador mais freqüentemente
especializa-se em denotar um instrumento de grampear e não
tem, portanto, propriedades de seres animados. O sentido da
formação deverbal, porém, continua orientado para o papel
semântico Causativo. Verifica-se aqui, novamente, a ambivalên-
cia de um derivado em –dor, desta feita uma ambivalência não
de ordem morfossintática, mas semântica: grampeador denota
usualmente um Instrumento, mas pode eventualmente, em de-
terminados contextos, denotar o Agente. Este parece ser o caso
também de despertador em (8):
(8) ... era um galo que despertava a gente ... era um despertador e
o galo era um dos componentes né ... do grupo ... ele imitava
direitinho um galo ... (Corpus D&G, p. 73)
De (8) depreende-se a seguinte informação: ‘um dos
componentes do grupo era o despertador da gente’. No caso,
despertador tem todas as propriedades do agente prototípico.
Porém, no nível lexical e pragmático, despertador remete sis-
tematicamente a um objeto concreto, a saber, um certo tipo de
relógio. Conseqüentemente, não apresenta propriedades de seres
animados, embora o sentido da construção derivada permaneça
orientado para o papel semântico Causativo.
Formações adjetivas, como conservador em (9), que são
morfossintaticamente ambivalentes (já que também podem
ser usadas como substantivo em contextos específicos), dis-
tanciam-se muito do agente prototípico. Em primeiro lugar,
essas construções não são denotativas e sim atributivas. Logo,
não denotam seres intencionais, mas se referem a esses seres,
qualificando-os. Nessa relação, parecem assimilar dos substan-
tivos a propriedade do agente prototípico. É essa extensão de
propriedades, certamente, que faculta a omissão do substantivo
(um sujeito conservador, um cara conservador, etc.). Se analisados
sob o prisma dos traços do complexo agentivo, derivados desse

38 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006


A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

tipo compartilham com os agentes prototípicos o tipo semântico


da base verbal (verbos de ação-processo) e os traços Causativo,
Animado, Intencional e Responsável.
(9) ... talvez nesse ponto eu seja meio conservador ... e acho que a
família deve ser preservada”. (Corpus D&G, p. 161)
Exemplos como os apresentados acima apontam para uma
redefinição e refinamento da própria categoria ‘agentivo’, de
modo a permitir a inclusão de casos que se situam nos limites
dessa categoria, mas ainda assim compartilham com ela aspectos
morfossintáticos, semânticos e pragmáticos. São esses aspectos
que, em última análise, motivam o surgimento de novos itens
lexicais na língua, por analogia ao agente prototípico ou extensão
metafórica de suas propriedades. A esse propósito, considere o
neologismo presente no exemplo (10), retirado de uma edição
da revista Veja:
(10) Desde o início da rebelião, Garotinho e Rosinha evitaram a
imprensa. A decisão de não dar explicações sobre a rebelião
também não ajuda a compor a imagem de um executivo resolvedor
de problemas com a qual o ex-governador sonha se apresentar
aos eleitores. (“A Barbárie Anunciada”, Veja, 09/07/04)
Em vista do exposto, assume-se a idéia de que a agenti-
vidade seja tratada como uma propriedade escalar ou gradual
nas construções derivadas em –dor, considerando-se os traços
do complexo agentivo propostos neste trabalho.
Para efeito da análise preliminar ora apresentada, sugere-
se a construção de uma escala provisória para avaliar o grau de
agentividade dos derivados em –dor presentes no corpus. Para
tanto, foram aplicados os traços do complexo de agentividade,
a saber: Causativo, Controlador, Animado, Responsável e Intencional.
Esses traços, se marcados como positivos, assinalam o grau
máximo de agentividade. À medida que eles vão recebendo
marcação negativa, o grau de agentividade do derivado diminui.
Sobre esse aspecto, compare-se, por exemplo, o “comportamento”
mais ou menos agentivo dos derivados diretor e reparadoras,
que figuram, respectivamente, nos exemplos (3), repetido, e (11),
abaixo:
(3) ... saí feito uma louca ... na escola ... procurando o diretor ...
procurando o supervisor ... (Corpus D&G, p. 52)

(11) O médico também atende pacientes queimados ..., estes são


cirurgias reparadoras, e atendemos sem autorização prévia.
(Corpus D&G, p.268)
Em (3), pode-se dizer que o substantivo diretor está situado
no pólo superior da escala, pois exibe todos os traços semânticos
do agente-padrão, quer dizer, todos os traços dessa categoria
são marcados positivamente: Causativo, Controlador, Animado,
Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 39
Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

Responsável e Intencional. Além disso, o tipo semântico do verbo


envolvido na formação desse derivado (verbo de ação-processo)
é o que seleciona o agente prototípico.
Em (11), o adjetivo reparadoras apresenta um baixíssimo
grau na escala de abstração do agente-padrão. Construções desse
tipo não denotam seres intencionais. Sendo adjetivos, denotam
atributos ou propriedades dos seres a que se referem. Analisada
à luz dos traços do complexo agentivo, reparadoras compartilha
com o agente prototípico apenas o tipo semântico da base verbal
(verbo de ação-processo) e o traço Causativo, pois o sentido da
construção está orientado para o papel Causativo.
Observe ainda a ocorrência do deverbal protetor em (12).
Note-se que, a despeito do tipo semântico da base verbal envol-
vida na formação derivada (verbo de ação-processo), protetor
denota um produto ou substância e não um ser intencional.
Assim sendo, embora o sentido do derivado seja orientado para
o papel semântico Causativo, ele recebe, obviamente, marcação
negativa em relação a todos os outros traços do agente prototípi-
co: - Controlador, - Animado, - Responsável e - Intencional. No caso,
esse derivado apresenta o mais baixo grau de agentividade.
(12) ... pra passar o veraneio todo ... vá ... branco volta preto ... você
pode passar protetor solar mil ... (Corpus D&G, p. 372)

4. Conclusões preliminares
Os derivados deverbais em –dor se inserem, de modo geral,
na categoria dos nomes agentivos, considerados como formações
morfológicas que designam um ser pela prática ou exercício de uma
ação ou atividade, especificada pelo verbo. (BASÍLIO, 2004).
O estudo que se empreendeu aqui buscou investigar em
que medida o caso ‘Agente’ (definido não a partir de um traço
discreto, mas de feixes de traços semânticos) se manifesta nas
referidas formações derivadas, tendo constatado a relevância
dos traços do complexo Agentividade na caracterização do pa-
pel semântico dessas construções. Utilizando-se os traços desse
complexo, propôs-se uma escala provisória para avaliar o grau
de agentividade exibido pelos derivados deverbais em –dor. No
desenvolvimento da pesquisa, serão aplicados outros traços do
parâmetro Transitividade de Hopper; Thompson (1980).
Em etapa posterior, pretende-se também testar hipóteses
relacionadas à ambivalência morfossintática dos derivados,
investigando sob que condições sintático-semântico-discursi-
vas tais construções podem ser usadas indistintamente como
substantivos ou adjetivos.
Além dessa questão, considerações bastante gerais foram
feitas sobre o comportamento dos deverbais em –dor quanto à
realização de sua estrutura argumental. Os dados parecem indi-

40 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006


A estrutura argumental das construções deverbais em -dor

car uma preferência pela omissão do argumento objeto em cons-


truções com esses nomes, o que, se confirmado no desenrolar da
pesquisa, reforçaria uma tendência geral dos nomes valenciais,
já constatada em outros estudos sobre deverbais: a tendência da
nominalização a não manter uma estrutura paralela à da base (no
caso, o verbo). Nesses estudos, a nominalização tem sido vista
como estritamente associada à redução da valência (cf. NEVES,
1996; GAMARSKI, 1996). Conforme se viu na análise prelimi-
nar aqui esboçada, com relação à estrutura argumental dos
deverbais em –dor, há indícios de que dois fatores, entre outros,
devem ser levados em conta na consideração da não-expressão
do argumento objeto: 1. relevância informacional do argumento
objeto e 2. contribuição do contexto discursivo-pragmático para
a recuperação desse argumento.

Abstract
Analysis of the argumental structure of N-dor
derivative formation with the aim of investiga-
ting how the features of ‘Agent’ are expressed
in this forms. The work takes into account the
interaction between morphosyntactic, semantic
and pragmatic properties and presupposes a
parallelism between a conceptual and linguistic
categorization. The analysis is supported by lan-
guage actual use.
Keywords: deverbal formations; argument struc-
ture; agentivity.

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Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006 41


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42 Niterói, n. 21, p. 27-42, 2. sem. 2006


Correlações função-forma em dois
períodos do século XX:
indícios de especialização funcional
Maria Alice Tavares – UFRN
Recebido 30, jun. 2006/Aprovado 28, ago. 2006

Resumo
Como resultado de seus processos de grama-
ticalização, os conectores e, aí e então possuem
funções sobrepostas no português brasilei-
ro. À luz do suporte teórico da lingüística
funcional, este artigo focaliza os padrões
de correlação entre e, aí e então e três dessas
funções: seqüenciação textual, seqüenciação
temporal e introdução de efeito. Os dados são
oriundos das seguintes fontes: (i) As vinhas
da ira, romance escrito por John Steinbeck
em 1939, cuja tradução brasileira, datada de
1940, apresenta marcas do dialeto usado nos
anos trinta pelas classes populares do esta-
do do Rio Grande do Sul; (ii) 48 entrevistas
provenientes do Banco de Dados VARSUL,
que foram coletadas ao longo da última dé-
cada do século XX. Os resultados, obtidos
através de análise quantitativa, revelam que
e, aí e então intercalam-se na codificação da
seqüenciação textual, da seqüenciação tem-
poral e da introdução de efeito na primeira e
na segunda metade do século XX. Contudo,
há evidências de mudanças nos padrões de
correlação função-forma: na década de trinta,
aí e então são muito menos utilizados para
codificar algumas das funções em tela do que
na década de noventa.
Palavras-chave: correlações função-forma;
conectores; gramaticalização

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 43- 58, 2. sem. 2006


Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

1. Introdução
A língua se faz...: é um fazer-se num quadro de permanência e
continuidade... Mas o fato de se manter parcialmente idêntica
a si mesma e o fato de incorporar novas tradições é, precisa-
mente, o que assegura a sua funcionalidade como língua e
o seu caráter de objeto histórico. Um objeto histórico só o é,
se é, ao mesmo tempo, permanência e sucessão. (COSERIU,
1979, p. 236)
Observem-se as seguintes ocorrências:
(1) Aí a minha mãe: “Ah! pois é, mas eu tenho que dar baixa nessa
carteira.” Aí o cara falou: “É, mas a senhora não quer nada?” E
1
O código que segue o a minha mãe disse: “Quer nada o quê?” “É porque nós somos
trecho da entrevista a obrigados a vender um ônibus desses pra pagar ele, porque a-
identifica. Por exemplo, a carteira dele não está dando baixa, ninguém deu baixa, né?”
(MC/FLP09J) = infor-
mante MC, natural de (MC/FLP09J)1
Florianópolis (FLP), en-
trevista número 09. Nos
casos em que há uma (2) Mas ele insistiu e disse: “Olha, tem uma equipe de São Paulo,
letra após o número da lá, do Professor Odair Pedroso, se for necessário nós podemos
entrevista, podemos ter
ou J = informante de 15 lhe mandar pra São Paulo fazer um curso.” Então eu disse: “Se
a 21 anos, ou C = infor- é assim, se desejam assim, eu posso tentar, se não decepcionar.”
mante de 09 a 12 anos. Então eu fiquei, realmente três meses em treinamento com a
2
Há outros conectores
que se correlacionam a
equipe do Professor Odair Pedroso num- no Hospital Celso
uma ou mais das três Ramos. (AC/FLP21)
funções sob enfoque,
mas que foram exclu-
ídos deste estudo por (3) Aí no que ele chegou ali, ele me convidou pra mim ouvir música
serem pouco recorrentes com ele. Aí eu disse: “Ah, não, eu não vou, porque amanhã é
nas amostras de dados
consideradas e por não outro dia, e eu, outro dia, tenho que enfrentar todo mundo: pai,
aparecem na codificação mãe, tio, todo mundo, né?” Aí ele disse: “Não, mas, amanhã
de todas essas funções.
Por exemplo, portanto
eu fico contigo.” Eu disse: “Ah, não.” Aí eu não sabia se eu
não indica seqüenciação acreditava nele, se eu ria, se eu chorava, se eu não- Eu não sabia
temporal e depois não in- a minha reação, não tem? (SE/FLP20)
dica introdução de efeito
(cf. TAVARES, 2003a). Já
daí sinaliza as três fun- Extraídos de narrativas orais em trechos de introdução de
ções, porém, conquanto seqüências de discurso direto, com o verbo de elocução dizer no
seja bastante recorrente
em algumas comunida- pretérito perfeito do indicativo, os dados acima ilustram o fato de
des de fala, não o é em
outras (TAVARES, 2006).
que os conectores e, aí e então desempenham papéis similares no
E, aí e então expressam plano da articulação entre partes do discurso. Nesse âmbito, são
ainda outras funções
vinculadas à articulação
freqüentemente utilizados, no português brasileiro contemporâ-
de partes do discurso, neo, para a codificação de três funções semântico-pragmáticas
como a adversão, que
não foi incluída neste em especial: seqüenciação textual, assinalando a ordem discursiva
estudo porque, diferen- pela qual informações são apresentadas e desenvolvidas no
temente do que ocorre
com as funções aqui texto; seqüenciação temporal, interligando eventos que se sucedem
consideradas, existem
outros conectores de
temporalmente; introdução de efeito, exibindo relações de conseqü-
grande recorrência cor- ência ou conclusão.2 Há registros de ocorrência, em uma única
relacionados à ela, como
mas, só que e agora. Uma fonte de dados (cf. seção 3), de e, aí e então na expressão dessas
análise de correlações funções já na primeira metade do século XX, o que motivou a
função-forma engloban-
do todos os conectores realização deste estudo.
adversativos do portu-
guês brasileiro contem-
Ao comparar dados da primeira e da segunda metade do
porâneo ainda está por século XX, pretendo analisar a distribuição de e, aí e então nas
ser levada a cabo.

44 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006


Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

funções de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e intro-


dução de efeito em termos de freqüência de uso, verificando se
houve alterações nos padrões de correlação função-forma nesse
interstício. Busco resposta para uma série de questões. Por exem-
plo, as especializações funcionais de cada conector permanecem
estáveis ou sofrem mudança ao longo do século XX? A cada pe-
ríodo de tempo considerado, um dos conectores destaca-se como
forma codificadora preferencial de uma ou mesmo de todas as
funções em causa? Ou os três conectores partilham espaço na
indicação de cada uma das funções? Mudanças na correlação
de um dos conectores com uma das funções acarretariam mu-
danças na correlação dos demais conectores com essa função,
em efeito dominó?
É preciso considerar ainda que e, aí e então, provenientes de
advérbios do latim, tornaram-se conectores através da grama-
ticalização (cf. BARRETO, 1999; BRAGA, 2003; MARTELOTTA,
1994; TAVARES, 1999b, 2003a; entre outros), processo de mudança
que conduz itens do léxico à gramática, ou que conduz itens a
ela já pertencentes a novos encargos gramaticais. Comparar
correlações função-forma em diferentes épocas pode ser útil
para diagnosticar estágios de gramaticalização, pois é possível
tomar essas correlações como evidências ou da estabilidade ou
do avanço da mudança funcional sofrida por um certo item:
com o passar do tempo, ele pode ter mantido o mesmo grau de
correlação com determinada função, ou pode tê-lo aumentado
ou diminuído. Nesse sentido, os dados aqui considerados trazem
indícios a respeito dos próximos passos a serem seguidos por e,
aí e então em seus processos de gramaticalização?
Nas próximas seções, encontram-se considerações referen-
tes à gramaticalização, os procedimentos metodológicos segui-
dos, uma descrição mais detalhada das funções sob estudo, a
apresentação e a discussão dos resultados obtidos, seguindo-se
as conclusões e as referências.
2. Uma questão de gramaticalização
Neste estudo, busco fundamentação no aporte teórico do
funcionalismo lingüístico norte-americano, que defende que
as correlações entre funções e formas estão continuamente em
mobilidade devido à própria natureza da gramática, um sistema
aberto, fortemente suscetível à mudança e intensamente afetado
pelo uso que lhe é dado no dia-a-dia, inclusive em termos de
freqüência. Ela é, nas palavras de Ford, Fox e Thompson (2003,
p. 122),
[...] um conjunto vagamente organizado de memórias sobre
o que as pessoas ouvem e repetem ao longo de sua vida em
situações de comunicação, um conjunto de formas, padrões
e práticas que surgem para servir às funções que os falantes
necessitam desempenhar com maior freqüência.

Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006 45


Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

Estratégias retóricas envolvendo itens lexicais e/ou grama-


ticais, inicialmente criativas e expressivas, tornam-se habituais
por terem sido utilizadas recorrentemente em determinado tipo
de contexto interacional (HOPPER, 1987). Segundo Thompson
e Couper-Kuhlen (2005), tais padrões gramaticais habituais su-
prem a necessidade humana de seguir modos rotinizados para
agir no mundo: certos tipos de ação desencadeiam certos tipos
de gramática.
O movimento de rotinização gramatical é denominado
gramaticalização, que pode ser definida como o processo de
regularização gradativa pelo qual um item freqüentemente
utilizado em contextos comunicativos particulares adquire
função gramatical e pode, uma vez gramaticalizado, angariar
ainda mais funções gramaticais (HOPPER; TRAUGOTT, 1993).
As mudanças envolvidas na gramaticalização, tanto as morfos-
sintáticas quanto as semântico-pragmáticas, são induzidas pelos
contextos de uso das formas relevantes.
Valendo-se do termo camadas para referir-se a formas
lingüísticas distintas utilizadas para a codificação de uma
3 mesma função gramatical em determinada etapa histórica de
C o n s o a n t e G i vó n
(19 8 4), a g r a m át i c a uma língua, Hopper (1991) prevê que, dentro de um domínio
agrega domínios varia-
dos, cada um abarcando
gramatical, podem emergir, via gramaticalização, novas cama-
um conjunto de formas das para desempenhar funções que, em geral, já são exibidas
gramaticalizadas, isto
é, de uso rotinizado.
por camadas mais antigas. Quando isso acontece, estas não são
Esses domínios podem necessariamente descartadas, e podem permanecer coexistindo
corresponder a áreas
funcionais gerais como e interagindo com as novas, em uma situação de estratificação
TAM (tempo/ aspecto/ (layering), isto é, de sobreposição funcional. O autor apresenta
modalidade) ou caso, ou
a áreas mais específicas, como exemplos de camadas que convivem no mesmo plano
como o tempo passa-
do, o caso nominativo,
funcional as formas do pretérito do inglês: ablaut (They sang),
etc. As formas perti- sufixação (I admired it) e construção perifrástica (We have used it),
nentes a cada domínio
– suas camadas – são um assim como as diversas formas de sinalização do futuro: will, be
conjunto de elementos going to, be + ing, be + to, be about to.3
funcionalmente unifi-
cados, isto é, codificam Vejamos como se comportam os processos de gramati-
o mesmo ou semelhante
papel.
calização de e, aí e então no que diz respeito ao fenômeno de
4
Tavares (2003a) traz estratificação. E é proveniente do conector latino et, por sua
uma análise dos vários vez derivado do advérbio do latim arcaico et/eti ‘também’. Aí,
estágios da gramatica-
lização de e, aí e então do advérbio latino ibi ‘nesse lugar’ ou ‘nesse momento’, e então, do
como conectores, com
base em dados do latim
advérbio latino intunc ‘nesse momento’, receberam, em português,
e das várias fases da papéis adverbiais de natureza dêitica e anafórica espacial e/ou
língua portuguesa, além
de discutir a natureza temporal, dos quais são oriundos seus usos como conectores.4
coordenativa das fun- O conector et já indicava seqüenciação textual, seqüenciação
ções de seqüenciação
textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito, funções conservadas por e em
temporal e introdução
de efeito, bem como a
português. Então também é encontradiço na indicação dessas três
categorização de e, aí e funções já nos primórdios da língua portuguesa (séculos XIII e
então como conectores
coordenativos. Em Bar-
XIV). Contudo, a utilização de aí como conector parece ser um
reto (1999), há uma des- fato bastante recente. Em um estudo anterior (TAVARES, 2003a),
crição da trajetória de
mudança de e/et desde o embora tenha perquirido cerca de quarenta textos portugueses
proto-indo-europeu. e brasileiros de gêneros variados escritos do século ao XIII ao
46 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006
Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

XX, só localizei ocorrências em romances brasileiros escritos a


partir da primeira metade do século XX. É possível, portanto,
que aí tenha se tornado conector apenas no português brasilei-
ro, conclusão reforçada por resultados obtidos através de outro
estudo (TAVARES, 2003b), em que comparei amostras de fala do
português brasileiro e do português europeu, ambas do final
da segunda metade do século XX, e não encontrei, além mar,
dados de aí como conector. Em contraste, no português brasilei-
ro, e, aí e então são recorrentemente utilizados como conectores
denotadores de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e
introdução de efeito, caracterizando, portanto, casos de estrati-
ficação funcional no domínio da articulação de segmentos do
discurso.
Outro efeito típico da gramaticalização é o denominado
por Hopper (1991) de especialização, processo em que uma das
formas estratificadas sofreria abstração e generalização de signi-
ficado, passando a abarcar especificações de sentido e/ou prefe-
rências contextuais que porventura fossem manifestadas pelas
demais. Desse modo, poderia assumir a totalidade ou grande
parte das funções pertinentes a seu domínio gramatical, o que
levaria à diminuição do uso ou mesmo à eliminação das outras
formas, por terem se tornado desnecessárias. A especialização,
portanto, é capaz de suavizar ou mesmo extinguir casos de
estratificação funcional. Há que se considerar também a possi-
bilidade de ocorrência de um outro tipo de especialização, que
se caracteriza não por generalização, mas sim por especificação
de significados. Nesse caso, cada forma seria particularizada
para funções específicas em seu domínio gramatical, o que
também acarretaria o fim da estratificação, embora sem levar
ao desaparecimento de formas.
Quanto mais intensa for uma correlação função-forma,
mais especializada estará a forma para a função, e menor será o
uso de outras formas para a codificação desta. Por conseguinte,
não ocorre estratificação funcional em uma situação caracteri-
zada por correlação de 100% entre uma função e uma forma,
pois há uma única forma especializada para a função em causa.
Em contraste, nos casos de estratificação, diferentes graus de
especialização podem ser encontrados, já que é possível que um
item, embora mais recorrente na codificação de uma dada função,
ainda assim tenha seu espaço partilhado com outros itens, de
menor freqüência. No entanto, em uma situação em que duas
ou mais formas se correlacionam a uma mesma função com
freqüências similares, não se pode falar em especialização: as
formas estariam bastante sobrepostas funcionalmente.
Consideremos um caso de especialização por generaliza-
ção, o de et, que, segundo Coseriu (apud BARRETO, 1999), em
uma etapa de seu processo de gramaticalização ainda no latim,
partilhava funções com outros três conectores copulativos: ac,
Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006 47
Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

atque e o enclítico -que. Atque e ac desempenhavam o mesmo


papel, sendo que o uso de um ou outro dependia do contexto:
ac era empregado preferencialmente antes de palavras iniciadas
por consoante e atque antes de palavras iniciadas por vogal ou
h, embora também pudessem ser usados em outros contextos.
O uso de et indicava adição; o uso de ac/atque indicava adição
e unidade, dando realce ao segundo termo em relação ao pri-
meiro; e o uso de -que indicava adição, unidade e equivalência,
apresentando o segundo membro como um apêndice do anterior
ou como continuação ou extensão dele. A opção entre ac ou -que
dependia da perspectiva resultante da união dos dois termos:
caso pretendesse obter um efeito de forte união, o falante usaria
–que: patter materque = pai e mãe; caso não pretendesse estabelecer
tal equivalência, empregaria ac ou atque: poema tenerum et mo-
ratum atque molle = poema fraco, arrastado e mole. Essas nuanças,
entretanto, não eram sensíveis e, muitas vezes, et substituía os
outros conectores.
As relações entre et, ac/atque e -que são típicas de uma
situação de estratificação, pois, embora cada conector apresen-
tasse tendências de uso particulares (isto é, cada um possuía
um certo grau de especialização funcional), tais tendências não
se revelavam categóricas, mas sim preferenciais. Assim, o uso
sobreposto era possível, e, em especial, et, de significado cada
vez mais generalizado, podia facilmente ser utilizado nos con-
textos típicos das demais formas. Como desdobramento de seu
processo de gramaticalização, et passou a preponderar sobre
ac/atque e –que, acarretando sua eliminação. Com o desapare-
cimento destes conectores, as nuanças de significação ligadas
a seu uso deixaram de receber expressão formal específica, e
foram acopladas ao conjunto de funções desempenhadas por
et. Já na época imperial romana, et reinava sozinho no domínio.
Chegou ao português sob a forma e, conservando os mesmos ou
similares papéis que exibia no latim.
Podemos considerar como exemplo de especialização por
especificação o caso descrito por Silva (1996), envolvendo os
pronomes possessivos seu/sua e dele/dela no português brasileiro.
Por volta do século XVIII, a forma você emergiu como pronome
pessoal, derivado de um processo de gramaticalização que partiu
do pronome de tratamento Vossa Mercê. Você denota a 2ª pessoa
do singular, mas, de acordo com a norma canônica, concorda
morfologicamente com a 3ª pessoa gramatical (Você come). Uma
das conseqüências desse fato é que a forma seu/sua, possessivo
correspondente à 3ª pessoa do singular ele/ela, passou a corres-
ponder também a você, gerando casos de ambigüidade, como
em “Joana, vi Stella beijando seu namorado”, que pode significar
que o namorado é de Joana ou de Stella. Para resolver essa am-
bigüidade, há várias estratégias, entre as quais a utilização do
genitivo dele/dela para a referência à 3ª pessoa (“Joana, vi Stella
48 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006
Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

beijando o namorado dela”), principalmente na língua oral. Con-


figura-se, portanto, um fenômeno de estratificação envolvendo
seu/sua e dele/dela como camadas na expressão do possessivo de
3ª pessoa. Nesse papel, conforme apontado por Silva, houve, na
oralidade, um aumento da freqüência de ocorrência de dele/dela
– de 75% na década de 70 para 91,6% na década de 80, resultado
que mostra que esta forma está altamente especializada para a
3ª pessoa do singular, ao passo que seu/sua tem sido reservado
para a 2ª pessoa (você).
A análise de correlações função-forma em um domínio
gramatical somente será completa se forem levadas em conta
todas as formas relevantes, porquanto é o uso dado a cada uma
delas que define os rumos do domínio como um todo. Como
sublinham Hopper e Traugott (1993), a gramaticalização de um
determinado item nunca ocorre isoladamente. O percurso de
mudança de uma forma depende das trajetórias seguidas por
outras formas: sem a consideração do conjunto dos usos, prova-
velmente passaria despercebido se – e em que grau – o aumento
de recorrência de uma das formas tem levado as demais a se
deslocarem rumo a outras funções ou mesmo se as tem colocado
em risco de extinção.
3. Procedimentos metodológicos
Lanço mão de duas amostras do português brasileiro para
compará-las no que diz respeito às correlações entre as funções
de sequenciação textual, sequenciação temporal e introdução de
efeito e os conectores e, aí e então: (i) as ocorrências do final da
primeira metade do século XX foram obtidas na tradução brasi-
leira do romance regionalista norte-americano The grapes of wrath,
escrito em 1939 por John Steinbeck e traduzido para o português
sob o título As vinhas da ira em 1940; (ii) as ocorrências da fala
de florianopolitanos nativos foram angariadas em 48 entrevistas
pertencentes ao Banco de Dados VARSUL. Essas entrevistas
foram coletadas ao longo da última década do século XX.
Merecem comentários as razões pelas quais optei pela
comparação de resultados provenientes de amostras de dados
tão díspares, uma de fala real de uma comunidade brasileira e
outra de diálogos fictícios entre personagens em um texto es-
crito. A coleta de dados de então e especialmente de aí no papel
de conectores em textos orais e escritos de épocas anteriores
ao final da segunda metade do século XX é tarefa árdua, pois
sua freqüência de aparecimento é bastante baixa, ao contrário
do que ocorre com e. Em busca de dados, revistei um total de
quarenta textos – de vários autores e gêneros, publicados do
século XIII ao século XX (cf. TAVARES, 2003a). Constatei que,
em todos os recortes de tempo efetuados, e é sempre abundante
e então é encontradiço desde o século XIII, embora, à exceção de
As vinhas da ira, com pouca freqüência para a execução de uma
Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006 49
Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

análise quantitativa. Já as ocorrências de aí somente começam


a aparecer no início do século XX e, mesmo nesse período, são
bastante escassas. Outros pesquisadores têm se defrontado com
o mesmo problema. Por exemplo, Braga (2003, p. 07) aponta
como “[...] dificuldade básica inerente aos estudos voltados para
a trajetória de aí [...]: a inexistência de material diacrônico que
fundamentasse a análise.” As vinhas da ira fornece, dessa guisa,
o que pode ser considerado uma raridade: dados suficientes de
e, aí e então provenientes de uma fatia de tempo não tão próxima
da atual.
Afora ser o único texto que traz material para a análise,
também motiva a seleção de As vinhas da ira para este estudo
o fato de que os dados daí extraídos, embora provenientes de
tentativas de imitação da oralidade na fala de personagens, e
não da fala real de uma comunidade, podem ser tomados como
refletindo usos reais da época em dialetos do extremo sul do
Brasil. Em The grapes of wrath, os personagens falam de acordo
com a “linguagem chã dos homens de sua condição” (STEIN-
BECK, 1940, p. 10), integrantes de classes socio-economicamente
desfavorecidas. Para manter o tom de oralidade e o destaque à
presença de traços de língua não-padrão na fala dos persona-
gens, a tradução para o português se valeu das marcas do dialeto
das classes populares do estado do Rio Grande do Sul. Sobre
a “audácia” dos tradutores Ernesto Vinhaes e Herbert Caro em
inserir em sua tradução a linguagem popular do Rio Grande
do Sul, Menon (2000, p. 149) aponta que “provavelmente, para
terem reproduzido tão fielmente esse dialeto, eram eles mesmos
utentes dessa variedade, pois em nenhum momento parece haver
artificialismo nas falas das personagens.” Assim, interpretarei
os resultados obtidos através da análise da fala das personagens
de As vinhas da ira como pistas indicativas (as melhores a que
tenho acesso) de correlações função-forma vigentes em 1940, no
Rio Grande do Sul.
Cumpre salientar ainda que, embora os traços dialetais
presentes em As vinhas da ira sejam de fala gaúcha, acredito
ser possível tomá-los como representando um estágio anterior
de língua em relação à fala florianopolitana mais recente, em
virtude da proximidade geográfica dos estados do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina. Além disso, em um estudo anterior
(TAVARES, 1999a), com o objetivo de destacar semelhanças e
diferenças relativamente às restrições sociolingüísticas sobre o
emprego de conectores em duas comunidades de fala brasileiras
– Florianópolis e Rio de Janeiro, constatei que grupos de fatores
sociais (sexo, idade e escolaridade) e lingüísticos (tipo de discurso e
traços semânticos do verbo) condicionadores do uso de e e de aí em
terras cariocas atuavam de modo semelhante sobre o uso dos
mesmos conectores em terras florianopolitanas (com freqüências
e pesos relativos bastante próximos). Tal similaridade parece
50 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006
Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

evidenciar a existência de tendências gerais quanto à distribuição


sociolingüística desses conectores no português brasileiro do
final do século XX, independentemente da região considerada,
hipótese que pode ser estendida para as comunidades de fala
gaúcha e catarinense do final da primeira metade do século XX.
Destarte, parto da suposição de que os usos dados a e, aí e então
em 1940, no Rio Grande do Sul, assemelhava-se aos usos dados
a esses conectores na mesma época, em Santa Catarina, o que
permite a comparação das duas amostras de dados selecionadas
para este estudo.
Como As vinhas da ira é um romance bastante extenso, com
um total de 489 páginas e 24 capítulos na edição consultada
(a primeira edição em português brasileiro, datada de 1940),
recolhi dados dos trechos de fala das personagens apenas nas
197 páginas iniciais (da página 07 à 204), nos capítulos I, III,
V, VII, IX, XII, XIV e XV. Deixei de lado também os capítulos
intercalados (II, IV, VI, VIII, X, XI e XIII), em que o narrador
tece considerações pertinentes à narrativa, destacando aspectos
históricos, geográficos, sócio-econômicos, entre outros, sem dar
voz às personagens.
Quanto aos dados de Florianópolis, como os conectores e,
aí e então são bastante recorrentes na fala, considerei apenas os
30 minutos finais das 48 entrevistas, que têm cada uma cerca de
60 minutos de duração. Elas foram realizadas com informantes
florianopolitanos nativos distribuídos em relação às variáveis
sociais sexo, idade (em quatro faixas etárias: 09 a 11; 15 a 21; 25 a
45; mais de 50 anos) e escolaridade (em três níveis: 4a ou 5a séries
do ensino fundamental; 8a série do ensino fundamental; 3o ano
do ensino médio). Todas as entrevistas foram coletadas na última
década do século XX e pertencem ao Banco de Dados VARSUL
(Variação Lingüística Urbana da Região Sul).
Obtive, na amostra extraída de As vinhas da ira, um total de
734 ocorrências de e, aí e então, e, na amostra de Florianópolis,
um total de 2.813 ocorrências desses conectores. Em 100% desses
dados, os conectores introduzem a unidade que possuem por
escopo, ocupando a posição de extrema margem esquerda, isto
é, entre o final de uma oração ou parte maior do texto e o início
de outra, indício de que estão altamente rotinizados nessa que
é a posição sintática típica dos conectores.5
4. Sobre as funções
5
Silva, Tarallo e Braga Como funções semântico-pragmáticas pertinentes ao
(1996), em um estudo
utilizando amostras do
domínio da articulação de partes do discurso, a seqüenciação
NURC, também apon- textual, a seqüenciação temporal e a introdução de efeito são
tam que os conectores
ocorrem preferencial- interpretadas pelo ouvinte a partir da soma de diversos indícios:
mente à extrema esquer- o que foi dito antes, o que se seguiu, inferências e implicaturas
da dos enunciados: e e aí
em 100% das ocorrências em jogo no momento da interação. Também contam as experi-
e então em 97,16%. ências anteriores dos interlocutores, a sua familiaridade com a
Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006 51
Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

gama de tonalidades passíveis de colorirem as tramas coesivas


alinhavadas entre partes do discurso. A seguir, as três funções
são descritas e exemplificadas.
A seqüenciação textual é uma estratégia coesiva que assi-
nala a ordem pela qual as unidades conectadas são apresentadas
e desenvolvidas ao longo do tempo discursivo, salientando o
encadeamento de uma porção anterior do discurso com uma
posterior. Alguns exemplos:
(4) E tratou de explicar: --- A estrada ‘tá cheia de gente e todo o
mundo quer água e suja a privada e rouba o que pode e não
compra coisa nenhuma. (As vinhas da ira, p. 130)

(5) Um moleque dos bons. Já faz uma semana que não vem em casa.
[...] Eu era pior. Era muito pior, um demônio, que nem tu; – disse
radiante. – Então, tinha um culto campestre em Sallisaw quando
eu tinha a idade do Al, um pouco mais do que ele. Ele é um
menino ainda, não entende de nada, mas eu era um pouco mais
velho. Tinha umas quinhentas pessoas nesse culto e uma porção
de crianças. (As vinhas da ira, p. 85)

(6) Ela tinha de cento e sete a cento e quatorze, a tia Pequena. Ela
tinha acabado de morrer. Aí ela morreu no sábado, às nove
horas, e a mãe morreu às cinco horas de- cinco e vinte da manhã
de domingo. Logo depois. (RO/FLP03)

(7) E eu e a S., a gente se perdeu lá, porque a gente andava sempre


juntas, né? Então, tem duas descidas e a gente não sabe qual
a descida que é pra gente sair, e eles não dão informação, tu
sabes? Os paraguaios, eles não dão pra gente- informação pra
gente. (AT/FLP09)
A seqüenciação temporal emerge quando eventos são apre-
sentados no discurso de acordo com a ordem em que ocorreram
no tempo, envolvendo a pressuposição de que o segundo evento
ocorreu mais tarde em relação ao primeiro:
(8) Bem, agora o senhor pode ajudar. Preste atenção: eu vou bater,
que é pra afrouxar um pouco êsse troço. Aí o senhor tira êsses
parafusos em cima e eu tiro os parafusos de baixo. Cuidado com
o mancal. (As vinhas da ira, p. 181)

(9) O velho Tom Joad disse: “mergulha êle na água.” Então eu


peguei na sua cabeça e empurrei ela pra debaixo da água. (As
vinhas da ira, p. 47)

(10) Eu muitas vezes me abaixei ali defronte ao banquinho do freguês


e ajudei ele a- a calçar o sapato. (AL/FLP22)

52 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006


Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

(11) Botava o espetinho, assim, dentro do fogão à lenha, que na


época não existia fogão a gás. Botava, assim, deixava assar
aquela manta de carne seca. Então ela passava a mão, dividia
aquele alguidar em- Lógico, ela não botava até em cima, botava
até certa altura. (PE/FLP02)
Introdução de efeito é o rótulo por mim atribuído à adição,
no discurso, de informações que representam conclusão ou con-
seqüência em relação ao que foi dito anteriormente. Tanto a cro-
nologia temporal quanto a discursiva podem estar implicadas:
a primeira, quando os casos de introdução de efeito envolvem
a interligação de eventos que se sucedem temporalmente, sendo
o primeiro a causa e o segundo sua conseqüência. No entanto,
quando são conectados argumentos sem relação de implicação
temporal, temos cronologia discursiva: ou um argumento-causa
precede um argumento-conseqüência, ou, de um argumento
anteriormente dado, deriva uma certa conclusão. Vejamos os
exemplos:
(12) O homem meteu-se a besta e tive que dar nele. (As vinhas da ira,
p. 283)

(13) Tu voltou, Tommy. Então, tu pode ir com a gente. Tu pode vir!


(As vinhas da ira, p. 74)

(14) Porque uma vez ele- ele soltou as galinhas, foi tudo pra debaixo
de um porão, aí foi o ovo tudo pro pau. (AZ/FLP04)

(15) É como se tivesse sempre alguém vigiando a pessoa. Não tens


liberdade. Então é melhor viver sem o vício, né? (DA/FLP17)

5. Correlações função-forma
As tabelas 1 e 2 apresentam, em forma de freqüências e
percentuais, as correlações entre e, aí e então e as funções de
seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de
efeito na primeira e na segunda metade do século XX:
E AÍ ENTÃO
FUNÇÕES Ap./Tot. % Ap./Tot. % Ap./Tot. %
Seqüenciação textual 302/315 96 02/315 01 11/315 03
Seqüenciação temporal 223/268 83 24/268 09 21/268 08
Introdução de efeito 72/151 48 12/151 08 67/151 44
TOTAL 597/734 82 38/734 05 99/734 13

Tabela 1: Correlações função-forma


no final da 1ª metade do século XX
No final da primeira metade do século XX, em As vinhas
da ira, a seqüenciação textual é fortemente associada ao apare-
cimento de e, com freqüência de 96%, quase caracterizando uso
categórico. Trata-se, portanto, de uma correlação função-forma
próxima de 100%. A sequenciação temporal também se encon-

Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006 53


Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

tra fortemente vinculada a e, em 83% das ocorrências, mas aí e


então ocupam um pequeno espaço na expressão desta função
(8 e 9%, respectivamente). Há, pois, alta correlação entre e e a
seqüenciação textual e a seqüenciação temporal: o conector está,
na fatia de tempo sob enfoque, altamente especializado para tais
funções. Por outro lado, não é possível apontar a existência de
uma forte correlação entre a introdução de efeito e apenas uma
de suas formas codificadoras, pois as freqüências de uso de e e
de então são similares: 48 e 44%, respectivamente.
E AÍ ENTÃO
FUNÇÕES Ap./Tot. % Ap./Tot. % Ap./Tot. %
Seqüenciação textual 861/1420 60 279/1420 20 280/1420 20
Seqüenciação temporal 465/907 51 402/907 44 40/907 04
Introdução de efeito 131/486 27 147/486 30 208/486 43
TOTAL 1457/2813 52 828/2813 29 528/2813 19

Tabela 2: Correlações função-forma


no final da 2ª metade do século XX
No final da segunda metade do século XX, em Florianó-
polis, o aparecimento de e ainda está bastante correlacionado à
seqüenciação textual (60%), mas não de modo quase categórico
como em As vinhas da ira. Nesse papel, houve uma elevação no
aparecimento de aí e de então (ambos com 20%). Quanto à seqüen-
ciação temporal, e e aí possuem freqüências próximas (51 e 44%,
respectivamente), o que impossibilita considerar que haja uma
maior especialização de um deles para a referida função. Neste
caso, portanto, e e aí correlacionam-se fortemente a uma mesma
função. É possível observar ainda que então perdeu espaço na
indicação da seqüenciação temporal, de 8% em As vinhas da ira
para 4% em Florianópolis.
Finalmente, no que diz respeito à introdução de efeito, e
teve seu uso diminuído de 48 para 27% e aí teve seu uso aumen-
tado de 8 para 30%. Já então não apresenta alteração em termos
de freqüência entre as duas metades do século XX: passa de 44%
na primeira a 43% na segunda. Ou seja, todos os conectores são
utilizados com boa freqüência como marcas da introdução de
efeito: e detém 27% dos casos, aí 29% e então 43%. Há, portanto,
três formas correlacionadas à mesma função, embora em dife-
rentes graus: então é o conector de maior recorrência e e é o de
menor, em contraste com o que ocorria na primeira metade do
século XX, em que este último era o conector mais utilizado na
indicação da introdução de efeito.
Consideremos tais resultados à luz das duas possibilidades
de especialização descritas na seção 2, generalização e especificação.
As especializações quase categóricas de e para a sequenciação
textual e para a seqüenciação temporal no final da primeira me-
tade do século XX apontam para o fenômeno de especialização por
generalização: no domínio da articulação entre partes do discurso

54 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006


Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

de 1940 representado em As vinhas da ira, e reina quase absoluto


(com a freqüência geral de 82%), cedendo pouco espaço para aí e
então (que contam juntos com 18% do total de dados). Se e tivesse
tido, posteriormente, seu uso ampliado ainda mais, poderia ter
substituído de vez seus concorrentes, configurando-se assim um
caso de especialização similar ao de et no latim, que desbancou
at/atque e ­-que (cf. seção 2).
Contudo, os resultados obtidos para as correlações função-
forma no final da segunda metade do século XX em Florianópolis
revelam especializações bem menos categóricas, o que parece
eliminar a hipótese de que uma das formas venha a predomi-
nar sobre as demais na codificação de todas as três funções. Por
conseguinte, atualmente, a possibilidade de especialização por
generalização é remota.
E continua se destacando na indicação da seqüenciação
textual, mas aí e então tiveram um bom aumento de uso nessa
função. Quanto à seqüenciação temporal, a taxa de emprego
de e e aí é similar, e, na indicação da introdução de efeito, os
três conectores recorrem com boa freqüência. Talvez um dos
desdobramentos futuros dessas correlações seja a especializa-
ção por especificação, caso em que cada conector se tornaria
especializado para uma função distinta no plano da articulação
do discurso. Entretanto, com base nos resultados obtidos, é pre-
maturo afirmar que e, aí e então poderão passar a predominar
em papéis distintos. Para cada função, no português brasileiro
contemporâneo, há mais de uma forma fortemente correlacio-
nada, situação que contrasta com a que ocorre, por exemplo, no
caso dos pronomes possessivos seu/sua e dele/dela na oralidade
(cf. seção 2).
É interessante observar ainda que a freqüência geral de e,
considerando a totalidade dos dados, diminuiu de 82% em As
vinhas da ira para 52% em Florianópolis, a de aí sofreu uma ele-
vação de 05 para 29% e a de então de 13 para 19%. Em um estudo
6
No português europeu anterior (TAVARES, 2003b), comparei amostras de fala recentes
do final do século XX,
destacam-se também os do português brasileiro e do português europeu, datadas do final
conectores portanto (16%)
e então (2%). A distribui-
do século XX, e encontrei uma alta taxa de aparecimento de e
ção por função é a se- no português europeu: ele foi responsável por 82% das ocorrên-
guinte: (i) sequenciação
textual: e = 88%, portanto cias, somando-se os casos de seqüenciação textual, seqüencia-
= 10%, então = 2%; (ii) se- ção temporal e introdução de efeito. Parece, portanto, que, em
qüenciação temporal: e =
98%, portanto = 1%, então relação à utilização de e, os resultados referentes ao português
= 1%; (iii) introdução de
efeito: e = 43%, portanto =
brasileiro na primeira metade do século XX em As vinhas da ira
51%, então = 6%. Maiores estão próximos daqueles encontrados para o português europeu
informações podem ser
conferidas em Tavares na segunda metade do século XX: em ambas e é responsável por
(2003b). No português 82% dos dados.6
brasi lei ro, encont rei
ap e n a s u m dado de No caso do português brasileiro, houve ampliação da
portanto na amostra de
Florianópolis, e nenhum
utilização de aí e de então e retração da utilização de e, o que
na fala dos personagens distanciou os domínios da seqüenciação do final da primeira
de As Vinhas da ira.
metade e do final da segunda metade do século XX, bem como
Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006 55
Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

os domínios brasileiro e europeu da atualidade. Na Florianó-


polis do final do século XX, as freqüências revelam correlações
função-forma que estão longe das opções quase categóricas pelo
e encontradas em As vinhas da ira.
6. À guisa de conclusão
A análise da distribuição dos conectores e, aí e então nas
funções de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e in-
trodução de efeito trouxe evidências a respeito das correlações
função-forma que se conservaram enraizadas ao longo do século
XX e das que sofreram mudança. Conquanto e, aí e então interca-
lem-se na sinalização das funções sob enfoque tanto na primeira
como na segunda metade do século, os padrões de ocorrência
de cada conector como marca formal de cada função parecem
ter sido bastante alterados.
Na primeira metade do século XX, e é a forma codificadora
preferencial da seqüenciação textual e da seqüenciação temporal,
além de também se destacar na introdução de efeito, ao lado de
então. Contudo, na segunda metade do século, e partilha boa
parte da tarefa de indicação da seqüenciação textual e da intro-
dução de efeito com aí e então e da seqüenciação temporal com aí.
O aumento da taxa geral de uso de então (de 13 para 19%) e em
especial de aí (de 5 para 29%) teve como contraparte, em efeito
dominó, a diminuição de uso de e em todas as funções, embora
ele ainda seja o conector predominante na seqüenciação textual
e na seqüenciação temporal.
A grande elevação da freqüência de aparecimento de aí,
forma relativamente recente no domínio da articulação discur-
siva, pode ser tomada como evidência de que houve avanços em
sua gramaticalização ao longo do século XX na direção de uma
maior consolidação como conector sinalizador de três funções
semântico-pragmáticas vinculadas ao domínio, inclusive a se-
qüenciação textual, à qual, na primeira metade do século, era
pouco correlacionado (1%).
As correlações função-forma mais estáveis ao longo do
século XX foram as de então, que, apesar de ter aumentada sua
recorrência na expressão da seqüenciação textual (de 3 para 20%),
teve pequena variação na expressão da seqüenciação temporal
e manteve o mesmo patamar de vínculo com a introdução de
efeito.
Este estudo, portanto, revelou relações dinâmicas e fluidas
entre funções e formas ao longo do século XX, servindo para
diagnosticar possíveis rumos a serem tomados pelo domínio
de articulação de partes do discurso no português falado e do
processo de gramaticalização de cada conector em particular:
embora os resultados referentes à primeira metade do século
XX apontassem para o fenômeno de especialização por genera-
lização dado o forte predomínio de e na expressão de todas as
56 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006
Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional

funções, os resultados referentes à segunda metade do século


descartam essa possibilidade, pois, para cada função, há mais
de uma forma fortemente correlacionada. Contudo, se ocorrerá
especialização por especificação, somente os desenvolvimentos
futuros do domínio da articulação poderão indicar.
Abstract
As an outcome of grammaticalization processes,
connectors e, aí and então have overlapped func-
tions in Brazilian Portuguese. From the theore-
tical support provided by functional linguistics,
this paper focuses on the patterns of correlation
between e, aí and então and three of these func-
tions: textual sequenciation, temporal sequencia-
tion and effect introduction. The data come from
the following sources: (i) The grapes of wrath, an
novel written by John Steinbeck in 1939, which
1940 Brazilian translation brings markers of the
dialect used in the thirties by working classes in
the southest state of the country, Rio Grande do
Sul; (ii) 48 interviews from the VARSUL Data
Base, which were collected during the last decade
of the XX century. The results, obtained through
quantitative analysis, show that e, aí and então
are used to code textual sequenciation, temporal
sequenciation and effect introduction both in the
first and second half of the XX century. Howe-
ver, the results also bring to light evidence that
the patterns of function-form correlations have
changed: in the thirties, aí and então are much
less used to code some of these functions than they
are in the nineties.
Keywords: function-form correlations; connec-
tors; grammaticalization
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58 Niterói, n. 21, p. 43-58, 2. sem. 2006


Gramaticalizaçao de conjunçoes
coordenativas: a história
de uma conclusiva
Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi
Recebido 30, jun. 2006/Aprovado 30, ago. 2006

Resumo
Neste trabalho, analiso aspectos relativos à
gramaticalização de conjunções coordenativas.
Assumindo que fatores de ordem cognitiva e
pragmática interagem para a criação de novos
itens gramaticais, e adotando uma concepção de
coordenação fundamentada em critérios semân-
tico-funcionais, reconstruo o percurso histórico-
evolutivo da conjunção conclusiva logo, a partir
de fontes históricas do português.
Palavras-chave: gramaticalização; conjunção;
coordenação; lingüística histórica.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 59- 72, 2. sem. 2006


Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi

Apresentação
Este trabalho trata de um fato lingüístico - já conhecido e
anunciado pelos historiadores do português - que é a relação
genética existente entre os usos adverbial e conjuncional de
logo: o primeiro está na base da constituição do segundo. Bueno
(1968), por exemplo, argumenta que a conjunção conclusiva logo
é o mesmo advérbio temporal, mas “com nova função gramati-
cal”. Contudo, resta explicar ainda como se deu o processo de
transição entre essas categorias, o que pretendo fazer ao longo
desta exposição, por meio da consolidação de dois objetivos
mais específicos. Considerando tal processo como um fenômeno
legítimo de Gramaticalização, meus propósitos são: (i) explicitar
a relação que existe entre o sentido da conjunção logo e o sentido
do advérbio logo, relação esta que estaria na origem da derivação
histórica; e, (ii) explicitar o contexto lingüístico que teria favo-
recido a alteração na fronteira dos constituintes e a posterior
reinterpretação do advérbio como conjunção.
1. Gramaticalização de conjunções
Entende-se por “gramaticalização” um processo especial de
mudança lingüística, principalmente diacrônico e gradual, em
que itens lexicais plenos passam a funcionar como expressões
gramaticais específicas, em razão de um conjunto de alterações
nos vários componentes da linguagem, sobretudo no sintático e
no semântico. Trata-se, em outras palavras, de uma evidência de
que as gramáticas das línguas são constantemente remodeladas,
via processos de mudança que reutilizam material da própria
língua.
Dos muitos fenômenos de gramaticalização, a formação de
conjunções tem se mostrado um domínio extremamente fértil,
visto que, na história das línguas, essa classe de palavras sempre
esteve sujeita à renovação (MEILLET, 1912). Particularmente, no
campo das conjunções de coordenação, os estudiosos concordam
que a fonte diacrônica é, até certo ponto, transparente. Paul (1886)
já afirmava que as conjunções (“palavras de ligação”, em sua
terminologia) derivam historicamente de advérbios conjuncio-
nais ou de alguns usos de pronomes conjuncionais, itens que já
serviam para ligar orações antes mesmo de se transformarem
em conjunções propriamente ditas. Said Ali (1964, p. 220) tam-
bém destaca o papel de advérbios e pronomes na formação de
conjunções:
Obscura é a origem de algumas conjunções latinas; porém a
julgar por aquelas cujo histórico se conhece, a linguagem não
teria creado vocábulos especiais para constituir a nova catego-
ria. Serviram a este fim advérbios que, de modestos determi-
nantes de um conceito único, se usaram como determinantes
de toda uma sentença; e serviram também pronomes do tipo

60 Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006


Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história de uma conclusiva

relativo-interrogativo, ou temas pronominais acrescidos de


novos elementos.
Câmara (1975), por sua vez, é mais categórico e defende
que “geneticamente, a conjunção coordenativa é sempre um
advérbio”. Além disso, ele chama a atenção para o fato de que,
em português, as conjunções não são os únicos mecanismos
gramaticais que dão conta de expressar a coordenação sindéti-
ca. Ao lado delas, há uma série de advérbios que, quer simples
ou em locução, estabelecem um elo coordenativo entre orações
e até mesmo porções maiores de texto. Essa correlação estreita
entre advérbio e conjunção também é mostrada no trabalho de
Mithun (1988). A partir do estudo das formas de coordenação
em línguas tipologicamente diversas, a autora mostra que as
conjunções coordenativas tendem a derivar principalmente de
advérbios discursivos.
É nessa perspectiva que o presente trabalho persegue o
objetivo de analisar o processo histórico-diacrônico que levou
à formação em português da conclusiva logo. A análise pretende
enfocar dois aspectos salientes da mudança por gramaticaliza-
ção. De um lado, examino as alterações de sentido, tendo em
vista que elas são conduzidas por dois mecanismos distintos,
mas complementares. Um deles, que é de natureza cognitiva,
consiste na projeção, em passos discretos, de significados de
um domínio cognitivo mais concreto para um mais abstrato,
enquanto o segundo, que é de natureza pragmática, consiste
na transição gradual e contínua de um significado a outro, por
meio da reinterpretação contextual.
De outro lado, examino as alterações sintáticas, tendo em
vista que, segundo Hopper e Traugott (1993), a mudança de
categoria segue uma tendência particular em que categorias
menores (preposição, conjunção, auxiliares) derivam de cate-
gorias maiores (nomes, verbos) ou de categorias intermediárias
(adjetivos, advérbios), por meio de estágios de sobreposição, que
revelam a gradualidade na fixação das categorias. A constituição
do estatuto conjuncional de logo será examinada à luz de uma
concepção de coordenação fundamentalmente semântica, for-
mulada a partir de um texto de Bally (1944), cuja importância já
foi reconhecida por Ducrot (1977), Geraldi (1981), Koch (1987),
Guimarães (1987) e Carone (1988).
2. Alterações no sentido
Em conformidade com os pressupostos da lingüística
cognitiva e da lingüística funcionalista, defendo que as funções
sociais e cognitivas desempenhadas pela língua têm um papel
singular no processo de criação da gramática dessa língua que,
por sua vez, equivale a um conjunto de estruturas que experi-
mentam constantes acomodações – ou gramaticalizações - já que

Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006 61


Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi

se prestam à satisfação das necessidades de expressão e comu-


nicação. Portanto, lanço mão sobretudo de fatores cognitivos e
pragmáticos para explicar aspectos da mudança de significados
envolvida na gramaticalização.

2.1 Fatores cognitivos e pragmáticos


O entendimento dos processos semânticos envolvidos
na gramaticalização recebeu uma formulação consistente nos
trabalhos de Sweetser (1988, 1991), que são fundamentados
numa semântica de orientação cognitivista, aliada às tradições
em análise pragmática e teoria dos atos de fala. A questão que
está no centro das discussões promovidas na obra de Sweetser é
aquela de saber o que acontece com os significados nas mudanças
semânticas que acompanham os processos de gramaticalização.
Rejeitando a hipótese de semantic bleaching, amplamente aceita
desde o trabalho pioneiro de Meillet (1912), a autora propõe um
mecanismo geral de mudança semântica que opera por meio
de projeções metafóricas entre diferentes domínios conceituais.
Nesse mecanismo, a metáfora é concebida como uma “estratégia
cognitiva” que possibilita a emergência de itens gramaticais,
na medida em que atua como veículo na transferência de sig-
nificados de um domínio cognitivo mais concreto, próximo à
experiência física, para um domínio mais abstrato, próximo às
experiências mental e conversacional.
Segundo a autora, tais projeções são sempre parciais. O que
é transferido de um domínio a outro são unidades inferenciais
altamente abstratas, de modo que o mecanismo de mudança se
efetiva por meio de duas etapas: (i) uma unidade inferencial é
abstraída a partir de um domínio de conceituação mais concreto,
etapa em que pode haver descarte de traços de significado; e, (ii)
essa unidade é projetada em um domínio mais abstrato, possi-
velmente mais subjetivo, dentro do qual pode assimilar novos
traços. Fica evidente, então, a inadequação do modelo bleaching,
já que, na realidade, segundo a autora, há uma reorganização
semântica, com possível perda, preservação e ganho de traços
semânticos:
[...] there is a sense in which grammaticalization involves
loss of meaning, and another sense in which it does not.
Whenever abstraction occurs – for example, when an
image-schematic structure is abstracted from a lexical
meaning – there is potential loss of meaning. [...] But if the
abstracted schema is transferred from the source domain
to some particular target domain, then the meaning of
the target domain is added to the meaning of the word.
(SWEETSER, 1988, p.12)
Para exemplificação, Sweetser recorre ao processo de
mudança de go, do inglês, que de verbo de movimento passou
a auxiliar marcador de futuro. Segundo ela, no caso de go, a
62 Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006
Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história de uma conclusiva

projeção de movimento físico para futuridade se deu graças à


projeção da inferência “deslocamento linear de um ponto a ou-
tro”, do domínio físico-espacial, mais concreto, para o domínio
temporal, menos concreto.
Assim, da perspectiva de Sweetser, as mudanças semân-
ticas são, até certo ponto, previsíveis. Essa previsibilidade tem
motivação no interior de uma teoria que toma a percepção hu-
mana como o alicerce da estrutura das línguas. A metáfora é,
nesse contexto, a principal força de estruturação semântica, pois
as mudanças semânticas seguem uma trajetória unidirecional de
crescente abstratização que é justificada pela unidirecionalidade
inerente às conexões metafóricas.
Também numa linha cognitivista, Heine e outros (1991)
descrevem a transferência entre estruturas fonte e alvo a partir
de uma hierarquia de categorias cognitivas, que eles organizam
da seguinte forma: Pessoa > Objeto > Atividade > Espaço >
Tempo > Qualidade. Cada categoria, que inclui uma variedade
de conceitos, representa um domínio de conceituação relevante
para a experiência humana. A relação entre as categorias é de
natureza metafórica, no sentido de que qualquer categoria pode
ser usada para conceituar outra categoria, contanto que esta
esteja à sua direita. Desse modo, Objeto pode ser usado para
conceituar Espaço, que pode ser usado para conceituar Tempo,
e assim por diante. Outras hierarquias foram propostas, por
exemplo, Traugott e König (1991) traçaram o percurso Tempo >
Concessão para explicar o processo de constituição de while, do
inglês. Shyldkrot (1995) propôs a trajetória Quantidade > Qua-
lidade > Concessão para dar conta dos processos de mudança
sofridos por tout, do francês. Martelotta e outros (1996) propu-
seram a trajetória Espaço > Discurso para descrever os usos de
aí, em português.
Mas se, por um lado, as projeções metafóricas apresentam
a vantagem de predizer a direção dos processos de mudança,
por outro, não são capazes de recuperar as etapas intermedi-
árias desses processos, em que as categorias podem coexistir.
A esse respeito, Sweetser argumenta que as mudanças sempre
tomam lugar através de estágios intervenientes de polissemia:
se uma palavra significou A e hoje significa B, é certo que em
algum momento ela significou A e B. A autora acrescenta ainda
que existe uma correlação estreita entre polissemia sincrônica e
mudança diacrônica, no sentido de entender as polissemias como
pistas capazes de recapitular e de explicar a trajetória histórica
de desenvolvimento de uma palavra ou morfema.
Para recuperar esses estágios intermediários, a análise
em termos de metáfora deve ser complementada pela análise
pragmático-contextual, que reserva ao contexto contíguo um
papel crucial na evolução semântica. É justamente por causa
da influência do contexto sobre a interpretação de um item que
Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006 63
Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi

Hopper e Traugott (1993) e Traugott e König (1991) qualificam


as mudanças semânticas de “metonímicas”. Para os autores, a
reinterpretação induzida pelo contexto ocorre quando uma pa-
lavra ou construção, além do sentido básico, permite a inferência
de um sentido adicional (relacionado ao mundo das crenças e
atitudes do falante), em função da contigüidade contextual ou
metonímica. Com o tempo, pode haver convencionalização de
inferências, caso o sentido adicional se torne parte da palavra,
de forma que o que antes era inferido passa a ser codificado.
Nesses termos, a gramaticalização consiste num processo
gradual e histórico de pragmatização do significado, que envol-
ve, por um lado, estratégias de caráter inferencial, que levam ao
aumento de informação pragmática e, por outro, estratégias de
caráter metafórico, que levam ao aumento de abstração.
3. A construção coordenada
A coordenação consiste, grosso modo, numa construção
sintática em que duas ou mais unidades funcionalmente equiva-
lentes se articulam, com ou sem nexos explícitos, para a formação
de uma unidade ainda maior, da qual emerge uma nova relação
de sentido. Todas as línguas apresentam construções coorde-
nadas de algum tipo (MITHUN, 1988; HASPELMATH, 2000).
Em português, a coordenação pode se realizar entre sintagmas,
orações e até mesmo entre enunciados, estabelecendo as relações
de adição, alternância, adversidade, explicação ou conclusão.
Em razão das possibilidades de encadeamento dentro e além da
oração, Azeredo (2001) afirma que a coordenação é mais propria-
mente um mecanismo discursivo do que sintático, que pode ser
realizado por conjunções de coordenação, advérbios e locuções
adverbiais ou simplesmente pela justaposição e entoação.
Neste trabalho, assumo uma concepção de coordenação
essencialmente semântica, nos moldes propostos por Bally (1944).
Tal concepção, que confere alguma transparência ao mecanismo
de produção de conjunções coordenativas, tem por orientação a
dicotomia tema/comentário, cuja relevância para as línguas foi
bastante acentuada por Ilari (1981, p. 62):
A articulação de oração em tópico e comentário é um
fenômeno generalizado nas línguas de que se tem notícia;
[...] A presença de uma articulação desse tipo em orações
do português é extremamente freqüente; para sermos
mais exatos é obrigatória, no sentido de que toda a ora-
ção se biparte em tópico e comentário ou é globalmente
interpretada como comentário.
Nesses termos, as orações são suscetíveis de bipartição em
dois segmentos de importância comunicativa diferente - tema e
comentário - em que o tema é entendido como o ponto de parti-
da ao qual é acrescido o comentário, que é o centro de interesse
da comunicação. O padrão habitual corresponde à seqüência

64 Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006


Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história de uma conclusiva

(tema)/comentário, na qual é possível prever orações formadas


unicamente pelo comentário.
Seguindo Bally, acredito que a articulação tema/comentá-
rio, que estrutura uma oração, também estrutura a coordenação
de orações. Em outros termos, na coordenação, as orações estão
relacionadas de tal forma que a segunda toma a primeira como
tema e é no interior desse tema que ela deve ser interpretada
como acrescentando ao discurso a informação mais importante
ou saliente. Nessa relação, que é essencialmente coesiva, o co-
mentário tem, portanto, a dupla função de recuperar ou reativar
uma informação dada e de predicar sobre ela, acrescentando
informação nova.
Com o acréscimo do comentário, é disparada uma relação
semântica particular que justifica a combinação das orações.
Nos exemplos abaixo, em que a articulação tema/comentário
é evidenciada em construções binárias cuja independência dos
membros é sinalizada por contornos entoacionais distintos e
pela existência de uma pausa considerável, podemos inferir as
relações de causa e de efeito:
(01) Faz frio. Não sairemos. (CAUSA > EFEITO)
Faz frio (e a propósito do fato de que faz frio, acrescento:) não
sairemos

(02) Não sairemos. Faz frio. (EFEITO > CAUSA)


Não sairemos (e a propósito desse fato, acrescento:) faz frio
Está também em Bally (1944) a sugestão de que em uma
construção coordenada um termo pertencente ao comentário
está predestinado a se tornar uma conjunção quando ele tem,
por si só, a propriedade de reiterar todo ou parte do tema. Para
o autor, esse termo apareceria inicialmente como um modifica-
dor adverbial que, de forma gradual, ganharia posição inicial
na oração, ao mesmo tempo em que se tornaria frouxa a noção
de que ele é somente uma anáfora do tema.
Segundo essa hipótese, as conjunções de coordenação
têm uma origem por excelência: são criadas preferencialmente
a partir de advérbios pronominais que, além de exprimirem
circunstâncias, atuam como mecanismos de coesão, ligando
partes do texto e estabelecendo relações de sentido. Desse ponto
de vista, a conjunção coordenativa resultante se caracteriza por
um duplo movimento de retorno e avanço, ou seja, retoma um
tema, conferindo-lhe especificidade, e, por meio do comentário,
dá seqüência ao discurso, estabelecendo novas relações de senti-
do. É provavelmente nesse sentido que Guimarães (1980) afirma
que “a função de uma conjunção coordenativa não é fazer que
uma oração esteja em outra, mas que as orações se tornem texto,
se constituam, portanto, em discurso”.

Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006 65


Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi

3.1 Conjunções coordenativas conclusivas


As conjunções são elementos que têm função conectiva.
Contudo, dada a natureza heterogênea dos itens que integram
essa classe de palavras, o reconhecimento e a classificação das
conjunções constituem ainda um domínio pouco preciso da gra-
mática do português. Uma amostra disso é a falta de consenso
que existe no tratamento do uso conjuncional das palavras logo,
pois (posposto), portanto, então e assim. Cunha e Cintra (1985),
Cegalla (1990), Rocha Lima (1998) e Abreu (2003) classificam
essas partículas como conjunções coordenativas conclusivas. Já
Bechara (2001, p. 322) argumenta que, influenciados por aspectos
semânticos, vários gramáticos incluem no paradigma das con-
clusivas certos advérbios que têm a propriedade de estabelecer
relações inter-oracionais e inter-textuais, como é o caso, por
exemplo, de pois, logo e portanto. Segundo ele, apesar das proxi-
midades com as conjunções coordenativas, esses advérbios não
têm o mesmo estatuto.
Nos estudos descritivos, Neves (2000, p. 241) reserva para
esses itens o rótulo de “advérbios juntivos”, e os define como
advérbios de valor anafórico que promovem a conjunção de
orações e estabelecem relações de sentido, sobretudo relações
adversativas (porém, contudo, entretanto, todavia, no entanto) e
conclusivas (portanto, por conseguinte, então). A autora argumenta
que: “Na verdade, são elementos em processo de gramaticaliza-
ção. Nesse processo, está em estágio mais avançado o elemento
conclusivo logo, que tem o comportamento próximo ao de uma
conjunção coordenativa.”

3.2 A “conjunção” logo


Enquanto conjunção conclusiva, logo é definido tradicional-
mente como um item que serve para ligar à anterior uma oração
que exprime conclusão ou conseqüência (CUNHA; CINTRA,
1985, p. 567), podendo ser parafraseado por “portanto”, “por
conseguinte”, como é o caso do exemplo (03) abaixo, cuja cons-
trução apresenta as seguintes características: logo articula duas
orações gramaticalmente autônomas,1 ocupa posição fixa no
início da oração, e faz remissão à oração precedente, pesando-a,
para então introduzir uma conclusão.
(03) João é um indivíduo perigoso, logo fique longe dele
Do ponto de vista argumentativo (MAINGUENEAU, 1997),
a conjunção logo funciona como um operador, que atua numa
construção de implicação do tipo “P logo Q”, em que o antece-
1
Guimarães (1987) apre-
senta exemplos em que dente P aparece como um fato definitivo, e o conseqüente Q
logo não se limita a arti- aparece legitimado por princípios admitidos pela comunidade,
cular orações, mas tam-
bém articula parágrafos o que justifica o caráter polifônico da construção. No caso de
e até mesmo capítulos. (03), o segmento P (“João é um indivíduo perigoso”) implica o
66 Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006
Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história de uma conclusiva

segmento Q (“fique longe dele”), numa relação necessária de


causa-efeito ou argumento-conclusão. Essa relação garante a
rigidez na ordem das orações articuladas por logo. A represen-
tação em (04) é ilustrativa:
(04) P, logo Q , em que:
P é argumento em favor de Q
2
Para a análise, optei por
uma seleção de trechos
dos seguintes textos: 4. O percurso histórico-evolutivo de logo:
Séc. XIII: A demanda
do Santo Graal (13DSG); da etimologia à pragmática
Foro Real de Afonso X
(13FR); Testamento de Nesta seção, reconstruo o percurso histórico-evolutivo da
D. Afonso II (13TDA);
Notícia do Torto (13NT); conjunção logo, a partir de uma base de dados2 que reúne vários
Inquirições de Afonso
III (13IA). Séc. IV: Cró-
textos em prosa, representativos do português dos séculos XIII
nica Geral de Espanha ao XVIII.
de 1344 (14CGE); Orto
do Esposo (14OE); Pri-
Os dicionários etimológicos (FERREIRA, 1983; CUNHA,
meyra Partida (14PP); 1986) indicam que o item logo do português é proveniente do lo-
Bíblia Medieval Portu-
guesa (14BMP); Séc. XV: cus-i latino, que era empregado em sentido espacial (lugar, local,
Boosco Deleitoso (15BD); morada, país), em sentido temporal (época, ocasião, situação), e
Livro dos Ofícios de
Marco Tullio Ciceram ainda em sentidos diversos tais como situação social, emprego,
(15LO); Crónica D. Fer-
nando (15CDF); Crónica
ponto, questão, matéria, assunto e capítulo.
D. Pedro I (15CDP); Leal Os dados investigados sugerem que no português arcaico
Conselheiro (15LC); Séc.
XVI: Colóquios dos sim- parece ter havido um afunilamento nas possibilidades semân-
ples e drogas e cousas ticas do item, pois nas ocorrências relativas ao século XIII veri-
medici n a is da Índia
(16CSD); Historia da fiquei a coexistência de apenas dois usos de logo: o substantivo
prouincia de Sãcta Cruz
a que vulgame[n]te cha-
logo e o advérbio logo, itens que sinalizavam, respectivamente,
mamos Brasil... (16HSC); sucessão espacial e sucessão temporal, como mostram os exem-
Crónica do Felicíssimo
Rei D. Manuel (16CDM); plos (05) e (06):3
Os Sete Únicos Docu-
mentos de 1500 (16OSD); (05) Mandamos que quando ouuyre morte Del rey, todos guarde
Desengano de Perdidos senhorio e os dereytos del rey aaquel que reynar en seu logo
(16DP); Séc. XVII: Jorna-
da dos Vassalos da Co- e os que algua cousa teuerem que perteesca a senhurio Del
roa de Portvgal (17JV); rey (13FR, p.132) [...todos guardem o poder e os direitos de rei
Pereg r i n aça m (17 P);
Chronica Del Rey D. àquele que reinar em seu lugar...]
Ioam I (17CDJ); Sermão
da Sexagésima (17SS);
Corte na Aldeia e Noi- (06) E Galvam filhou logo o escudo e depois deitou-o ao colo (13DSG,
tes de Inverno (17CA); p. 8) [Galvam tomou em seguida (ou imediatamente) o escudo e
Séc. XVIII: A Ordem da depois colocou-o no colo]
Salvação ou A Doutrina
Christaã (18OS); Neces- Como substantivo, de que (05) é exemplo, logo equivale a
sario Aviso acerca da
Igreja e Doutrina dos “lugar” e integra o sintagma preposicional “en seu logo”, no qual
Papas em Roma (18NA) ; logo indica mais precisamente posição física e social e acrescenta
Reflexoens sobre a ques-
taõ entre os Estados Uni- a noção de deslocamento ou sucessão. Já como advérbio, de que
dos, e a França (18REF);
Do Uso, e Abuso das
(06) é exemplo, logo é muito mais freqüente no corpus investigado.
minhas Agoas de Ingla- Nesse caso, o item indica uma relação de posterioridade temporal
terra (18UA); Theorica
verdadeira das Mares (“em breve”, “em seguida”) que está ancorada na situação externa
(18TM). e que pode alternativamente ser entendida como particularizada
Nos exemplos, as refe- pelo imediatismo da relação, corroborando uma afirmação de
3

rências entre parênteses


remetem, respectiva- Cunha (1986), de que no português arcaico, logo funciona como
mente, ao século e à
abreviação do título do “imediatamente”.
texto.

Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006 67


Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi
Por outro lado, há contextos em que o advérbio temporal
logo está ancorado em um momento já especificado no próprio
texto. Nesse caso, logo sinaliza uma sucessão temporal, em que
um evento se realiza após outro, recuperável no co-texto prece-
dente. Para isso, logo retoma anaforicamente o evento anterior
que, em geral, é introduzido por uma conjunção de tempo, como
mostram os exemplos abaixo:
(07) Tanto que viu Galvam Erec logo o conheceu (13DSG, p. 65)
[Assim que viu Galvam Erec logo (= que o viu) o reconheceu]

(08) Quando Galaaz êsto ouviu, filhou logo sas armas e guisou-se o
mais toste que pôde (13DSG, p.145) [Quando Galaaz ouviu isto,
tomou logo ( = que ouviu isto) suas armas...]
Nos dados relativos a esse período da língua, não encontrei
exemplos do uso conjuncional de logo. Só no material referente ao
século XVII é que verifiquei as primeiras ocorrências. O exemplo
(09) traz uma delas:
(09) Para hum homem se ver a si mesmo, são necessarias tres cousas:
olhos, espelho, & luz. Se tem espelho, & he cego; não se póde ver
por falta de olhos: se tem espelho, & olhos, & he de noyte; não se
póde ver por falta de luz. Logo ha mister luz, ha mister espelho,
& ha mister olhos. (17SS, p.18)
Em (09), há uma estrutura do tipo “C1. Logo C2”, em que
os segmentos C1 e C2 são gramaticalmente independentes, se-
parados por uma pausa representada por ponto. Cada segmento
é constituído por orações estruturadas em tema e comentário.
Essa relação tema/comentário se sustenta também entre C1 e
C2, estruturando-os, uma vez que o segundo deve ser interpre-
tado à luz do primeiro. Ou seja, C2 acrescenta um pensamento,
uma avaliação conclusiva acerca de C1, evidenciando assim a
relação de sentido, que é condição para a coordenação. Veja o
esquema:
C1 C2
Para hum homem se ver a si logo ha mister luz, ha mister espelho,
mesmo, são necessarias tres & ha mister olhos
cousas: olhos, espelho, & luz.
Se tem espelho, & he cego; não
se póde ver por falta de olhos:
se tem espelho, & olhos, & he
de noyte; não se póde ver por
falta de luz
TEMA COMENTÁRIO

CONCLUSÃO
A relação coesiva entre os segmentos C1 e C2 é garantida
por logo ou, mais particularmente, pela foricidade de logo que,

68 Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006


Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história de uma conclusiva

encabeçando o comentário, promove simultaneamente um mo-


vimento de retorno ao já dito, em que reitera todo o C1, e um
movimento de avanço, fazendo com que as orações se constituam
em texto. Em C2, não é só uma parte do conteúdo de C1 que é
reativada, mas também a própria orientação argumentativa de
C1 é retomada em C2. Portanto, em (09), logo tem as caracterís-
ticas que, nos termos de Bally, permitem colocá-lo no rol das
conjunções de coordenação.
Além de mostrar que o uso conjuncional de logo é mais recente
que os demais, a investigação dos dados históricos evidenciou ainda
que o contexto que teria favorecido a reinterpretação do advérbio logo
como conjunção é aquele exemplificado em (10), uma ocorrência do
século XIV:
(10) [...] e he chamado mar morto, porque nem pexes, nem aves
nom vivem em ele, nem pode em ele andar navio, nem outra
matéria nenhua, senon for bitumada, e se algua cousa morta hi
lançarem, logo se afonda, e se for cousa viva, logo saae a cima
pero seja amerguda per força. (14BMP, p.40) [... e se alguma
coisa morta lançarem ali, logo afunda, e se for coisa viva, logo
sai para cima].
Configura-se, nesse caso, uma situação de ambigüidade. Em uma
interpretação, logo atua como advérbio (fórico!) de tempo posterior,
admitindo paráfrase com “em seguida”. Por outro lado, dado o
contexto contíguo, logo integra uma construção condicional do tipo
“Se P, logo Q”, cujo significado reside numa relação de implicação
entre P e Q, na qual “se temos P, devemos ter Q”. Assim, conforme
(10), o fato de “lançar alguma coisa morta” implica conseqüentemente
“afundar”, da mesma forma que “lançar coisa viva” implica “sair
acima”. Nessa relação de implicação, logo veicula um sentido de
conseqüência ou conclusão, que é fortemente baseado nas crenças e
expectativas do falante/escritor. Acrescente-se a isso que o item, nesse
contexto, ocupa posição inicial na oração, tal como uma conjunção
prototípica. Nessa condição híbrida, logo revela a fluidez categorial
entre o advérbio de tempo e a conjunção conclusiva, isto é, a face não
discreta da mudança.
Nessa perspectiva, o embrião da conjunção conclusiva logo seria
o uso mais referencial de logo, o dêitico temporal, que passou a ser
empregado, em determinados contextos, como um item de coesão
textual, retomando anaforicamente orações precedentes e indicando
sucessão temporal. Nesses termos, um item que era empregado para
sinalizar sucessão temporal no mundo real teve seu uso estendido
para sinalizar sucessão temporal entre eventos mencionados no texto.
Ratificando os pressupostos de Bally, mencionados anteriormente,
sugiro que a natureza pronominal do advérbio logo foi determinante
para a constituição da conjunção conclusiva - que até hoje preserva
essa característica do advérbio - já que na relação de conclusão há
um movimento de retroação, a partir do qual o falante/escritor retoma
o conteúdo anterior e então introduz uma conclusão. Por isso é que
afirmei anteriormente que o modelo de Bally, de certa forma, torna
mais transparente o mecanismo de formação de conjunções.
A alteração de sentido aponta para abstratização e pragma-
tização crescentes do significado: a posterioridade temporal de

Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006 69


Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi

logo passou a ser entendida, metaforicamente, como posteriori-


dade no discurso: aquilo que vem depois no tempo foi projetado
para designar aquilo que vem depois no discurso, a saber, um
efeito ou uma conclusão. Essa projeção evidentemente não foi
abrupta, mas propiciada pelo contexto contíguo de implicação
que, além da leitura de tempo posterior, permitia a leitura de
conclusão.
Assim, de um lado, a foricidade de logo criou condições para
que o item ganhasse gradativamente estatuto conjuncional e, de
outro, a transferência metafórica e a reinterpretação contextual
determinaram a emergência de um novo sentido, mais abstrato
e mais subjetivo que o primeiro.
Conclusão
A trajetória de gramaticalização percorrida por logo para a
constituição da conjunção coordenativa conclusiva corrobora as
hipóteses de Sweetser (1988, 1991), Heine et al. (1991), Traugott
e König (1991) Hopper e Traugott (1993), tanto no que concerne
ao papel da pressão contextual para a emergência de novos usos,
como no que concerne à direcionalidade da mudança, que aponta
preferencialmente para a abstratização e pragmatização do significado:
TEMPO > CONCLUSÃO, e para o surgimento de categorias ainda
mais gramaticais: ADVÉRBIO PRONOMINAL > CONJUNÇÃO.
Abstract
In this paper, I analyze some aspects related to the
grammaticalization of the coordinating conjunc-
tions. Assuming that cognitive and pragmatic
factors interact to create new grammatical items
and adopting a coordination approach supported
by functional-semantic criteria, I reconstruct the
evolutionary-historical course of the Portuguese
conclusive conjunction logo from Portuguese
historical sources.
Keywords: grammaticalization; conjunction;
coordination; historical linguistics.
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72 Niterói, n. 21, p. 59-72, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais:
o caso de por causa de
Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

Recebido 15, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Resumo
Este artigo investiga a emergência da locução
conjuntiva por causa (de) que no português do
Brasil, baseando-se em um corpus constituído
por dados coletados em 64 horas de entrevistas
com falantes cariocas (Amostra 80). Inicialmente
coteja as orações complexas formadas pela vincu-
lação de uma oração efeito a uma oração de causa
introduzida por porque, conectivo prototípico
de causa, às orações que apresentam o SPrep por
causa de com relação às seguintes variáveis: po-
sição, transitividade e tempo do predicado verbal,
tipo de informação introduzida pelo segmento de
causa. A seguir, considera as orações encabeça-
das por por causa (de) que mostrando que elas
compartilham as propriedades exibidas tanto pelas
orações prototípicas de causa quanto pelos SPrep
por causa de: tendem a introduzir informação
nova, a apresentar verbos de estado no presente do
indicativo e a ocorrer pospostas. A diferença entre
elas e as orações prototípicas concerne ao fato de
que as orações com por causa de que são empre-
gadas apenas no nível representacional enquanto
que aquelas iniciadas por porque podem, também,
estabelecer relações em dois outros níveis, o das
relações epistêmicas e dos atos de fala.
Palavras-chave: gramaticalização, conectores,
relação causal

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

O português brasileiro dispõe de uma grande variedade


de conectores para a expressão da relação de causalidade, que
diferem quanto à sua freqüência e contextos discursivos. Coe-
xistem com o conector prototípico porque, assim como com a sua
forma reduzida que, exemplificadas em (1) e (2), o conector como
e as locuções conjuntivas como visto que, dado que, já que, para
citar apenas as mais freqüentes (Cf. NEVES, 2000).
(1) Ela falou que não gosta de dar aula de sétima, porque acha todo
mundo, assim, muito criança. (Amostra Censo, Adr.51)

(2) A Cláudia chamou ela e deve fazer chantagem com ela, eu


não sei. Que agora ela sabe que o Márcio é filho da Renata.
(Amostra Censo, Adr.63)
No nível oracional, a relação causal entre dois segmentos
de discurso pode ser expressa pelo Sprep por causa de, como no
exemplo (3):
(3) Tive que interromper um pouco (os estudos) por causa da
gravidez da minha mulher. (Amostra Censo, Dav.42)
Esse sintagma preposicional está na origem da locução
conjuntiva por causa (de) que a qual, através do acréscimo do
subordinador que pode ser utilizada para relacionar uma cláu-
sula causal a uma cláusula efeito, como mostram os exemplos
(4) e (5).
(4) Só sabia quem era o presidente do CCE, por causa que ela
botou
uma porção de cadeira ali, botou o vice-presidente, botou
cortadô
de... aqueles negócio. (Amostra Censo, Adr.51)

(5) Ele gosta mais até de ficar lá no fundo porque não... parece
assim
mais aconchegante, né? por causa que dá assim prá os quarto
e não
tem vizinho , num tem nada. (Amostra Censo, Mag.48)
Esses usos de por causa (de) que no discurso oral, uma lo-
cução conjuntiva que está emergindo no português brasileiro,
(cf PAIVA, 2001), constituem o objeto de reflexão deste artigo.
Discutimos os empregos dessa locução conjuntiva , buscando
identificar as equivalências e diferenças que apresenta em relação
à conjunção prototípica porque e ao sintagma preposicional por
causa de no discurso oral. Através de uma análise comparativa de
algumas propriedades sintáticas e semântico-discursivas dessas
três construções causais, procuramos depreender o cruzamento
de propriedades que resulta em enunciados como os exempli-
ficados em (4), (5). Além disso, destacamos as restrições ao uso

74 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

da conjunção perifrástica por causa (de) que e a pertinência de


distingui-la da conjunção inteiramente gramaticalizada porque.
Como mostraremos ao longo do artigo, as maiores restrições
impostas ao uso de por causa de (que) sugerem que o processo de
gramaticalização de uma locução conjuntiva opera inicialmente
no nível representacional.
Os dados analisados foram extraídos de um corpus do
português carioca, composto de amostras de fala de 64 falantes,
distribuídos de forma equilibrada segundo as variáveis sexo,
idade e escolaridade.
2- Construções causais com porque
Assim como outras conjunções fortemente gramaticali-
zadas, o conector porque, mais freqüentemente utilizado para a
expressão da relação de causalidade, goza de acentuada polis-
semia e multifuncionalidade, servindo à expressão não apenas
de causa estrita, como também de justificativa, razão, motivo.
Adotando aqui a posição de Swetser (1990), podemos dizer que
este conector estabelece relações em diferentes domínios: domí-
nio referencial, domínio epistêmico e domínio dos atos de fala.
(Cf. também PAIVA, 1995; NEVES, 2000):
a- nível referencial
(6) E o Tião chegou por último, porque ele passou primeiro na
delegacia, não é? (Amostra Censo, Jos.35)
b- nível epistêmico
(7) O Serafim ele não gosta da merenda porque ele só leva
merenda. (Amostra Censo, Nel. 49)
c- nível dos atos de fala
(8) Olha, corre, vem pra cá porque a minha casa foi assaltada.
(Amostra Censo, Dor.29)
No exemplo (6), a oração introduzida pelo conector porque
expressa a causa efetiva do fato expresso na oração núcleo, ou
seja, pode-se falar realmente de relação causa-efeito. A confi-
guração causal no exemplo em questão é reforçada pela relação
temporal entre os fatos, com o estado de coisas causa precedendo
o estado de coisas efeito.
Nos exemplos (7) e (8), por outro lado, só podemos falar em
causa em sentido mais amplo. Em (7), a oração introduzida por
porque expressa uma evidência que autoriza o falante a extrair,
a partir da sua avaliação, uma determinada conclusão. Trata-se
no caso de uma causa formal , realizada no plano das relações
possíveis e que opera no plano interpessoal da linguagem.
No exemplo (8), estabelece-se uma relação entre um ato de
fala e a justificativa para a realização de tal ato.
Nas abordagens tradicionais (cf, por exemplo, CUNHA,
1976) essa polivalência do conector porque é resolvida pela sua

Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006 75


Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

inclusão em dois conjuntos paradigmáticos distintos: no conjunto


das conjunções subordinativas causais (causais estritas) e no con-
junto das conjunções coordenativas (explicativas). Essa solução
taxonômica constitui, no entanto, um problema, na medida em
que, em muitos enunciados, duas interpretações podem conviver,
requerendo a intervenção de fatores discursivos que permitam
determinar a natureza exata do uso de porque.
A análise de algumas propriedades sintáticas e semânticas
das construções causais com o conector porque permite mostrar
que as mesmas ocorrem em alguns contextos preferenciais.
No que se refere às propriedades morfossintáticas, destaca-
se a importância das categorias tempo e modo verbal das orações
relacionadas. Nas construções com porque pode ser constatada
grande diversidade de formas verbais tanto na cláusula núcleo
como na cláusula hipotática (Cf. PAIVA, 1992; NEVES, 2000).
Uma análise estatística dos dados mostra, no entanto, que,
na grande maioria dessas construções causais verifica-se um tipo
de correlação modo-temporal preferencial: em mais da metade
dos dados (50,80%) relacionam-se verbos no presente do indi-
cativo tanto na cláusula causal quanto na cláusula efeito, como
no exemplo a seguir:
(9) Eu não tenho que dizer de nenhum deles ali, sabe? porque a
gente se dá com todo mundo, conversa com todo mundo. A
gente precisa muito de vizinho. (Amostra Censo, Fal 04)
Especificidades das construções causais com o conector
porque podem ser observadas também no nível das propriedades
semânticas dos verbos núcleo da cláusula causal. Embora as
orações hipotáticas introduzidas pelo conector porque admitam
grande variabilidade de tipo de predicadores, elas tendem a ser
construídas principalmente com os verbos de estado (31,6%),
seguindo-se de perto os verbos de processo (25, 8%) e de evento
(23,3%). O exemplo (10) é representativo do contexto mais fre-
quente da cláusula porque.
(10) Minha mãe também, mas minha mãe agora está um pouco
devagar, porque ela esteve doente. (Amostra Censo, Cab02)
Consideração especial tem de ser dispensada à disposição
sintagmática das orações introduzidas pelo conector porque que
são, como já foi mostrado em diferentes trabalhos, predomi-
nantemente pospostas à oração núcleo com que se relacionam.
Nos dados analisados, representativos, como já dissemos, do
discurso oral, em 88,4% das construções, a cláusula porque segue
a oração núcleo.
A posposição do segmento causal ao segmento efeito pa-
rece constituir, portanto, a ordem não marcada nas construções
causais com porque. A anteposição, muito mais rara, está asso-
ciada a contextos bastante marcados, principalmente àqueles

76 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

em que ocorre um processo de clivagem, através do qual uma


condição, dentre outras possíveis, é destacada como a causa de
um estado de coisas.1
Evidentemente, a posposição desses segmentos causais
reflete a função que eles possuem na organização discursiva:
via de regra, eles constituem pontos de introdução de infor-
mação nova (68,3%) ou inferível de outras peças de informação
já apresentadas no discurso anterior (17,5%). Nos dois casos,
pode-se considerar que as orações causais introduzidas pelo
conector porque desempenham um papel essencial na progres-
são discursiva. Assim, no exemplo (10), já citado, a informação
introduzida pela cláusula porque ela esteve doente apresenta
para o ouvinte (no caso, o entrevistador), uma informação que
não integrava seus conhecimentos anteriores.
Da análise desenvolvida até este ponto, ressalta que os
enunciados construídos com o conector porque apresentam
algumas características predominantes que nos auxiliarão a
entender o comportamento das cláusulas iniciadas pela locução
conjuntiva por causa (de) que.
3- Construções causais com o Sprep
por causa de – a causalidade no nível intra-oracional
Retomemos neste ponto o exemplo (3), ilustrativo do uso
do sintagma preposicional por causa de para a expressão da rela-
ção causa-efeito no nível oracional. Nesse exemplo, o segmento
introduzido pelo Sprep por causa de é intercambiável com uma
oração hipotática com porque.
(11a) Tive que interromper um pouco (os estudos) por causa da
gravidez da minha mulher (Amostra Censo, Dav 42).

(11b) Tive que interromper um pouco (os estudos) porque minha


[mulher estava grávida.]
A possibilidade de paráfrase do constituinte intra-oracional
introduzido por por causa de pela cláusula finita encabeçada por
porque não significa necessariamente que elas sejam tomadas
pelo falante como equivalentes em todos os níveis. O certo é que
parece haver, em alguns contextos, uma interseção das proprie-
dades dos dois tipos de enunciados, o que autoriza a alternância
entre eles (Cf. PAIVA, 1998).
Há evidências, no entanto, de que a alternância entre uma
cláusula porque e um segmento causal não oracional introduzi-
do pelo Sprep por causa de é restrita a certos ambientes, sendo
bloqueada em outros, como ilustra o exemplo (12)
(12) Fica com ciúmes por causa de um velhinho. (Amostra Censo,
1
Um exemplo ilustrativo
é: É porque minha mãe Sue05)
é viúva que ela então
se juntou com o meu
padrasto.

Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006 77


Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

Os exemplos acima mostram, portanto, que existem tanto


pontos de interseção entre uma oração introduzida por porque
e os constituintes causais intra-oracionais introduzidos por por
causa de como contextos em que eles se particularizam. Focali-
zemos inicialmente as propriedades comuns aos constituintes
intra-oracionais com o SPrep e as cláusulas com porque.
Do ponto de vista do tempo e modo verbais do segmento
efeito, algumas simetrias podem ser depreeendidas entre os
enunciados com porque e os enunciados com o Sprep por causa
de. Assim como nos períodos complexos com o conector porque,
nos períodos simples com os sintagmas preposicionais causais,
o verbo da oração se encontra mais freqüentemente no presente
(59,1%). Seguem-se, com índices significativos, enunciados com
verbo na forma de pretérito perfeito (30%). Essa convergência na
distribuição dos dados é indicativa da similaridade de configu-
ração sintagmática dos dois tipos de enunciados causais.
O paralelismo entre construções causais com porque e com
por causa de pode ser constatado também no que se refere à tran-
sitividade do verbo nuclear do segmento efeito, embora de forma
menos nítida. Nos enunciados com o Sprep por causa de, há maior
freqüência de verbos de estado (30%), mas é igualmente signifi-
cativa a ocorrência de verbos de processo (25,4%) ou de processo
mental (22,7%). Essa propriedade dos sintagmas preposicionais
será retomada mais à frente, quando mostraremos que ela pode
explicar, pelo menos em parte, a possibilidade de deslizamento
desse sintagma para o conjunto das locuções conjuntivas cau-
sais. A maior diferença entre os dois tipos de enunciados fica
concentrada nos verbos de evento e nos existenciais.
Do ponto de vista da sua organização sintagmática, o seg-
mento causal introduzido por por causa de assim como as orações
com porque podem se antepor ou se pospor ao segmento efeito,
como mostram os exemplos (13a) e (13b).
(13a) Por causa da gravidez dela eu parei de estudar.
(Amostra Censo, Dav. 42)

(13b) Eu costumo fazer bolo por causa das crianças lá em casa.


(Amostra Censo, Mag.48)
Assim como nos períodos complexos com o conector porque,
essa flexibilidade é, no entanto, mais virtual do que real, pois o
segmento causal encabeçado pelo Sprep por causa de é quase ca-
tegoricamente posposto, com um percentual que atinge 93,6%.
A organização sintagmática dos períodos formados com
porque e das orações com por causa de segue a mesma tendência,
embora se perceba uma diferença de grau nos índices de pospo-
sição: o sintagma preposicional por causa de parece apresentar uma
ordenação mais rígida (acima de 90%) na forma de efeito-causa,

78 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

enquanto que os períodos compostos com porque apresentam


um pouco mais de flexibilidade. Para ambos, pode-se dizer, no
entanto, que a ordem não marcada é a posposição.
Essa semelhança de padrão sintagmático encontra corres-
pondência na função discusiva desses segmentos causais: ambos
contribuem para a evolução do discurso, constituindo pontos
de introdução de informação nova. Essa tendência é significati-
vamente mais acentuada para as cláusulas porque (68,3%) e um
pouco menos notável para o Sprep por causa de (59,2%). Devemos
ressaltar, no entanto, que a equivalência discursivo-funcional
fica limitada ao segmento causal considerado isoladamente. Na
análise dos dois segmentos do enunciado, depreendem-se dife-
renças relevantes na forma como se distribui a informação pelos
segmentos causa e efeito. Os segmentos causais introduzidos
pelo conector porque com informação nova se articulam mais fre-
qüentemente a segmentos efeito que codificam informação velha
65.8%) ou informação inferível (24,2%) que, em uma determinada
interpretação, pode ser considerada uma forma de informação
velha. Diferentemente, nos enunciados com o sintagma prepo-
sicional, não chega a haver diferença no estatuto informacional
do segmento efeito que tanto pode codificar informação nova
ou velha, embora se verifique ligeira preponderância de ligação
com segmento efeito velho. Quanto ao estatuto informacional do
segmento efeito, constata-se, portanto, uma distinção relevante
entre os dois tipos de enunciado.
Considerando as propriedades discutidas até aqui, pode-
mos dizer que a interseção entre os enunciados com cláusulas
porque e com o sintagma preposicional causal, embora não seja
total, pode ser depreendida em diversos pontos, como mostra
a figura 1.
Figura 1 – Interseção entre enunciados com porque
e com o sintagma preposicional por causa de.
Oração de causa Constituinte intra-oracional de causa

Segmento causal
+ posposição
+ informação nova
segmento efeito
predicado no presente do indicativo
predicador é verbo de estado

Evidentemente, essa convergência de propriedades não


explica em si mesma a possibilidade de alternância entre um
constituinte causal oracional e um constituinte causal intra-ora-
cional. Como mostramos através do exemplo (12 – Meu namo-

Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006 79


Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

rado fica com ciúme por causa de um velhinho), há restrições


na alternância entre os dois tipos de construções. Um primeiro
aspecto a ser considerado se refere às características do núcleo
do SN2, aquele que é subcategorizado pelo SPrep por causa de.
O núcleo do SN2 tende a ser constituído por um nome comum
com os traços [+ animado] e [+ humano ]. Nesse caso, a pará-
frase do Sprep causal por uma cláusula porque é bloqueada ou,
no mínimo, menos provável.
Meu namorado fica com ciúme por causa de um velhinho

Meu namorado fica com ciúme porque tem um velhinho


No exemplo (12), a responsabilidade, a motivação do esta-
do “fica com ciúme” é atribuída a um referente, sem qualquer
explicitação da ação por ele realizada. A maioria das caracterís-
ticas inerentes à noção de causa ficam ofuscadas em enunciados
desse tipo: a própria ação, em conseqüência a referencialidade
temporal e, de certa forma, a noção de agentividade. O ciúme do
namorado não pode ser atribuído diretamente ao velhinho. A
relação causal só pode ser interpretada através das inferências
autorizadas pelo contexto em que a construção se insere.
A alternância entre um Sprep causal e uma cláusula causal
com porque é favorecida, ao contrário, nos contextos em que o
núcleo do SN2 é uma nominalização (um nome deverbal), situ-
ação em que se estabelece relação morfológica e, conseqüente-
mente, semântica entre os elementos nucleares dos constituintes.
Nesse caso, a possibilidade de recuperação da forma verbal da
cláusula, contida no núcleo do SN integrado ao Sprep, parece
favorecer a alternância entre as duas estruturas, como mostra
o exemplo 14.
(14) O time tá ruim, mas não é por causa da escalação do técnico.
O time tá ruim, mas não é porque o técnico selecionou (o time)
A potencial equivalência entre as duas construções, vale
dizer, a possibilidade de parafrase não se restringe, entretanto,
à satisfação de uma condição morfológica; mais relevante, sem
dúvida, é a natureza do vínculo causal realizado em cada um
dos enunciados. Em outras palavras, os efeitos comunicativos
decorrentes da seleção de uma ou outra alternativa são diversos.
Assim, no exemplo (14), embora a condição morfológica seja sa-
tisfeita, o sintagma preposicional por causa da escalação do técnico
apresenta efeitos comunicativos que se anulam numa possível
contraparte verbal (o técnico escalou um time). Na cláusula
introduzida por porque, a relação causal é vista de forma dinâ-
mica, ou seja, o que está em destaque é o próprio ato de escalar.
No enunciado com sintagma preposicional, esse dinamismo
se perde em favor da ênfase no resultado da ação (escalação) e
dos seus efeitos. Esse resultado pode ser avaliado positiva ou

80 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

negativamente e é exatamente essa avaliação que se perde na


conversão do sintagma preposicional pela cláusula porque. É o
que explica uma certa conotação negativa na expressão da cau-
salidade através do sintagma preposicional.
A atribuição de caráter [-dinâmico] ao sintagma preposicio-
nal por causa de encontra respaldo na possibilidade de conversão
desses segmentos em cláusulas porque com verbos de estado.
Caracterizando-se igualmente pelo traço [-dinâmico], as cláu-
sulas porque de estado compartilham propriedades inerentes ao
segmento introduzido pelo Sprep.
Um segundo aspecto importante envolve o pressuposto
temporal implícito na relação de causalidade. A imbricação entre
as noções de causa e tempo é anulada nos segmentos causais
introduzidos pelo Sprep. Como conseqüência de sua atempo-
ralidade, os enunciados com Sprep causal se afastam da noção
prototípica de causa, mesmo quando são parafraseáveis por uma
cláusula porque. A relação causal parece se situar em um plano
metafórico, na medida em que se desvincula da ação.
Tudo parece indicar, portanto, que os segmentos introdu-
zidos pelo conector porque e os segmentos introduzidos por por
causa (de) situam a relação causal em planos distintos: o primeiro,
no plano da própria ação, e o segundo, no resultado de uma ação
ou no possível ator de uma ação que pode provocar um estado
de coisas.
4 - Construções causais com por causa (de) que
Retomemos agora os exemplos (4) e (5), objeto central
deste artigo. Antes de mais nada, é necessário destacar a baixa
incidência desse tipo de construção (apenas 26) nos dados de
fala examinados. Essa limitação parece decorrer do fato de que
se trata de um uso lingüístico mais recente, provavelmente um
processo de mudança que está se instalando na língua.
Uma análise de construções causais constituídas com a
conjunção lexical por causa de (que) permite mostrar que elas
se situam numa interseção das propriedades dos enunciados
causais com porque e dos enunciados com por causa de. Um con-
fronto entre os períodos complexos construídos com a locução
por causa (de) que e os enunciados com porque, por um lado, e
os enunciados com por causa de , por outro, permite identificar
a trajetória de inclusão dessa forma no conjunto das locuções
conjuntivas de causalidade.
No que se refere à correlação modo-temporal, podem ser
depreendidas diversas simetrias entre as construções com porque
e aquelas com por causa (de) que. Mantendo uma configuração
semelhante à dos períodos compostos com porque, os períodos
com por causa de que relacionam, mais freqüentemente, verbo no
presente do indicativo na cláusula causal e verbo no presente
do indicativo na cláusula efeito (53,84%). Segue-se a correlação
Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006 81
Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga
entre pretérito perfeito e presente (23,75). No que se refere ao
segmento efeito, essa tendência encontra paralelo nos períodos
simples com o sintagma preposicional por causa de, em que pre-
domina igualmente o presente do indicativo.
A convergência entre os três tipos de construções causais
pode ser verificada também no nível das propriedades semânti-
cas dos verbos núcleo do segmento efeito. Assim, ocorrem mais
freqüentemente em todos eles verbos de estado, como ilustram
os exemplos a seguir:
(15) Eu gosto da Rosângela por causa que ela é assim parecida
comigo. (Amostra Censo, Eri.59).

(16) O apelido dela é até Cláudia Magrinha, por causa que ela é
assim Magrinha. (Amostra Censo, Eri.59)
No que concerne à disposição sintagmática, verifica-se a
mesma flexibilidade referida previamente. No entanto, embora
os segmentos que expressam causa possam tanto se antepor ou
pospor à oração efeito, a posposição é a posição mais usual.
Também no que diz respeito às propriedades discusivo-
informacionais dos segmentos causais, depreende-se acentuado
paralelismo entre as construções com porque, por causa de e por
causa (de) que: todos eles constituem pontos de introdução de
informação nova. Considerando-se, no entanto, o status infor-
macional do segmento efeito, observa-se que as construções com
por causa de que se aproximam daquelas com o Sprep por causa
de. Instaura-se mais freqüentemente uma relação entre dois seg-
mentos com informação nova, diferentemente da configuração
observada nos enunciados causais com porque.
Do que foi visto até aqui, é possível esquematizar da seguinte
forma o paralelismo entre as construções causais com porque, com
por causa (de) que e com o Sprep por causa de.

Oração introduzida por Constituinte intra oracional


porque introduzido por por causa
de
[+ posposição] [+ posposição]
Tempo verbal: presente
Predicado verbal:
Psicológico
Locução
Informação nova Informação nova
conjuntiva
por causa (de)
Segmento efeito Segmento efeito
que
Estado / processo Processo
Informação velha Informação velha / nova

As propriedades consideradas no esquema 2 refletem,


portanto, os contextos que permitem o deslocamento do Sprep
por causa (de) que para o conjunto paradigmático das locuções

82 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

conjuntivas causais. Essa hipótese deve levar em consideração, no


entanto, o fato de que a relação de causalidade, à semelhança de
outras relações semânticas, opera em domínios distintos, como
já mostramos no item 2, com base no conector porque.
É necessário esclarecer que, a nosso ver, o deslocamento
funcional do sintagma preposicional por causa de não constitui
um movimento isolado; ao contrário, é conseqüência de várias
mudanças que se dão no interior do conjunto dos conectores de
causalidade no discurso oral.
A possível gramaticalização do sintagma preposicional
em locução conjuntiva pode estar relacionada, em primeira
instância, à já discutida multifuncionalidade do conector porque
no discurso. Uma hipótese possível é a de que a movimenta-
ção do Sprep por causa de do nível intra-oracional para o nível
inter-oracional ocorreria principalmente no domínio referen-
cial, enquanto o conector porque estaria se especializando na
indicação de relações no nível da enunciação (epistêmico e atos
de fala). Dessa forma, estaríamos observando um processo de
restabelecimento de uma repartição funcional, obscurecida com
o desaparecimento do conector, na modalidade oral. Os resul-
tados expostos na tabela 1, que confrontam as três construções
no que se refere ao domínio da causalidade, fornecem algumas
evidências sugestivas da trajetória de por causa (de) que.
Tabela 1– Distribuição das construções causais
de acordo com o domínio da relação casual.
Domínio Porque por causa (de) que por causa de
198 8
Epistêmico 0
24.50% 7.84%
597 26 102
Referencial
73.88% 100% 92.16%
13
Atos de fala 0 0
1.61%
Total 08 26 110

De acordo com os resultados mostrados na tabela 1, a hi-


pótese levantada se confirma no que se refere ao uso da locução
por causa (de) que, mas encontra problemas no que diz respeito ao
uso do conector porque. No caso da locução conjuntiva, poder-se-
ia falar em especialização funcional: a locução por causa (de) que
é utilizada apenas em contextos de relação causal no domínio
referencial, ou seja, como expressão de causa estrita. O conector
porque, embora predomine para a expressão de relações no plano
referencial, pode ser utilizado para a explicitação de relações em
outros domínios, como já destacamos.
Evidentemente, a particularidade das construções com por
causa (de) que pode estar refletindo propriedades semânticas ine-
rentes à locução por causa de. Uma dessas propriedades é a maior

Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006 83


Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

transparência do item causa quanto à explicitação do ponto de


origem (causa estrita) de um determinado estado de coisas. Além
disso, como já destacamos, essa locução carreia uma acentuada
indicação de agentividade (que atribui a algo ou a alguém a razão
de ser de um determinado estado de coisas).
Embora essa carga semântica possa se diluir na locução
conjuntiva, , autorizando o uso de por causa (de) que em constru-
ções causais que não implicam ação de um agente na produção
de um estado de coisas, ela parece restringir ainda a utilização
da locução conjuntiva a contextos de maior referencialidade.
Nesse caso, parece ocorrer um processo segundo o qual a locu-
ção preserva a carga semântica da própria palavra causa em seu
sentido mais estrito. No processo de deslocamento, a locução
traz para o seu novo uso, as suas propriedades originais, o que
faz com que, no seu percurso, se mantenha a ligação entre o o
sintagma preposicional e a locução conjuntiva.
5 - Conclusão
Como pudemos constatar ao longo desta análise, o deslo-
camento do sintagma preposicional por causa de para a locução
conjuntiva por causa (de) que constitui um movimento que parece
ter seu ponto de partida em um conjunto de propriedades se-
mânticas compartilhadas pelo conector porque e pelo sintagma
preposicional por causa de que. Ele vai culminar na perda de
algumas características prototípicas do sintagma preposicional
em favor do desenvolvimento de uma função mais sintática de
introdutor de orações hipotáticas.
O movimento da locução preposicional em direção a uma
locução conjuntiva não significa, no entanto, total anulação das
propriedades da forma fonte. A locução conjuntiva preserva
traços da forma da qual se originou como a de ser utilizada
preferencialmente para introduzir orações que descrevem um
estado de coisas [-dinâmico] e estabelecer relações causais no
domínio do conteúdo. Tal situação parece coerente com a pro-
posta de Hengeveld e Wanders (no prelo), segundo a qual as
conjunções lexicais complexas, formadas a partir de itens de um
conjunto específico de nomes, se gramaticalizam inicialmente
no nível representacional da linguagem.

84 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

Abstract
In this article we analyze the emergence of the
lexical conjunction por causa (de) que (by cause
of that) in spoken Brazilian Portuguese, focusing
tokens collected from 64 hours of tape-recorded
interviews with speakers born in Rio de Janeiro
in the early eighties. First we compare clauses
headed by porque (because) and clauses which
present the PP por causa de (by cause of) and
show that both segments are similar with regard
to four variables: position, transitivity and tense
of the verbal predicate and informational status.
Then we consider the clauses headed by por causa
de que (by cause of that) and show that they share
the same properties with the clauses headed by
porque: they tend to introduce new information,
exhibit state verbs in the present tense and follow
the main clause. The difference between them con-
cerns the fact that the latter combines clauses only
at the representational level whereas the former
combines clauses not only at this level but at the
epistemic and speech act levels as well.
Keywords: grammaticalisation, conjunctions,
causal relations

Referências

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. Belo Ho-


rizonte: Bernardo Alvares, 1976.
HENGEVELD, Kees; WANDERS, Gerry. Adverbial conjunctions
in Functional Discourse Grammar. To appear in: HANNAY,
Mike; STEEN, Gerard (eds.) The English clause: usage and struc-
ture. Amsterdam: John Benjamins. (no prelo)
NEVES, Maria Helena Moura. Gramática de usos do português. São
Paulo: Editora UNESP, 2000
PAIVA, Maria da Conceição de. Gramaticalização de conectores
no português do Brasil. Scripta, [S.l.], v. 5, n. 9, p. 35-46, 2001.
. Ordenação de cláusulas causais: forma e função. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1992.
. Usos de porque no discurso oral. D.E.L.T.A, [S.l.], v. 11,
n. 1, p. 27-40, 1995.
. Variação e especificidades funcionais no domínio da
causalidade. Revista de estudos da linguagem, Belo Horizonte, v.7,
n. 2, p. 89-108, jul./dez. 1998.

Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006 85


Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

PAIVA, Maria da Conceição de; SWETSER, Eve. From etymology


to pragmatics: metaphorical and cultural aspects of semantic
structure. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

86 Niterói, n. 21, p. 73-86, 2. sem. 2006


Mudança no sistema verbal
do português: as variantes
do futuro do pretérito e a
questão da gramaticalização
Ana Lúcia dos Prazeres Costa

Recebido 15, mai. 2006/Aprovado 10, jul. 2006

Resumo
Estudos recentes têm abordado a gramaticalização
do verbo ir/movimento em verbo auxiliar. O pre-
sente artigo mostra que no português brasileiro
este auxiliar não ocorre somente na expressão do
futuro, mas em variação com o futuro do preté-
rito, e que o uso da perífrase verbal com ir vem
se mostrando crescente. Até a primeira metade
do século XX, este auxiliar concorria com outro,
haver de, neste contexto de variação. O artigo
apresenta também matizes semânticos diversos de
cada um dos referidos auxiliares, o que demonstra
os diferentes níveis semânticos da mesma forma
lingüística em processo de gramaticalização. Os
dados da análise foram obtidos através de um es-
tudo de mudança em tempo real de longa duração
(amostra de peças teatrais).
Palavras-chave: mudança lingüística; gramati-
calização; verbos auxiliares.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Ana Lúcia dos Prazeres Costa

1- Introdução
Sabe-se que a origem das flexões de futuro do presente e
do pretérito em português está na gramaticalização do verbo
“haver” (cf. CÂMARA, 1979, p. 130):
amare + habeo > amar + aio > amarei
amare + habebam > amar + abeam > amar + ea > amaria
Também se sabe que tem havido variação no uso dessas
formas sintéticas, ou seja, na expressão do futuro cronológico não
existe somente a forma flexionada (-rei, -rá, -remos etc.), tampouco
ocorrem somente as formas em -ria na expressão do futuro do
pretérito (ou do irrealis).
Ao traçar o percurso das formas que variam com o futuro
do pretérito na linha do tempo, Costa (2003) demonstra como o
ciclo de mudanças recupera formas que já haviam feito parte do
sistema no passado, como é o caso do auxiliar haver (amaria x havia
de amar). Mais recentemente, o futuro do pretérito concorre com
outra forma perifrástica cujo verbo auxiliar é o ir (ia amar).
A substituição do futuro flexionado pela forma perifrástica
tem sido também constatada no futuro simples [amarei x vou
amar], em relação ao português brasileiro, conforme atestam
os trabalhos de Gryner (1997 e 2003), Santos (2000) e Malvar
(2003). Esta última pesquisadora, à semelhança de Costa (2003),
constata através de uma investigação diacrônica a presença do
auxiliar haver (hei de + infinitivo, há de + infinitivo etc.) e, o uso
– mais recente – da perífrase com ir (vou + infinitivo).
O presente artigo se concentrará em um aspecto discutido
em Costa (2003), a saber, o fato de os auxiliares ir e haver nem
sempre concorrerem com as demais variantes, ou seja, de existi-
rem certos contextos especializados para uma ou outra forma. O
objetivo deste artigo é, portanto, apresentar diversos valores de
havia de e ia e relacioná-los ao fenômeno de gramaticalização.
Para tanto, será apresentada, na próxima seção, uma sín-
tese dos resultados da pesquisa diacrônica de Costa (2003). Nas
demais seções, trataremos do processo de gramaticalização de
verbos auxiliares e da co-existência de camadas de significação
da mesma forma no decorrer do processo.
2 - Formas que alternam com o
futuro do pretérito: variação e mudança
Em trabalho que comparou a fala (entrevistas sociolin-
güísticas) e a escrita informal (cartas pessoais), numa análise
sincrônica, Costa (1997) investigou as formas que alternam com o
1
A amostra de fala é futuro do pretérito no português informal no Rio de Janeiro.1
constituída por entre-
vistas sociolingüísticas A pesquisa constatou que há alternância entre formas
do projeto PEUL / UFRJ
e a de escrita por cartas
simples e em perífrase, a saber:
pessoais coletadas por • Futuro do pretérito simples (FP): amaria
Paredes Silva (1988 e
1989).

88 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

• Futuro do pretérito em perífrase (Iria+V (infinitivo): iria


amar
• Pretérito imperfeito simples (Imp): amava
• Pretérito imperfeito em perífrase (Ia+V (infinitivo)): ia
amar
No referido trabalho, a variável “idade” revelou que Ia+V
era a forma preferida dos informantes mais jovens. Como o
controle desta variável é um possível indicador de mudança
lingüística em tempo aparente (cf. LABOV, 1972), levantou-se
a hipótese de que a perífrase com ia seria uma candidata a va-
riante inovadora.
O fenômeno foi, então, posteriormente, estudado sob o pon-
to de vista diacrônico (COSTA, 2003) a partir de duas estratégias
de investigação: mudança em tempo real de longa duração e de
curta duração (cf. LABOV, 1994). Apresentaremos aqui os resul-
tados do estudo de mudança em tempo real de longa duração,
que revelou a presença de uma quinta variante – a perífrase com
havia de – que aparece principalmente nos textos mais antigos.
Para a realização desse estudo, foi analisada uma amostra
de 33 textos teatrais (de 1733 a 1997).2 Usar peças teatrais como
fonte de dados é uma prática comum entre os pesquisadores de
variação e mudança lingüística, já que tais textos são escritos
para serem falados, ou seja, seus autores geralmente buscam
retratar a fala tal como se realizava na época.
O exemplo (01) ilustra algumas variantes, inclusive a perí-
frase com o verbo haver, que à época do texto em questão, década
de 50 do século XX, estava se retirando do palco de variação,
conforme será visto na Fig. 1.
(01) [Personagens fazem aposta sobre resultado de jogo de
futebol a se realizar no final de semana seguinte]...se eu tivesse
dinheiro, sabes o que eu fazia, no domingo, queres saber? [...]
apostava com duzentas mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar
a gaita assim, na cara de duzentas mil pessoas (...) Te juro que ia
fazer minha independência, que ia lavar a égua! (A falecida, de
Nelson Rodrigues, 1953)
O estudo de mudança em tempo real de longa duração
permitiu verificar a trajetória das variantes do início do século
XVIII ao final do século XX. Seus resultados estão sintetizados
na Fig. 1, que está organizada da seguinte maneira: intervalos
de 50 anos nos séculos XVIII e XIX (exceto entre 1751-1800, em
que não houve dados disponíveis); intervalos de 20 anos para
o século XX.

2 Para mais detalhes so-


bre a amostra de peças
teatrais, consultar Costa
(2003).

Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006 89


Ana Lúcia dos Prazeres Costa

Fig. 1 – Amostra de Teatro (em porcentagem)

70

60

50 FP

40 IMP
IA+V
30
IRIA+V
20 HAVIA DE+V

10

0
1701- 1801- 1851- 1901- 1921- 1941- 1961- 1981-
1750 1850 1900 1920 1940 1960 1980 2000

O que mais se destaca no gráfico é a constatação de um


uso decrescente de havia de como auxiliar, enquanto a outra
perífrase – com ia – apresenta um uso crescente. Há também
uma oscilação nas ocorrências das formas FP e Imp através da
linha do tempo, sendo que, a partir dos anos 60, o FP dá lugar
não somente ao Imp como à forma Ia+V.
Existem, portanto, dois tipos de competição: uma entre
as formas em perífrase e a outra entre as formas flexionadas. A
primeira é menos acirrada, porque Ia+V entra em cena quando
Havia de+V está se retirando. Na outra competição, a mais acirra-
da, Imp e FP se alternam entre altos e baixos. O uso da perífrase
com iria, por sua vez, se mantém bastante tímido.
Na evolução das línguas é natural que formas inicialmente
de conteúdo lexical (como o verbo ir, de movimento) ganhem fun-
ções gramaticais (como o auxiliar ir). Este fenômeno, chamado
de gramaticalização, tem sido alvo de interesse do funcionalismo
lingüístico e será o assunto da seção a seguir.
3- Gramaticalização
Ainda que o rótulo “gramaticalização” tenha surgido em
1912 com os estudos de Meillet (cf. HOPPER; TRAUGOTT, 1993,
p.18), pesquisas que abordavam este processo já eram realizadas
desde o século XVIII por filósofos e estudiosos da linguagem.
O interesse pelo acompanhamento deste processo em vá-
rios fenômenos lingüísticos vem ressurgindo nos últimos anos
em pesquisas de cunho funcionalista (cf., por exemplo, MAR-
TELOTTA (1998), GRYNER (1997) e BRAGA (1995)). Em linhas
gerais, trata-se de um processo de mudança semântica através
do qual um item de uma categoria lexical se transfere para uma
categoria gramatical, ou um item já gramatical se torna ainda
mais gramatical. As formas submetidas a este processo geral-
mente sofrem também transformações fonéticas.
90 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006
Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

Hopper & Traugott (1993) comentam a gramaticalização


do verbo to go (ir) do inglês, em auxiliar que expressa futuridade
imediata, e atestam que este auxiliar deriva historicamente do
verbo de movimento to go. Assim, a existência dos dois tipos de
verbo (lexical e gramaticalizado) na mesma construção verbal
é possível em inglês (Bill is going to go to college after all - exemplo
dos autores), o que prova que o auxiliar já atingiu níveis altos
de gramaticalização naquela língua.
Como vimos nas seções anteriores, processo semelhante é
encontrado nas línguas românicas, entre elas o português, em
que o uso do verbo ir como auxiliar - em perífrase, variando com
o futuro do presente ou futuro do pretérito - parece inovador
e crescente.
Além disso, outro auxiliar nos chama a atenção (cf. COS-
TA, 2003). Vimos, nos dados de textos teatrais, que se usava a
perífrase haver de + infinitivo até meados do século XX, época
em que precisamente aumenta a freqüência do uso de perífrases
com o ir auxiliar.
Bybee, Perkins & Pagliuca (1994), em obra sobre a evolução
da gramática em várias línguas do mundo, tratam, entre outros
assuntos, do surgimento de formas verbais relacionado ao pro-
cesso de gramaticalização. Sobre a gênesis do futuro gramatical,
os autores afirmam que duas fontes comuns são justamente os
verbos de movimento e os verbos modais de obrigação (como
haver), sendo os primeiros os mais freqüentes (p. 253, 267). Ir e
vir são os verbos de movimento que mais se gramaticalizam na
expressão do futuro (p. 253).
A hipótese dos autores é de que a gramaticalização destas
formas passa por um estágio em que elas expressam “intenção”,
primeiramente do falante e, mais tarde, do agente do verbo prin-
cipal. Isto significa que a intenção atribuída a uma outra pessoa
pode ser encarada como “predição” (em vez de intenção), que
seria um segundo estágio (p. 254, 270).
Além disso, entre as línguas estudadas, os autores notam
que verbos de movimento que se gramaticalizam acabam ado-
tando a forma de verbos auxiliares preferencialmente (afixos,
por exemplo, são minoria) (p. 267). Também afirmam que o que
torna fácil a transição de verbo lexical a verbo auxiliar de futuro
é a própria semântica de “movimento até um alvo”, que parte
do âmbito espacial para o âmbito temporal.
No entanto, a gramaticalização é um processo bastante
lento; assim, o surgimento de uma nova forma não anula ime-
diatamente as suas antecessoras. Pode haver, numa dada língua,
a expressão variável de um mesmo sentido, para a qual concor-
rem formas de origens diversas e até mesmo diferentes níveis
de gramaticalização de uma mesma forma. Neste segundo caso,
tem-se um efeito da gramaticalização chamado de layering (BY-

Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006 91


Ana Lúcia dos Prazeres Costa

BEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994, p. 21; HOPPER; TRAUGOTT,


1993, p. 123-124).
Como foi apresentado na primeira seção deste artigo, Costa
(2003), em estudo de perspectiva diacrônica, abordou alguns
usos de ia e havia de que não eram intercambiáveis com as demais
variantes de futuro do pretérito, ou seja, havia matizes semân-
ticos diferentes nestes casos. Estes tipos de ocorrência foram
evidentemente excluídos do tratamento quantitativo, porém,
nos servem como observação dos níveis de gramaticalização
(coexistência de camadas - layering) de que falam Bybee, Perkins
& Pagliuca (1994). Na seção seguinte, apontaremos alguns tra-
balhos que comentam os diversos valores de ir e haver de em
perífrases verbais e relacionaremos tais observações aos dados
obtidos na investigação de Costa (2003).
4 - Valores de ia e havia de
A equivalência de perífrases formadas por havia de e ia com
o futuro do pretérito é prevista em Almeida (1980, p. 210-213).
Sobre havia de + infinitivo, o autor afirma tratar-se de uma
forma “mais enfática do que a simples, donde a maior convicção
e certeza que dela emana” (p. 210). Veja-se um dos exemplos
fornecidos pelo autor:
Antes, se admissível fosse aí qualquer presunção, havia de ser
em sentido contrário... (R. Barbosa – OM, 109 apud ALMEIDA,
1980)
Autores como Said Ali (1965) e Mattos e Silva (1993) cos-
tumam atribuir ao auxiliar haver de os valores de necessidade
e obrigação, por isso, a forma é vista como equivalente a ter de,
sendo aquela apontada como uma variante arcaica desta.
Sobre haver de, Almeida (1980, p. 142-147) acrescenta ao
valor de necessidade/obrigação os de convicção, imprecação, e
até mesmo de contestação da necessidade, nos casos de contexto
interrogativo:
Nem cedo nem tarde, pelo seu relógio. Mas ainda havemos de
nos encontrar. (F. Sabino – EM, 196 apud ALMEIDA, 1980)
(Convicção.)
Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?
(A. de Azevedo – C, 101 apud ALMEIDA, 1980)
(Contestação da necessidade.)
Dias (1959, p. 196-197), também atribui o valor de modalidade
a havia de, apresentando esta forma ao lado de verbos modais como
poder e dever.
Quanto ao auxiliar ia, costuma-se-lhe atribuir uma semân-
tica de intenção a realizar-se ou não-realizada:
– Eu vou comprar esta casa.
– Ia comprar, já foi vendida.(ALMEIDA, 1980, p. 215 – exemplo
do autor)

92 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

Ia tomar o pan.
(MATTOS E SILVA, 1993, p. 67 – exemplo do português arcaico,
extraído de Diálogos de São Gregório, séc. XIV)
A partir dessas considerações, buscamos uma sistemati-
zação das ocorrências excluídas de perífrases com havia de e ia,
visando a uma definição dos traços sintáticos e/ou semânticos
característicos de cada grupo de itens excluídos. Como disse-
mos, os itens excluídos são não-intercambiáveis em relação às
outras variantes analisadas (sobretudo em relação ao Imp), pois
apresentam um sentido especificamente modal (ou, no caso de
ia, de iminência).
A – Iminência/intenção em futuro do passado (estruturas
encaixadas)
Orações encaixadas que apresentam uma expressão crono-
lógica de futuro em segmentos narrativos são um contexto em
que dificilmente a forma de Imp é uma candidata a alternante.
Isto se tornará claro na apreciação dos exemplos a seguir, que
serão divididos em dois grupos:
A-1 – Orações encaixadas em discurso indireto/ estrutura
com verbo dicendi, de cognição e outros (ver, saber,
etc.):
(02) Mas ela me disse que ia ter [o filho]! A gente aqui feito boba. (No
coração do Brasil, de Miguel Fallabela, 1992)
(*tinha)
A-2 – Orações adjetivas:
A iminência, nestes casos, também acontece em relação a
um tempo passado, o tempo da narrativa, embora a estrutura
encaixada não seja a de oração objetiva, como é o caso do grupo
anterior.
(03) Era o que eu ia fazer. Mas o patrão pôs-se aqui. (As doutoras, de
Fraca Júnior, 1887)
(*fazia)
B – Iminência em orações independentes
Note-se que tanto os exemplos do item anterior quanto os
deste transmitem a noção de iminência. A diferença é que, no
grupo de exemplos deste item B, as orações em que Ia+V figura
não são encaixadas. Além disso, neste grupo, a iminência pode
se relacionar a um futuro do tempo passado ou do presente
(momento da enunciação), como veremos no exemplo (04), a
seguir.
Muitas vezes a não-realização do evento iminente é apre-
sentada por uma oração adversativa imediatamente posterior,
como é o caso do exemplo (03) do item anterior. No exemplo (04),
em que a ação iminente também não se realiza, pode-se dizer
que há um “mas” implícito no contexto seguinte.

Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006 93


Ana Lúcia dos Prazeres Costa

(04) Dorotéa - O Carlos ia sair agora mesmo para encontrá-lo


na Central [do Brasil]. [...] Estou vendo que o trem chegou
adeantado... (O hóspede do quarto número dois, de Armando
Gonzaga, 1937)
O exemplo acima apresentou uma iminência frustrada; a
seguir, temos um caso de iminência a realizar-se (em relação ao
tempo da narrativa):
(05) Disse pra todo mundo ficar escondido, [por]que ele ia falar com
a menina pra ver se podia ser... (Era uma vez nos anos cinqüenta,
de Domingos Oliveira, 1980)
Nesses exemplos dos itens A e B, uma alternância com o FP
seria possível, mas não com o Imp (na mesma interpretação).
C – Pergunta retórica
Nossos exemplos de “pergunta retórica” se assemelham
bastante ao que Almeida (1980, p. 145) chamou de “contestação
da necessidade”. O exemplo que o autor ofereceu (como vimos
anteriormente) mostra este valor semântico associado ao auxi-
liar haver (“Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam
de aturar?”), porém, encontramos, exemplos também com o
auxiliar ir:
(06) Pensavas que havíamos de chorar sempre? (O Noviço, de Martins
Pena, 1844)

(07) E tu acha que Marlyn Monroe ia ter problema igual ao teu? (No
Coração do Brasil, de Miguel Fallabela, 1992)

(08) Então eu ia dizer uma coisa dessas? (Último carro, de João das
Neves, 1967)

(09) Então eu ia pedir uma coisa dessas? (Como matar um playboy, de


João Bethencourt, 1965)
Note-se, especialmente, a repetição da estrutura de per-
gunta retórica nos dois últimos exemplos, que, por acaso, foram
coletados em autores distintos.
Na pergunta retórica, o haver parece ser similar ao poder ou
dever (no sentido epistêmico de possibilidade/ eventualidade).
No exemplo a seguir, a mais recente ocorrência do auxiliar havia
de na amostra de textos teatrais, temos a expressão modal de
possibilidade (algo como “Ora, quem mais poderia ser?”):
(10) Marina - Ora, quem havia de ser? Aquele moleque mentiroso,
aquele desclassificado,... (Como matar um playboy, de João
Bethencourt, 1965)
Houve um caso de devia+V em ambiente de pergunta
retórica, contexto em que a estrutura parece veicular “eventua­
lidade”:

94 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

(11) Hom’essa! Então eu não devia conhecer o Pão de Açúcar? (O


hóspede do quarto número dois, Armando Gonzaga, 1937)
D – Haver com valor modal (modalidade deôntica: obrigação/
necessidade) – fora de pergunta retórica.
Haver de, em alguns contextos, apresentou valor modal
similar ao de dever e ter de (que) / modalidade deôntica (obri-
gação/ necessidade), como nos exemplos abaixo. Note-se que
tais exemplos são extraídos dos textos mais antigos. De fato, o
valor deôntico de haver de é mais presente neste grupo de textos
(datados do início do século XVIII).
(12) Como a Justiça havia de sair direita, para não se lhe enxergar.
(Vida de Dom Quixote, de Antonio José da Silva, 1733)

(13) [Regras de um duelo] O desafio foi que havia ser só por só


(Esopaida, de Antonio José da Silva, 1734)

5 - Os valores dos auxiliares: co-existência


de camadas no processo de gramaticalização
Como vimos na seção 3, o conceito funcionalista de grama-
ticalização é definido como o processo pelo qual itens lexicais
e outras construções adquirem funções gramaticais em certos
contextos e continuam a desenvolver diacronicamente novas
funções (HOPPER; TRAUGOTT, 1993).
Segundo Hopper &Traugott (1993, p. 123-124), no processo
de gramaticalização, a persistência de formas ou significados
antigos ao lado de novas formas ou significados (procedentes
da mesma origem) resulta no efeito conhecido como layering. Isto
significa que formas anteriores não são descartadas de modo
abrupto, já que a gramaticalização deve ser encarada como um
continuum. Assim, dado um recorte sincrônico de uma língua,
podem ser encontradas diferentes “camadas” do processo.
Bybee, Perkins & Pagliuca (1994), sobre o efeito de layering
em várias línguas, afirmam não ser raro encontrar, especialmen-
te no âmbito da expressão de futuro e modalidade, um grupo
de formas gramaticalizadas em competição com outro em que
as formas estão em processo de gramaticalização (p. 21).
Em outro ponto de sua obra (p. 279), os autores comentam
o trabalho de Dahl (1985 apud BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA,
1994), baseado em amostras de sessenta e quatro línguas, no
qual se verifica que a expressão do tempo (tense) futuro tende
a possuir formas perifrásticas e flexionadas em quantidade
equilibrada.
Os mesmos autores apontam que as origens mais comuns
para formas de futuro são aquelas mais claramente relacionadas
a itens com noções de intenção, quais sejam: “desejo, obrigação
e movimento em direção a um alvo” (p. 280).

Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006 95


Ana Lúcia dos Prazeres Costa
Estaria no valor de “obrigação” a origem do haver de tem-
poral/ modal (irrealis) que pode variar com outras formas na ex-
pressão do tempo futuro (hei de) e do futuro do pretérito/ irrealis
(havia de)? Vimos exemplos deste valor de havia de (obrigação)
acima, nos textos mais antigos da Amostra de Teatro (início do
século XVIII).
Quanto ao verbo ir como auxiliar de futuro, o valor de
“movimento em direção a um alvo” como sua fonte parece bas-
tante consensual.
Martelotta (1998, p. 23) aponta que esta origem do verbo
ir indicador de futuro pode estar relacionada com uma origem
adverbial, ou seja, com uma estrutura que originalmente possui
uma cláusula final:
Ele vai para falar com o professor. > Ele vai falar com o
professor. > Vai chover
(Exemplo do autor)
Em Costa (2003) foi encontrado um exemplo similar ao
oferecido por Martelotta (1998) sobre o verbo ir em cláusulas
finais, ou seja, registramos uma ocorrência em uso real que
ilustra esta etapa intermediária:
“ia/ movimento” – “ia/ finalidade-intenção” – “ia/ futuro do
passado”

(14) ...de sorte que eu ia para ver o assalto, quando me disse um


soldado, que era todo uma nata, e estava de sentinela: “se quer
ver, há-de pagar à porta!” (Vida de Dom Quixote, de Antonio José
da Silva, 1733)
Abaixo, o verbo ia parece veicular um valor de intenção
muito mais evidente do que o valor de “futuro do passado” ou
de irrealis. Note-se que o valor de intenção aparece mesmo antes
das construções com ia, na forma do infinitivo ir (ir receber).
(15) Pois eu já compreendi tudo. O interesse de Carlos em ir receber
o Candinho era apenas um pretexto para sair. Ele nem ia receber
Candinho nenhum. O que ele ia era encontrar-se com o Ventura,
que telefonou para aqui uma porção de vezes procurando-o. (O
hóspede do quarto número dois, de Armando Gonzaga, 1937)
Em (15), na segunda ocorrência de ia + infinitivo, na ver-
dade, a perífrase é desmembrada e a construção clivada coloca
em foco o verbo ia (= intenção): “O que ele ia era encontrar-se
com o Ventura...”.
A origem da estrutura be going to (ou do auxiliar ir, em
português) também costuma ser relacionada a um processo
metafórico segundo o qual a noção de tempo é conceptualizada
a partir de outra mais concreta: espaço (HOPPER; TRAUGOTT,
1993).
Ainda segundo esta visão, que envolve questões metafó-
ricas, significados relacionados à obrigação (como é o caso de

96 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

haver de e dever) ganham valores epistêmicos de probabilidade


e possibilidade através de uma metáfora segundo a qual a no-
ção de “X é obrigado a Y” se desenvolve em “a proposição X é
obrigada a ser verdadeira” (BYBEE; PAGLIUCA, 1985, p. 73 apud
HOPPER; TRAUGOTT, 1993).
O conceito de gramaticalização e de uma de suas caracte-
rísticas – o efeito de layering – são, portanto, cruciais para análise
dos dados apresentados na seção anterior, visto que tais dados
evidenciam a coexistência de camadas (layering) de função/sig-
nificado de uma mesma forma gramatical.
Viu-se que, ao lado do valor deôntico (obrigação) de haver
de (item D), há situações em que este auxiliar é empregado em
contextos de pergunta retórica (valor epistêmico: eventualida-
de) (item C), além de variar com FP e Imp (conforme vimos no
exemplo (01)).
A forma ia em perífrase, por sua vez, oscila entre os valores
de intenção/ iminência (itens A e B), pergunta retórica (item
C) e também na concorrência com as variantes FP e Imp em
contexto de irrealis.
Logo, vimos que o valor diferencial do auxiliar ia parece ser
o de iminência/ intenção, já que a expressão de outros valores
é compartilhada com havia de– pergunta retórica – e Imp/ FP/
Havia de+V/ e Iria+V – irrealis. Por isso, não deve ser coincidência
o fato de que na amostra de fala também analisada em Costa
(2003) não tenha ocorrido FP em contexto sintático de discurso
indireto (e apenas 16% de FP neste contexto na amostra de textos
teatrais, como em “Insistiu que o encontraria em casa” (O dote,
de Arthur Azevedo, 1907)). Ou seja, há um matiz de iminência/
intenção muito forte neste ambiente, e, apesar da concorrência
das variantes, o Ia+V predomina.
6 - Conclusão
O presente trabalho se alinha a outros que apontam na
direção de uma mudança no português brasileiro relativa ao
uso de formas flexionadas versus formas em perífrase. Ademais,
pretende oferecer uma contribuição sobre os sentidos que os au-
xiliares ia e havia de podem veicular através de um determinado
recorte diacrônico de nosso idioma (século XVIII ao XX).
Como já foi dito, no que toca à expressão do futuro crono-
lógico, também se constata o uso decrescente da perífrase com
haver de e o comportamento do auxiliar ir enquanto variante
inovadora.3 Percebe-se, portanto, que o conjunto das formas
que variam com o futuro do pretérito e as que variam com o
3 Malvar (2003) chegou futuro flexionado integram um sistema cujas mudanças têm
a tal resultado ao tam-
bém realizar um estudo
acontecido de forma parecida, pelo menos no que diz respeito
de mudança em tempo às construções perifrásticas.
real de longa duração
com base em amostra de
A história do auxiliar havia de nos defronta com mais de
textos teatrais. uma etapa de gramaticalização, pois é sabido que a origem do
Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006 97
Ana Lúcia dos Prazeres Costa

futuro do pretérito (assim como a do futuro do presente) está


em outra perífrase também com haver (amare habebam).
Como relata Câmara (1979, p. 132), a gramaticalização
de amare habeo a amarei e amare habebam a amaria não apagou
totalmente o valor modal do futuro do presente e do futuro
do pretérito: mesmo flexionadas, estas formas são vistas muito
mais como portadoras de um “caráter modal” do que um caráter
temporal.
Isto significa que a língua, em seu ciclo funcional, após esta
etapa de gramaticalização, buscou um outro modal, no caso,
o próprio haver (havia de amar), que, associado à semântica de
obrigação, veicula também outros valores, até mesmo variando
com o futuro do pretérito.
Por outro lado, esse valor deôntico de obrigação parece
sofrer a concorrência dos modais devia e tinha de/que, que, ao que
tudo indica, acabam por suplantar, na linha do tempo, havia de
nesse valor.
Paralelamente, na condição de forma perifrástica variando
com formas flexionadas (FP e Imp) em contexto de irrealis, Havia
de+V concorreu com outra perífrase - Ia+V - que a suplantou.
Quanto à gramaticalização do auxiliar ir, por sua vez,
podemos afirmar que tal forma vem perdendo propriedades
lexicais (num processo de descoloramento), passando a funcio-
nar como um verbo auxiliar (sem que isto tenha prejudicado a
existência paralela do ir de movimento). Isto é, este verbo deixa
de ser principal como item léxico (nos contextos investigados)
com uma semântica indicativa de movimento, passando a indicar
predição/ futuridade.
Ir segue, assim, o mesmo percurso que tem sido observado
em várias línguas e que no inglês já se encontra mais consolida-
do, já que este idioma permite a coocorrência de go auxiliar e go
principal, além de o processo já incluir perdas fonéticas, como é
o caso da forma gonna. No português, por enquanto, construções
como “eu vou ir ao cinema” ou “eu ia ir ao cinema” ainda estão
sujeitas a forte sanção social.
Abstract
Recent studies have focused the grammaticalization of the verb of movement

98 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

ir (to go) into an auxiliary verb. This paper shows


that in Brazilian Portuguese this auxiliary occurs
not only in the expression of the future (time)
but also in variation with the conditional; it also
shows that the use of the verbal periphrasis with
ir has increased diachronically. Until the first
half of the XXth century, this auxiliary co-occu-
red with another one, haver de, in this context
(irrealis). This paper presents, in addition, the
several sematic values for each one of the referred
auxiliaries, which may signalize the different
semantic levels of the same linguistic form in a
grammaticalization process. This study is based
on a sample organized for a real-time observation
of linguistic change considering a long run of time
(a sample of theater plays).
Keywords: linguistic change; grammaticalization;
auxiliary verbs.

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Ana Lúcia dos Prazeres Costa

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100 Niterói, n. 21, p. 87-100, 2. sem. 2006


Transitividade verbal: uma análise
funcional das manifestações
discursivas do verbo fazer
Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva
Recebido 28, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Resumo
Este estudo objetiva analisar a transitividade
do verbo fazer em dados de textos reais (orais e
escritos), bem como comparar, em relação à tran-
sitividade, o desencontro existente entre o conceito
puramente teórico, trabalhado pela Gramática
Tradicional, e aquele que reflete um ato discursi-
vo/comunicativo do falante. Com base no quadro
teórico da lingüística funcional contemporânea,
entendemos transitividade como um complexo de
traços sintático-semânticos que, prototipicamente,
apresenta um sujeito/agente e um objeto/pacien-
te, a partir da manifestação discursiva do verbo
na cláusula. Utilizamos as categorias analíticas
transitividade e prototipicalidade, além da apli-
cação dos processos de metonímia e de metáfora.
Os dados analisados foram retirados do Corpus
Discurso & Gramática, composto de textos produ-
zidos por alunos do último ano do ensino superior,
distribuídos nos seguintes tipos: narrativa de
experiência pessoal, narrativa recontada e relato
de procedimento. Após este estudo, vimos que
há possibilidades diversificadas de se analisar a
transitividade a partir da manifestação discursiva
do verbo. As cláusulas com fazer apresentaram
variação sintático-semântico-pragmática, levan-
do-nos a concluir que transitividade é muito mais
uma questão de gradação do que de regras prontas
ou fórmulas fixas.
Palavras-chave: transitividade, verbo fazer,
prototípico, manifestações discursivas.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006


Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

1 Introdução
Na visão da gramática tradicional, o estudo da língua é
independente do estudo da situação comunicativa, pois não se
leva em consideração o contexto discursivo, ou seja, as condições
de uso das formas lingüísticas. Essas observações podem ser
verificadas, por exemplo, quando se vão procurar informações
sobre transitividade verbal.
Para essa gramática, o verbo constitui o elemento principal
do predicado verbal, podendo ser classificado em intransitivo,
quando não precisa de complemento para integrar o seu sentido,
como em (1):
(1) ... e eu fiquei tão ... é a ... ficou tão cheio de escoriações nas pernas
principalmente ... que eu pensava que num ia andar mais ... num
tinha quebrado nada ...mas tinha medo de andar ... aí fiquei
quase esse tempo todinho que passei no hospital numa cadeira
de roda ... (D&G, p. 23)
E transitivo, quando necessita de complemento que integre
sua predicação, como em
(2) ... o professor quando chegou viu que tinha sido eu que tinha
feito o serviço ... aí ele disse que tinha sido ele fazendo uma
experiência ... eu não tinha dinheiro pra pagar aquele material
todo do laboratório ...aí ficou todo mundo ... “quem foi ...
quem não ... quem não foi” ... e terminou ficando o professor
com a culpa ... e depois toda a turma ... o colégio inteiro ... fez
uma coleta ... todo mundo colaborou pra repor o material do
laboratório... (D&G, p. 50)
Verifica-se, então, que a gramática tradicional faz referência
à transitividade verbal em termos de um complemento de que
o verbo precisa para integrar o seu sentido. A classificação do
verbo em transitivo ou intransitivo é, portanto, dicotômica, tendo
como critério único a presença versus a ausência de um sintagma
nominal (SN) que complete o significado do processo verbal.
Esta pesquisa teve como objetivo geral realizar um estudo
da transitividade sob o enfoque da abordagem funcionalista
norte-americana. Como objetivos específicos, propusemo-nos:
a) Analisar a transitividade do verbo fazer, em dados de
textos reais (oral e escrito), extraídos do Corpus Discurso &
Gramática –1 a língua falada e escrita na cidade do Natal
1
Na parte destinada (FURTADO DA CUNHA, 1998);
à análise de dados, ci-
tamos D&G para nos b) Comparar, com relação à transitividade, o desencontro
referir à fonte de onde
retiramos os exemplos.
existente entre o conceito puramente teórico, trabalhado
2
Os resultados aqui pela Gramática Tradicional, e aquele que reflete um ato
apresentados foram re- discursivo/comunicativo do falante.
tirados da nossa disser-
tação de mestrado, de- Especificamente, interessou-nos analisar as manifestações
fendida em 29/10/2002,
na Universidade Federal
discursivas do verbo fazer,2 em uma escala de transitividade,
do Rio Grande do Nor- tendo como ponto de partida seu significado prototípico. Es-
te – UFRN.

102 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006


Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

truturamos, então, o nosso estudo considerando os aspectos


semântico e sintático das ocorrências com fazer.
Com relação ao aspecto semântico, dividimos as cláusulas
em três tipos de construção: fazer + objeto direto produzido
(prototípico), fazer + objeto direto (lexicalização) e fazer
(curinga)3 + objeto direto. 4 Nesse caso, levamos em conta a
existência nelas de um sujeito/agente e objeto/paciente, que ca-
racteriza a cláusula como transitiva prototípica (SLOBIN, 1982;
GIVÓN, 1984).
No que tange ao aspecto sintático, analisamos as cláusulas
em que o verbo fazer apresenta-se sem OD expresso, conside-
rando, pois, duas ocorrências: objeto recuperável do contexto
e objeto não-recuperável do contexto.
Vale salientar que o foco no verbo fazer deu-se por este
servir de modelo para os verbos classificados categoricamente
pela gramática tradicional como transitivos diretos, caso de
colocar, dar e encontrar, que no funcionamento discursivo
freqüentemente têm seu objeto suprimido, o que resulta numa
configuração intransitiva.
Na tentativa de explicar a forma da língua através do uso
que se faz dela, a transitividade foi vista a partir de um estudo
sintático-semântico, no qual esse conceito é caracterizado em
termos de grau, ou seja, a partir de parâmetros os quais con-
tribuem para que a cláusula seja mais ou menos transitiva. A
classificação das cláusulas não foi feita em termos binários, isto
é, categóricos, em que estas são transitivas quando apresentam
um objeto como complemento do verbo, e intransitivas quando
não têm objeto, como propõe a gramática tradicional.
Tomamos como ponto de partida os parâmetros de transiti-
vidade formulados por Hopper e Thompson (1980) e Thompson
e Hopper (2001), bem como a abordagem acerca do tema desen-
volvida por Givón (1984), num estudo de âmbito extra-sentencial
em que haja interface entre discurso, sintaxe e semântica, na
linha de Givón (1979).
Do ponto de vista metodológico, o estudo sobre transitivi-
dade que se pretendeu desenvolver neste trabalho foi formulado
a partir de dois aspectos: o teórico e o empírico.
Com relação ao aspecto teórico, este consistiu primeiro em
uma retrospectiva acerca da transitividade verbal feita pelos
gramáticos, Said Ali (1964,1966) e Cunha e Cintra (1985), pelos
autores de gramáticas escolares Faraco e Moura (2000) e Infante
(2001), e pelos lingüistas Perini (2000) e Dias (1999). Em seguida,
3
Esse termo terá a mes- abordamos o fenômeno da transitividade sob a ótica de estudos
m a f u nç ão da c a r t a desenvolvidos por Givón (1979,1984), Hopper e Thompson (1980),
curinga no baralho, que,
em alguns jogos, muda Thompson e Hopper (2001) e Furtado da Cunha (1989, 1996,
de valor de acordo com
a combinação que se tem
2001). Fizemos uso, ainda, de postulados funcionalistas, a saber:
em mão. a prototipicalidade (GIVÓN, 1984; SLOBIN, 1980), entendida
4
Doravante OD como a representação exemplar de uma categoria; os processos
Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006 103
Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

de metonímia (TAYLOR, 1992), que se referem à contigüidade


sintática dos elementos na cláusula; e os de metáfora (LAKOFF;
JOHNSON, 1980; TAYLOR, 1992), que estão relacionados ao valor
semântico dos componentes lingüísticos na cláusula, os quais
serviram de apoio a este estudo.
No que concerne ao aspecto empírico, procuramos inves-
tigar a concepção de transitividade como uma noção contínua,
em que as cláusulas com o verbo fazer possam ser classificadas
a partir de parâmetros independentes. Para isso, fizemos um
levantamento das ocorrências com fazer em textos retirados do
Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade
do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998). Esses textos foram pro-
duzidos por 4 (quatro) alunos do último ano do ensino superior,
de universidades públicas e particulares, compreendendo as
modalidades oral e escrita. Ao todo foram 115 (cento e quinze)
ocorrências com o verbo fazer, distribuídas nos seguintes tipos
de textos: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada
e relato de procedimento.
Vale salientar que a opção por estudantes do ensino su-
perior deu-se por entendermos que estes já passaram pelos três
níveis de escolaridade, nos quais a noção dicotômica de transi-
tividade costuma ser bastante trabalhada.
2 Análise dos dados
Iniciamos nossa análise a partir da idéia de que o signifi-
cado de base do verbo fazer é “produzir através de determinada
ação” (cf. HOUAISS; VILLAR 2001) e passamos a distribuir as
ocorrências de fazer em uma escala de transitividade, tendo
como ponto de partida seu significado prototípico.
Do ponto de vista semântico, dividimos as cláusulas com
fazer em três tipos, levando em consideração a definição de cláu-
sula transitiva prototípica de Slobin (1982): aquela que apresenta
um agente animado e intencional que provoca uma mudança
física e perceptível de estado ou de lugar em um paciente por
meio do contato corporal direto. Essa definição corresponde às
duas propriedades que Givón (1984) atribui aos verbos transitivos
prototípicos: um sujeito agente e um objeto paciente. Trabalha-
mos, então, com os seguintes tipos:
a) Fazer + OD produzido (prototípico);
b) Fazer + OD (lexicalização);
c) Fazer (curinga) +OD.
Do ponto de vista sintático, nosso estudo analisou as
cláusulas em que o verbo fazer apresenta-se sem OD expresso,
separando-as em dois tipos:
a) Objeto recuperável do contexto;
b) Objeto não-recuperável.
Apresentaremos, agora, o procedimento analítico que
acabamos de descrever.
104 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006
Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

2.1 Aspectos semânticos

2.1.1 Fazer + OD produzido


Apresenta as seguintes características:
a) Cláusula transitiva [+ prototípica] (Sujeito/agente + Fazer
(prototípico – “produzir através de determinada ação”)
+ objeto/paciente):
(3) E: as cores...inclusive da montanha são pelo menos apro-
ximadas a da fotografia?
I: são...eu ... eu procurei ao máximo ... inclusive eu tive
um ... um ... eu tive um pouco de dificuldade pra fazer
esse mar aí porque marinha tem sido ... tem ... tem sido
um dos ... um dos primeiros trabalhos sozinho assim ...
(D&G, p. 135)
A cláusula caracteriza-se como transitiva prototípica, na
medida em que apresenta um sujeito/agente “eu” que produz,
através da ação de desenhar, “esse mar” – objeto/paciente total-
mente afetado, pois ganha existência a partir dessa ação.
b) Cláusula transitiva [- prototípica] (Sujeito/beneficiário
+ Fazer (prototípico – “produzir através de determinada
ação”) + objeto/paciente):
(4) ... aí eu sei que eu fiquei esses dias todinho lá ... sem dormir
direito ... coçava muito né ... aquele negócio sarando né ... aquelas
ferida cicatrizando ... aí eu fiz uma plástica ... tive que fazer uma
plástica aqui e aqui né . (D&G, p. 22)
Embora não possa ser caracterizada como transitiva proto-
típica, já que não tem sujeito agente, essa cláusula é sintaticamen-
te codificada como tal por um processo de extensão metafórica.
Como o OD é um produto criado, que ganha existência a partir
da ação de um agente, e o beneficiário é tópico central do frag-
mento textual, o falante estrutura a cláusula como transitiva,
eliminando o sujeito e substituindo-o pelo beneficiário. Note-se
que, aqui, fazer mantém o seu sentido de base: “produzir através
de determinada ação”.

2.1.2 Fazer + OD (lexicalização) = cláusula transitiva


[- prototípica] – valor semântico de Fazer
(processo metonímico e metafórico)
Thompson e Hopper (2001, p. 33) usam o termo “compos-
tos V-O” para se referir às combinações de verbo + substantivo
que exibem um ou mais dos seguintes traços: 1) a combinação é
altamente lexicalizada; 2) o Objeto é não-referencial; 3) o Verbo
é ´leve’ ou ‘baixo em conteúdo’. Assim, estamos considerando
Fazer + OD (lexicalização) como construções que apresentam
comportamento igual aos compostos V-O. Da mesma forma de

Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006 105


Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

Thompson e Hopper (idem), estamos nos reportando a Fazer +


OD (lexicalização) como cláusulas com dois participantes.
Examinaremos, em primeiro lugar, as ocorrências em que Fazer
+ OD pode ser substituído por um verbo pleno:
(5) E: educação artística?
I: sim ... e ... educação artística seria ... não sei se seria um ... um
... talvez nessa ... nesse ... nessa área eu ... eu me propusesse a
ensinar ... a ... a .... a desenvolver a atividade profissional ...
E: eu acho até que há uma coisa natural a acontecer ... você faz
plano de se tornar um profissional nessa atividade de pintura?
ou você já se sente assim ... (D&G, p. 144)
Na cláusula destacada, apesar de o sujeito ser o agente da
ação, na medida em que “fazer plano” envolve intencionalidade,
não se pode afirmar com certeza se o objeto é afetado por essa
ação, tendo em vista que é não-individuado e não-referencial.
Essa combinação parece ser uma lexicalização, o que resulta
num afastamento do sentido prototípico de fazer, esvaziado de
conteúdo e “contaminado” pelo sentido do OD. Consideramos
que o OD não é afetado, pois tal combinação implica um valor
semântico global: “faz + plano” = “planeja”. A cláusula, então,
afasta-se da transitiva prototípica, na medida em que há um
sujeito agente, mas um objeto não-paciente.
Devido à contigüidade sintática dos elementos V-OD, por
um processo de extensão metonímica, fazer adquire o novo
valor semântico do seu objeto. A interpretação que atribuímos
ao bloco fazer + OD de algum modo amplia o sentido do verbo,
num processo de extensão metafórica. Assim, a partir de uma
transferência de sentido de natureza metonímica, chega-se a
uma extensão metafórica de sentido.
Passemos, agora, à análise das combinações V+O para as
quais a língua não possui um item verbal semântica e morfolo-
gicamente correspondente:
(6) E: endereço...
I: rua Pedro Afonso 44...Quadra B...
E: Pedro Afonso?
I: é...caneta tão chique que num sabe nem escrever ­direito...
E: num é minha não...
I: rua Pedro Afonso número 44... então foi só pra me impressionar
né...que você veio com ela?
E: não ... num quero impressionar você ... por nada nesse mundo
... rua Pedro Afonso número 44 ... Quadra B ... oh ... fiz besteira
...
I: tem problema você repete ...
E: complemento aqui ... vou botar ... Natal ... Rio Grande do
Norte ...

106 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006


Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

I: Natal é aqui ó ... Natal ... Rio Grande do Norte aqui ... (D&G,
p. 128)

Deparamo-nos com uma cláusula em que, embora o sujeito seja o


agente da ação, não podemos garantir ser o objeto afetado por essa
ação, já que é não-individuado. Existe um valor semântico global
oriundo da combinação de “fiz + besteira” = “errei”. Dessa forma,
a cláusula se afasta da transitiva prototípica, na medida em que o su-
jeito é agente, mas o objeto não é paciente.
Nesse caso, o contexto comunicativo nos dá as pistas para
interpretar a expressão “fiz besteira”. Como o informante estava
preenchendo um formulário, podemos entender que a cláusula
em destaque se refere a “erros gráficos’ produzidos à medida
que ia escrevendo.

2.1.3 Fazer (curinga) + OD = cláusula transitiva


[-prototípica] (Sujeito/agente + atribuição do valor semân-
tico de Fazer por meio dos processos da metonímia e da
metáfora)
A denominação fazer (curinga) + OD deve-se ao fato de
termos verificado em nossos dados ocorrências do verbo fazer
que podem ser substituídas por outros verbos que não têm
relação morfológica (ou semântica) com o OD. Nesses casos,
o significado do OD é fundamental para a atribuição de valor
semântico a fazer:
(7) ...quando eu vou preparar um jantar de peixe ... eu tenho que ver
que tipo de peixe que eu vou usar ... quais são os complementos
... né ... então normalmente eu faço esse peixe e tenho que me
preparar pra ver o que eu vou ... cozinhar ... (D&G, p. 59)
À primeira vista, a cláusula acima se caracteriza como
transitiva prototípica, na medida em que possui sujeito/agente,
animado e intencional, “eu”, e objeto/paciente, “esse peixe”, que
sofre mudança de estado. Entretanto, nesse exemplo o verbo
fazer não está sendo empregado no seu sentido de base ─ “pro-
duzir através de determinada ação” ─, mas com outro sentido:
“preparar”, já que o peixe referido pré-existe à ação do agente, não
sendo por ele criado. A proximidade sintática dos componentes
─ “faço + esse peixe” ─ leva-nos, por metonímia, a fazer uma
reanálise do significado de base de fazer, estendendo-o meta-
foricamente. Do ponto de vista sintático, a cláusula é codificada
como transitiva prototípica.
Examinando as cláusulas (3), (4), (5), (6) e (7) com base nos
dez traços de transitividade, temos o seguinte resultado:

Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006 107


Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

Transitividade alta Transitividade baixa


(3) (4) (5) (6) (7) (3) (4) (5) (6) (7)
Participantes 1 1 1 1 1
Cinese 1 1 1 1 1
Aspecto do verbo 1 1 1 1 1
Punctualidade do verbo 1 1 1 1 1
Intencionalidade do sujeito 1 1 1 1 1
Polaridade da cláusula 1 1 1 1 1
Modalidade da cláusula 1 1 1 1 1
Agentividade do sujeito 1 1 1 1 1
Afetamento do objeto 1 1 1 1 1
Individuação do objeto 1 1 1 1 1
Total de pontos 08 08 06 07 08 02 02 04 03 02

Quadro 1: Resultado dos traços de


transitividade das cláusulas: aspectos semânticos.
A pontuação alta obtida em (3) está correlacionada à sua
apresentação no plano da figura discursiva. O mesmo ocorre
com (4), na medida em que a informação nela contida é central
no evento que está sendo narrado. Já em (5), a cláusula apresenta
grau de transitividade 6 (seis), devido ao preenchimento negativo
dos traços aspecto, punctualidade, afetamento e individuação.
Ainda assim, a cláusula parece se situar no plano da figura, visto
que serve como gatilho para que o informante exponha seus
planos para o futuro.
A marcação positiva de 7 (sete) traços, em (6), não garante
que a cláusula pertença ao plano da figura, tendo em vista que
representa um comentário a respeito do tema do trecho: o pre-
enchimento dos dados solicitados. Isso significa dizer que essa
cláusula se encontra no plano de fundo do texto. Por fim, em
(7), a cláusula exibe um alto grau de transitividade e se situa no
plano da figura, representando, nesse fragmento de um relato
de procedimento, uma informação central.

2.2 Aspectos sintáticos


Do ponto de vista sintático, nosso estudo analisou as
cláusulas em que o verbo fazer apresenta-se sem OD expresso,
separando-as em dois tipos:

2.2.1 Objeto recuperável do contexto


(8) ... então é ... o doutor Carrilho que tava comprando todo o
material lá né ... pra mansão dele disse ...
E: por que [...]
I: é ... o cara foi super grosso aí ... aí Jorge já tremeu nas bases
que ... percebeu que ia acontecer alguma coisa muito ... muito
séria né [...]
E: mas em relação à compra do material ... fizeram na mesma
loja?

108 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006


Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

I: sim ... aí ele com eles ... parece que o doutor Carrilho
no outro dia ... no mesmo dia ele conseguiu falar com o
gerente principal e:: teve um negócio desagradável como ...
puxar arma ... um negócio assim sabe? (D&G, p. 110-113)
Temos, aqui, uma cláusula que, sintaticamente, afasta-se
do caso transitivo prototípico. Por meio da morfologia verbal (3ª
pessoa do plural), identifica-se o sujeito/agente anafórico (“Jorge
e doutor Carrilho”). Quanto ao objeto, embora ele não seja lexi-
calmente explicitado, pode ser recuperado na mesma cláusula,
em que aparece topicalizado (“a compra do material”).
Percebemos então que, do ponto de vista semântico, a
cláusula é transitiva, na medida em que a ação se transfere do
agente para o paciente, do mesmo modo que em uma cláusula
com OD expresso. O objeto, assim recuperado, é produto da ação
do agente. Note-se que a combinação “fazer a compra” equivale
a “comprar”, ou seja, o OD de fazer é uma nominalização. Nesse
sentido, a cláusula se enquadra no tipo que denominamos fazer
+ OD (lexicalização).
(9) I: eu vou...lhe ensinar a fazer uma pizza...((riso))
[...]
E: tem é ... diferença?
I: é tem ... a com a ... com a água ele tem a tendência a ... a
endurecer mais rápido né ... ((barulho de carro)) a se perder
mais rápido né? fica logo dura a massa aí ... num ... num presta
não ... mas se for pra ser consumido logo no mesmo dia num
tem problema não ... é até melhor fazer com a água porque ...
gasta menos né?... (D&G, p. 39-40)
Sintaticamente, (9) se afasta do caso prototípico, pois o
sujeito e o objeto não se encontram codificados na cláusula,
apesar de serem recuperados do contexto. Essa recuperação
torna-se possível na fala do próprio informante que diz ao seu
interlocutor que “vai lhe ensinar a fazer uma pizza”.
Considerando a recuperação do OD anafórico, ao analisar
as cláusulas em (8) e (9) pelo complexo de transitividade, o Qua-
dro 2 nos fornece o seguinte resultado:

Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006 109


Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

Transitividade alta Transitividade baixa


(8) (9) (8) (9)
Participantes 1 1
Cinese 1 1
Aspecto do verbo 1 1
Punctualidade do verbo 1 1
Intencionalidade do sujeito 1 1
Polaridade da cláusula 1 1
Modalidade da cláusula 1 1
Agentividade do sujeito 1 1
Afetamento do objeto 1 1
Individuação do objeto 1 1
Total de pontos 10 07 0 03

Quadro 2: Resultado dos traços de transitividade


das cláusulas: aspectos sintáticos.
Note-se que a pontuação máxima obtida em (8) resulta da
decisão analítica de tratar o OD anafórico recuperável como um
participante. Fosse outro o procedimento, os traços correspon-
dentes ao OD seriam marcados negativamente e, conseqüente-
mente, o grau de transitividade da cláusula seria mais baixo.
Com relação ao plano discursivo, essa cláusula contrariamente
à expectativa, já que é altamente transitiva, encontra-se no plano
de fundo, representando um pedido de esclarecimento feito pelo
entrevistador. Também a cláusula em (9) se situa no plano de
fundo desse relato de procedimento, tendo em vista que repre-
senta uma explicação, um detalhamento do preparo da pizza.

2.2.2 Objeto recuperável do contexto


Embora não tenhamos encontrado esse tipo de ocorrência,
em nosso corpus, com falantes do ensino superior, estes são co-
muns no português, como se vê em:
(10) Quem sabe faz ao vivo.
(Fausto Silva, apresentador de TV)

(11) Quem quer faz, quem não quer manda.


(Ditado popular)
Verificamos que o sujeito em (10) e (11), embora tenha ca-
racterísticas de agente, não executa nenhuma ação. As cláusulas
apresentam várias propriedades da modalidade irrealis: o sujeito
“quem” é genérico (= qualquer pessoa), o objeto zero é genérico
(= qualquer coisa) e o modo verbal é o subjuntivo.
Sintaticamente, as duas cláusulas se afastam do tipo an-
terior, na medida em que não há um objeto codificado e tam-
pouco definido pelo contexto. Pode-se dizer que o verbo fazer,
em ambos os casos, apresenta um conteúdo lexical baixo, que
não corresponde exatamente ao seu sentido básico “produzir
através de determinada ação”. Aqui, o produto (objeto criado) é
110 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006
Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

irrelevante e a ênfase recai na execução da ação (qualquer que


seja) pelo sujeito agente.
3 Considerações finais
No que tange à análise das cláusulas com fazer, verificamos
que há possibilidades diversificadas de manifestação discursi-
va. Essas cláusulas apresentam variação tanto na configuração
sintática, como na função semântica dos participantes sujeito e
objeto, quanto na função pragmática da cláusula com relação à
relevância discursiva. Isso nos leva a concluir que a transitivi-
dade, como afirma Givón (1984), é muito mais uma questão de
gradação do que de regras prontas ou fórmulas fixas, o que pode
ser ratificado pelo Quadro 3 abaixo:
Total por tipos
Tipos de cláusulas Língua falada Língua escrita
de cláusulas
Fazer + OD produzido 43 (84%) 8 (16%) 51 (44%)
Sujeito/beneficiário +
3 (60%) 2 (40%) 5 (4%)
Fazer + OD paciente
Fazer + OD
39 (87%) 6 (13%) 45 (39%)
(lexicalização)
Fazer (curinga) + OD 6 (100%) - 6 (5%)
Fazer sem OD expresso:
objeto recuperável do 8 (100%) - 8 (7%)
contexto
Fazer sem OD5 expresso:
objeto não recuperável - - -
do contexto
Total geral 99 (86%) 16 (14%) 115 (100%)

Quadro 4: Distribuição dos tipos


de fazer em 115 (cento e quinze) ocorrências.
Conforme demonstrado no Quadro 4, do ponto de vista
quantitativo, vimos que há grande incidência de fazer + OD
(produzido) ─ cláusula prototipicamente transitiva ─, que
apresenta sujeito/agente e objeto/paciente. A maioria dessas
cláusulas ocorre na oralidade. Isso demonstra que fazer é pre-
dominantemente empregado pelo falante no seu sentido proto-
típico. Mesmo na escrita, esse tipo de construção foi o que exibiu
o maior número: 8 (oito) ocorrências.
Notou-se também que as construções com fazer + OD
(lexicalização), prototipicamente menos transitivas, são usadas
com muita freqüência, pois a diferença entre este tipo e as cláu-
sulas transitivas prototípicas foi de apenas 6 (seis) casos.
As cláusulas construídas com fazer sem OD expresso, mas
recuperável do contexto ocorreram em número bastante inferior
5
Não encontramos esse às duas construções anteriores, 8 (oito) casos, ocupando o terceiro
tipo de ocorrência, em
nosso Corpus, com falan-
lugar em freqüência de ocorrência nos dados por nós coletados.
tes do ensino superior. Tais cláusulas se afastam sintaticamente da transitiva prototípica,
Por isso, não levamos
em consideração, para pois não há um OD lexicalmente explicitado, embora, do ponto
fins quantitativos, os
exemplos (10) e (11).

Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006 111


Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

de vista semântico, a ação se transfira do agente para o paciente,


da mesma forma que em uma cláusula com OD expresso.
As cláusulas construídas com fazer (curinga) + OD e aque-
las com sujeito/beneficiário + fazer + OD paciente obtiveram
quase o mesmo número de dados coletados, 6 (seis) e 5 (cinco),
respectivamente. No que tange ao primeiro caso, verificou-se que
todas as ocorrências se encontram na oralidade. Com relação à
segunda, estas se situam tanto na oralidade como na escrita.
Com relação aos pontos qualitativos, foram constatados
alguns fatos interessantes. O primeiro deles diz respeito à forma
pela qual a GT trata a questão da transitividade, cuja definição é
dada em função do complemento verbal, considerando intransiti-
vo o verbo que não apresenta sintaticamente OD. Alguns verbos,
como é o caso de fazer, são categoricamente classificados como
transitivos diretos. Verificou-se, contudo, que no funcionamen-
to discursivo o objeto muitas vezes é suprimido pelo falante, e
mesmo assim a cláusula não deixa de ser transitiva, haja vista
apresentar traços que a caracterizam como transitiva.
Outro fato por nós observado foi o de que transitividade
deve ser tratada observando a variação que existe no funciona-
mento discursivo do verbo, partindo do inter-relacionamento
que há entre os componentes sintático, semântico e pragmático.
Essa constatação ratifica ainda mais a nossa visão acerca do
fenômeno transitividade, em que não se deve considerar um
aspecto isoladamente, e sim todo o contexto, de modo que haja
uma articulação sintático-semântico-pragmática.
Procuramos mostrar que a noção de transitividade não é
categórica: não há um padrão único de construção para cláusulas
com fazer, bem como não se pode categorizar um verbo anali-
sando-o sob a dicotomia transitiva ou intransitiva, sem verificar
a sua manifestação discursiva. Vale salientar que, nesta pesquisa,
fazer serviu como modelo para os verbos que são classificados
pela GT considerando essa dicotomia.
Não queremos com este estudo impor procedimentos
que o professor deva adotar ao trabalhar com o fenômeno da
transitividade. Esperamos, contudo, que este estudo possa
servir como uma reflexão, a fim de que se criem situações de
ensino-aprendizagem que sejam sintonizadas com a realidade
lingüística em curso. Assim, sugerimos que, ao tratar da tran-
sitividade, o professor chame a atenção dos seus alunos para a
atuação dos componentes de traços sintáticos e semânticos, e que
tal fenômeno não seja visto como uma propriedade categórica
do verbo, mas como uma propriedade escalar da cláusula como
um todo.
Por fim, ressaltamos que esta pesquisa não pretendeu ser
exaustiva nem definitiva no que tange à questão da transiti-

112 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006


Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

vidade. Dessa forma, possíveis indagações não contempladas


aqui, ou respostas talvez insatisfatórias, por limitações óbvias,
possam vir a ser, pretendemos, razão para especulações futuras
mais abrangentes e aprofundadas.

Abstract
The following study aims to analyze the transitivi-
ty of the verb fazer in certain real texts (oral and
written), as well as compare the gap that exists
between the purely theoretical concept, as subs-
cribed to by traditional grammar, and the concept
which reflects a discursive/communicative act of
the speaker. Based on the theoretical framework
of contemporary functional linguistics, we un-
derstand transitivity as a group of syntactical-
semantic traits which prototypically present a
subject/agent and an object/patient, taking into
consideration the discursive manifestation of the
verb in the clause. We use analytical categories
transitivit, and prototypicality, in addition to
the application of the processes of metonymy and
metaphor. The data analyzed were taken from
Corpus Discurso & Gramática – the spoken and
written language in the city of Natal (FURTADO
DA CUNHA, 1998), composed of texts produced
by high school students of the following type:
first person narrative, third person narrative and
telling of a process. As a result of this study, we
see that there are diverse possibilities of analyzing
transitivity taking into consideration the discur-
sive manifestation of the verb. Clauses with fazer
present syntactical-semantic-pragmatic variation
which brings us to the conclusion that transitivity
is much more a question of degree than steadfast
rules or rigid formulas.
Keyword: transitivity, verb fazer, prototypica-
lity, discursive manifestation.

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114 Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006


Estrutura argumental e valência:
a relação gramatical objeto direto
Maria Angélica Furtado da Cunha
Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 5, ago. 2006

Resumo
Este artigo focaliza a relação gramatical objeto
direto, com o fim de analisar as diferentes ma-
nifestações discursivas desse elemento. A partir
da análise, é proposto um tratamento gradiente
dessa relação gramatical, através de uma escala
que ordena os objetos diretos de acordo com o seu
grau de prototipicidade. A pesquisa segue uma
perspectiva funcionalista do estudo da língua,
discutindo aspectos sintáticos, semânticos e prag-
máticos do objeto direto e tomando as propriedades
sintáticas como derivadas de propriedades semân-
ticas e sintáticas do verbo a que o objeto direto está
relacionado. Os dados empíricos correspondem
a oito narrativas conversacionais extraídas do
Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e
escrita na cidade de Natal.
Palavras-chave: estrutura argumental, objeto
direto, tratamento escalar.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006


Maria Angélica Furtado da Cunha

1. Introdução
Este artigo focaliza a relação gramatical objeto direto, com
o fim de analisar as diferentes manifestações discursivas do ele-
mento que tradicionalmente se classifica como objeto direto.1 A
partir dessa análise, pretende-se propor um tratamento gradien-
te dessa relação gramatical, sugerindo uma escala que ordena
os objetos diretos de acordo com o seu grau de prototipicidade.
Essa organização hierárquica se correlaciona a processos de
natureza cognitiva e de natureza pragmático-comunicativa que
regulam as tendências de manifestação discursiva da estrutura
argumental dos predicados.
Fundamentada em pressupostos teóricos funcionalistas
e cognitivistas, assumo que há um paralelismo entre a cate-
gorização conceptual e a categorização lingüística, ou seja,
conhecimento do mundo e conhecimento lingüístico não são
separados (FURTADO DA CUNHA et al., 2003; TAYLOR, 1998;
TOMASELLO, 1998).
Nesse quadro, as análises lingüísticas se baseiam no uso
concreto da língua pelos falantes, admitindo que a gramática
se molda a partir do uso lingüístico que se dá em situações co-
municativas. A gramática é, pois, o resultado da cristalização
ou regularização de estratégias discursivas recorrentes, que
decorrem de pressões cognitivas e, sobretudo, de pressões de
uso. As regularidades observadas no uso interativo da língua
são explicadas com base nas condições discursivas em que se
verifica esse uso.
De acordo com a proposta funcionalista, portanto, os pa-
drões gramaticais estão estritamente relacionados à estrutura do
discurso e podem, em muitos casos, ser explicados em termos
dessa estrutura. Nesse sentido, a investigação do modo como as
orações se organizam e se manifestam no discurso interativo
tem de levar em conta fatos probabilísticos, como a freqüência
de ocorrência de um dado padrão, em substituição à concepção
de que aos verbos, ou predicados, correspondem a estruturas
1
Esse artigo faz parte
de uma pesquisa, em argumentais ou valência fixas, que estabelecem, a priori, o nú-
desenvolvimento, sobre
as manifestações dis-
mero de participantes que um dado predicado evoca. Compar-
cursivas da estrutura tilho, portanto, a idéia, corrente na lingüística contemporânea,
argumental (estágio de
pós-doutorado, apoia-
de que os verbos são listados no léxico com molduras (frames)
do pelo CNPq – pro- que especificam quais argumentos são obrigatórios e quais são
cesso 200756/2003-6,
na University of Cali- opcionais. Os falantes dominam essa informação à medida que
fornia, Santa Barbara). adquirem sua língua materna.
Concentra-se na sintaxe
do objeto direto, o que A perspectiva de análise que adoto situa esta pesquisa no
significa que os papéis
semânticos que ele pode
domínio de interface entre sintaxe, semântica e pragmática, de
desempenhar não serão acordo com a postura teórico-metodológica corrente no quadro
examinados aqui. Adi-
anta-se, contudo, que o da Lingüística Funcional norte-americana (cf. FURTADO DA
objeto é uma categoria CUNHA; COSTA, 2001). Logo, as propriedades sintáticas do
semanticamente hete­
rogênea.

116 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006


Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

objeto examinadas aqui decorrem das propriedades semânticas


e pragmáticas dos verbos a que se ligam.
Os dados empíricos correspondem a oito narrativas con-
versacionais2, extraídas do Corpus Discurso & Gramática: a língua
falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA,
1998), produzidas por 4 estudantes do terceiro ano do ensino
médio. O material analisado consiste de 28.717 palavras, sendo
26.069 dos textos falados e 2.648 dos textos escritos correspon-
dentes.
2. Estrutura argumental e valência
De um modo geral, os conceitos de regência verbal,3 valên-
cia verbal,4 estrutura argumental e transitividade são tratados
como sinônimos tanto nas gramáticas tradicionais como nas
gramáticas descritivas (cf. CUNHA; CINTRA, 1985; SAID ALI,
1971; NEVES, 2000; PERINI, 1995, entre outros).
A estrutura argumental de um dado verbo especifica gra-
maticalmente quantos nomes vão acompanhá-lo, e que papéis
vão desempenhar, na oração (CHAFE, 1979; FILLMORE, 1977).
De um ponto de vista cognitivo, uma estrutura argumental nada
mais é do que uma estrutura de expectativas desencadeadas
pelo verbo (DU BOIS, 2003).
Os termos “valência” e “estrutura argumental” normal-
mente se referem ora ao aspecto sintático da relação entre o
predicado e seus argumentos, ora à relação semântica entre
eles, ora a ambos, salientando o papel dominante do verbo na
estruturação gramatical da oração em que ocorre. Desse modo, a
estrutura argumental pode focalizar as relações gramaticais dos
argumentos (sujeito, objeto direto, etc.), assim como os papéis
semânticos que lhes são atribuídos (agente, paciente, etc.). Um
outro tipo de valência, a pragmática, trata dos diferentes modos
em que essencialmente a mesma informação, ou o mesmo con-
2
O termo “narrativa teúdo semântico, pode ser estruturado de maneiras diferentes
conversacional” se refe-
re a narrativas em que
a fim de refletir o fluxo de informação velha ou nova (COMRIE,
há tomada de turno, 1981). Portanto, os verbos e suas estruturas argumentais, como
mas o narrador mantém
o turno a maior parte do tantos elementos na gramática, são multifuncionais: são capazes
tempo. de servir simultaneamente a funções sintáticas, semânticas e
Regência é a relação de pragmáticas.
3

dependência que se dá
entre um termo regente “Transitividade” (do latim transitivus = que vai além, que
e um termo regido. A
regência é um fenôme- se transmite), em seu sentido original, denota a transferência de
no formal que apenas uma atividade de um agente para um paciente. Para a Gramá-
informa se o verbo pede
um objeto (direto ou tica Tradicional, a transitividade é uma propriedade do verbo,
indireto). Esse concei-
to não será examinado
e não da oração: são transitivos aqueles verbos cujo processo
aqui. se transmite a outros elementos, que lhes completam o sentido.
4
Termo emprestado da Por oposição, nos verbos intransitivos “a ação não vai além do
química e introduzido
por Tesnière (1959), in- verbo” (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 132). Ou seja, a classificação
dicando o número de
a rg u mentos que u m
de um verbo como transitivo ou intransitivo se apóia na presen-
verbo subcategoriza. ça/ausência de um Sintagma Nominal objeto (critério sintático)
Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 117
Maria Angélica Furtado da Cunha

exigido pelo significado do verbo (critério semântico). Apesar da


distinção formal rígida entre verbos transitivos e intransitivos,
as gramáticas são unânimes em salientar o fato de que “a linha
de demarcação entre verbos transitivos e intransitivos nem
sempre pode ser rigorosa. Alguns verbos transitivos podem ser
empregados intransitivamente”, como comer e beber em: comer
carne, beber vinho, o doente não come nem bebe (SAID ALI, 1971, p.
165). Cunha e Cintra (1985, p. 134) fazem referência ao papel do
contexto lingüístico na interpretação/aferição da transitividade
do verbo: “a análise da transitividade verbal é feita de acordo
com o texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar em-
pregado ora intransitivamente, ora transitivamente”. Conclui-se,
então, que a transitividade não é uma propriedade intrínseca
do verbo enquanto item lexical, mas está sujeita a fatores que
ultrapassam o âmbito do Sintagma Verbal.
Com base no fato de que alguns verbos classificados pela
gramática como transitivos podem ocorrer sem objeto direto
explícito, Perini (1995) critica o tratamento tradicional e avança
uma proposta de análise em que cada verbo seja especificado
(supostamente no léxico, embora Perini não esclareça) com re-
lação à possibilidade de ocorrência de objeto direto. Assim, os
verbos seriam marcados como: exige objeto direto (ex. fazer),
recusa objeto direto (ex. nascer) e aceita livremente objeto direto
(ex. comer). Perini (1995, p. 168) argumenta a favor de uma con-
cepção de transitividade puramente formal, que utiliza a função
sintática “objeto direto” para marcar cada verbo, “sem referir-se
a traços do seu significado”, embora admita que “evidentemente,
existe uma relação entre transitividade e traços do significado
dos verbos”, como a exigência de agente, paciente, etc. (p. 170).
Uma alternativa de análise para a questão da transitivi-
dade é fornecida pelo quadro teórico da Lingüística Funcional
norte-americana, de inspiração em Givón, Hopper, Thompson,
entre outros. De acordo com esse tratamento, a transitividade é
entendida não como uma propriedade categórica do verbo, mas
como uma propriedade escalar (ou gradiente) da oração como
um todo. Embora o presente estudo se alinhe a essa abordagem, a
questão da transitividade oracional não será examinada aqui.5
Neste trabalho, vou utilizar a noção de estrutura argu-
mental sintática, tomada como correspondente a valência, as-
sim definida: a estrutura argumental de um verbo representa
o número de argumentos que ele pode (argumento opcional)
ou deve tomar (argumento obrigatório). Por sua vez, o termo
“argumento” identifica qualquer elemento sintático relacionado
ao verbo. Como se pode ver, estrutura argumental e valência
referem-se ao mesmo fenômeno.
As noções de valência (PAYNE, 1997; BORBA, 1996), estru-
5
Cf. Furtado da Cunha tura argumental (GOLDBERG, 1995; PERINI, 1995) e transitivida-
(1996, 2002). de (HOPPER; THOMPSON, 1980; THOMPSON; HOPPER, 2001)
118 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006
Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

têm atraído o interesse de muitos pesquisadores. O estudo da


natureza da relação entre o predicado e seus argumentos, con-
tudo, tem-se restringido, em grande parte, à análise de exemplos
construídos ou de textos escritos. Poucos trabalhos, em especial
sobre o português, examinam como a estrutura argumental e a
transitividade se manifestam no discurso interacional.6 Apoiada
nos pressupostos teóricos funcionalistas, assumo que as questões
que surgem quando se trabalha com dados reais de interação
comunicativa apresentam sérias implicações para a nossa com-
preensão da gramática da oração.
A estrutura argumental tem sido uma questão central na
investigação da gramática das línguas humanas. Na lingüística
contemporânea, “estrutura argumental” aponta para a idéia de
que o léxico de uma língua contém informação sobre as molduras
(frames) dos verbos, que descrevem quais argumentos são indis-
pensáveis e quais são facultativos (DIK, 1989; FILLMORE, 1968;
LANGACKER, 1987; PAYNE, 1997, entre outros). Para muitas
línguas, isso significa listar as molduras em que um dado verbo
pode participar. Parece consensual que a estrutura argumental
dos verbos é um tipo de conhecimento que o falante adquire à
medida que aprende a usar sua língua. Contudo, as discussões
sobre esse aspecto da gramática têm sido baseadas em exemplos
fabricados, e não em textos reais.
Thompson e Hopper (2001) citam vários problemas en-
volvidos no estudo da gramática da oração sob a perspectiva
da estrutura argumental, tais como: cenas (scenes), predicados
sem estrutura argumental e fronteiras indeterminadas entre
predicados de um participante e de dois participantes.
6
Cf. Borba (1996) que Com relação a cenas, a metodologia utilizada para deter-
trata a questão da valên- minar a valência semântica7 de um verbo é imaginar ou con-
cia a partir de exemplos
criados. Outros autores ceitualizar cenas para esse verbo, ou seja, quem ou o quê deve
abordam a est rutura
argumental preferida,
estar presente para esse verbo. Contudo, pesquisas baseadas em
como Pezzatti (1996) e corpora identificaram um leque de usos de verbos que não apa-
Camacho (1996), utili-
zando dados do NURC. recem nas investigações sobre a estrutura argumental baseadas
7
Valência semântica é o na introspecção.
número de participantes
que devem estar pre-
No que se refere a predicados sem estrutura argumental,
sentes na cena expressa Thompson e Hopper (2001) argumentam que corpora de conver-
pelo verbo. Por exemplo,
o verbo comer tem uma sações do dia-a-dia registram muitas expressões lexicalizadas
valência semântica de ou pré-fabricadas que são apre(e)ndidas como unidades e que
dois, já que deve haver
pelo menos alguém que não se prestam a uma análise baseada em verbos que escolhem
come e uma coisa comi-
da (PAYNE, 1997).
os participantes com que ocorrem.8 Em português, temos como
8
Vale notar que, ao refe- exemplo as expressões dar um cochilo ou ter confiança.
rir-se a “predicados sem Quanto à impossibilidade de traçar fronteiras nítidas entre
estrutura argumental”,
Thompson e Hopper predicados de um e de dois participantes, os autores observam
(2001) não levam em
conta o argumento su-
que, além de as línguas naturais diferirem quanto à marcação
jeito, mas apenas o argu- desses predicados, em uma mesma língua os predicados variam
mento objeto, que forma
um todo com o verbo em relação à especificação clara dos sintagmas nominais com
que acompanha. os quais podem ocorrer. Desse modo, alguns verbos podem
Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 119
Maria Angélica Furtado da Cunha

alternar entre uma configuração de um participante ou de dois


participantes, retendo o mesmo significado básico, o que compro-
va a fluidez entre as duas categorias de predicado. Veja-se, por
exemplo, a alternância entre Eu fervi a água e A água já ferveu.
Para muitos lingüistas, a estrutura argumental sintática e
a semântica (também chamada case frame) de um verbo devem
ser especificadas na entrada lexical, ou dicionário (PAYNE,
1997). De acordo com essa orientação, para que uma oração seja
bem formada, é exigida a presença explícita ou implicada dos
argumentos que mantém uma relação gramatical ou semântica
específica com o verbo da oração. Isso significa que a um deter-
minado verbo corresponderia uma estrutura argumental rígida,
cristalizada, donde se pode concluir que a não realização dessa
estrutura acarretaria em dificuldade ou mesmo impossibilidade
de interpretação do enunciado.
Pelo que foi exposto, conclui-se que há vários problemas en-
volvidos na visão tradicional da estrutura argumental, que leva
em conta cenas fixas. Na verdade, a estrutura argumental parece
ser muito mais variável em comparação com o que geralmente
se afirma sobre a gramática das orações. Trabalhos recentes na
linha funcionalista evidenciam que a estrutura argumental tem
a ver com freqüência de ocorrência de um verbo em situações
reais de uso lingüístico. O modo como os verbos se combinam
com nomes não é uma propriedade estável dos itens no léxico
mental, mas um fato altamente variável. Nessa perspectiva,
não há espaço para estruturas argumentais fixas ou rígidas. Ao
definir cada relação sintática e cada papel semântico associados
a um verbo, define-se um protótipo. Cada verbo especifica sua
própria moldura proposicional única, seu próprio arranjo único
de papéis sintáticos e semânticos. O conhecimento que adquiri-
mos sobre os verbos – com que elementos ele se combina – pode
não estar estocado em categorias nitidamente distintas. Um ver-
bo como comer, por exemplo, pode ser estocado como transitivo
ou intransitivo. Diversas pesquisas confirmam (THOMPSON;
HOPPER, 2001; TAYLOR, 1995; LAKOFF, 1987; LABOV, 1973)
que as categorias lingüísticas se comportam como as categorias
humanas de um modo geral. Ao se deparar com um novo verbo
(por exemplo, dolarizar, em português, ou e-mail, em inglês), o
falante pode tratá-lo como um membro prototípico da classe dos
verbos e até mesmo como um membro da subclasse de verbos
com dois argumentos. Assim, a gramática da oração ou estrutura
argumental é formada do mesmo modo que as outras categorias:
através do contínuo processo cognitivo de classificação, refina-
mento e generalização a partir das interações comunicativas
diárias. Como defendem Thompson e Hopper (2001), o sentido
de um verbo ou predicado está relacionado aos esquemas léxico-
gramaticais em que ele pode ocorrer, e a estrutura argumental
é essencialmente um subconjunto desses esquemas.
120 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006
Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

Vimos que as orações simples são definidas em termos de


suas molduras, uma semântica e a outra sintática. A moldura
sintática refere-se aos papéis gramaticais (estrutura sintática
dos tipos de oração), enquanto a moldura semântica diz respeito
aos papéis dos participantes (estrutura semântica dos tipos de
estado/evento), conforme Givón (2001). O isomorfismo forma-
função na oração simples é expresso em termos do mapeamento
sistemático entre as relações gramaticais dos participantes e seus
papéis semânticos no estado/evento descrito na oração.
Somente através do exame de dados de textos reais é pos-
sível determinar como os verbos e seus argumentos são usados
por falantes reais, engajados em interações comunicativas. A
análise desses dados pode fornecer material relevante para a
compreensão de como os humanos produzem e processam a
linguagem. Este trabalho se volta, portanto, para a observação
dos padrões recorrentes nos textos para saber que construções
os falantes de fato usam, categorizam e estocam.
3. A relação gramatical objeto direto
As línguas tendem a ter três categorias distintas de relações
gramaticais nucleares: sujeito, objeto direto e objeto indireto. Essa
limitação formal provavelmente reflete as limitações cognitivas
dos humanos em rastrear os papéis dos participantes em uma
dada situação e/ou o número de papéis de participantes necessá-
rios para expressar os tipos de mensagens (ou proposições) que
os humanos normalmente expressam. Em outras palavras, há
duas, possivelmente três, categorias necessárias para manter os
papéis dos participantes distintos na interação humana normal
sem sobrecarregar a mente.
Os argumentos nucleares são aqueles mais centrais à es-
trutura da oração. Tendem a ser altamente gramaticalizados,
isto é, obrigatórios e não opcionais, e relativamente desbotados
de significado semântico específico.
As relações gramaticais são categorias formais automa-
tizadas (aprendidas ou institucionalizadas) que permitem às
línguas lidar com um extenso leque de variabilidade no reino
dos papéis semânticos e do status pragmático. Logo, elas têm
apenas uma correlação frouxa com as relações semânticas e
pragmático-discursivas, embora muitos lingüistas concordem
que as relações gramaticais não podem ser inteiramente compre-
endidas a menos que sejam relacionadas aos papéis semânticos
e pragmáticos dos argumentos.
Nas gramáticas normativas, o objeto direto geralmente é
definido como o Sintagma Nominal (SN) complemento de um
verbo transitivo direto, ou seja, o complemento que normalmente
vem ligado ao verbo sem preposição e indica o ser para o qual
se dirige a ação verbal. Segundo essa definição, o objeto direto
é um termo integrante, isto é, completa o sentido do verbo e é
Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 121
Maria Angélica Furtado da Cunha

indispensável à compreensão da mensagem (CUNHA; CINTRA,


1985; FARACO; MOURA, 1991). Essa definição é bastante seme-
lhante às que se encontram na literatura lingüística, as quais
destacam ainda que o objeto direto é um argumento nuclear
(core argument), seja qual for o papel semântico que desempenha
(SCHLESINGER, 1995, entre outros).
Um argumento nuclear é parte da definição mental de
um verbo e corresponde ao participante que é inerentemente
implicado no evento ou estado expresso pelo verbo, ou seja,
para que o evento ocorra, é necessário que haja tal participante.
A entrada lexical de um verbo como demolir, por exemplo, tem
como um dos seus argumentos nucleares um SN que diz respeito
ao referente que é demolido.
Embora esteja especificado na entrada lexical de um dado
verbo, o fato de o objeto direto representar um argumento nu-
clear não exclui a possibilidade de omissão desse argumento,
pois ele pode ser recuperado ou inferido do contexto. Note-se,
porém, que recuperabilidade não é uma questão de tudo ou nada:
a escolha entre duas alternativas tem determinantes pragmáti-
cos, como veremos adiante.
À relação gramatical objeto direto deve corresponder um
determinado papel semântico, especificado pelo tipo semânti-
co de verbo. Os papéis semânticos são relações conceituais no
“mundo da mensagem” (PAYNE, 1997), definido como o domínio
conceitual expresso pela linguagem, que é distinto do domínio
formal da estrutura lingüística. Os conceitos existem mesmo se
não forem lingüisticamente expressos, daí a possibilidade de não
realização do objeto direto. Idealmente, os papéis semânticos
são papéis que os participantes desempenham nas situações
do mundo das mensagens, distintos da codificação lingüística
dessas situações. Por exemplo, o verbo comer tem conceitual-
mente (semanticamente) dois argumentos. Formalmente, os
falantes podem ajustar o conteúdo de suas mensagens, mencio-
nando mais ou menos argumentos do que esses dois previstos
na estrutura argumental de comer. Em As crianças já comeram,
entendemos que as crianças comeram algo; simplesmente não
interessa, para os propósitos desse ato comunicativo particular,
o que elas comeram.
Em princípio, muitos verbos podem ter mais de uma mol-
dura semântica; isto é uma outra maneira de dizer que eles têm
“sentidos” diferentes. A expressão gramatical do papel semân-
tico e do status pragmático de um dado SN pode ser entendida
em termos da função comunicativa da língua.
As relações gramaticais são geralmente consideradas
como relações entre argumentos e predicados em um nível da
estrutura lingüística que é independente de (isto é, que não é
sensível a) influências semânticas e pragmáticas (PAYNE, 1997).
Se as relações gramaticais fossem um tipo de representação ou
mapeamento de papéis semânticos e/ou de status pragmático,
122 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006
Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

então sua existência poderia ser explicada em termos da função


comunicativa da língua. Contudo, não se pode dizer que isso
aconteça porque uma dada relação gramatical pode expressar
diferentes papéis semânticos, por um lado, e papéis semânticos
particulares podem ser expressos por diferentes relações gra-
maticais, por outro. De um ponto de vista funcional, a relação
entre status pragmático, papel semântico e relação gramatical é
motivada em termos da noção de protótipo. Por exemplo, um
SN que tanto é agente semântico quanto tópico pragmático
provavelmente vai ser expresso como um sujeito gramatical.
Esse SN seria um sujeito prototípico. Do mesmo modo, um SN
que representa simultaneamente o paciente semântico e o foco
(a informação nova) da oração tende a ser expresso como objeto
direto. A conjunção desses aspectos define o objeto prototípico,
assim como a posição pós-verbal, no português.
4. Tratamento escalar do objeto direto
Para este estudo, trabalhei com um universo de 1.365 ocor-
rências (1.197 na fala e 168 na escrita) de verbos transitivos, isto
é, verbos cuja moldura semântica implica a existência de um
argumento objeto direto. A partir da análise desse material, é
possível verificar tendências recorrentes no discurso no que diz
respeito à realização do argumento objeto.
A análise dos dados coletados, apoiada na leitura da
bibliografia especializada, levou-me a uma proposta de um
tratamento gradiente da relação gramatical objeto direto (objec-
thood), que ordena os objetos diretos de acordo com seu grau de
prototipicidade:
Objeto Direto explícito > Zero anafórico > Zero inferido >
Objeto Direto oracional > Complexo Verbo + Objeto.
Isso significa que, como muitas outras categorias lingüís-
ticas, a categoria “objeto direto” não é discreta, uma vez que é
composta por membros que não apresentam um mesmo estatuto
ou as mesmas propriedades inerentes. Há, portanto, diferentes
manifestações discursivas do que tradicionalmente se classifica
como objeto direto. Cabe enfatizar que essa escala leva em conta
as propriedades sintáticas do argumento objeto direto, embora
considerações semânticas e pragmáticas não possam ser descar-
tadas. O quadro 1 dispõe os resultados encontrados para cada
tipo de objeto direto, tanto na fala quanto na escrita:
Tipo de objeto Fala Escrita
OD Explícito 671 (56%) 132 (79%)
OD Zero 292 (24%) 13 (8%)
OD Oracional 130 (11%) 16 (9%)
Complexo V + OD 104 (9%) 7 (4%)
TOTAL 1197 (100%) 168 (100%)

Quadro 1: Distribuição dos dados

Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 123


Maria Angélica Furtado da Cunha

A primeira categoria da escala – Objeto Direto explícito


– corresponde ao objeto prototípico, expresso por um SN cuja
distribuição é pós-verbal, tende a constituir o foco do enunciado
e a representar o papel semântico de paciente, ou objeto afeta-
do. Esse tipo é o mais freqüente, nos dados de fala e de escrita.
Vejamos alguns exemplos:
(1) ele matou um professor ... (Corpus D&G, p. 184).

(2) ele realizou um sonho dela, né? (Corpus D&G, p. 235).


Na escala, a segunda e terceira categorias correspondem
aos objetos diretos não explícitos, que se afastam do protótipo
porque o objeto não é informação nova, ou foco, daí a omissão.9
O objeto zero ocorre três vezes mais na fala do que na escrita,
dadas as propriedades pragmáticas específicas que caracteri-
zam seu uso, como veremos a seguir. O objeto zero anafórico
compreende os objetos contextualmente dados ou recuperáveis,
e corresponde aos complementos definidos nulos (definite null
complements, na terminologia de Fillmore, 1986). A categoria
zero inferido compreende os objetos previstos pela estrutura
semântica do verbo, e corresponde aos objetos indefinidos nulos
(indefinite null complements, na classificação de Fillmore, 1986).
Isso significa que os objetos diretos não-expressos não com-
partilham as mesmas propriedades, isto é, há diferentes tipos
de zero, pois enquanto os objetos anafóricos apontam para um
referente único, recuperado do contexto discursivo anterior, no
caso dos inferidos não há nenhum argumento que possa ser
razoavelmente evocado do contexto prévio. Os enunciados (3)
e (4) exemplificam o objeto zero anafórico, enquanto (5) e (6)
ilustram o objeto zero inferido:
(3) ele teria que queimar esse almanaque … então antes de fazer
qualquer aposta ele conseguiu pegar o almanaque ... queimou ...
aí quando queimou imediatamente a manchete do jornal mudou
... (Corpus D&G, p. 188).

(4) ele pediu um prato … que ela foi enfiar o garfo e o negócio voou
… que num era para comer com garfo (Corpus D&G, p. 242).

(5) e ela tinha um ... um caso né ... com um homem ... que ele ... é
... trabalhava ... mexia assim com drogas ... não é ... com tráfico
... um ladrão assim ... né ... pra conseguir o que ele queria ... ele
matava ... né ... (Corpus D&G, p. 276)
9
Encontra-se em prepa-
ração um trabalho que (6) no dia seguinte … ele apareceu lá no hotel … querendo seduzir
aborda especificamente sabe? a … a moça … mas ela não aceitou sabe? (Corpus D&G, p.
as manifestações discur-
sivas dos objetos diretos 243).
não-expressos. Neste
artigo, os dois tipos de Em (3) e (4), o objeto direto dos verbos queimar e comer é
objeto zero foram agru-
pados no quadro 1.
dado no contexto imediatamente precedente: o almanaque e o

124 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006


Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

negócio, respectivamente. Em (5), a identidade exata do referente


objeto de matar não pode ser recuperada e é irrelevante para
os propósitos comunicativos do falante: infere-se que o ladrão
matava qualquer pessoa que interferisse em suas atividades
ilícitas. Com base em nossa experiência, atribuímos um argu-
mento objeto ao verbo matar, muito embora não sejamos capazes
de identificá-lo, já que ele representa um elemento genérico ou
não-específico. Em (6), por outro lado, a recuperabilidade do
objeto está aberta para o interlocutor, pois há vários SN candi-
datos potenciais ao papel gramatical de objeto direto, caracte-
rizando o zero multireferrencial. Dentre outras possibilidades,
podem-se selecionar como referente do objeto zero: a sedução, a
proposta, a cantada, etc. Tanto em (5) quanto em (6) a ênfase recai
sobre o evento em si, daí a não explicitação do objeto direto.
Dado o nosso conhecimento semântico/pragmático, inferimos
o argumento não-expresso, muito embora ele não possa ser
lexicalmente identificado.
Como se pode ver, o objeto zero anafórico é dado no texto,
constituindo um subtópico discursivo, ao lado do sujeito tópico,
e a possibilidade de referência anafórica reflete sua topicidade.
Portanto, se afasta do objeto direto prototípico, que é o foco da
oração, isto é, a informação nova. Por sua vez, a irrelevância
comunicativa do objeto zero inferido está refletida na impossibi-
lidade de recuperação precisa, em muitos casos, de seu referente:
nem o falante nem o ouvinte precisam ser capazes de identificar o
referente particular do objeto direto, aquele que sofreu mudança
de estado. Há, portanto, uma diferença importante entre esses
dois tipos de objeto zero. Com relação ao zero inferido, trata-se
de uma operação de ajuste da valência, o que não se dá com o
zero anafórico. No primeiro caso, a ausência do objeto direto se
deve à falta de proeminência discursiva (cf. GOLDBERG, 2001).
Na grande maioria dos casos em que um verbo com uma va-
lência semântica de dois argumentos ocorre sem referência ao
segundo argumento, a situação é tal que a identidade do item
que preencheria a relação gramatical do segundo argumento não
foi estabelecida e não precisa ser estabelecida para que o falante
atinja seu propósito comunicativo. É a ação que é particularmen-
te enfatizada. Por outro lado, o objeto zero anafórico funciona
exatamente no tipo de situação contrária, ou seja, quando a
identidade do referente está tão bem e recentemente estabelecida
que não há possibilidade de confusão com alguma outra enti-
dade. Vale lembrar que a noção de valência está estreitamente
relacionada com a idéia tradicional de transitividade, a saber,
um verbo transitivo é aquele que descreve uma relação entre
dois participantes de tal modo que um dos participantes age
sobre o outro. Um verbo intransitivo é aquele que descreve uma
propriedade, um estado, ou uma situação que envolve apenas
um participante. Segundo Payne (1997), as línguas têm várias
Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 125
Maria Angélica Furtado da Cunha

maneiras de ajustar (aumentando, diminuindo, reorganizando)


a valência sintática das orações. O efeito semântico (isto é, con-
ceitual) e pragmático de aumentar a valência sintática pode ser
caracterizado como a promoção de um participante periférico
ao centro do palco, enquanto o efeito de diminuir a valência é o
rebaixamento de um participante central a um status periférico,
ou sua eliminação da cena.
Incluem-se, ainda, na categoria dos objetos não explícitos os
verbos de moldura semântica transitiva que ocorrem, preferen-
cialmente, com objeto zero inferido não-específico ou genérico,
como é o caso de beber, que implica bebida alcoólica, e dirigir, que
implica carro, como nos exemplos seguintes:
(7) a gente tinha ido pra:: Baixa Verde ... aí lá tinha uma vaquejada
... meu pai foi ... começou a beber ... começou a beber ... isso a
gente tinha um Passat ...sabe? começou a beber ... e minha mãe
morrendo de medo porque ... ele ia beber muito e pra voltar ...
de noite era muito perigoso ... (Corpus D&G, p. 223).

(8) eu vinha com o coração na mão ... sabe? [...] se eu soubesse


dirigir ... por isso é que é bom ... a pessoa saber dirigir ... né?
Porque numa hora dessa ... “pai vá pra trás que eu vou aí pra
frente”... (Corpus D&G, p. 225).
Esses verbos apresentam um significado especializado,
na medida em que beber tende a envolver álcool na cena, e dirigir
implica carro, a menos que especificado de outra forma. Então,
pode-se dizer que álcool foi incorporado na moldura semântica
de beber, assim como carro na de dirigir. Essa é a interpretação que
normalmente atribuímos ao objeto zero desses verbos.
Note-se que o objeto anafórico é definido, ao passo que o
objeto inferido é indefinido. Isso significa que, embora eles sejam
sintaticamente iguais (são zero, isto é, não estão lá), semantica-
mente são diferentes, pois os inferidos não podem ser identi-
ficados com precisão. Do ponto de vista pragmático, o objeto
inferido/indefinido é irrelevante na medida em que a saliência
comunicativa incide sobre o evento/ação. Esse aspecto reflete o
fato de que a estrutura argumental sintática e a estrutura argu-
mental semântica de um verbo nem sempre coincidem no uso
discursivo desse verbo, pois o comportamento sintático de um
verbo também pode ser pragmaticamente motivado. A estrutu-
ra da informação tem a ver com o uso das orações e não com o
significado das proposições, o que demonstra a independência
dos papéis semânticos e pragmáticos. Isso nos leva a crer que a
10
Não foram contabi-
lizados aqui os objetos semântica nem sempre determina a sintaxe, apesar de funcio-
oracionais dos verbos narem de forma integrada.
dicendi, tema de outro
estudo. Para uma dis- O objeto direto oracional10 apresenta algumas característi-
cussão sobre o estatuto
sintático desses objetos,
cas que o afastam do protótipo: é representado por uma oração,
ver Furtado da Cunha e não por um SN nominal, é não-referencial, não-individuado e
(2004, 2005).

126 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006


Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

não-afetado. A oração complemento pode ser introduzida pelo


complementizador que, por verbo no infinitivo ou por pronome
relativo, como nos exemplos seguintes:
(9) depois que ele descobriu [que as cartas eram dela] ... (Corpus
D&G, p. 184).

(10) dizendo que ela tinha aceitado [sair com ele] ... (Corpus D&G,
p. 234).

(11) eu já sei [quem foi] que ganhou... (Corpus D&G, p. 179).


A categoria complexo V + Objeto compreende construções
que ocorrem com os chamados verbos-suporte (cf. BORBA,
1996). Esses verbos participam de uma construção complexa
(GOLDBERG, 1995) com um nome que atua como o núcleo do
predicado, enquanto o verbo é esvaziado de significado lexical,
servindo como suporte de categorias verbais (tempo, modo, nú-
mero e pessoa). Nessas construções, parece não haver separação
semântica entre o evento/ação e seu complemento; ao contrário,
a construção é interpretada como um todo. Os mesmos verbos
que ocorrem nessas construções complexas (dar, fazer, ter, etc.)
funcionam como verbos plenos quando seu complemento é
um SN referencial. Em muitos casos a construção complexa
pode corresponder a um verbo pleno, como em dar conselho =
aconselhar, fazer parte = participar, ter confiança = confiar. Vejamos
alguns exemplos:
(12) gosto de fazer amizade e tudo mais ... (Corpus D&G, p. 175).

(13) eu tinha vergonha de comer na frente do Alexandre ... (Corpus


D&G, p. 227).

(14) ela deu um telefonema pra casa do delegado … (Corpus D&G,


p. 280).
Não se pode analisar a estrutura argumental sem deparar
com construções desse tipo ou sintagmas verbais fixos, idioma-
tizados, o que constitui um problema para qualquer análise.
Parece não haver critérios bem estabelecidos que diferenciem as
construções com verbo-suporte do tipo que estou denominando
complexo V + Objeto das construções que também apresentam
verbo semanticamente esvaziado + objeto, que podem corres-
ponder a verbos simples, mas que são tidas como expressões
cristalizadas ou idiomatizadas por alguns autores, como fazer
questão, fazer sucesso (cf. NEVES, 2000). Esse assunto não será
aprofundado neste trabalho.
Os dados analisados apontam para o fato de que a estru-
tura argumental dos verbos parece ser gradiente, o que significa
que os verbos variam com relação a quão rígida ou quão frouxa
sua estrutura argumental pode ser. Muitos verbos ocorrem em
Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 127
Maria Angélica Furtado da Cunha

mais de um padrão de estrutura argumental (confiram-se os


exemplos (1) e (5) acima, com o verbo matar). Além de serem
pragmaticamente motivados, em termos do status informacional
dos argumentos, padrões alternativos de estrutura argumental
sintática provavelmente estão relacionados ao tipo semântico de
verbo e a diferenças de significado de um mesmo verbo (pró-
xima etapa da pesquisa sobre as manifestações discursivas da
estrutura argumental).
5. Considerações finais
A lingüística funcional postula a ascendência do compo-
nente pragmático sobre o componente semântico, e do semântico
sobre o componente sintático: a gramática da oração veicula o
sistema semântico da língua, o qual, por sua vez, organiza os
acontecimentos da realidade. A complexidade sintática resulta
da pragmática da comunicação: a necessidade do falante de
basear a cena referencial – o evento a ser comunicado – na cena
atencional (TOMASELLO, 1999) – o evento de interação – que
está compartilhando com seu(s) interlocutor(es). No nível do
enunciado, as construções mais comuns e recorrentes na língua
fornecem embalagens pré-estabelecidas, convencionalizadas ao
longo do tempo, que servem de base para a referência a parti-
cipantes e eventos particulares, e para o processo de tomada
de perspectiva, selecionando diferentes elementos como foco
primário do enunciado.
Para Du Bois (2003), os falantes, ao produzir discurso, são
cuidadosos em rastrear quais referentes foram previamente
introduzidos (e estão ativos na mente, no sentido de CHAFE,
1994) e quais estão sendo introduzidos pela primeira vez, tendo
em vista o estado corrente de conhecimento (ou ausência dele)
que seus interlocutores têm. As estratégias para o gerenciamento
da informação governam parcialmente as escolhas lingüísticas,
como aquela entre objetos diretos explícitos ou zero. Em geral,
a escolha do falante com relação à forma de codificação do ob-
jeto direto pode ser considerada como um indicador sensível e
confiável do custo cognitivo percebido em acessar um referente.
Os verbos e suas estruturas argumentais, como tantos elemen-
tos na gramática, são multifuncionais: são capazes de servir
simultaneamente a funções semânticas e pragmáticas. Ainda
segundo Du Bois (2003), os padrões discursivos têm a ver com
custo cognitivo: eles apontam para uma exploração sistemática
da estrutura sintática como um quadro para a organização e
gerenciamento de custos cognitivos na produção e compreensão
do discurso. Nesse sentido, a estrutura argumental de um verbo
define um formato para o processamento cognitivo, formato este
que, uma vez cristalizado como estrutura gramatical devido
a sua freqüência no discurso, torna-se um recurso cognitivo
disponível a todos os membros da comunidade de fala. No
128 Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006
Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

processo de gramaticalização, aqui entendido como a fixação de


padrões discursivos em padrões gramaticais, há, portanto, uma
atuação direta do componente pragmático. Em relação à estru-
tura argumental, essa postura implica a interferência de fatores
discursivos na codificação gramatical das orações e dos casos
semânticos envolvidos, ressaltando a estreita correlação entre as
determinações do discurso e as da gramática. O fato de muitos
verbos ocorrerem ora com ora sem objeto torna a distinção entre
verbos transitivos e intransitivos discursivo-pragmática, e não
lexical e paradigmática.

Abstract:
This paper addresses the grammatical relation
direct object, with the aim of analyzing the vary-
ing discourse manifestations of this element. As
a result of this analysis, it is proposed a gradient
treatment of objecthood, by means of a scale which
ranks the direct object according to its degree of
prototipicality. The research follows a functional
perspective on language study, discussing syntac-
tic, semantic and pragmatic aspects of the direct
object, and considering the syntactic properties as
derived from semantic and pragmatic properties
of the verb the direct object is related to. The data
for this study come from eight conversational
narratives, collected from Corpus Discurso &
Gramática: a língua falada e escrita na cidade
do Natal.
Keywords: argument structure, direct object,
scalar treatment.

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Niterói, n. 21, p. 115-131, 2. sem. 2006 131


“Restrições de ilhas” revisitadas: uma
abordagem funcionalista à luz da noção
de “unidade de informação”
Maria Beatriz Nascimento Decat
Recebido 29, jun. 2006/Aprovado 30, ago. 2006

Resumo
Este trabalho apresenta uma abordagem funcio-
nalista das estruturas de “ilhas”, assim nomeadas
por Ross (1967) dentro de uma visão gerativista.
Pretende-se mostrar que as restrições estabelecidas
por tais ilhas quanto à ocorrência de constituintes
em determinados lugares da estrutura se devem ao
fato de elas constituírem, funcionalmente, “uni-
dades de informação” e, por isso, não permitindo
a extração ou movimento de nenhum constituinte
para fora de seus limites.
Palavras-chave: restrições de ilhas, unidade de
informação, funcionalismo.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


Maria Beatriz Nascimento Decat

Ross (1967), em sua tese de doutorado, formulou restrições


sobre regras cuja aplicação dava origem ao deslocamento de
constituintes. Tais regras postulavam o deslocamento de um
nódulo para o início da sentença, que iria para a esquerda do
nódulo S, através do processo de adjunção chomskiana, o qual
consistia em inserir um elemento sob um nódulo que já existis-
se e, também, em criar uma cópia desse nódulo sob o nódulo
existente. Depois de Ross (1967), foram feitas várias propostas
para explicar esse deslocamento, as quais se baseavam na exis-
tência do elemento COMP, que ora seria substituído, ora teria o
constituinte deslocado (no caso presente, o sintagma nominal
interrogado — SN-q) à sua esquerda; e ora o SN-q se deslocaria
para a posição de COMP, à esquerda do complementizador, em
estruturas como, por exemplo: Geo me perguntou o que que eu vou
comprar.
Saber se o movimento de SN-q se deu em substituição a
COMP, ou para a esquerda desse, não é o objetivo deste trabalho.
Aqui pretende-se explicar os lugares de ocorrência, ou não, de
um SN-q na língua em uso. Assim, fala-se em deslocamento por
mera finalidade de exposição do fato, o que não quer dizer que
se esteja admitindo deslocamento dentro da estrutura, visto que
a abordagem, aqui, é funcionalista e, como tal, toma a língua em
sua materialidade, em sua real manifestação.
As restrições formuladas por Ross (1967) sobre as regras de
movimento/deslocamento de constituintes impediam, portanto,
que determinados elementos fossem extraídos de dentro de cer-
tas estruturas, a que ele chamou de “ilhas”. Essas estruturas, por
seu próprio caráter de isolamento — daí, “ilhas” — impunham
restrições quanto ao deslocamento de elementos para fora delas,
como se estivessem ‘encapsulados’. O autor arrolou como “ilhas”
as construções de orações relativas, os sujeitos sentenciais, os
SNs especificadores da esquerda, as estruturas coordenadas, as
interrogativas indiretas e as orações complementos de nomes.
Em Decat (1978), trabalhando com interrogativas diretas no
português, tratei das condições que determinavam o movimento
do sintagma nominal, quando interrogado. O trabalho foi
desenvolvido à luz da fundamentação teórica de base gerativista
(mais especificamente, a teoria padrão ) , tendo nos postulados de
Chomsky a linha central da argumentação. Os dados utilizados foram
de introspecção, submetidos a julgamentos de gramaticalidade,
como era o usual na época. Em linhas gerais, a análise centrou-se em
estruturas do tipo das abaixo:
(l) a- Cláudia comprou que livro?
b- Que livro Cláudia comprou?

(2) a- Olavo disse que Cláudia comprou o quê?


b- O que Olavo disse que Cláudia comprou?

134 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”

Pela comparação de (1 a-b) e (2 a-b) acima, evidencia-se


que a análise tratou do movimento de SN-q tanto em sentenças
simples quanto em sentenças complexas. Em dado momento
do trabalho afloraram dados como as sentenças exemplificadas
abaixo, extraídas de Decat (1978):
(3) a- Ela fugiu quando quem apareceu na porta?
b- *Quem ela fugiu quando apareceu na porta?

(4) a- Biba chorou porque sua colega quebrou o quê?


b- *O que Biba chorou porque sua colega quebrou?
Algum problema existia com as sentenças acima que não
permitia o movimento do SN-q para o início de toda a sentença.
Comparando (3) e (4) com (2) acima observa-se que todas constituem
casos de sentenças complexas formadas por subordinação (pelo
menos como se entendia a subordinação na época). Qual era, então,
o problema com (3) e (4)? Por que a regra ali não se aplicava? A
hipótese que logo surgiu foi a de que as estruturas com orações
subordinadas não permitiam tal movimentação. Entretanto, por que
(2b) era gramatical e (3b)-(4b) não eram? A conclusão decorrente
dessa primeira hipótese foi a de que as orações subordinadas
adverbiais não admitiam, ao contrário das substantivas, a aplicação
da regra de movimento. A análise de Ross (1967) não apresentava
solução para o fato exemplificado em (3) e (4), uma vez que sua
análise não incluía orações adverbiais como construções de ilhas.
A mesma comparação foi feita com períodos compostos
por coordenação, como os exemplos abaixo:
(5) a - Rosane comprou um vestido e Fernando pagou com cheque
de qual banco?
b - *De qual banco Rosane comprou um vestido e Fernando
pagou com cheque?

(6) a - Eu estudo latim e você estuda que língua?


b - *Que língua eu estudo latim e você estuda?
A situação com as coordenadas parecia a mesma. Entretan-
to, uma nova coleta e testagem de dados mostraram que eram
gramaticais, em português, as estruturas abaixo:
(5) c- Rosane comprou um vestido e de qual banco Fernando pagou
com cheque?

(6) c- Eu estudo latim e que língua você estuda?


A diferença entre as sentenças (5 a-b) e (5c), e entre as de (6
a-b) e (6c) parecia apontar para uma conclusão segundo a qual
a coordenação permitia algum tipo de movimento, o que não
acontecia com a subordinação. Entretanto, quando se tratava de
levar o SN-q para o início de toda a estrutura, todas as sentenças

Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006 135


Maria Beatriz Nascimento Decat

acima mencionadas tinham igual comportamento, ou seja, não


era permitido tal movimento.
Várias foram as tentativas de solução. A teoria, no entan-
to, não fornecia meios para uma explicação sobre tão estranho
comportamento, mesmo incorporando, em seu arcabouço, as
“restrições de ilha”, postuladas por Ross (1967). Nesse caso,
estar-se-ia diante de configurações estruturais que impediam
o movimento do SN interrogado. No entanto, nem mesmo essa
análise era suficiente para explicar grande parte das ocorrências.
Por exemplo, nem todo tipo de oração subordinada se apresen-
tava como sujeita a essas restrições (se se considerar, como na
época, que a subordinação constitui um bloco, não admitindo
diferentes tipos de subordinação). Assim, uma oração relativa
teria o mesmo comportamento de uma adverbial, como apontam
os exemplos abaixo:
(7) a- Geovane gostou da palestra que você proferiu onde?
b - * Onde Geovane gostou da palestra que você proferiu?
Já uma subordinada complemento mostra-se sensível à
aplicação da regra de movimento do SN-q, como na estrutura
que se segue:
(8) a- Águeda disse que Evane vendeu o quê?
b- O que Águeda disse que Evane vendeu?
O sintagma interrogado o que está numa oração que é
argumento do verbo dizer, seu objeto direto. A ocorrência do
SN-q no início de toda a estrutura mostrou-se possível.
Continuava, entretanto, a pergunta: por que algumas su-
bordinadas permitiam o movimento do SN-q para fora delas,
e outras, não? Em outros termos, por que somente algumas
subordinadas se comportavam como “ilhas” quanto à aplicação
daquela regra de movimento?
Ross acrescentou, às restrições de ilhas, três condições co-
nhecidas como: Restrição sobre SN Complexo, Restrição sobre
Estruturas Coordenadas e Restrição sobre Sujeito Sentencial.
Assim, segundo ele, na estrutura abaixo não seria possível o
movimento do sintagma interrogado para o início da sentença,
uma vez que o elemento interrogado faz parte de um SN Com-
plexo (estando dentro de uma oração relativa restritiva — com
‘cabeça’, nesse caso, isto é, com núcleo nominal):
(9) a. Giovanni atropelou a moça que ele conheceu onde?
b. *Onde Giovanni atropelou a moça que ele conheceu?
(Mantendo-se a relação de onde com o verbo conhecer, e não com
atropelar)

136 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”

Já em (10b), abaixo, o movimento não foi possível por força


da Restrição sobre Estruturas Coordenadas, uma vez que o SN-q
está dentro de uma delas, no caso, a segunda:
(10) a. Cristina comeu mamão e você comeu o quê?
b. * O que Cristina comeu mamão e você comeu?
Finalmente, (11b) e (12b) não seriam, segundo Ross, pas-
síveis de ocorrência, tendo em vista a Restrição sobre Sujeito
Sentencial. Tanto em (11a) quanto em (12a) o SN-q está dentro
da oração que é sujeito do predicado é obvio (em 11a), e me
chateia, em (12a):
(11) a. É obvio que Luciana ama quem?
b. *Quem é óbvio que Luciana ama?

(12) a. Me chateia Angélica não gostar de quem?


b. *De quem me chateia Angélica não gostar?
Um questionamento feito por Ross (1967) sobre o movimen-
to de SN-q procura mostrar que esse movimento não é ilimitado,
em termos de tamanho da estrutura que ele encabeça. Aponta
Ross que é gramatical o movimento de SN-q em estruturas com
that complemento de verbo (em português, estruturas oracio-
nais substantivas objetivas). O mesmo não acontece quando as
estruturas com that são complemento de nome, como no caso
exemplificado em (13), a seguir (oração completiva nominal):
(13) a. Sueli mencionou o fato de que o ladrão correu atrás de
quem?
b. *De quem Sueli mencionou o fato de que o ladrão correu
atrás?
Segundo Lobato (1986, p.258), ao se admitir, na língua,
variação quanto às configurações de ilha, percebe-se que no
português é permitida a extração de dentro de SN complexos.
Assim, segundo essa autora, (14) é uma estrutura possível no
português:
(14) ? Quem você acredita no boato de que beijou Andréia?
Entretanto, não creio que esse possa ser um contra-exemplo
à restrição de Ross, uma vez que não encontrei, nos dados exa-
minados, nenhum caso desse tipo, em que o SN quem é sujeito
da oração quem beijou Andréia, que é uma oração complemento
de nome (no caso, o boato) — tradicionalmente conhecida como
completiva nominal.
Voltando às estruturas em que o SN-q ocorria dentro de
uma oração adverbial — como (3) e (4) dadas anteriormente
— continuava sem uma explicação satisfatória a razão pela qual
o SN-q não ocorria no início de toda a sentença.

Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006 137


Maria Beatriz Nascimento Decat

Os estudos por mim empreendidos, nos últimos anos, na


teoria funcionalista me permitiram aventar uma resposta ao pro-
blema até então não satisfatoriamente explicado. Uma possível
solução se insinuou através da noção de “unidade de informa-
ção” — UI —, postulada por Chafe (1980). Segundo esse autor,
trata-se de um jato de linguagem que contém toda a informação
que pode ser ‘manipulada’ (ou monitorada) pelo falante num
único foco de consciousness (ou “estado de consciência”, confor-
me KATO 1985, p. 35). O autor dá outras características dessa
unidade, que não interessam neste trabalho. Interessa, aqui,
principalmente o fato de que essa unidade, sendo um bloco de
informação, expressa o que está na “memória de curto termo”
(ou “memória rasa”, ou ainda “memória de médio prazo”, con-
forme já apontou KATO, 1985). Tal noção foi por mim utilizada
(cf. DECAT 1999, 2001, 2005) para explicar, já numa abordagem
funcionalista, não só o comportamento de certas orações adver-
biais que apareciam desligadas da oração-núcleo (ou matriz)
— a que chamei de orações ‘desgarradas’ — como também o
comportamento idêntico das orações relativas explicativas (ou
relativas apositivas).
A questão parecia, finalmente, estar resolvida: o problema
da não-aplicação da regra de movimento de SN-q não era das
orações adverbiais, pelo simples fato de serem adverbiais. A ex-
plicação passa a ter, na noção de “unidade de informação”, seu
ponto básico: o SN-q não podia movimentar-se para o início da
sentença quando ele originalmente estava dentro de uma ora-
ção que, por si mesma, era uma unidade informacional. Estava,
assim, explicado por que nas orações de (2) o movimento era
permitido, dando origem a estruturas gramaticais, quando isso
não era possível nos demais casos exemplificados: é que o SN-
q não poderia ser movido para fora da unidade informacional
à qual ele pertencia. Isso viria a resolver também o caso das
estruturas com coordenação; nelas, cada oração é uma unidade
de informação à parte, e por isso são também chamadas de ora-
ções independentes (nos termos da gramática tradicional). Já o
SN-q da estrutura (2) teve seu movimento permitido porque a
oração que Cláudia comprou o quê faz parte de toda a estrutura
constituída pela sentença inteira, pois tal oração está na condi-
ção de uma oração encaixada, integrada estruturalmente numa
estrutura de nível maior, exercendo uma função — no caso, de
objeto direto — como argumento do verbo da oração-núcleo.
Ressalte-se que a explicação acima faz uso de uma argu-
mentação de base gerativista, uma vez que se admite a existência
de uma estrutura original da qual se ‘desloca’ um elemento. Em
termos funcionalistas, no entanto, pode-se argumentar que o
SN-q não ocorre em início de um complexo oracional que tem,
dentro dele, uma oração adverbial. E mais: por constituir a oração
adverbial, assim como a coordenada, uma unidade de infor-
138 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006
“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”

mação à parte, é evidente que todos os elementos pertencentes


ao bloco de informação que tais tipos de orações codificam, ou
materializam, estejam dentro desse bloco. Não há, portanto, por
que falar em movimento, mas de lugares de ocorrência.
Se se entender que uma configuração sintática vista como
“ilha” assim se caracteriza por causa de seu ‘isolamento’, talvez
se possa aliar às “restrições de ilhas”, de Ross (1967), um trata-
mento funcionalista, dando, portanto, a essas restrições assim
reformuladas um caráter mais explanatório. Em outras palavras,
qualquer que tenha sido a evolução da teoria gerativa no que diz
respeito a esses tipos de estruturas que estão sendo analisados
aqui, creio que a noção funcionalista de “unidade de informação”
(ou “unidade de idéia”, “bloco de informação”) atinge esse poder
explanatório, saindo da esfera meramente material e descritiva,
atribuída às ilhas, para a esfera conceitual, tomando o estatuto
informacional da estrutura como parâmetro para a análise.
Retomando Ross (1967), postula esse autor que o movi-
mento do SN-q é gramatical (em termos gerativistas) dentro dos
limites de uma “ilha”, e não além de suas fronteiras. Ora, o tra-
tamento funcionalista que aqui estou propondo permite que se
reconheçam algumas dessas ilhas como “blocos de informação”
à parte, como “unidades de informação”. Dessa forma, explica-se
a não-ocorrência de sintagmas interrogados em início de estru-
turas complexas que contenham: a) orações coordenadas (como
5, 6 e 10 dadas anteriormente); b) orações adverbiais (como 3 e 4,
vistas antes); c) orações relativas restritivas (como 7 e 9); d) um
SN-q dentro de uma oração substantiva subjetiva (como 11 e 12
); e) finalmente, aquelas em que o SN-q faz parte de uma oração
complemento de nome (como 13). Dentre essas estruturas, as
de tipo a e b comportam-se como “unidades de informação” à
parte. Por outro lado, vão permitir a ocorrência de um SN-q no
início da estrutura sentencial as orações complemento de verbo
(como 2 e 8), porque elas constituem, juntamente com o restante
da estrutura, uma única “unidade de informação”, por serem
argumento de verbo e estando, portanto, integradas semântica
e estruturalmente à estrutura global.
Há, no entanto, algumas restrições de Ross que se mantêm,
ou seja, às quais a análise com base na noção de “unidade de
informação” não se aplica. Por exemplo, as estruturas dadas em
(11) e (12), embora sejam, cada uma delas, uma única unidade
informacional, têm o sintagma interrogado como constituinte de
uma oração que é sujeito de toda a estrutura. Assim, fica mantida
a Restrição sobre Sujeito Sentencial para explicar a não-ocorrên-
cia desse elemento no início de toda a estrutura. Também em
(13) não é possível o aparecimento do SN-q na posição inicial
da estrutura. Embora se tenha, nesse caso, um único “bloco de
informação”, o SN-q é constituinte de uma oração complemento

Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006 139


Maria Beatriz Nascimento Decat

de nome, construção essa que constitui uma das restrições de


Ross ao movimento do sintagma interrogado.
Uma análise alternativa poderia ser atribuída à estrutura
encontrada em (13). Tal análise tem seu fundamento nas relações
lógico-semânticas postuladas por Halliday (1994) para a articu-
lação de orações. Poder-se-ia dizer, então, que em (13) há duas
unidades de informação, sendo que a segunda é uma projeção
de um nome (fato) que ocorre na primeira unidade. Assim, não
seria possível a ocorrência do SN-q no início, como mostra (13b),
e estaria mantida a restrição sobre complemento de nome. Ob-
serve-se que uma estrutura cujo conteúdo informacional fosse
o mesmo de (13) evidenciaria a existência de duas unidades de
informação. Trata-se da estrutura de projeção paratática, como
(13c) abaixo
(13) c. Sueli mencionou o fato: o ladrão correu atrás de quem?
(diferentemente de 13b, em que a projeção era hipotática, segundo
Halliday), em que se projeta uma idéia (no caso, materializada
no nome fato). Disso resulta a impossibilidade de ocorrência do
sintagma interrogado no início da estrutura.
Da mesma forma acontece com uma estrutura em que há
uma relação de projeção de uma locução — portanto, com verbos
dicendi —, como em
(15) a. João disse: ele viu o quê?
b. * O que João disse: ele viu?
O fato de ser um discurso direto (uma citação de fala) já
aponta para a existência de duas unidades de informação, se
se entender que o fato de uma oração se projetar sobre a outra
significa que ela funciona como uma representação da própria
representação lingüística. Dessa projeção surgem o discurso
direto (com duas unidades de informação relacionadas parata-
ticamente) e o discurso indireto, como apresentado em (13a) e
também em (16) abaixo, em que a projeção se faz hipotaticamente,
materializando, portanto, uma única unidade de informação, e
permitindo a ocorrência do SN-q no início:
(16) a. João disse que viu o quê?
b. O que João disse que viu?
Pode-se dizer, então, que na relação de projeção (seja de
locução, seja de uma idéia), as construções paratáticas, por carac-
terizarem discurso direto, terão sempre duas (ou mais) unidades
de informação. Já as projeções hipotáticas vão se constituir numa
só unidade informacional, explicando, portanto, a ocorrência do
SN-q no início do enunciado, como em
(17) a. Carmen pensou que estava fazendo o que ali?
b. O que Carmen pensou que estava fazendo ali?

140 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”

No primeiro caso — ou seja, nas projeções paratáticas –,


por se constituírem em duas unidades informacionais, as ora-
ções mantêm entre si um vínculo mais frouxo, e, por isso, con-
sideradas por Bally (1965), dentre outros estudiosos, como um
processo de coordenação. Já no caso do discurso indireto (por
projeção hipotática de uma locução ou idéia) tem-se o que Bally
chama de “soldadura” — que corresponde ao “encaixamento”
nos termos de Halliday (1994). Por haver essa “soldadura” é que
se pode dizer que há, na estrutura dada em (17), assim como
em outras já apresentadas, uma única unidade de informação,
razão pela qual é possível a ocorrência do SN-q no início de
toda a estrutura. Em outras palavras, o SN-q ocorre dentro dos
limites do “bloco de informação” a que ele pertence.
Ainda uma explicação funcionalista que reforça o trata-
mento por “unidade de informação” é a proposta de Matthiessen
& Thompson (1988) para o estudo da articulação de orações.
Partem eles de relações retóricas, distribuídas em dois tipos — as
de “núcleo-satélite” e as de “listagem” — para mostrar como se
dão as relações das orações entre si ou com porções maiores de
texto. A relação núcleo-satélite refletiria, no meu entender, uma
relação entre duas unidades de informação, sendo uma ancilar
da outra. Isso explica a ocorrência do SN-q no início de uma es-
trutura em que uma das unidades de informação é uma oração
adverbial, como foi exemplificado em (3) e (4).
O mesmo resultado, em termos dessa noção aqui utilizada,
teriam as relações de listagem, em que as orações têm o mesmo
estatuto, consistindo, portanto, núcleos distintos e sendo, por
isso, chamadas de coordenadas. Assim, numa relação de lista-
gem, que seria uma relação paratática, o SN-q não ocorreria à
frente da primeira unidade de informação — a menos que ele
fizesse parte dela, como no exemplo abaixo:
(18) a. Glória fez o que e Décio protestou?
b. O que Glória fez e Décio protestou?
Em (18a) o SN-q está dentro da unidade Glória fez o que.
Se, ao contrário, o sintagma interrogado estivesse na segunda
unidade (Décio protestou), ele não poderia ocorrer à frente da
primeira, como comprova (19b) a seguir:
(19) a. Marcelo protestou e Mary fez o quê?
b. *O que Marcelo protestou e Mary fez?
Em suma, quando é uma relação retórica que se estabele-
ce entre as duas orações, ou seja, relação de núcleo-satélite (no
caso das adverbiais, por exemplo, em que a oração adverbial é
o satélite), ou de listagem (no caso da coordenação), não se dá a
ocorrência do SN-q no início da estrutura complexa porque:

Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006 141


Maria Beatriz Nascimento Decat

a) trata-se de relações de organização do discurso em termos


das unidades de informação. Em outras palavras, tais
unidades vão se relacionar umas com as outras ou atra-
vés da relação núcleo-satélite, ou através de listagem. No
primeiro caso, tem-se a relação hipotática; no segundo,
tem-se a coordenação;
b) nos termos de Bally (1965), pode-se dizer que o movi-
mento de SN-q (ou, em bases funcionalistas, a ocorrên-
cia do SN-q) se dá dentro de estruturas caracterizadas
como de “soldadura”, em que uma oração se integra
estruturalmente em outra. E no caso de ele ocorrer em
estruturas de coordenação ou de “segmentação” (esse
último, o caso das relações adverbiais), o movimento
para fora dessas estruturas não se dá. Isso porque elas
têm um grau de integração menor em comparação com
as estruturas resultantes de “soldadura”, ou seja, estru-
turas de “encaixamento”, nos termos de Halliday (1994)
e também de Matthiessen & Thompson (1988). Assim, as
orações adverbiais são “ilhas” semânticas e estruturais,
como também o são as orações coordenadas. Sendo ilhas
semânticas, elas se caracterizam como unidades de in-
formação à parte.
O papel da unidade de informação como determinante da
ocorrência do SN-q no início da sentença complexa também pode
evidenciar-se quando levadas em conta, na análise, as relações
lógico-semânticas de expansão, dadas por Halliday (1994). Em
todos os três tipos — expansão por elaboração (exemplos 20 e
21), por extensão (exemplos 22 e 23) e por realce (exemplos 24 e
25) —, em ambas as relações táticas (parataxe: ocorrências pares;
e hipotaxe: ocorrências ímpares), não é possível a ocorrência do
SN-q no início da sentença, como mostram os exemplos abaixo,
constituídos, todos eles, de duas unidades de informação:
(20) a. Maria não se conteve, comprou o quê?
b. *O que Maria não se conteve, comprou?

(21) a. João fugiu, o que espantou a quem?


b. *A quem João fugiu, o que espantou?

(22) a. João foi ao shopping e comprou o quê?


b. *O que João foi ao shopping e comprou?

(23) a. João entrou na festa, ao passo que Jair foi fazer o quê?
b. *O que João entrou na festa, ao passo que Jair foi fazer?

(24) a. João estava com fome, então ele comeu o quê?


b. *O que João estava com fome, então ele comeu?

142 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”

(25) a. João passou mal porque comeu o quê?


b. *O que João passou mal porque comeu?
Em (21) apresenta-se uma estrutura até então não discutida
neste trabalho. Trata-se de uma construção com uma oração re-
lativa apositiva (tradicionalmente, relativa explicativa), sem um
núcleo nominal como antecedente, e que constitui por si uma
unidade de informação à parte, o que explica a não-ocorrência do
SN-q no início da estrutura. A oração relativa apositiva constitui,
portanto, assim como vários outros tipos vistos até agora, uma
“ilha”, mas não foi incluída por Ross (1967) em seu estudo, assim
como não o foram as adverbiais. Da mesma forma que as adver-
biais, ela mantém, com a oração que a precede, uma relação de
“segmentação”, nos termos de Bally (1965), de caráter mais frouxo
que a “soldadura”, que caracteriza as orações encaixadas.
Para finalizar essa discussão, gostaria de retomar um fato
que já venho analisando há algum tempo, que diz respeito à
possibilidade de ocorrência, no português escrito, de orações
‘destacadas’ da porção textual com a qual mantêm algum vín-
culo semântico. Trata-se das orações “desgarradas” (cf. DECAT
1999, 2001, 2005), ocorrendo como enunciados independentes,
materializadas tanto por orações adverbiais quanto por orações
relativas apositivas. A separabilidade estrutural dessas orações
é favorecida por seu estatuto de “ilha”. Assim, ser uma “ilha”
— e, por isso, estar “desgarrada” — significa, em termos funcio-
nalistas, ser uma “unidade de informação”
Por tudo o que foi apresentado, creio que se pode alcançar
maior generalização se se trabalhar a pergunta: Por que uma
“ilha” é uma ilha? Ou seja, por que determinadas construções
estabelecem algum tipo de restrição à ocorrência de elementos
em determinados contextos, ou lugares sintáticos? Não bastaria
elencar os tipos de construções que se comportam como ilhas
(estruturas coordenadas, relativas restritivas, relativas apositi-
vas, etc.). A lista poderia se modificar e se estender em demasia,
admitindo-se, como apontou Lobato (1986), que as ilhas variam
de configuração na língua. É preciso encontrar uma razão de
outra ordem para que as construções se comportem como ilhas.
Uma solução possível, e que atinge maior poder explanatório
— porque vai abranger toda construção que for “ilha” — é dar
uma abordagem funcionalista à análise, incorporando a ela a
noção de “unidade de informação”. A resposta à pergunta acima
estará, como proponho, no fato de que uma ilha é a configuração
material de uma “unidade de informação”. Assim, basta que uma
estrutura constitua, por si só, uma unidade de informação para
que ela impeça a ocorrência, fora de seus limites, de qualquer ele-
mento que dela faça parte. Em outras palavras, uma construção
de ilha é uma ilha, numa língua, porque ela é uma unidade de
informação e, como tal, abarca um conjunto conceitual coeso.

Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006 143


Maria Beatriz Nascimento Decat

Estarão, assim, explicadas, senão todas, pelo menos algu-


mas das restrições dadas por Ross (1967), encontrando na aborda-
gem funcionalista uma maior abrangência. Dessa forma, podem
ser arroladas como materialização de uma mesma noção semân-
tica (a “unidade de informação”) as seguintes estruturas:
• estruturas com orações coordenadas;
• estruturas com orações adverbiais;
• estruturas com orações relativas apositivas;
• estruturas com orações complemento de verbo (portanto,
encaixadas).
A título de ilustração da real materialização lingüística do
fato aqui estudado, seguem alguns exemplos retirados do corpus
do NURC/SP, em especial das entrevistas entre um documenta-
dor e um informante (DID), e entre dois informantes (D2), nos
quais também estão sublinhados os sintagmas interrogados:
(26) e como é que surgiu que idéia de vocês...fazerem teatro e:: de
quem vocês tiveram mais apoio...pra poder realizar essas peças?
(DID, Inq.161, p. 40, l.117-9)

(27) conta uma coisa...que tipo de peça assim...quer dizer o estilo


da peça...que você acha que é mais aceito pelo público?...quer
dizer o::o que o que precisa existir numa peça de teatro para ela::
atingir realmente a massa?... (DID, Inq. 161, p.49, l.488-491)

(28) quando você tem algum problema de vista você recorre a quem?
(DID,Inq.251, p.64, l.211-2)

(29) quando você não come em casa onde você costuma comer e o
que você costuma comer? (DID, Inq. 235, p.124, l. 170-1)

(30) e quando vocês quiseram...escolher uma carreira...o que as levou


escolher a carreira? (D2, Inq.360, p.174, l.1511-2)

(31) cimento armado né?...e outros países já usam o quê? estrutura de


ferro quer dizer:: rapidez na construção lógico [...] (D2, Inq.62,
p.87, l1134-6)
Em síntese, as questões discutidas pretendem evidenciar
o poder explanatório de uma abordagem funcionalista para os
fatos da língua. Certamente poderão surgir contra-argumentos
às idéias aqui expostas, uma vez que não pretendi esgotar o
assunto, mas contribuir para o avanço das discussões.

144 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


“Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação”

Abstract
This paper introduces a functionalist approach
to structures of the “island constraints” type,
thus named by Ross (1967) within a generative
perspective. We will show that the restrictions
those islands impose on the occurrence of cons-
tituents in certain structural positions is due to
their functional status of “idea units”, therefore
not allowing extraction or movement of any of the
constituents across their boundaries.
Keywords: island contraints; idea units, func-
tionalism

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146 Niterói, n. 21, p. 133-146, 2. sem. 2006


Gramaticalização e dessentencialização
de construções com predicados de
atitude proposicional
Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 16, ago. 2006

Resumo
Recorrendo a dois tipos de construção com predi-
cados matrizes (parecer e achar/crer), diferentes
no estatuto argumental da completiva (sujeito
e complemento, respectivamente) e semelhantes
na codificação das atitudes subjetivas do falante
(evidencial/modal epistêmico), mostro a tendên-
cia de essas construções se gramaticalizarem e se
dessentencializarem, desvinculando-se de suas
orações encaixadas e se recategorizando como
satélites atitudinais. Essa alteração sintática afeta
a construção complexa, que, de biclausal, passa a
monoclausal.
Palavras-chave: oração matriz; gramaticalização;
dessentencialização; parentéticos.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


Sebastião Carlos Leite Gonçalves

Introdução
Alguns trabalhos já descreveram usos de construções pa-
rentéticas no português brasileiro (PB), entre as quais se incluem
os chamados parênteses modais (JUBRAN, 2002a,b), sem tratá-las,
entretanto, como resultantes de um processo de mudança que
ocorre nos domínios de uma construção complexa, envolvendo
o encaixamento de uma oração completiva em uma matriz,
orientação que pretendo explicitar neste artigo.
No âmbito da lingüística funcional, proposição semelhante
a que aqui pretendo desenvolver já foi sugerida para a caracteri-
zação dos chamados parentéticos epistêmicos (THOMPSON; MU-
LAC, 1991; TRAUGOTT, 2000), com pouca, ou quase nenhuma,
atenção dispensada aos aspectos diacrônicos da mudança deste
tipo de construção.
Recorrendo a dois tipos de predicados matrizes – de um
lado parecer e de outro, achar e crer –, diferentes quanto à estru-
tura argumental (monovalente e bivalente, respectivamente) e
ao estatuto sintático da oração encaixada (posição de sujeito e
posição de complemento, respectivamente), mas semelhantes
quanto aos valores semânticos e pragmáticos (evidencial/modal
epistêmico), em Gonçalves (2003), sob uma perspectiva pan-
crônica, investiguei o uso desses predicados, sob a premissa
de que a alta freqüência de uma palavra/construção leva a sua
gramaticalização. Comprovei, assim, a tendência de predicados
1
Nos termos da gramá-
tica funcional, satélites, de atitude proposicional se gramaticalizarem como satélites
em geral, são meios lexi-
cais opcionais de susten-
atitudinais,1 parentéticos epistêmicos nos termos de Thompson &
tar informação adicional Mulac (1991). De predicado organizador de uma estrutura de
a um dado estado-de-
coisas; são opcionais predicação, passam a se comportar como constituinte não-ar-
porque, se om it idos, gumental. Como se pode notar, foquei, nesse trabalho, mais a
não afetam a boa-for-
mação do enunciado em gramaticalização dos predicados do que das construções em si
que ocorrem; sustentam
informação adicional
que eles integram, tomando por base a concepção mais clássica
porque a informação de gramaticalização, aquela centrada na alteração categorial de
principal está contida
na estrutura do enun- itens, que, na mudança, tornam-se gramaticais ou, se já gramati-
ciado à qual o satélite é cal, tem sua gramaticalidade ampliada (HOPPER; TRAUGOTT,
adicionado. Satélites de
atitude (orientado para 1993). Exemplificam essa trajetória as ocorrências do português
o conteúdo proposicio-
nal, para o evento ou
histórico, dadas em (1) a (3) abaixo, para as quais propus um cline
para um participante) geral de desenvolvimento categorial, que segue em (4).2
especificam a atitude do
falante em relação a um (1) Valores sintático-semânticos de parecer
conteúdo proposicional
ou a apenas parte dele a. v. pleno (apresentativo)
(DIK et al.,1990). ... aque-vos um demo vem, que lhe pareceu (=apareceu) em semelhança de
2
No parêntese que segue um homem (13, DG, p.50)
cada ocorrência, encon- b. v. suporte de predicação (apreciação)
tram-se a indicação do
período de uso da forma E quanto mais lia, tanto ele me parecia melhor. (15,CP, p.215)
e os dados da obra de refe- c. v. encaixador de proposição (epistêmico de probabilidade/evidencial)
rência de onde as ocorrên-
cias foram extraídas (cf. Ora parece que meu filho serviu maau senhor. (13,DG,p.57)
TARALLO, 1991). Outras d. Satélite atitudinal adverbial (epistêmico/evidencial)
ocorrências do português
moderno foram extraídas ...vindo tão embebidos de suas danças, tendo parece alguma notícia do que
de Gonçalves (2003). se passava. (16,CJ, p.440)

148 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

(2) Valores sintático-semânticos de achar


a. v. pleno (encontrar)
Mas u (=onde) vos achou ele? (13,DG,p.68)
b. v. encaixador de predicação (apreciação)
Manifestou-se, ca (=pois) diz que s’achou pecador muit’ (13,CE,p.231)
c. Construção encaixadora de proposição (epistêmico)
Acho [este lugar] não estar na última perfeição (18,GR,p.8)
d. Satélite atitudinal adverbial (epistêmico)
Apenas eu e o Couto achamos a não inclusão do pneumatorax
“escandalosa”, como você fala. Indispensável, achamos (19-20,MA,
p.340)
(3) Valores sintático-semânticos de crer
a. v. pleno (crença em alguém)
Seu padre non nos crerá, antes dirá que a matamos (13, DG, p. 75)
b. v. pleno encaixador de proposição (crença em algo)
Todo christão crea firmemente que huu soo é uerdadeyro Deus (13,FR,p.
127)
c. Construção encaixadora de proposição (epistêmico)
Creo que esto fezerom por que aqueles lugares erom em tal comarca
(15,LO,p.26)
d. Satélite atitudinal adverbial (epistêmico)
Por mais solenidade que ouvesse, tudo creo terião por pouco (16,CJ,p.448)
(4) construção
v. encaixador v. encaixador Satélite
v. pleno > > > encaixadora >
de predicação de proposição atitudinal
de proposição

Pelas ocorrências dadas em (1) a (3), pode-se observar que


significados baseados em uma situação externa ((1a), (2a) e (3a))
passam a significados baseados numa situação interna – avalia-
tiva, perceptual, cognitiva – ((1b), (2b)), que, por sua vez, passam
a significados cada vez mais assentados na atitude subjetiva do
falante ((1c,d), (2c,d) e (3c,d)).
Cumpre-me agora uma volta aos dados para uma reinter-
pretação que considere uma análise que, para os estágios mais
gramaticalizados, vá além do predicado em si, levando em
The recente literature conta as mudanças que afetam a relação entre a oração matriz
3

on grammaticalization
seems to agree that it e a completiva, objetivo que pede uma concepção mais ampla
is not enough to define
grammaticalization as de gramaticalização, como, por exemplo, a oferecida por Bybee
the process by which a (2003, p. 602), que transcrevo abaixo: 3
lexical item becomes a
grammatical morpheme, Na literatura recente sobre gramaticalização parece consenso
but rather it is important
to say that this process que não é suficiente definir gramaticalização como o processo
occurs in the context of pelo qual um item lexical torna-se morfema gramatical, mas,
a particular construc- ao contrário, é importante dizer que esse processo ocorre em
tion […]. In fact, it may
be more accurate to say contexto de uma construção particular [...]. De fato, parece
that a construction with mais adequado dizer que é a construção com seus itens lexicais
particular lexical items particulares que se torna gramaticalizada do que dizer que é
in it becomes grammati-
cized, instead of saying o item lexical que se gramaticaliza. (grifos nossos)
that a lexical item be-
comes grammaticized. Sob essa concepção mais recente de gramaticalização,
(tradução minha).
4
Empresto esse termo
busco, neste, artigo, verificar, desta vez, quais parâmetros pro-
de Decat (2001). piciam o “desgarramento”4 da oração matriz e a sua atuação
Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 149
Sebastião Carlos Leite Gonçalves

como satélite na oração complemento, que passa a funcionar


como oração independente. Interessa-me, então, discutir os usos
mais gramaticalizados das construções com verbos de atitude
proposicional, representadas, no cline de mudança em (4), por
verbo encaixador de proposição > construção encaixadora de proposição
> satélites atitudinais.
Feitas essas considerações iniciais, na próxima seção,
apresento conceitos operacionais, para nas seções seguintes: (i)
discutir e analisar as construções com predicados de atitudes
proposicionais, a partir de parâmetros formais e funcionais; (ii)
defender a proposta de gramaticalização e dessentencialização
dessas construções; e, (iii) mostrar, diacronicamente, os efeitos
da freqüência na mudança de uso dessas construções. Reservo
a última seção às considerações finais.
Os complementos de predicados atitudinais: conceitos
operacionais
Por complementação deve-se entender o mecanismo sintático
que surge quando uma predicação é estruturada como argu-
mento de um predicado. Predicado completável por argumentos
complexos é chamado predicado matriz, e a oração que contém
esse predicado como núcleo é a oração matriz. Alternativamente,
a estrutura de complementação de um predicado matriz é tam-
bém referida como oração encaixada ou subordinada (NOONAN,
1985; DIK, 1997).5
Estruturalmente, a definição de construções encaixadas
se completa por referência às posições argumentais que elas
ocupam no complexo oracional, propriedade dependente da
estrutura argumental do predicado matriz: nas posições A1, de
primeiro argumento (parece [que...]), A2, de segundo argumento
(X acha/crê [que...]), ou A3, de terceiro argumento (X convence Y
[de que...]).6
Relativamente ao seu estatuto semântico, predicados
matrizes comportam diferentes tipos de construção encaixada:
predicação, proposição e ato de fala, como se observa nas ocorrên-
cias abaixo.
(5) a. E ante que fosse longe daquel lugar vi vir dom Tristam em pos mim (13,
5
Neste artigo, uso in-
tercambiavelmente os DG, p. 68)
ter mos subordinação, b. E elles vendo que não podyam ter a villa, ouveram por ben de a dar pello
complementação e encai- melhor preito que podesse, ante que seus inimigos soubessem sua
xamento e seus corre-
latos. myngua (14, CG, p. 336)
6
Estou, aqui, assumin- c. E disse Deus a Moysés que partisse todo o esbulho iugualmente antre os que
do, junto com Dik (1997) lidarom (15, BM, p.145)
e Noonam (1985), a exis-
tência de sujeitos oracio-
nais em posição A1. Para Pode-se observar, em (5), que o mesmo predicado ver as-
uma discussão que colo-
ca em xeque a existência sume valores diferentes: percepção visual (= enxergar), em (5a),
de sujeitos oracionais
em português, remeto
e percepção mental (=perceber/concluir), em (5b). No primeiro
o leitor a Kato & Mioto caso, o que de fato foi visto é (a ocorrência de) um estado-
(2000) e a Mira Mateus
et al. (1989). de-coisas, enquanto, no segundo caso, o que se percebe é um

150 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

“fato possível”. As coisas as quais se pode dizer que as pessoas


percebem/concluem/acreditam não são estado-de-coisas; são
antes “conteúdos proposicionais”, entidade que, submetida a
uma avaliação em termos de sua verdade, pode ser motivo de
surpresa ou dúvida, de menção ou negação, de rejeição e de
lembranças, de verdade ou falsidade. Assim, diferentemente de
estado-de-coisas, que, localizados no espaço e no tempo, podem
ser avaliados em termos de sua realidade, conteúdos proposicionais,
também localizáveis no espaço e no tempo, podem ser avaliados
somente em termos de sua verdade, casos em que se enquadram
os complementos encaixados nos tipos de predicados enfocados
neste trabalho. Atos de fala, como o mostrado em (5c), e incluindo
outros tipos de verbos dicendi, são entidades que, também locali-
zadas no espaço e no tempo, podem ser avaliadas não em termos
de realidade ou de verdade, mas em termos de suas condições
de felicidade (DIK, 1997).7
Passando agora a tratar mais especificamente dos predica-
dos de atitude proposicional, esses são predicados que tomam
por escopo uma proposição para, sobre a verdade que ela veicula,
incidir a atitude de crença do falante. Como predicados não-factivos,
por recurso a predicado atitudinal, o falante não se compromete
nem com a verdade nem com a falsidade da proposição encaixa-
da; o estado-de-coisas codificado na proposição é sempre pas-
sível de verificação, embora a proposição seja, em muitas vezes,
apresentada “por aquele que nela acredita como verdadeira”
(DIK, 1997, p. 109). Nesse sentido, como afirma Noonan (1985),
a atitude proposicional é considerada sempre positiva.8
Essas marcas subjetivas do falante constituem o que Ben-
veniste (1991) caracterizou como a subjetividade da linguagem.
Subjetivização, entretanto, refere-se ao processo por meio do qual
os usuários da língua, no curso do tempo, desenvolvem signi-
ficados novos para formas já existentes, que passam a codificar
perspectivas e atitudes, que são baseadas nas características do
evento comunicativo, e não nas características de uma situação
referente ao “mundo real”. É, assim, um mecanismo bastante
permissivo para a mudança semântica, que se implementa por
metaforização ou metonimização. O termo subjetividade, nessa
abordagem, refere-se, então, aos mecanismos que as línguas
naturais colocam à disposição do agente locucionário para a
expressão de si mesmo e de suas atitudes e crenças (TRAUGOTT;
7
Pa ra u m excelente DASHER, 2001). Na identificação desse processo, assumem espe-
quadro tipológico de cial relevância os meios lingüísticos que permitem a expressão
predicados que tomam
complemento oracional, da modalidade epistêmica (ME, daqui em diante) e da eviden-
remeto o leitor a Noo-
man (1985).
cialidade (EV, daqui em diante), categorias que, em relação a
8
Predicados do tipo de um conteúdo proposicional, revelam, respectivamente, o grau
duvidar, negar, recear etc de comprometimento do falante e algo sobre a fonte do saber
expressam uma atitude
proposicional negativa em que tal conteúdo se sustenta (WILLET, 1988).
(NOONAN, 1985).

Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 151


Sebastião Carlos Leite Gonçalves

Além de ME, construções com predicados do tipo de pa-


recer, achar e crer permitem também a expressão de EV, ambos
os valores constitutivos da diluição da responsabilidade pelo
“dito”. Crer e achar, mais claramente, apontam o falante como
fonte de uma evidência, enquanto parecer aponta-o apenas como
fonte de uma inferência, cuja base da evidencia (visual, relatada,
raciocínio) não é revelada.
Como formas de expressão de atitudes subjetivas do
falante, orações matrizes com predicados atitudinais podem
apresentar marcas do experienciador, seja por meio do sujeito
gramatical, nos casos de completivas em posição A2 (6b,c), seja
por meio do clítico dativo, no caso de completivas em posição
A1 (6a), marcação esta já bastante rara no PB contemporâneo.
Assim a opção que o falante tem de deixar ou não marcas de
sua atitude subjetiva, implica uma escolha estrutural para o
encaixamento da oração completiva: na posição de A1 (6a) ou
na posição de A2 (6b), respectivamente.
(6) a. E por esto, Senhor, a mym parece que dos livros que vi de philosaphia,
este avantejadamente enssyna a cobrar o que os outros fazem amar e
desejar. [...] E deste velume os primeiros dous livros, segundo meu juizo,
me parecem que tem avantagem do Terceiro, e aquelles achei mais claros.
O Terceiro achey muito scuro, por que reconta estoria e exemplos, e
parece que screvia a quem as sabia. (15,LO, p. 4)
b. Então por isso que eu acho que, mesmo que se eu não tivesse feito pré-
vestibular, eu acho que eu passaria no vestibular (20, NURC/RJ-DID-
001)
c. De Platom eu creyo que, se quisera trauctar daquesta maneira de
desputaçom, que mui sobedormente e mui avondosamente podera
falar ... (15, LO, p. 9)

Sob a crença funcionalista de que o uso da língua motiva,


restringe, explica ou mesmo determina a estrutura gramatical,
Thompson (2002) e Bybee (2002) defendem que a subordinação
deve ser tratada não como uma noção estritamente sintática,
mas como uma noção mais pragmática, e é justamente a riqueza
pragmática de orações matrizes que faz delas um domínio pro-
pício para o desencadeamento de processos de gramaticalização,
quando comparadas às orações encaixadas, que constituem um
domínio mais resistente à mudança (cf. BYBEE, 2002, p. 18). Sob
tal assunção, passo, na seção seguinte, a explicitar parâmetros
formais e funcionais, para advogar em favor de uma fraca ligação
sintática envolvendo as construções encaixadas em predicados
atitudinais, relação que propicia inovações no complexo oracio-
nal envolvente.
Parâmetros formais e funcionais de construções
com predicados atitudinais
Um primeiro parâmetro a se investigar nas relações entre
matriz e encaixada diz respeito à dependência de referência tem-

152 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

poral. Em qualquer oração complexa envolvendo construções


com predicados atitudinais, a oração encaixada tem referência
temporal independente do tempo da matriz (NOONAN, 1985),
como se observa em (7).
(7) a. E por esto, Senhor, a mym parece que dos livros que vi de philosaphia,
este avantejadamente enssyna a cobrar o que os outros fazem amar e
desejar. [...] O Terceiro [livro] achey muito scuro, por que reconta estoria
e exemplos, e parece que screvia a quem as sabia. (15,LO, p. 4)
b. Mas, porque creio (que) se irá amenhã, abreviarey como puder e
acabarey com lhe dar novas das muytas impresas que se aparelhão
pêra os que lá vierem. (16,CJ, p. 449)

O tempo codificado na encaixada, embora definível em


relação ao tempo da “crença” codificado na matriz, pode ser coin-
cidente com ele (parece-ensina, em (7a)), anterior (parece-escrevia,
ainda em (7a)) ou posterior (creio-irá, em (7b)) a ele.
No que se refere aos valores semântico-pragmáticos, em seus
usos já gramaticalizados, mas ainda não-parentéticos, os predi-
cados em análise expressam atitudes proposicionais positivas em
relação à proposição encaixada em seu complemento. Por como-
didade, repito em (8), ocorrências ilustrativas desses casos.
(8) a Ora parece que meu filho serviu maau senhor. (13, DG, p.57)
b. Acho [este lugar] não estar na última perfeição (18, GR, p.8)
c. Creo que esto fezerom por que aqueles lugares erom em tal comarca
(15, LO, p.26)

Em (8), é mais provável que a oração matriz expresse


primeiramente uma asserção sobre a crença do falante do que
sobre o conteúdo proposicional. É possível, entretanto, usar a
construção em que ocorre o predicado matriz parenteticamen-
te, como satélites, de tal modo que a asserção invista-se sobre
o complemento proposicional, especialmente nesses casos de
primeira pessoa do singular e de tempo presente. Funcionando
como satélite, a construção parentética é mais livre que o usual: o
“predicado e seu sujeito”, quando é o caso, podem ser colocados
em posição inicial, medial ou final da sentença.
(9) a. E os seus, que como digo, vinhão tão embebidos em suas danças, [tendo
parece alguma notícia do que se passava], supitamente se callarão. (16, CJ,
p. 440)
b. E sempre os mesmo Indios o esperão no tal tempo e tem-lhe tanto
respeito que, por mais solenidade que ouvesse nos seus bautismos,
[tudo creo terião por pouco, costuma] (16, CJ, p. 448)
c. Apenas eu e o Couto achamos a não inclusão do Pneumatorax
“escandalosa”, como você fala. (...) [Indispensável, achamos.]
(19, MA, p. 340)

Em uma interpretação das ocorrências acima, é bem mais


provável que a asserção principal constitua uma afirmação sobre
o conteúdo da oração em que a construção parentética ocorre
do que sobre o estado de crença do falante. A função do satélite
Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 153
Sebastião Carlos Leite Gonçalves

nessas sentenças é “modificar ou enfraquecer a afirmação da


verdade que seria implicada por uma simples asserção” (NOO-
NAN, 1985, p. 86).
Não parece demais chamar a atenção para o fato de que
esse funcionamento só se instancia na verificação do parâme-
tro presença de subordinador. O complementizador que, marca de
subordinação, não é usado quando a construção ocorre paren-
teticamente, características dos parentéticos de um modo geral.
Entretanto, no processo de gramaticalização, essa dispensabi-
lidade do complementizador é gradual, como se observa com
parecer em (10) abaixo, possível de ser parafraseado por achar e
crer, mudança que segue acompanhada de uma maior liberdade
de posição sintática da construção em que ocorre o predicado
atitudinal.
(10) a. nós nos casamos no civil... parece (acho/creio) que de manhã (20,
NURC/RJ-DID-71)
b. [o pedágio] passou para parece (acho/creio) que setenta cruzeiro (20,
PEUL/CEN-E32)

Restritas à posição medial, construções parentéticas como


(10), que rompem a estrutura de constituência da oração sim-
ples, caracterizam-se pela presença do “complementizador” que
ainda atrelado ao “predicado atitudinal”, não escopando mais
um complemento oracional, como em (8), mas apenas um cons-
tituinte da oração principal: em (10a), um adjunto temporal, e,
em (10b), um objeto de preposição. Observe que a incerteza do
falante, em (10a) diz respeito apenas ao horário do casamento, e
em (10b), ao novo valor do pedágio, e não sobre os estados-de-
coisas em si, codificados na proposição. Esses casos constituem
argumento para afirmar uma das propriedades da gramaticali-
zação: a união/compactação, ou, nos termos de Traugott (2002), o
congelamento interno da oração principal, que, nesse uso, não é mais
analisada como [oração principal] + [complementizador], mas
um só constituinte, originado na reanálise de um uso anterior, em
que, claramente, o complementizador introduz um complemento
oracional finito, como mostro em (11).
(11) a. Muitas mães parecem que fazem das filhas o que elas queriam pra
elas. (20, PEUL/TEN-27)

Uma possível correlação para os usos mostrados em (10),


parentéticos ainda com “complementizador”, pode ser buscada
nos casos de topicalização do sujeito da encaixada, colocado em
posição anteposta ao verbo da matriz (11a). Nesse uso, a seqü-
ência [oração matriz] + [complementizador] parece romper a
estrutura canônica da oração [muitas mães fazem das filhas...], o que
pode levar o ouvinte a uma reinterpretação induzida pelo con-
texto e a proceder da mesma forma em qualquer parte da oração.
Feita essa reanálise, o complementizador, não mais funcional,

154 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

é apagado, e mais claramente a construção passa a assumir as


propriedades de satélites atitudinais, tornando-se constituinte
não-argumental e de posicionamento livre no interior da cons-
trução. Há de se observar que, semanticamente, a presença do
“complementizador” marca com clareza o constituinte que ele
escopa, o que nem sempre é claro quando é apagado, e a cons-
trução parentética ocorre em posições iniciais ou mediais.
Na verdade, usos como os mostrados em (10) podem repre-
sentar que a posição assumida pela “oração matriz” no interior
da “oração complemento” faz diminuir (e não eliminar) o grau
de incerteza que recairia sobre toda a proposição (“parece [que
nós nos casamos no civil de manhã]”, “parece [que o pedágio passou
para setenta cruzeiro”]). Sob tal hipótese, o elemento escopado
deve ser interpretado como sendo ele o portador de menor grau
de comprometimento com a verdade do seu conteúdo, havendo,
assim, um desequilíbrio entre o comprometimento do falante
com a verdade de toda a proposição e com a verdade de apenas
parte dela.
Sobre o parâmetro marca de subordinação, sua ausência tem
como efeito sintático tornar a oração complemento uma oração
independente.
Para construções parentéticas, um outro parâmetro re-
levante para a dessentencialização do complexo oracional é a
atuação de operadores de negação. Somente predicados afirmativos
ocorrem em construções parentéticas, de modo que, com “pre-
dicado” negado, a sentença torna-se inaceitável, porque se nega
o que acabou se afirmar. A ocorrência em (12a) e sua paráfrase
(12a’) são exemplos dessa restrição.
(12) a. naquele tempo não se tomava uísque tomava-se chope então tinha um
barrilzinho de cho:pe uns... uns sanduíches... naquele tempo devia ser
presunto e queijo ... parece ... eu não me lembro bem ((risos)) mas devia
ser assim. (NURC/RJ-DID-71)
a’. */? naquele tempo devia ser presunto e queijo ... não parece ...

Mesmo nos casos de construções não parentéticas com pre-


dicados atitudinais, a negação tem escopo restrito ao conteúdo
da oração encaixada, nunca incidindo sobre a crença veiculada
na oração matriz, ainda que ela contenha algum operador de
negação. Observe (8b’), que é uma boa paráfrase de (8b), cujo
conteúdo proposicional ocorre negado.
(8) b. Acho [este lugar] não estar na última perfeição (18, GR, p.8)
= acho que este lugar não está na última perfeição
b’. não acho [este lugar] estar na última perfeição.
= não acho que este lugar esteja na última perfeição

Além dos parâmetros acima explicitados, também parâ-


metros morfossintáticos (tempo/modo e pessoa/número) envol-

Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 155


Sebastião Carlos Leite Gonçalves

vidos no entrelace da oração matriz à completiva apresentam


relevância para a discussão da dessentencialização do complexo
oracional envolvendo tais predicados. Em Gonçalves (2003),
valendo-me de dados quantitativos, mostrei que, nos estágios
mais gramaticalizados, construções com os predicados parecer,
achar e crer apresentam uma invariabilidade em relação aos pa-
râmetros morfológicos de pessoa e de tempo: enquanto parecer
se fixa na 3ª. pessoa, sem marcas formais de subjetividade, achar
e crer fixam-se na 1ª. pessoa, todos no presente do indicativo, o
que favorece a interpretação de uma maior gramaticalidade de
parecer, como marcador gramatical de modalidade epistêmica/
evidencialidade. Essa invariabilidade morfológica será mais bem
discutida adiante.
Até aqui, tive por objetivo explicitar a integração sintática
fraca entre a oração matriz com predicado atitudinal e a ora-
ção encaixada, ou ainda a fraca dependência entre elas, como
também atesta Bybee (2002, p. 3) para complementos de outros
predicados epistêmicos e evidenciais. Para tanto, recorri aos
seguintes critérios: (i) referência temporal independente; (ii)
escopo da negação restrito ao conteúdo da oração encaixada;
(iii) perda de complementizador e de posição sintática fixa, com
conseqüente redução valencial; e, (iv) restrições flexionais (tempo,
modo, pessoa e número do predicado matriz). Esses critérios,
ao mesmo tempo em que revelam uma integração fraca entre
matriz e encaixada (BYBEE, 2002), podem também ser vistos
como causas/motivações que levam ao “desgarramento” e à
conseqüente gramaticalização da construção matriz. Mesmo nos
estágios anteriores ao “desgarramento”, orações matrizes com
predicados atitudinais mantêm com sua encaixada uma fraca
integração sintática, reflexo de suas propriedades semântico-
pragmáticas.9
Gramaticalização e dessentencialização de construções
Confirma o resultado da aplicação dos parâmetros fun-
cionais e formais apresentados acima, a sua interpretação à luz
da proposta de Lehmann (1988) sobre grau de integração de
orações.
Enfatizando o contínuo existente entre coordenação e subordi-
nação, Lehmann propõe seis parâmetros aferidores do grau de in-
tegração de oração, correlacionados, porém independentes, quais
9 sejam: (i) rebaixamento da oração subordinada a constituinte
Dik (1997) já ob-
servara que orações da principal; (ii) nível sintático de integração da subordinada à
matrizes que ser- principal; (iii) dessentencialização da subordinada, que passa a
vem para abrandar
a força asseverativa constituinte simples da principal (seu verbo torna-se não finito;
do conteúdo da en- seu sujeito é perdido ou torna-se oblíquo); (iv) gramaticalização
caixada funcionam
apenas como uma do verbo matriz; (v) entrelaçamento das duas orações (partilha
‘nota-de-rodapé’
modal e não uma de elementos); e, (vi) grau de explicitude da integração (presença
declaração em si. de conectores).
156 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006
Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

Para a discussão dos casos de construções com predicados


atitudinais, desses seis parâmetros de Lehmann, destaco (iii)
e (iv), que dizem respeito ao modo de redução de uma oração
complexa. Tanto na dessentencialização da oração complemento
quanto na gramaticalização da construção matriz, observa-se
uma modificação na estrutura complexa, que de biclausal passa
a monoclausal (cf. THOMPSON, 2002).
Relativamente ao parâmetro dessentencialização, uma oração
complemento pode se reduzir ao seu centro (o predicado da en-
caixada), tornando-se uma nominalização ou um constituinte
de natureza adverbial, ambos atuantes na oração matriz. Dentre
os componentes que restritivamente atuam na dessentencializa-
ção de orações encaixadas, Lehmann (1988, p. 193) inclui: força
ilocucionária, tempo, modo e aspecto, actantes e circunstantes
de funções sintáticas variadas. Sobre o parâmetro gramaticali-
zação do predicado matriz, o previsto é que, dependendo do grau
de gramaticalização do predicado, a sentença toda deixe de ser
sintaticamente complexa, podendo o predicado chegar a afixo
gramatical operante no que restou da oração complexa. Lehmann
(1988, p. 204) oferece o seguinte contínuo de gramaticalização
de predicados matrizes:
(13) operador
Predicado independente
gramatical auxiliar
verbo verbo verbo afixo gramatical /
lexical evidencial modal derivacional

Esse contínuo não parece suficiente para explicar a mu-


dança das orações matrizes discutidas neste artigo. Entretanto,
é possível apreender dele ao menos os valores lexical > eviden-
cial > modal dos predicados das construções atitudinais em seus
estágios mais gramaticalizados. Sob tal consideração, como
parece óbvio, a mudança não leva as construções até o ponto
terminal do cline em (13), razão atribuída primeiramente ao
fato de a proposta de Lehmann tratar de gramaticalização de
predicados e não de construções. Além disso, a não necessidade
de um percurso completo de gramaticalização já foi bastante
enfatizada na literatura sobre o assunto (cf. HOPPER; TRAUGOTT,
1993, entre outros).
Na verdade, para as construções com predicados atitudi-
nais, o mais prudente, segundo os dois parâmetros de Lehmann
aqui considerados, parece ser mesmo tratá-las tanto como casos
de dessentencialização do complexo oracional matriz + encaixada
quanto de gramaticalização da oração matriz, uma vez que: (i)
no que respeita à força ilocucionária, a construção gramatica-
lizada, parentética, mantém ilocução independente do restante
da oração na qual ela passa a atuar como simples modificador
de caráter pragmático, semelhante aos satélites atitudinais de

Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 157


Sebastião Carlos Leite Gonçalves

natureza adverbial; (ii) quanto ao tempo, modo e aspecto, os pre-


dicados tornam-se invariáveis, fixando-se na forma de presente,
deixando livre a referência temporal da oração em que ocorre;
(iii) quanto aos actantes, achar e crer se restringem a sujeitos de
1ª. pessoa e parecer neutraliza totalmente a expressão de pessoa,
assumindo a forma não-marcada de 3ª. pessoa.
Lehmann (1988) não faz referência à possibilidade de ora-
ções matrizes se tornarem satélites, recategorização que, em sua
proposta, fica restrita ao âmbito da oração complemento. Surpre-
endentemente, os casos aqui analisados são mais congruentes
com os critérios postos para a dessentencialização da encaixada
do que com a gramaticalização do predicado matriz. Essa direção
inversa não implica a anulação dos critérios investigados, antes
abre a possibilidade de interpretar que, ao mesmo tempo em que
se recategorizam como satélites (gramaticalização, portanto), as
orações matrizes se dessentencializam e modificam o estatuto
sintático da oração complemento.
Adicionalmente aos critérios aqui discutidos, importante
na gramaticalização de construções, sobretudo as identificadas
com processos de subjetivização, é a apuração da freqüência
das formas que a facultam, assunto que passo a tratar na seção
seguinte.
Os efeitos da freqüência de uso: um percurso diacrônico
Dois métodos de apurar a freqüência são relevantes nos
estudos lingüísticos: um que conduz à freqüência token e ou-
tro à freqüência type. Token ou freqüência textual é o número
de ocorrências de uma unidade, geralmente uma palavra ou
morfema, independentemente do significado que ela veicula. A
freqüência type refere-se à freqüência de um padrão particular
de dicionário (BYBEE, 2003).
Tem sido tendência associar o crescimento de freqüên-
cia type – aqui entendida como deslizamentos funcionais ou
diversidade de funções verificadas na gramaticalização – ao
aumento de freqüência token. Entretanto, adverte Bybee, a alta
freqüência não resulta em gramaticalização, mas apenas indicia
sua identificação.
Discutindo as conseqüências da ritualização, Bybee argu-
menta que a repetição freqüente de uma construção desempenha
importante papel nas seguintes mudanças associadas à gramati-
calização: (i) enfraquecimento de forças semânticas pelo hábito, que
faz que um organismo deixe de responder, com mesma eficácia, a
estímulos repetidos; (ii) mudanças fonológicas de redução e de fusão
de formas; (iii) maior autonomia da forma, que propicia a neutra-
lização de componentes individuais (flexão, estrutura argumental
etc) presentes em usos menos gramaticalizados; (iv) extensão de uso
da forma a novos contextos com novas associações pragmáticas; (v)
preservação de marcas morfológicas originais.
158 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006
Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

Para explicitar o papel da freqüência na gramaticalização


e dessentencialização das construções com parecer, achar e crer,
considero suas freqüência de uso, ao longo dos séculos XIII a XX,
também um dos parâmetros responsáveis pela constituição de
construções com significados cada vez mais assentados em ati-
tudes subjetivas. Na determinação da freqüência type, valho-me
dos parâmetros funcionais e formais discutidos anteriormente.
As alterações qualitativas já apontadas para os diferentes tipos
de construções com parecer, achar e crer (v. (1) a (3) acima) são mais
bem esclarecidas pela suas freqüências token e type (em números
absolutos) mostradas na tabela 1.
Períodos (século)
XIII XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX Total
Tipos sintático/semânticos
Construção com v. pleno
5 1 4 2 4 2 0 0 18
(apresentativo)
Construção com v.
encaixador de proposição 1 3 17 32 15 29 14 19 130
(ME/EV)
Construção com v. pleno
PARECER

comparativo (de aspectos 0 0 1 9 3 3 5 4 25


(types)

físicos)
Construção com v.
suporte de predicação 0 0 9 16 13 46 15 18 117
(apreciação)
Construção com v. modal
0 0 3 1 6 3 3 0 16
(ME/EV)
Construção como satélite
0 0 0 2 2 3 0 3 10
atitudinal (ME/EV)
TOTAL (tokens) 6 4 34 62 43 86 37 44 316
Construção com v. pleno
27 26 23 42 40 83 20 9 270
(encontrar)
Construção com v.
encaixador de proposição 4 0 3 4 2 1 0 0 14
(percepção/EV)
Construção com v.
ACHAR

encaixador de predicação 1 0 3 3 3 7 9 23 49
(types)

(apreciação)
Auxiliar perifrástico
0 1 0 0 0 0 0 0 1
(decidir, resolver)
Construção encaixadora
0 0 0 0 0 2 1 16 19
de proposição (ME)
Construção como satélite
0 0 0 0 0 0 0 1 1
atitudinal (ME)
TOTAL(tokens) 32 27 29 49 45 93 30 49 354
Construção com v. pleno
1 5 0 0 0 0 3 0 9
(crer em alguém)
Construção com v. pleno
encaixador de proposição 3 7 0 0 0 0 5 0 15
(types)
CRER

(crer em algo)
Construção encaixadora
0 0 3 10 2 11 18 16 60
de proposição (ME)
Construção como satélite
0 0 0 2 0 1 5 4 12
atitudinal (ME)
TOTAL (tokens) 4 12 3 12 2 12 31 20 96

Tabela 1: Freqüência token e type na evolução

Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 159


Sebastião Carlos Leite Gonçalves

diacrônica de construções com parecer, achar e crer


Do período de emergência à perpetuação na língua, é pos-
sível propor que os diferentes usos de cada uma das construções
se desenvolvem das respectivas construções em que figura um
verbo pleno, tipos mais freqüentes nos períodos mais iniciais.
As construções mais recorrentes com parecer e achar apresentam
um aumento crescente de freqüência token até o século XVIII,
momento em que mais freqüentemente passam a compartilhar
suas funções com crer. Dos tipos de construções investigadas,
a com achar é a mais resistente à mudança, quando se verifica
sua persistência em construções com o verbo pleno original, em
todos os séculos. Entretanto, as três se aproximam no quadro
evolutivo, à medida que, muito cedo, permitem encaixamento
de conteúdos proposicionais, assinalando, ainda de modo não
muito explícito, as atitudes subjetivas do usuário.
Como construções que, epistemicamente, promovem o
descomprometimento do falante em relação ao conteúdo pro-
posicional nelas encaixado, a construção com parecer é pioneira
(séc. XIII), seguida das construções com crer (séc. XV), função que
construções com achar experimentarão somente no séc. XVIII. A
completa alteração funcional, de construções com predicador a
satélites parentéticos, emerge no mesmo período para as cons-
truções com parecer e crer (séc. XVI), e só mais tardiamente, no
séc. XX, para as construções com achar. Importa enfatizar que,
na coexistência de diferentes types, é reconhecido um estatuto
mais gramaticalizado da oração matriz (satélites atitudinais), ou
mais dessentencializado, do complexo oracional como um todo,
em relação às construções originais com verbos plenos.
A perspectiva histórica, segundo Traugott & Dasher (2001), é
sempre o melhor recurso para se reconhecer nas línguas a emergên-
cia de significados que tendem a se ampliar para codificar o estado
de crença subjetiva do usuário. Assim é que os resultados abaixo
mostram a forte correlação entre a mudança categorial das cons-
truções em análise e suas mudanças morfossintáticas referentes
à expressão de pessoa e de tempo (primeira (1P), segunda (2P) e
terceira (3P) pessoas e tempos presente, futuro e pretérito).

Figura 1 – Evolução da expressão de forma


160 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006
Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

dativa de ‘parecer’ (século XIII a XX)

Figura 2 – Evolução da expressão de pessoa do


SN-sujeito de ‘achar’ (século XIII a XX)

Figura 3 – Evolução da expressão de pessoa do


SN-sujeito de ‘crer’ (século XIII a XX)
Nas figuras 1 a 3, observa-se, como tendência geral, o
crescimento das marcas de 1P, oscilante nas construções com
parecer, até o séc. XVII, mas contínuo para as construções com
achar e crer, a partir do séc. XIV, comportamento que leva ao
conseqüente decréscimo do uso da
3P. Não ultrapassando os 20%, os picos para 2P (séc. XVI
e XIX) explicam-se pelo gênero epistolar dos textos investiga-
dos.
É do século XVII para o XVIII que a 1P começa a se fixar
nas construções com parecer e achar, mais para aquela do que
para esta, constatação que identifica estratégias de subjetiviza-
ção primeiramente mais para as construções com parecer e crer
do que com achar. Com crer, são até mesmo mais anteriores (séc.
XIV), justificadas pelo valor de crença inerente ao verbo.

Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 161


Sebastião Carlos Leite Gonçalves

Observe-se que a ausência de marca de dativo nas cons-


truções com parecer é a mais forte concorrente da 1P, em todos
os séculos. No séc. XX, entretanto, a marca de pessoa tende a se
neutralizar, prevalecendo a sua ausência, constatação impor-
tante para afirmar o caráter mais gramatical das construções
com parecer sobre as demais construções, que ainda expressam
marca de pessoa.
Sob esse mesmo prisma, as figuras 4 a 6 revelam o com-
portamento da expressão de tempo.

Figura 4 – Expressão de tempo morfológico de ‘parecer’


(século XIII a XX)

Figura 5 – Expressão de tempo morfológico de ‘achar’


(século XIII a XX)

162 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

Figura 6 – Expressão de tempo morfológico de ‘crer’


(século XIII a XX)

Considerações finais
Numa reinterpretação de dados sobre a gramaticalização
de dois tipos de construções com predicados de atitude propo-
sicional de natureza sintática diferente (GONÇALVES, 2003),
reafirmando suas trajetórias de mudança, mostrei nesse artigo
uma análise que considera conjuntamente tanto propriedades
da construção matriz quanto da construção encaixada. Procurei,
neste passo, oferecer evidências para as causas/motivações que
levam à mudança das construções matrizes no seu funciona-
mento como satélite atitudinal da oração independente em que
passa a atuar.
A existência de uma integração fraca entre os dois tipos
oração matriz e suas respectivas orações encaixadas é comprova-
da por recurso aos seguintes parâmetros: (i) referência temporal
independente; (ii) restrição do escopo de negação ao conteúdo
da oração encaixada; (iii) restrições de tempo, modo, pessoa e
número da oração matriz; (iii) perda de complementizador; e,
(iv) perda de propriedades de seleção de constituintes (redução
valencial). Confirmando esses critérios, recorri a dois parâmetros
que aferem a integração de orações: (i) a dessentencialização da
oração encaixada; e (ii) a gramaticalização do predicado matriz,
tendo constatado que os critérios propostos para a análise da
redução da oração encaixada aplicam-se com mais consistência
à gramaticalização da oração matriz formada pelos predicados
atitudinais. Essa constatação me conduziu à conclusão de que,
mesmo nesse caso, os critérios que se aplicam à oração encaixada
são válidos também para a oração matriz, uma vez que tanto um
conjunto de critério quanto o outro levam ao mesmo resultado:
a redução de oração. Sob tal interpretação, advogo ainda que, ao
mesmo tempo em que as construções com predicados atitudinais
se recategorizam como satélites atitudinais (gramaticalização,
portanto), elas também se dessentencializam, incorporando-se
Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006 163
Sebastião Carlos Leite Gonçalves

como constituinte não-argumental da oração que modificam, a


qual de complemento, passa a independente. Fica, no entanto,
em aberto a questão da relação de causa-efeito entre dessenten-
cialização e gramaticalização.
Como entendimento mais geral para o modo funcionalista
de conceber a linguagem, resultados convergentes para constru-
ções com predicados matrizes que, sintaticamente, funcionam
de modo diferente legitimam a premissa da prevalência da
pragmática sobre a semântica e da semântica sobre a sintaxe.
Abstract
Two types of constructions with matrix predi-
cate were selected ( parecer and achar/crer) to
show their tendency to grammaticalization and
desentencialization, as they, detaching from their
embedded clause, decategorize themselves like
attitudinal satellites. These constructions differ
from each other in relation to argument status
of embedded clause (subject and complement)
and they resemble each other, as they codify the
speaker’s subjective attitudes (evidentiality/epis-
temic modality). This syntactic shifting affects
complex construction, turning it from biclausal
into monoclausal.
Keywords: matrix clause; grammaticalization;
desentencialization; parenthetical.

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Studies in Language, [S.l.], n. 12, v. 1, p. 51-97, 1988.

166 Niterói, n. 21, p. 147-166, 2. sem. 2006


A gradação tipológica
das construções de voz
Roberto Gomes Camacho
Recebido 10, mai. 2006/Aprovado 8, ago. 2006

Resumo
A caracterização tipológica da passiva envolve,
segundo Givón, (1981), três domínios funcionais:
atribuição de um tópico, impessoalização e detran-
sitivização. O principal interesse deste trabalho é
fornecer uma caracterização escalar e não discreta
para as diferentes construções de voz disponíveis
na gramática do português com base nesses três
domínios funcionais.
Palavras-chave: voz passiva, voz impessoal, voz
média, topicidade.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


Roberto Gomes Camacho

0. Introdução
A noção de que a gramática tradicional tem boas intuições
sobre os fatos lingüísticos, mas pouca precisão descritiva foi um
dos motivos que acionou o interesse pela construção de uma
gramática de referência do português, já em 1988, quando um
grande grupo de lingüistas de diferentes universidades brasilei-
ras reuniu-se em torno de um projeto comum de âmbito nacio-
nal, o ‘Projeto de Gramática do Português Falado’. Esse projeto
constitui a principal conseqüência de um anseio inaugurado no
Brasil, principalmente na década de 80, pela revisão do conceito
tradicional de gramática, traduzido em obras como Cunha e
Cintra (1985), Perini (1995), Bechara (1999) e, em Portugal, com
Mira Mateus e outros (1983); seus reflexos mais recentes se fazem
sentir nos trabalhos de Neves (2000) e Vilela & Koch (2001).
Um dos objetivos de uma gramática de referência não é
o de fornecer tão somente uma descrição do uso efetivo, mas
um conjunto de proposições que sirva de orientação sobre os
recursos disponíveis ao falante comum, num tipo de atividade
mais próxima da elaboração normativa, nunca da prescritiva:
“A distinção entre o ponto de vista prescritivo e o ponto de vista
normativo se estabelece, essencialmente, sobre uma definição
de norma, fundamentada nas freqüências observáveis dos fatos
funcionais” (FRANÇOIS, 1979, p. 93)
Assim, o percurso que medeia a descrição dos dados e a
construção de uma gramática com base em ‘freqüências obser-
váveis’ tem como origem uma reflexão sobre a “autoridade dos
fatos”, própria de uma descrição científica, e como alvo uma refle-
xão sobre o “fato de autoridade” (FRANÇOIS, 1979, p. 93), própria
de uma gramática. Na construção de uma gramática normativa
desse tipo as perguntas que se impõem são, em primeiro lugar,
como a descrição e a explicação teoricamente fundamentada que
se faz no âmbito acadêmico pode transformar-se num discurso
sobre as regras efetivamente em uso? E, em segundo lugar, em
que grau aspectos relevantes da descrição do fenômeno abordado
está próximo ou distante do modo tradicional de descrição das
gramáticas puramente prescritivas em uso no ensino escolar?
Responder a essas questões, mesmo de forma indireta, é
uma das preocupações que norteiam este trabalho, que procura
refletir sobre a relação entre o trabalho descritivo e o normativo,
com base no enfoque de um fenômeno lingüístico particular, o
domínio funcional da voz, já suficientemente submetido ao es-
crutínio da pesquisa lingüística (MOINO, 1989; CUNHA, 1994;
CAMACHO, 2002).
De um ponto de vista tipológico, as construções de voz
exercem uma diversidade de valores semântico-oracionais e
pragmático-discursivos, codificados na sintaxe por diferentes
tipos de configurações estruturais. É justamente em função dessa

168 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

complexidade que a tipologia lingüística tem preferido definir


voz como um domínio multifuncional, com base no princípio
de que a pesquisa trans-sistêmica não pode partir da forma, que
nem sempre é a mesma nas diferentes línguas, mas de domínios
funcionais, que são codificados por uma variedade de formas.
A noção de multifuncionalidade da voz verbal envolve,
segundo Givón, (1981, 1994), três domínios funcionais: (i) o de
topicalidade, segundo o qual se atribui a função de tópico a um
argumento não-agente; esse traço é oposto ao que identifica a
sentença ativa correspondente, em que o tópico é comumente o
sujeito/agente; (ii) o de impessoalidade, segundo o qual se supri-
me a identidade/presença do argumento agentivo, geralmente o
sujeito expresso da sentença ativa; (iii) o domínio da detransiti-
vidade segundo o qual, a construção de voz é semanticamente
menos ‘ativa’, menos transitiva, mais estativa que a construção
ativa correspondente.
O objetivo específico deste trabalho é mostrar, por um lado,
que as construções de voz do português falado, incluindo as
médias e as reflexivas, são pontos de um continuum funcional e
que, nesse caso, passiva e impessoal correspondem aos dois ex-
tremos da escala, embora sejam regidas pelas mesmas restrições
semânticas em relação ao tipo de predicado subjacente envol-
vido, enquanto a construção média e a reflexiva ora combinam
traços com a passiva ora com a impessoal. A interpretação das
construções de voz adotará uma perspectiva pragmática e uma
perspectiva semântica; a perspectiva pragmática tomará como
parâmetro a relativa topicalidade do agente e do paciente, com
base na proposta de Givón (1981), e a perspectiva semântica to-
mará como parâmetro o grau de distintividade dos participantes
no evento transitivo, tal como proposto por Kemmer (1994). O
objetivo mais geral é mostrar que a gramática normativa ganha
em precisão e qualidade se adotar uma perspectiva escalar para
suas categorias.
A construção de uma tipologia se baseará, sempre que
possível, em dados extraídos do corpus compartilhado do Projeto
de Gramática do Português Falado, que consiste numa amostra-
gem do material coletado pelo Projeto da Norma Urbana Culta
(NURC)/Brasil, gravados com informantes cultos procedentes
de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
Este texto organiza-se do seguinte modo: a seção 1 trata
das condições semânticas e pragmáticas que permitem codificar
sintaticamente um estado de coisas nas construções passiva e
impessoal e do modo como as diferenças funcionais representam
escolhas pragmaticamente motivadas. Passa-se, em seguida, na
seção 2, à discussão das construções reflexiva e média, com ên-
fase especial na última em virtude de não merecer um enfoque
sistemático nas gramáticas da língua portuguesa; nessa seção,
apresenta-se um quadro analítico para representar a função
Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 169
Roberto Gomes Camacho

que a escolha de uma construção média projeta no âmbito da


transitividade semântica. A conclusão inclui algumas generali-
zações em princípios tipológicos que permitem identificar cada
construção de voz como pontos funcionais de um continuum
escalar, perspectiva de análise que poderia substituir o trata-
mento excessivamente dicotômico das categorias nas gramáticas
do português.
1. Construções passiva e impessoal:
distinções pragmáticas e semânticas

1.1 Tipo semântico de predicado e função semântica


A grande maioria das construções passivas e impessoais
ocorre com verbos de ação [+dinâmico, -controlado] em cujo
esquema de predicado, o argumento objeto corresponde a um
papel de paciente (meta e meta-experienciador), isto é, uma
entidade afetada ou efetuada, enquanto o argumento sujeito
corresponde a uma entidade agentiva, humana e controladora.
Os exemplos (1a-c) abaixo ilustram esse tipo de predicação
(1) a todo seu material bélico foi arrasado? (EF-RJ-379)
b compra-se mais um título... (D2-RJ-355:30)
c faz esse refogado e põe tomate, um ou dois tomates (D2-POA-291:129)

Muito provavelmente são os verbos de ação os que prototi-


picamente desencadeiam as construções passivas e impessoais.
Por essa razão, uma gramática como a de Cunha (1986) traz
definições de voz ativa, passiva e reflexiva em que a noção de
agentividade está sempre implícita: “[...] o fato expresso pelo
verbo pode ser representado de três formas: a) como praticado
pelo sujeito [...] b) como sofrido pelo sujeito [...] e c) como praticado
e sofrido pelo sujeito [...].” (CUNHA, 1986, p. 210)
Entretanto, a passiva manifesta-se também com predicados
de posição, que não envolvem dinamicidade, mas são semanti-
camente marcados pelos traços [+controlado]. posição, na visão
teórica de Dik (1989), aqui adotada, inclui os verbos de percepção,
ou posição mental, como considerar e seus similares com ver-
bo-suporte, como levar em conta, contido em (2-a); e verbos que
pressupõem posicionamento físico de um ser controlador, como
considerar, manter, conservar, conforme se observa em (2b-d).
(2) A aumentos... salariais... que anualmente são levados em conta (DID-RE-131)
b os sindicatos são realmente entidades...que têm... determinados elementos
que são considerados como postos...[...] quer dizer que são considerados como
elementos chaves (DID-RE-131: 70-1)
c o período presidencial.... é mantido... durante três anos... (DID-RE-131:225)
d outros tipos de alimento que podem ser conservados (DID-POA-044)

170 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

Mais intrigante é a incidência de predicados de processo,


cuja entidade envolvida, não exerce qualquer controle, sendo,
antes, afetada. Processos [+dinâmico, -controlado] implicam,
por definição, a atuação involuntária dos participantes, afastan-
do-se, portanto, do evento transitivo prototípico. Apesar dessa
restrição semântica, o corpus inclui construções passivas com
predicados de processo, como lembrar, entender, perceber, e perder,
contidos em (3a-c).
(3) a a relação salário aluguel...já que o assunto foi lembrado aqui...(D2-RJ-355:213)
b bom... ocorre a guerra e... nada nessa história acontece por acaso... né? se...
realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo... é que as condições...
sociológicas... econômicas e políticas etc.etc.fizeram com que fosse perdida a
guerra... (EF-RJ-379)
c agora o dinheiro no Brasil nunca foi tão difícil de ser entendido... (D2-RJ-355)

Todos esses predicados de processo contêm um sujeito


experienciador e a experiência por que se passa pode ser física,
como ocorre com ver e perder, ou mental, como ocorre com enten-
der, perceber, lembrar. Observe a esse propósito, o uso causativo
de lembrar em (4a-c), em que se aplica o traço [+controlado],
justificando o uso de construções passivas, como a de (3a).
(4) a O professor lembrou a data da prova.
b A data da prova foi lembrada pelo professor.
c Lembrou-se a data da prova.

As construções contidas em (3b-c) constituem desvios do


evento prototipicamente transitivo, que deveria caracterizar as
construções passivas. Certamente o envolvimento num estado
de coisas não-controlado não acarreta qualquer ato voluntário,
intencional da entidade experienciadora. É por outra razão que,
ao explicar as construções de voz passiva, as gramáticas escolares
invocam um argumento circular para fornecer as condições es-
truturais da passiva, ao mencionarem que o único tipo de verbo
que licencia essa construção é o chamado transitivo direto, e o
conceito de transitividade é entendido sintática e não semanti-
camente, ainda que as definições de passiva tenham em geral
uma base nocional.
Quanto à impessoal, embora a incidência de outros tipos
semânticos de predicados seja pouco representativa, há um
dado relevante a observar: aplicam-se a ela as mesmas con-
dições semânticas que se aplicam à passiva. É possível inferir
essa correlação do fato de os dados terem manifestado inclusive
ocorrências de predicações envolvidas com entidades no papel
semântico de experienciador e de posicionador, que pressupõem
entidades controladoras, comuns às construções passivas. As
sentenças incluídas em (5a-c) são exemplos representativos de

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 171


Roberto Gomes Camacho

predicação de posição [-dinâmico; +controlado], e as de (5d-e),


de processo [+dinâmico, -controlado].
(5) a somente levando em consideração a realidade social... em adequação à lei por
exemplo (EF-RE-337:224)
b porque tem que manter um certo padrão:: e não dá (D2-SP-360:686)
c alimentos assim que não se pode guarda(r) por muito tempo, não é? (DID-
POA-044: 207)
d e como se vê fogueira o olindense faz fogueira (D2-RE-05:290)
e se encontra por exemplo hoje...no Japão... quer dizer uma situação
DIFERENTE daquele Japão pós-guerra (EF-RJ-379:340)

1.2. Grau de transitividade


Nos dados analisados, há em termos estritamente semânti-
cos, uma correlação significativa entre as construções de voz pas-
siva e impessoal: ambas são fortemente motivadas pela presença
de um verbo de ação [+dinâmico, +controlado] em detrimento de
predicados de processo, posição e estado, o que confirma a idéia
de que o candidato preferencial para ocupar a função de sujeito,
o agente, segue a hierarquia de funções semânticas. Uma boa
questão a discutir é a das motivações funcionais possíveis que
determinam a escolha entre essas construções alternativas.
Um aspecto funcional importante que deve determinar
essa seleção está justamente no domínio semântico da transitivi-
dade. A natureza ativo-transitiva do predicado, que a construção
impessoal preserva, alivia a restrição motivada pelo princípio
cognitivo do grau de distintividade entre os participantes.
Com base num postulado de Haiman (1983) sobre a separação
conceitual que o falante opera cognitivamente sobre grau de
individuação, Kemmer (1994) elabora o parâmetro da distin-
tividade relativa de participantes, segundo o qual uma entidade
única físico-mental pode ser conceitualmente distinguida em
diferentes participantes.
Assim, como a passiva se aplica a eventos transitivos em
que a entidade no papel de iniciador deve ser distinta da entidade
no papel de ponto de chegada, ela é automaticamente bloqueada
por predicados de ação cujo objeto afetado é parte inalienável
da entidade agentiva, conforme se observa em (6-8).
(6) a João lavou-se.
b ? João foi lavado por si.

(7) a João levantou o braço.


b ?O braço foi levantado por João./ ?O braço de João foi levantado por ele

(8) a João tomou banho.


b ?Banho foi tomado por João

O traço caracterizador de um esquema de predicado biva-


lencial, que constitui o evento transitivo prototípico, representa-

172 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

se, por definição, na distinção entre dois participantes exercendo


papéis semânticos igualmente distintos, que é como se identifica
uma relação tipicamente assimétrica (KEMMER, 1994). O evento
reflexivo de (6a) evoca dois papéis semânticos separados, mas
que convergem para uma única entidade referencial. Já o Agente
e a entidade afetada de (7a) representam uma única entidade,
uma vez que braço representa uma parte inalienável de João. As-
sim, (6a-b) e (7a-b) constituem subconjuntos do mesmo fenômeno
semântico, isto é, os argumentos representam entidades com
grau baixo ou nulo de distintividade. A conseqüência mais evi-
dente dessa propriedade semântica para a organização sintática
é o bloqueio da construção passiva de (7b), que não se aplica, no
entanto, à construção impessoal, conforme se observa em (9).
(9) a levantou-se tanto o braço na assembléia para votar as propostas que a
reunião mais parecia um ritual religioso.
b Na pescaria tomou-se banho só de rio.

Ilari & Franchi (apud FRANCHI; CANÇADO, [19--?]) lem-


bram, todavia, que passivas derivadas de predicados com objeto
incorporado são mais freqüentes do que parecem, pelo menos
na modalidade falada coloquial: Ele é para ser tomado conta, hein?
Esses casos, que constituem graus extremos de topicalização do
SP oblíquo na função de Beneficiário, assemelham-se a outras
construções de tópico, em que uma entidade externa à predica-
ção, chamada por Dik (1989) de Tema, passa a gramaticalizar-se
como Sujeito/Tópico da predicação. Esses processos de ‘integra-
ção de Tema’ (Dik 1989) se assemelham formalmente com casos,
como O meu carro furou o pneu, tratados por Pontes (1987).
Observem-se, agora, as sentenças contidas em (10a-c):
(10) a João quebrou o vidro da janela.
b O vidro da janela foi quebrado (por João).
c Quebrou-se o vidro da janela (?por João).

Em termos estritamente semânticos, a possibilidade de


construir passivas e impessoais no português está associada às
mesmas restrições de seleção; entretanto, a sentença passiva é
prototipicamente sensível à promoção de entidades afetadas à
posição de sujeito/tópico e à detransitividade do predicado ver-
bal, excluindo-se necessariamente a impessoalidade do agente;
quanto a esse aspecto, as impessoais não autorizam absoluta-
mente a manifestação formal de um SN agentivo, ainda que ele
permaneça pressuposto.
O fato de permanecer pressuposto, sem manifestação for-
mal, mostra que, acima de tudo, o acesso a tipos alternativos de
construções de voz é uma prerrogativa do falante ao elaborar
seu discurso. Sendo assim, na formulação de uma construção
de voz, as condições pragmáticas, ligadas ao nível interpessoal,

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 173


Roberto Gomes Camacho

acionam uma escolha, e a construção selecionada obedece a


restrições semânticas, no nível representacional, quanto ao tipo
semântico de predicado e à função semântica dos participantes.
O resultado dessa operação é a codificação morfossintática, que
distingue formalmente as duas construções de voz, de acordo
com a natureza da formulação (cf. HENGEVELD, 2004).
As gramáticas tradicionais sustentam o princípio descriti-
vo de que construções impessoais são passivas reais em função
de o argumento único ser o sujeito formal e, embora posposto,
controlar a concordância número-pessoal com o verbo. Há,
todavia, uma gramática que resiste em considerar a impessoal
como uma forma de passiva: “Tal teoria [...] foge à realidade da
língua. Em tal frase [alugam-se casas], casas é o objeto direto:
o verbo é ativo e o se é símbolo de indeterminação do sujeito.”
(BARROS, 1985, p. 301)
Bechara (1999) reconhece essa diferença semântica e formal
entre passiva e impessoal, mas a natureza clítica das construções
impessoais o leva a aproximá-las da voz reflexivo-recíproca; para
diferenciar uma da outra, menciona vagamente um sentido de
“passividade com se” e de impessoalidade para a construção que
se denomina aqui de impessoal, conceituando a reflexiva como
a “forma verbal que indica que a ação verbal não passa a outro
ser (negação da transitividade), podendo reverter-se ao próprio
agente, que é o sentido reflexivo propriamente dito, ou atuar
reciprocamente entre mais de um agente” (cf. BECHARA, 1999,
p. 222-3). Ao contrário da interpretação de Bechara, mais adiante
se defende a idéia de que a reflexiva é a construção de voz que
mais se aproxima do evento ativo-transitivo, interpretação mais
próxima da que defende Barros (1985).

1.3. Forma de manifestação do SN agente na passiva


A condição especial da passiva de poder conservar o SN
agentivo pode ser observada em (11a) e (11b), construções que
manifestam respectivamente SNs sob a forma de itens lexicais
plenos e de zeros anafóricos:
(11) a então lá fui recebido pela empregada (D2-RJ-355)
b então a minha de onze anos... ela supervisiona o trabalho dos cinco... então
ela vê se as gavetas estão em orde/... em ordem se o:: material escolar já foi
re/arrumado [entenda-se pelos cinco] para o dia seguinte (D2-SP-360)

No exemplo contido em (11b), o tópico discursivo é repre-


sentado pelos cinco filhos da locutora, que passa a tratar especi-
ficamente de um deles, a menina de onze anos. O contexto deixa
claro que o SN agentivo não-manifesto pressuposto por arrumar
se identifica, por relação anafórica e co-referencial, com o SN os
cinco; trata-se claramente de um caso de entidade inferível não-

174 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

contida (PRINCE, 1981). Em outro tipo de construção, como o de


(12), a referência ao nominal está bem mais próxima:
(12) se... realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo... é que as condições...
sociológicas... e econômicas e políticas etc. etc. fizeram com que fosse perdida
a guerra... [entenda-se pelos países do eixo] (EF-RJ-79)

Há casos de passivas não-agentivas que assim se caracte-


rizam por manifestarem entidades genéricas, como o de (13a)
ou, se individuadas, desconhecidas do emissor, e por fim, se
conhecidas, propositalmente não enunciadas por ele, como o
de (13b).
(13) a ciranda é cantada durante o verão em Olinda.
b se a gente lembrar que aquele prédio foi feito para conter (D2-RJ-355)

Em termos semânticos, a passiva prototípica corresponde a


uma predicação estativo-processiva em que a entidade afetada/
efetuada pela ação verbal recebe a função de sujeito e, geralmen-
te, a de tópico, e a entidade causadora ou é colocada em segundo
plano, significativamente, representada pela posição sintática de
oblíquo, ou, mais comumente, é demovida sintaticamente.
Embora a demoção sintática do SN agentivo seja faculta-
tiva, acaba por constituir-se numa propriedade característica
da passiva, já que a grande maioria das ocorrências não exibe
a possibilidade de recuperação, no contexto discursivo, de re-
ferência a uma entidade individuada que seja controladora da
ação envolvida no predicado.
Vale a pena mencionar que a manifestação do agente
como oblíquo cria uma possibilidade adicional de demovê-lo,
propriedade que dá uma flexibilidade funcional à passiva de
que a impessoal não dispõe. Há, na realidade, uma tendência
inequívoca, detectada por Du Bois (1987) no sacapulteco e por
Pezatti (2002) no português falado, para orações com um único
argumento lexical, geralmente na posição de meta, implicando
numa regra de estrutura preferida do tipo “evite mais de um
argumento lexical na oração”. Nesse caso, enquanto a constru-
ção passiva é capaz de cumprir satisfatoriamente esse princípio
funcional, conforme o estatuto informacional dos argumentos,
a impessoal é absolutamente impermeável a ele.
A demoção sintática do SP agentivo, embora facultativa, é
estatisticamente preferida (CAMACHO, 2002; CUNHA, 1994), o
que aproxima as duas construções, mas razões pragmáticas de
topicidade da entidade afetada comandam a escolha da passiva
em vez da impessoal. Um traço formal que permite rastrear com
segurança a topicidade da entidade representada no SN sujeito
da passiva é seu grau de acessibilidade anafórica (WRIGHT;
GIVÓN, 1987). Observem-se em (14a) e (14-b) dois casos típicos

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 175


Roberto Gomes Camacho

de SNs na função de sujeito/tópico, manifestando-se, respecti-


vamente, como pronome anafórico e zero anafórico.
(14) a a Arquitetura quando foi prá lá estava do primeiro ao oitavo andar
mobiliado... com mobiliário melhor possível... então... o que acontece...
quando ela foi sendo comprimida... ela não foi deixando os móveis
(D2-RJ-355)
b a criança vai ao maternal somente pra brincar.. ser educada ser alfabetizada
(DID-SA-231)

É óbvio dizer que zeros costumam desempenhar o papel


de ponto terminal de uma cadeia anafórica, que, muitas vezes,
começou com um SN lexical pleno. Observem-se os exemplos
contidos em (15).
(15) a esse nódulo terá que ser... examinado..∅. terá que ser retirado... ∅ terá que
ser mandado para a... anatopatologista... para eh::eh::/ para então... ele
dizer... se há malignidade ou nao nesse nódulo (EF-SA-049)
b ele é responsável pela chefia lá e:: ∅ não foi preenchida (D2-SP-360)

Vale lembrar que Weiner & Labov (1983) defendem a idéia


de que construções passivas não-agentivas em inglês não são
favorecidas por condições pragmáticas, como topicidade, mas
por razões formais de paralelismo formal, que é a presença de
uma construção similar precedente. Desse modo, o sujeito da
passiva, em vez de seu caráter tópico, é simplesmente motivado
pela tendência de se preservarem estruturas paralelas.
Os dados de língua falada aqui analisados não confirmam
a atuação desse fator, já que é significativamente majoritário o
número de passivas sem qualquer outra estrutura similar no
contexto. A passiva é usada principalmente para a continuidade
tópica de um argumento não-agentivo. Na verdade, os índices de
manutenção de sujeito apontam apenas parcialmente para um
fenômeno mais geral, de manutenção tópica, cujo indício mais
evidente está no grau de distância referencial não importa que
função, na oração anterior, o SN precedente exerça. Nesse âmbito,
é possível evocar os dados de Cunha (1994) que apontam para
uma incidência de apenas 19% dessa categoria em seus dados
de fala. Nesse caso, o mecanismo que atua mais decisivamente é
de ordem discursiva, já que atende a determinações pragmáticas
de manutenção e continuidade tópica e não a determinações de
ordem puramente formal.

1.4. O estatuto gramatical do argumento


único das construções impessoais
Nas estruturas impessoais reinam absolutas as entidades
inanimadas na única posição argumental. Um bom indício para
verificar o estatuto dado/novo desses referentes é seu grau de
acessibilidade anafórica. A grande maioria dos SNs das cons-
truções clíticas e não-clíticas apresentam ligação anafórica com

176 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

algum elemento antecedente, comportamento que caracteriza as


entidades representadas por esses SNs como discursivamente
dadas.
Nessa condição, o argumento afetado seria promovido, de
um ponto de vista pragmático, para a função de tópico e, de um
ponto de vista sintático, para a posição de sujeito, como, aliás, é
comum ocorrer com a passiva. Entretanto, dificilmente se pode-
ria atribuir aos casos de voz impessoal do corpus exemplos claros
e inequívocos de construção promotora de entidades afetadas à
posição de sujeito, já que a maioria absoluta delas têm seu argu-
mento único inequivocamente flexionado no singular.
Para reforçar esse argumento, verifiquemos como se
comportam os argumentos únicos das construções impessoais;
caso fossem interpretados como sujeito, exigiriam aplicação de
concordância de número. Isso de fato ocorre em apenas um caso,
ilustrado em (16).
(16) quer dizer além de chegar ao plano muscular...se retiram os elementos
musculares... ou sejam... os peitorais... grandes e pequenos (EF-SA-049)

O cuidado especial do falante com a regra normativa de


concordância verbal o leva a produzir um caso típico de hiper-
correção mais adiante, quando usa a locução invariável ou seja
como um verbo no plural. Isso pode indicar que, somente em
situações muito tensas, um falante de nível superior de escola-
ridade produziria uma construção em que o argumento único
é codificado como sujeito, em razão da concordância número-
pessoal.
Os demais casos representam todos indícios de que o falan-
te não trata o argumento posposto ao verbo como o sujeito legíti-
mo da sentença. Vale ressaltar que alguns casos são construções
impessoais não-clíticas, em que a ausência de marca explícita de
voz torna mais rara a concordância. A sentença contida em (17)
fornece uma evidência de que a construção impessoal é variável
quanto à inserção do clítico marcador.
(17) então, naquele arroz mexe, quebra dois ovos aí e, e depois então comprime
esse arroz num pirex, bate-se um ovo, põe a gema (D2-POA-291)

Já em outros casos, como os de (18a) e (18-b), a construção


impessoal é inequivocamente assinalada com o marcador clítico.
A despeito disso e da relativa formalidade da situação interacio-
nal, o SN pluralizado não aciona a concordância.
(18) a não se pode criar assim profissões ou citar(r) profissões que sejam mais
importantes ou mais necessárias entende? (DID-POA-044)
b também se faz a aquelas compras pequenas que.. alimentos assim que não
se pode guarda(r) por muito tempo, né?[...] só outros tipos de alimentos que
podem ser conservados (DID-POA-044).

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 177


Roberto Gomes Camacho

É interessante observar que, em (18b), o locutor usa a alter-


nativa impessoal com um SN no plural que, mesmo assim, não
aciona a concordância de número no predicado. Na seqüência,
apesar de alimentos aparecer em posição pré-verbal, controlando
a ligação anafórica com o pronome relativo na posição de sujeito,
esse SN também não é capaz de acionar a regra de concordância
com o auxiliar modal poder. Na mudança de subtópico que o lo-
cutor faz em seguida, referindo-se a outros tipos de alimentos,
ele alterna para a passiva numa oração relativa restritiva, cujo
pronome relativo tem como co-referente um nome no plural
e, diferentemente do que ocorre na construção impessoal, que
acabou de ser enunciada, aplica-se rigorosamente a regra de
concordância.
As construções impessoais ainda representam casos de
ambigüidade estrutural no português falado culto em função
de um mínimo de construções no plural, certamente motivadas
pela tradição normativa que rege a modalidade escrita. Esses
poucos casos podem ser identificados como construções que
promovem o SN afetado à posição de sujeito. Ainda assim, é
muito relativa a aplicação da regra de concordância nos casos
de sujeito em posição pós-verbal. Reporta-se aqui aos exemplos
de (19), extraídos de uma amostra de língua escrita de Scherre
(apud BAGNO, 2003, p. 27).
(19) a “FALTA ao governo FHC DECISÕES CORAJOSAS E FIRMES,
principalmente contra os partidos que o apóiam” (O Estado de S. Paulo,
17/9/1995, A-2, c. 2)
b “Mas se a população de rua não for retirada, de nada ADIANTARÁ
MEDIDAS DE SEGURANÇA”. (Jornal do Brasil, 13/11/92, p. 3)

A preferência estatística por construções impessoais no


singular é um indício evidente de que se acha subjacente a in-
terpretação cognitiva de que o constituinte relevante não é de
fato o sujeito sintático.
Assim, nem todas as construções desse tipo se fazem
marcar por se, eliminação que, de resto, acompanha a perda de
clíticos já atestada no português (cf. KATO; TARALLO, 1986).
Além disso, nem sempre, como se sabe, o argumento único do
predicado na construção impessoal se comporta como sujeito
real: além de ocupar uma posição destinada ao objeto, não é
absoluta a codificação morfossintática que regula o comporta-
mento nominativo desses SNs, tal como costuma aparecer nas
gramáticas tradicionais. Cria-se, assim, uma espécie de voz ativa
impessoal indeterminadora, em que o argumento paciente não
recebe função de sujeito, cuja posição fica marcada formalmente
pela presença do clítico se.
Já a preferência pela construção passiva é motivada pela
determinação pragmática de constituir um tópico, o que não
se aplica à impessoal, em que o processo é apresentado em si

178 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

mesmo, independentemente de uma entidade que lhe sirva


de referência, a mesma motivação que dá lugar às frases sem
sujeito.
A própria configuração sintática da construção impessoal,
argumento único em posição pós-verbal, é um resultado explícito
dessa motivação pragmática; além disso, ela preserva a estrutura
predicacional ativo-transitiva.
A necessidade pragmática de topicalização requer do fa-
lante a opção por uma estrutura em que o argumento principal
seja sintaticamente o sujeito, o que define a construção passiva.
Nesse caso, resulta um estatuto de detransitividade semântica,
que é secundário em função da determinação pragmática de
atribuição tópica, hierarquicamente dominante.
2. Construções de voz média e de voz reflexiva

2.1. Um único clítico com duas funções


O termo média designa uma categoria flexional de voz do
Grego Clássico, definida tanto em termos de forma quanto de
função. Do ponto de vista formal, essa categoria é constituída
por paradigma de sufixos verbais com uma função semântica
bem delineada: expressar estados de coisas que afetam o sujeito
do verbo ou seus interesses (cf. LYONS, 1979, p. 373). Por ser do
domínio das línguas indo-européias clássicas, como o sânscrito,
o grego e o latim, as gramáticas não fazem qualquer referência
ao termo, embora haja claras alusões à expressão voz reflexiva.
Cunha e Cintra (1985, p. 395) tratam a passiva mais como um
modelo de conjugação, enquanto a diferença entre voz reflexiva
e média se restringe apenas à idéia de que, quando no singu-
lar, o clítico na função de objeto co-referencial ao SN sujeito,
manifesta a idéia de reflexividade e, quando no plural, o clítico
co-referencial ao sujeito manifesta a idéia de reciprocidade; já
a diferença entre reflexiva e média é tratada apenas com uma
seção destinada aos verbos pronominais.
Câmara Jr. (1972) foi o primeiro lingüista a reconhecer
não só os traços comuns mas também os traços distintivos das
construções média e reflexiva/recíproca. Em atenção aos traços
comuns, denomina medial o tipo que corresponde sintaticamen-
te a uma construção em que à forma do verbo na voz ativa se
acrescenta um pronome adverbal átono, referente à pessoa do
sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma integração
na ação que dele parte. Em atenção aos traços distintivos, Câ-
mara Jr. (1972, p. 182-3) fornece três subcategorias de voz medial:
a medial reflexiva, a medial recíproca e a medial dinâmica.
Seja como medial reflexiva, seja como medial recíproca,
a construção não-pronominal com objeto autônomo, isto é,
não co-referencial ao sujeito, mantém inalterada a significação

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 179


Roberto Gomes Camacho

verbal, sempre numa forma ativa, conforme os exemplos: eu


me feri x eu o feri. Já como medial dinâmica, a pessoa do sujeito,
sob a forma do clítico, reaparece no predicado, representando
o centro de uma ação verbal transitiva que dele parte, mas que
não sai de seu âmbito, eliminando-se, assim, o objeto sobre o
qual ela recairia: eu me levantei e, diferentemente das estruturas
reflexivo-recíprocas, a construção de pronome autônomo altera
a significação verbal: eu o levantei.
Alguns exemplos típicos de voz média reflexiva e de voz
média recíproca podem ser observados em (20a) e (20b), respec-
tivamente. O uso original das construções clíticas foi provavel-
mente o reflexivo simples com o pronome co-referencial ao ob-
jeto, que se vê em (20a) e o uso recíproco, que se vê em (20b).
(20) a e a melhor maneira que ele encontrava pra se defender era atacando (EF-RJ-
379).
b mas um não acusa o outro de jeito nenhum...agora na mai/... na maioria das
vezes eles dizem...(que foi eles...dizem) se acusa (D2-SP-360)

As construções de (20a) e (20b) permitem uma formulação


alternativa na voz ativa com o mesmo valor semântico do verbo,
conforme se observa em (21a) e (21b).
(21) a A melhor maneira que ele encontrava para defender sua pátria era
atacando.
b O deputado acusou o ministro de corrupção.

Como marcador medial, o clítico se ainda retém proprie-


dades pronominais de acordo com suas origens no pronome
reflexivo: formalmente ainda é parte do paradigma pronominal,
correlacionando-se com outros membros da classe, embora o
único traço nominal que lhe resta seja o de pessoa; além disso,
ele participa regularmente das regras de colocação de clíticos
que governam os pronomes em geral. O marcador medial ainda
mantém traços morfológicos e sintáticos tipicamente pronomi-
nais, mas sua forma de manifestação sintática e semântica não
é idêntica à do marcador reflexivo-recíproco; nas construções
médias, o clítico não permite, por um lado, comutações com
outros termos possíveis do mesmo paradigma e, por outro, não
estabelece com o sujeito uma relação semântica de co-referência,
o que só seria possível se houvesse duas posições estruturais
disponíveis para serem preenchidas por SNs referencialmente
idênticos.
O fato de não constituir uma posição sintática preenchível
aproxima as construções médias das construções impessoais:
há em ambas as classes um marcador morfológico sem posição
valencial no esquema de predicado. Observe-se no exemplo (22)
um caso de predicado pronominal.
(22) ela realmente procura se aperfeiçoa(r) dentro daquilo que faz
(DID-POA-045)

180 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

De um ponto de vista formal, uma construção média


caracteriza-se, portanto, por predicados intrinsecamente
pronominais cujo clítico já não representa nenhum par-
ticipante no esquema valencial. De um ponto de vista
semântico, a maioria dos casos de voz média manifesta
predicados com argumento único afetado e todo o evento é
tomado como não sendo o resultado da ação de uma outra
entidade causativa. O sujeito parece ter alguma qualidade
própria para gerar o estado de coisas que então só dele
emana. Observe-se em (23a-e) alguns casos prototípicos:
(23) a a palavra mesma por si já se explica (EF-POA-)
b a gente se desgasta mais (D2-SP-360)
c acho que o sistema bancário já que nossa conversa é em torno de
dinheiro... evoluiu muito e se popularizou (D2-RJ-355)
d mas eu acho que o pessoal não se equipou ainda aqui (D2-SA-98)
e se cala mas não se dobra (D2-SP-360)

Apesar de o marcador de voz média do português


ser, como já mencionado, o clítico destituído da função
reflexiva, podem ocorrer, mesmo num corpus mais formal,
como as entrevistas do NURC, as alternativas não-clíticas
contidas em (24), similarmente ao que ocorre, conforme já
mencionado, com as construções impessoais.
(24) a todo o terreno da vizinhança já valorizou (D2-RJ-355)
b o problema é vender pro comércio...quando começa a desenvolver o
comércio... (D2-RJ-355)
c o dia que você tiver verba pra consertar a torneira da tua escola...o
vidro da janela que quebrou (D2-RJ-355)
d quando atinge o quinto ano do primeiro grau é o grande deficit de
evasão... é onde há... é o pique da evasão.. a pirâmide fecha ali... quase
que fecha ali...(D2-RJ-355)

As sentenças acima produzem um efeito semântico


equivalente ao de suas alternativas clíticas; são casos de
variação. Observe-se, a esse propósito, o exemplo contido
em (25), situação em que o mesmo falante produz, às ve-
zes, duas instâncias do mesmo predicado, ora clítico, ora
não-clítico.
(25) acho que o sistema bancário já que nossa conversa é em torno de
dinheiro... evoluiu muito e se popularizou [fechando o tópico] hoje
popularizou o sistema bancário (D2-RJ-355)

Essas variantes não-clíticas aproximam formalmen-


te as médias das construções de voz impessoais, já que o
clítico é uma espécie de afixo marcador de impessoalidade
e de medialidade, respectivamente, retendo do pronome
reflexivo apenas a categoria número-pessoal, mas não a
relação de co-referência. É possível referir-se aos verbos
inerentemente pronominais, como queixar-se, arrepender-se
Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 181
Roberto Gomes Camacho

e levantar-se, como media tantum, já que não têm uma contraparte


não-pronominal. Bechara (1999) reconhece que, nessa categoria
de verbos, “não se percebe mais a ação rigorosamente reflexa,
mas a indicação de que a pessoa a que o verbo se refere está vi-
vamente afetada” (BECHARA, 1999, p. 223), mas não se arrisca
a tentar criar uma categoria especial de voz.
Como os marcadores médio e reflexivo mostram freqüen-
temente correspondência formal sincrônica e/ou diacrônica, é
possível concluir que há uma relação semântica entre as catego-
rias que os marcadores expressam, mas a distinção semântica ou
funcional entre as construções reflexiva e média também sugere
uma distinção formal, suscetível de codificação lingüística, e é
nos ‘sistemas de duas formas’ (two-form systems) que a diferença
se manifesta mais claramente (cf. KEMMER, 1994, p. 190).
O latim se caracterizava como um ‘sistema de duas for-
mas’, mas os marcadores reflexivo e médio não eram cognatos:
a expressão formal do primeiro era o clítico se, enquanto a do
segundo era desinencial, mediante o acréscimo de -r à raiz ver-
bal; nesse caso, o latim constituía um ‘sistema de duas formas
não cognatas’ (two-form non-cognate system). O desaparecimento
dos verbos depoentes, classe de media tantum, tornou possível
generalizar o uso do clítico reflexivo também para as constru-
ções médias do português e de outras línguas românicas, como
o espanhol e o francês.
Apesar dessa convergência formal das línguas românicas,
é possível considerar a hipótese de que a distinção gramatical
entre construções médias e reflexivas, presente no latim clássico,
venha a traduzir-se, respectivamente, na ausência e na presença
do clítico, padrão de distribuição que preservaria inclusão da
variedade falada nos sistemas de duas formas, mas com um jogo
de oposições muito diferente do que ocorre na variedade padrão
da modalidade escrita.
Tomando por base subtipos semânticos de predicação, su-
geridos por Kemmer (1994), é possível identificar nos verbos de
movimento não-translacional, como virar-se, e nos de mudança
de postura corporal, como levantar-se, a característica semântica
de acarretarem uma espécie de fusão no sujeito dos papéis de
agente e paciente, embora pareça que o traço de afetado é o mais
evidente. O mesmo parece aplicar-se a outros tipos de estado de
coisas que envolvem verbos de comportamento, como conduzir-
se, comportar-se, portar-se. Verbos naturalmente recíprocos, como
abraçar-se, parecem fundir os papéis de agente e beneficiário;
observem-se, a esse propósito, as construções de (26a-b).
(26) a João abraçou a mulher, antes que ela caísse de vez.
b João abraçou-se à mulher, antes que (ele) caísse de vez.

182 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

A sentença (26b) contém um verbo tipicamente médio cujo


complemento preposicionado não exerce a função semântica de
beneficiário da ação de João, como é o caso do SN a mulher em
(26a); exerce, muito provavelmente, a de instrumento (meio de
suporte), já que o beneficiário passa a ser o próprio agente, que
aparecem como que fundidos no SN João na posição de sujeito.
Há um conjunto de verbos tipicamente causativos, que
admitem praticamente todas as construções de voz, como se
observa nos exemplos contidos em (27a-b) e (28a-b):
(27) a O padre conscientizou Maria das dificuldades do casamento. (ativo-
causativa)
b Maria foi conscientizada pelo Padre das dificuldades do casamento.
(passiva)
(28) a Maria se conscientizou das dificuldades do casamento. (média)
b Maria está conscientizada das dificuldades do casamento. (estativo-
resultativa)

É interessante observar que um evento causativo exclui


a construção de voz reflexiva; o clítico se de (28a) não pressu-
põe reforço com a si mesma, mas com por si mesma, o que leva a
interpretá-la como construção média. A reflexividade é muito
mais restrita: está relacionada semanticamente a verbos não-
causativos com SNs animados, daí a impossibilidade de uma
construção de voz média como (29b) :
(29) a João cortou o bolo.
b ?O bolo (se) cortou.
c João se cortou.

Este é um bom argumento para considerar que deve ser


preferencialmente média a interpretação de construções pro-
cessivas, como (30a) abaixo, que exibem correspondência com
predicados causativos.
(30) a O bebê se acalmou com os sons ritmados.
b Os sons ritmados acalmaram o bebê.
c O bebê se acalmou por causa dos sons ritmados.

Esses verbos de processo configuram uma classe ampla


de predicados orientados para a entidade meta, ou paciente. O
epíteto orientação para Meta, cunhado por Vet (1985), (Goal-oriented
predicates) indica que esses predicados estão em oposição aos
verbos que admitem voz reflexivo-recíproca, que são orientados
para a entidade controladora, geralmente no papel semântico de
agente (Agent-oriented predicates). Os predicados daquela classe
não expressam, como os desta, uma relação entre alguma en-
tidade e si mesma, mas o envolvimento do sujeito da sentença
num estado de coisas que o afeta de algum modo.

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 183


Roberto Gomes Camacho

Eventos causativos requerem um causador externo virtual,


mas é possível construir sentenças, como (30c), com a entida-
de causativa, reduzida sintaticamente à posição de oblíquo, e
verbalizar o evento como auto-suficiente na rede causal. Nesse
caso, a auto-suficiência do evento parece ser mais relevante para
os propósitos comunicativos que a ação de uma causa externa
controladora na função de sujeito (cf. CROFT, 1994), pressupondo
certa responsabilidade da entidade afetada no desencadeamento
do processo. É como se as motivações do nível interpessoal se
sobrepusessem às do nível representacional e os reflexos dessas
motivações no nível morfossintático resumem-se às diferentes
configurações formais disponíveis (Hengeveld, 2004).

2.2. Coincidência das funções semânticas de iniciador e


ponto de chegada nas construções médias
Segundo Klaiman (1988), no tipo médio de voz o sujeito,
além de iniciador e/ou controlador, representa também o status
de entidade afetada. Em contraste com a média, sobre o sujeito da
ativa, que é, de algum modo, o controlador do estado de coisas,
não incidem os efeitos do evento. A representação da sentença
processiva correspondente parte de uma perspectiva segundo a
qual a entidade afetada, também o ponto de partida do evento,
não está sujeita a qualquer causa externa; essa característica,
aliada à marcação morfossintática do clítico correspondente,
torna evidente sua inserção na classe das médias.
Apesar dessa evidente inserção, não se deve limitar a
medialidade às construções processivas, que têm na afetação
do sujeito o traço semântico mais distintivo, já que a categoria
medial inclui um paradigma de predicações controladas, em que
uma entidade agentiva opera sobre si mesma, como levantar-se,
virar-se, ajoelhar-se; inclui também uma classe de predicados de
processos e estados cognitivos, como lembrar-se e interessar-se,
respectivamente, que acarretam a participação de entidades
experienciadoras.
Comparem-se (31a-c) e (32a-c):
(31) a Maria viu o menino no espelho.
b Maria viu-se no espelho.
c Maria viu-se a si mesma no espelho.
(32) a João se levantou.
b João levantou a pedra.
c ?João se levantou a si mesmo.

No caso de levantar-se, o léxico do português dispõe de


duas entradas, uma pronominal, que representa a interpretação
média, e outra não-pronominal, que representa a interpretação
causativa. O efeito semântico está no fechamento do predicado
sobre seu sujeito, valor semântico que já se supõe estar presente

184 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006


A gradação tipológica das construções de voz

na construção reflexivo-recíproca. A diferença, entretanto, é que


nesta o clítico é simultaneamente anafórico e co-referencial ao
sujeito, enquanto na média o clítico é unicamente anafórico. O
pronome reflexivo, que perdeu completamente seu estatuto argu-
mental, pode ser considerado uma espécie de afixo pronominal
que concorda em pessoa e número com o sujeito da sentença.
Diferentemente dos reflexivos, não há comutação plausível
entre o clítico e outro SN com manutenção de compatibilidade
semântica, como comprovam os exemplos contidos em (31a-b) e
(32a-b). Além disso, a construção (32c) é estranha, e o mesmo não
se aplica a (31c). Em (32a), o sujeito é, ao mesmo tempo, Iniciador
e Ponto de Chegada do evento.
Os exemplos discutidos envolvem a conceitualização do
sujeito da sentença como o lugar de incidência do efeito do es-
tado de coisas. A dupla identidade do sujeito decorre de a média
instaurar uma perspectiva que representa a entidade afetada
como o ponto de partida do evento e, portanto, iniciador e/ou
controlador ou, na pior das hipóteses, entidade não sujeita a
qualquer causa externa.
Considerações finais
Ao refletir sobre o modo como o trabalho descritivo, pura-
mente acadêmico, pode atuar sobre o discurso normativo, este
trabalho firmou seu principal interesse no estabelecimento das
bases para uma gramática, que se limitou, por sua vez, a um
único domínio funcional. O trabalho descritivo pautou-se por
uma organização escalar de traços semânticos e pragmáticos
da diversidade morfossintática das construções de voz do por-
tuguês falado, cujo resultado final consistiu na elaboração de
uma taxonomia descritiva, passível de ser aplicada a gramáticas
pedagógicas.
Assumiu-se, para tanto, o princípio de que voz é, por de-
finição, uma categoria multifuncional, organizada em torno de
três domínios (topicalidade, impessoalidade e detransitividade),
vinculados ao conceito de “evento transitivo prototípico”, que
fornece, por sua vez, a definição nuclear da voz ativo-transitiva
(Givón, 1981; 1994), base para outras categorias de voz. A apli-
cação desses três domínios funcionais fornece uma distribuição
de traços que permite chegar à seguinte tipologia:
Domínios funcionais Passiva Impessoal Média Reflexiva
Impessoalidade - + + -
Detransitividade + - - -
Topicalidade + - + -

Juntamente com a reflexiva, a impessoal é a construção


menos marcada, já que para construir um exemplo, basta im-
pessoalizar a entidade controladora do evento, que exerceria a
função de sujeito na construção ativa. É por isso que o único
Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 185
Roberto Gomes Camacho

traço positivo que ela sustenta no quadro comparativo é o de


impessoalidade; como a passiva manifesta um tópico representa-
do por uma entidade não agentiva, ela focaliza o evento a partir
da perspectiva do paciente, da qual resultam detransitividade e
topicalidade como traços positivos.
A construção média atribui a função de tópico ao sujeito,
que é também uma espécie de entidade afetada e exclui, como
as impessoais, o agente; daí a convergência dos traços de impes-
soalidade e topicalidade. A construção reflexiva, por sua vez,
praticamente representa um estado de coisas ativo-transitivo;
como não promove a tópico uma entidade paciente, o estado
de coisas mantém alto grau de transitividade e a agentividade
acaba por incidir também sobre o sujeito.
Outra característica funcional ligada ao conceito de transi-
tividade é o grau de distintividade dos participantes, postulado
por Kemmer (1994). Como as línguas em geral assimilam outros
tipos de eventos, que não envolvem necessariamente a trans-
missão de energia física, como os prototipicamente transitivos,
Kemmer (1994) considera o grau em que a elaboração lingüística
de um estado de coisas toma por base o ponto de vista de um
participante que “inicia” o evento para um segundo participante,
que é o alvo ou “ponto de chegada”.
Kemmer argumenta em favor de um princípio semântico
que é crucial para a natureza da reflexividade e da medialidade.
Esse princípio, ainda mais abrangente que a noção de afetação do
sujeito, baseia-se numa escala ao longo da qual é possível situar
a reflexividade e a medialidade não apenas como categorias se-
mânticas intermediárias de transitividade entre eventos de um
e de dois participantes, mas também como categorias distintas
uma da outra. O esquema abaixo representa essa escala.
Evento de dois participantes Evento reflexivo Evento médio Evento de um participante
+ –
Grau de transitividade dos participantes
Grau de distintividade dos participantes
Um evento de dois participantes se caracteriza cognitiva-
mente pela existência de dois distintos participantes preenchen-
do cada qual uma função semântica numa interação ou relação
assimétrica, como é o caso típico das construções de voz ativa
e passiva. Embora o evento reflexivo e o médio evoquem, como
no evento de dois participantes, dois papéis semânticos separa-
dos, estes convergem para uma única entidade referencial. Em
virtude dos distintos papéis que evocam, os eventos reflexivo e
médio denotam relações internamente complexas, mas o primei-
ro implica uma diferenciação cognitiva da entidade referencial
em subpartes discretas, enquanto o segundo prescinde dessa
diferenciação; desse modo, o evento médio está mais distante
do evento de dois participantes que o reflexivo. Aplicado o parâ-
186 Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006
A gradação tipológica das construções de voz

metro da distintividade dos participantes, obtém-se a seguinte


tipologia:
Relação assimétrica Relação simétrica entre Relação do predicado
entre o predicado e dois o predicado e dois com um participante
participantes participantes
Voz ativa Voz reflexiva Voz média
Voz passiva Voz impessoal

Para finalizar, uma breve reflexão sobre a questão do grau


em que aspectos relevantes da descrição de um fenômeno es-
tejam próximos ou distantes do modo tradicional de descrição
das gramáticas puramente prescritivas em uso no ensino escolar.
Um modo seguro de responder a essa questão é afirmar que os
tipos de construção de voz no português não se identificam fun-
cionalmente, mas constituem, na verdade, diferentes formas de
expressão que se acham à disposição do usuário para o exercício
de diferentes funções semânticas e pragmáticas. Outro aspecto
relevante é o de que os diferentes tipos de construção de voz
não constituem categorias discretas, mas fenômenos lingüísticos
escalares, contínuos, tendo por referência um modelo prototípico,
do qual se afastam mais ou menos.
As gramáticas normativas só teriam a ganhar com um
enfoque similar, pois habilitariam o aluno a descobrir na na-
tureza complexa das categorias lingüísticas um cruzamento de
traços formais e funcionais em detrimento da caracterização em
geral dicotômica e, por isso mesma, pouco explícita na escolha
de parâmetros de análise que em geral permeia as gramáticas
escolares.

Abstract
According to Givón (1981), the typological cha-
racterization of passive involves three functional
domains: clausal topic assignment, impersonali-
zation and de-transitivization. This paper´s main
objective is to provide a scalar, non-discrete cha-
racterization to the different voice constructions
available in Portuguese grammar on the basis of
those three functional domains.
Keywords: passive voice, impersonal voice, mi-
ddle voice, topicality.

Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 187


Roberto Gomes Camacho

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Niterói, n. 21, p. 167-189, 2. sem. 2006 189


Ressonância e graus de
transitividade na conversação
espontânea em português
Maria Elizabeth Fonseca Saraiva
Recebido 29, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Resumo:
Este texto tem por objetivo examinar e quantificar
o grau de transitividade (THOMPSON & HO-
PPER, 2001) de enunciados ressoantes, isto é:
enunciados proferidos por interlocutores diferentes
em que se estabelece uma relação de mapeamento
tanto estrutural quanto lexical. A análise é nor-
teada por princípios da abordagem funcionalista,
em seu modelo norte-americano.
Palavras-chave: ressonância; transitividade;
subjetividade.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006


Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

1 – A noção de ressonância
Neste ensaio, dou prosseguimento ao estudo das resso-
nâncias na conversação espontânea em português, iniciado em
Saraiva (2005). Para desenvolvimento dessa análise, convém
esclarecer que Du Bois (2001) propõe um novo modelo no trata-
mento da língua em uso, denominado por ele Sintaxe Dialógica.
Considerando tal abordagem como um ramo da Sintaxe Conven-
cional e não como um modelo alternativo, o lingüista enfatiza
o papel dos enunciados em que se instaura a ressonância como
o reflexo mais transparente do envolvimento estabelecido entre
os interlocutores no calor da interação dialógica. Nos momentos
de envolvimento intenso, os falantes constróem seus enunciados
reutilizando recursos, como por exemplo os léxico-estruturais,
que acabaram de ser usados por seus parceiros de diálogo. Nas
palavras de Du Bois, estabelece-se uma relação de mapeamento
entre o enunciado do primeiro falante, que funciona como ma-
1
Os dados deste traba- triz, e o do segundo, que o explora para efeitos de ressonância.
lho foram extraídos de
conversações espontâ-
Dessa forma, a ressonância é uma propriedade de enunciados
neas que fazem parte produzidos por falantes diferentes em situação de interação
do banco de dados do
GREF – Grupo de Estu- dialógica. É um fenômeno pelo qual um falante explora padrões
dos Funcionalistas da utilizados por seu interlocutor, para reutilizá-los em sua fala,
Linguagem (CNPq), por
mim coordenado. As fazendo emergir “afinidades” em diversas dimensões da forma
normas de transcrição
seguiram as sugestões
e do significado. Tais “afinidades” são, portanto, ativadas em
do Projeto NURC/SP contexto, no uso real da língua.
(CASTILHO; PRETTI,
1986, p. 9-10). Os inter-
A título de exemplificação, considerem-se os dados grifados
locutores são falantes a seguir: 1
do português do Brasil,
de nível universitário
completo, que apresen-
(1) (L1 e L2 conversam sobre roupa)
tam alto grau de inti- L1 – mas será que combina?
midade.
Nos exemplos, cada li- eu acho que não né?
nha corresponde a uma L2 – ah não... nada a ver...
unidade entonacional
(UE). A divisão em UEs L1 - nada a ver...
das conversações anali-
sadas foi efetuada por
Beatriz da Matta. Agra- (2) (L1 e L2 estão vendo fotos)
deço a Andressa Jorge
Sarsur a colaboração L1 – qual que ocê quer ver primeiro...
no levantamento dos (...)2
dados.
2
Nos exemplos, ado- vão vê das paisagens...
tou-se a convenção de L2 – nó que lin::do né?
usar para trechos que
foram retirados por não L1 – nossa ficou lin::do...
serem relevantes para a
ilustração. L2 – nossa essas andorinhas aí tão maravilhosas...
3
Para uma análise de-
t al hada das f u nções Em (1) e (2), observa-se que as recorrências destacadas evi-
discursivas das resso- denciam uma concordância entre os pontos-de-vista dos locuto-
nâncias, consulte-se a
dis­sertação de Beatriz res. Porém as ressonâncias se prestam a inúmeras outras funções
da Matta, por mim orien­
tada: Ressonâncias léxico-
discursivas (discordância, retificação, ironia, humor, estabeleci-
estruturais na conversação mento de contato etc.), como se pode verificar a ­seguir:3
espontânea em português
(FALE/UFMG, 2005).

192 Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006


Ressonância e graus de transitividade na conversação espontânea em português

(3) (L1 e L2 estão vendo fotos)


L1 – mostrou só a metade...
e você descendo de rappel heim?
morreu de medo...
L2 – morri nada...

(4) (L2 e L2 conversam sobre feiras, exposições, etc.)


L1 – agora eu tô querendo ir é na Casa Cor...
L2 – ah eu não vou não...
(Casa Cor eu não vou não...)
L1 - ah::eu adoro ir...

(5) (L2 e L2 conversam sobre festas)


L1 – de quem é a festa?
L2 – aniversá / aniversário de uma / um amigo da minha amiga...
e aí ela me colocou lá na porta...
L3 - te colocou lá na porta?
cê vai ficar de porteiro hoje? ((rindo))
L2 - não não... ela colocou o meu nome na porta...
aí eu posso entrar...

Em (3) e (4), os mapeamentos são efetuados com a finalida-


de de salientar a divergência de opiniões. Já em (5), a ressonância
de L3 é criada para manifestar humor.
Retomada a noção de ressonância, na próxima seção sinte-
tizam-se alguns dos resultados de Saraiva (2005), que servirão
de base para o prosseguimento desta pesquisa.
2 – Síntese dos resultados de Saraiva (2005)
e propostas deste trabalho
É necessário salientar que, em Saraiva (2005), objetivou-se
descrever os tipos de estrutura detectados nos conjuntos forma-
dos pela matriz e o enunciado ou enunciados que a ressoam,
presentes num trecho de conversação espontânea do portu-
guês do Brasil, assim como verificar o comportamento dessas
unidades com referência à “Estrutura Argumental Preferida”,
tal como formulada em Du Bois (2003). Para tanto, foi adotada
a noção tradicional de construção intransitiva, transitiva (que
inclui as bitransitivas), copulativa etc., que orientou a análise
de Dubois.
A seguir apresento, de modo sintético, os resultados obtidos
com referência aos tipos de construção, pois deverão servir de
ponto de partida para o desenvolvimento da presente análise:

Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006 193


Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

Tabela 1 – Resultados relativos aos tipos de construção das matrizes


Construções %
A – Frases feitas 15
B – Com verbo ser impessoal 7
C – Copulativas 22
D – Com verbo ter impessoal 4
E – Intransitivas 15
F – Transitivas 37
Total 100

Tabela 2 – Resultados relativos aos tipos de construção dos


enunciados ressoantes
Construções %
A – Frases feitas 3
B – Com verbo ser impessoal 5
C – Copulativas 14
D – Com verbo ter impessoal 16
E – Intransitivas 18
F – Transitivas 44
Total 100

Uma primeira observação sobre as tabelas I e II refere-se


ao fato de que, como é de se esperar, os mesmos tipos de cons-
trução obtidos nas matrizes se fizeram presentes nos enunciados
ressoantes. Como ilustração, podem ser citadas as frases feitas,
exemplificadas tanto em (1) como nos casos denominados open
idioms4 (expressões idiomáticas abertas), nos quais há uma va-
riável a ser preenchida no contexto de uso. A expressão Sabe x,
usada em português para introduzir novos referentes na fala,
é um desses casos. O referente assim introduzido costuma ser
retomado nos enunciados subseqüentes, tornando-se tópico da
conversação. Observe-se:
(6) (Conversa sobre restaurantes)
L1 – e... sabe Graciliano?
L2 – Graciliano não conheço...
bom?
L1 – é... médio...
os doces são excelentes...
bom demais...

Contudo, para os próximos passos da pesquisa a serem


relatados à frente, o mais relevante é a conclusão, inicialmente
obtida com base nas tabelas I e II, de um predomínio das estrutu-
ras tradicionalmente consideradas transitivas tanto nas matrizes
(37%) quanto nos enunciados ressoantes (44%).
Em contraponto a essa conclusão, há a possibilidade de
um outro olhar sobre os resultados: computando o número de
argumentos nucleares disponíveis para a ocupação de partici-
4
Cf. THOMPSON; HOP- pantes do discurso, verifica-se que, em C, D e E, há apenas um
PER (2001).

194 Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006


Ressonância e graus de transitividade na conversação espontânea em português

argumento nessa situação, diferente de F, que apresenta dois


ou mais.5 Isso significa que, nas matrizes, 41% das estruturas
portam apenas um argumento nuclear, em contraste com 37%
das estruturas com dois ou mais argumentos. Nos enunciados
ressoantes também há o predomínio de construções com uma só
posição argumental: 48%, em confronto com 44% de estruturas
com duas ou mais posições argumentais nucleares.
A partir dessa perspectiva, neste texto, objetiva-se retomar
conjuntos de enunciados em que se instaura a ressonância para
analisá-los com base em outra concepção: os parâmetros de
transitividade propostos por Hopper & Thompson (1980).
3 – Graus de transitividade dos enunciados ressoantes
Como se sabe, Hopper & Thompson (1980) consideram a
noção de transitividade sob um prisma diferente, como uma
propriedade da oração na sua totalidade, focalizando traços
referentes tanto ao verbo quanto a seus argumentos. Conforme
a presença ou ausência desses traços, as estruturas instanciadas
em enunciados efetivamente produzidos são classificadas como
mais ou menos transitivas, distribuindo-se em diferentes pontos
de um continuum, de uma escala de transitividade.
Tendo em vista que o texto Transitivity in grammar and
discourse, no qual essa concepção é detalhada, já se tornou um
clássico na literatura funcionalista, no momento vou me ater
à apresentação do quadro abaixo, no qual são apresentadas as
propriedades relevantes para a análise, sem me preocupar com
sua explicação.
Quadro 1 - Parâmetros de transitividade
Oração mais transitiva Menos transitiva
a) Participantes dois ou mais participantes um participante
b) Agentividade mais agente menos agente
c) Volição mais volitivo menos volitivo
d) Cinese ação não-ação
e) Aspecto perfectivo não-perfectivo
f) Pontualidade pontual não-pontual
g) Afirmação afirmativo não-afirmativo
h) Modalidade realis irrealis
i) Afetação do objeto objeto totalmente afetado objeto não-afetado
j) Individuação do objeto objeto mais individualizado objeto não-
individualizado
Fonte: HOPPER, P.; THOMPSON, S. (1980, p. 252 – com adaptação na ordem dos traços e tradução de
minha responsabilidade)

Merece destaque, nessa abordagem, o fato de que a pre-


5
Os casos de dois argu- sença ou ausência de um segundo participante, como o objeto
mentos nucleares são os
das estruturas bitran-
direto, é apenas um dos traços considerados dentre os dez que
sitivas, as quais foram compõem a noção de estrutura transitiva típica. Sendo assim, em
catalogadas junto com
as transitivas diretas e
princípio, é possível encontrar-se, no discurso real, estrutura
as transitivas indiretas sem objeto que, embora não seja prototípica, deva ser alocada na
da tradição gramatical.

Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006 195


Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

escala dentre as portadoras de alto grau de transitividade, isto é,


aquelas com seis ou mais traços positivos. A frase “Ele saiu cedo”,
por exemplo, seria uma dessas orações, apresentando sete marcas
positivas. Apenas os traços a, i e j não se aplicam nesse caso.
Por outro lado, em “Ele tem uma casa de campo muito es-
paçosa”, a presença de um objeto representado por entidade bem
individualizada não garante alto grau de transitividade para a
estrutura, de acordo com os parâmetros do Quadro I. Essa ora-
ção ganha marcas negativas para as propriedades b, c, d, e, f e i,
totalizando, pois, apenas quatro traços positivos. Assim, coloca-se
dentre as de baixa transitividade no continuum mencionado.
Considerando a concepção acima e os percentuais de
ocorrência de construções com um só argumento, observados
nas tabelas I e II, surgiu a questão dos graus de transitividade
dos conjuntos formados pelas matrizes e enunciados ressoantes,
conforme anteriormente asseverado.
Na busca de resposta para essa indagação, examinou-se
um trecho de conversação espontânea em que foram detectadas
169 unidades entonacionais (UEs) ressoantes.6 Como existem
UEs não-oracionais, assim como há UEs que englobam mais de
uma oração, fez-se necessário identificar e quantificar as orações
daquelas UEs. Foram identificadas 203 orações, que passaram a
ser analisadas com base nas propriedades do Quadro I. Deve-se
esclarecer, no entanto, que foram excluídas dessa contagem as
expressões idiomáticas (de sentido metafórico). Porém as frases
feitas com posições abertas (open idioms), como a exemplificada
em (6), foram computadas.
A seguir, explicitam-se outras decisões metodológicas
tomadas na condução da análise. Um primeiro passo consistiu
em separar as orações com um (ou menos de um7) participante
daquelas com dois ou mais, de acordo com a proposta de Thomp-
son & Hopper (2001). Os dois casos vêm ilustrados, respectiva-
mente, em (7) e (8):
(7) (L1 avalia a possibilidade de levar o filho pequeno durante uma viagem
de curta duração)
6
A partir deste momen- L1 – mas eu vou ficar esgotada né?
to, sempre que fizer refe-
rência a enunciados res- L2 –. vai..
soantes, estarei fazendo
menção aos conjuntos
constituídos pela matriz (8) (L1 e L2 conversam sobre a construção de uma casa)
e sua(s) ressonância(s),
uma vez que, para esta L1 – ah::... ela tá fazendo uma casa lá?
pesquisa, são esses con- L2 – B. tá fazendo uma casa lá... tá...
juntos que interessam.
7
Os dados com menos Com base nos argumentos apresentados em Saraiva (2001),
de um participante, no
corpus, são ilustrados os objetos não-referenciais, dentre os quais se situam os obje-
pelo verbo ter impes-
soal acompanhado de
tos incorporados, não foram contabilizados como um segundo
SN não-referencial (de participante. A mesma decisão foi estendida, ainda, aos objetos
acordo com a acepção
de GIVÓN, 1984, p. 389- oracionais com relação à sentença na qual se encaixam. Embora
390). tais objetos tenham sido considerados na contagem e análise
196 Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006
Ressonância e graus de transitividade na conversação espontânea em português

das orações, não foram levados em conta como um segundo


participante da oração que os domina.8 Ambos os casos são
exemplificados, respectivamente, em (9) e (10) abaixo:
(9) (Comentários sobre uma moça empenhada em seu trabalho)
L1 – eu já vi ela vendendo biquíni também né?...
L2 – é... ela vende tudo...
L1 – ela é muito esforçada...
L2 – muito esforçada...

(10) (Observações sobre uma criança com ciúme da irmãzinha)


L1 – e ele só quer ficar no colo?
L2 – só quer ficar no colo...
(...)
ele vê a Amanda no colo...
aí quer ficar no colo..
.
Adotados os critérios mencionados, procedeu-se à quan-
tificação das orações com um (ou menos de um) participante e
as com dois ou mais, obtendo-se estes resultados:
(11) a) Orações com um participante (ou menos de um): 162, ou seja,
79,8%.
b) Orações com dois ou mais participantes: 41, ou seja, 20,2%.

A etapa seguinte consistiu na análise das orações de cada


um dos grupos de (11) com referência também aos demais tra-
ços do Quadro I. As construções de (11)a) apresentaram o perfil
registrado na Tabela III:
Tabela 3 – Orações com um (ou menos de um) participante
Traços de alta
Número de orações Porcentagem (%)
transitividade
sete 0 0,0
seis 9 5,6
cinco 15 9,2
quatro 9 5,6
três 20 12,3
dois 64 39,5
um 17 10,5
zero 28 17,3
Total 162 100,0

As orações com um participante, embora não possam


ser prototípicas, em princípio podem acumular até sete traços
positivos de transitividade, conforme salientado anteriormente.
Todavia, dos 162 casos da Tabela III, nenhum atingiu esse núme-
ro. Em III, observa-se, ainda, que apenas 9 estruturas obtiveram
8
Cf. THOMPSON; HO- seis traços positivos, ou seja, somente 5,6% das orações podem
PPER (2001) para as ra-
zões desta decisão. ser caracterizadas como construções portando alto grau de tran-

Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006 197


Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

sitividade. Os demais 94,4% distribuem-se nos diferentes pontos


da escala que são considerados de baixa transitividade. Mais
ainda: 67,2% situam-se nos extremos de baixa transitividade, isto
é, apresentam dois ou menos de dois traços positivos.
O exame das 41 construções com dois participantes (ou
mais) revelou a seguinte composição dos parâmetros do Qua-
dro I:
Tabela IV – Orações com dois (ou mais) participantes
Traços de alta transitividade Número de orações Porcentagem (%)
dez 5 12,2
nove 0 0,0
oito 6 14,6
sete 2 4,9
seis 11 26,8
cinco 3 7,3
quatro 7 17,1
três 3 7,3
dois 4 9,8
um 0 0,0
Total 41 100,0

Na Tabela IV, verifica-se que apenas 12,2% dos dados ana-


lisados se caracterizam como estruturas transitivas prototípicas,
ou seja, apresentam marcas positivas para os dez parâmetros
considerados. Outros 46,3% também se alocam em posições de
alta transitividade (de seis a nove propriedades positivas). Fi-
nalmente, 41,5% se distribuem, na escala, nos pontos de baixa
transitividade.
Considerando as 203 orações analisadas, obtêm-se estes
percentuais:
(12) a) Orações revelando baixa transitividade: 83,7% (170 orações).
b) Orações com alta transitividade: 16,3% (33 orações).

Essas diferenças são significativas e nos apontam uma forte


tendência dos enunciados ressoantes: a tendência a portarem
baixo grau de transitividade.
4 - Conclusão
Refletindo sobre os resultados desta pesquisa, surgem
considerações que se relacionam também com outros trabalhos.
Assim, em Da Matta (2005), demonstrou-se que as ressonâncias
léxico-estruturais em diálogos espontâneos do português apre-
sentam uma freqüência geral de 24,5%. Considerando a noção
de marcação explorada por Givón (1995, p. 64-65), pode-se afir-
mar que esse percentual revela que os conjuntos de enunciados
ressoantes ocupam uma posição de figura sob o pano de fundo
daqueles mais freqüentes, ou seja, não ressoantes. Nas palavras

198 Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006


Ressonância e graus de transitividade na conversação espontânea em português

de Givón (1995, p. 64), “salient experience is clearly the less fre-


quent figure, standing out on the more frequent ground.”
Esse caráter dos enunciados ressoantes, marcado em termos
de freqüência, se apresenta em sintonia com sua caracterização
formal e comunicativa: o mapeamento de padrões e estruturas
efetuado em tais enunciados, e que lhes confere proeminência
discursiva, é um índice iconicamente motivado dos momentos
de maior envolvimento entre os interlocutores.
Diante disso, pergunta-se: o que motiva o resultado de um
predomínio maciço de construções menos transitivas nesses
enunciados, conforme se lê em (12) e a tendência captada expli-
cita? Uma possível explicação para o fato pode ser aventada com
base em Thompson & Hopper (2001): os recursos gramaticais
explorados pelos falantes nesses casos são um reflexo do que
estão fazendo quando conversam com amigos e conhecidos.
Nos termos desses lingüistas, isso é um reflexo da subjetivi-
dade no uso diário da língua. Nesse contexto sócio-cultural,
parece que os interlocutores estão mais interessados em revelar
seus pontos-de-vista, seus valores, como descrevem e avaliam
situações, pessoas, comportamentos etc. Enfim, na conversação
espontânea em geral e, de um modo especial, nos momentos
em que a ressonância se estabelece, enquanto interlocutores,
nossa preocupação central se volta “to display our identities,
convey who we are to others, express our feelings and attitudes,
and check our views of the world with our community-mates”
(THOMPSON; HOPPER, 2001, p. 53).
Essa perspectiva deverá nortear minhas próximas inves-
tigações sobre a tendência dos enunciados ressoantes a porta-
rem baixo grau de transitividade, conforme registrado neste
ensaio.
Abstract
This paper aims at examining and quantifying
the degree of transitivity (Thompson & Hopper
(2001)’s concept) of ressonant utterances, that is,
utterances produced by different speakers betwe-
en which is established a mapping relation, both
structural and lexical. The analyses is guided by
principles from the North American Functiona-
lism.
Keywords: ressonance; transitivity; subjectivy.

Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006 199


Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

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200 Niterói, n. 21, p. 191-200, 2. sem. 2006


Aspectos semântico-cognitivos
da intensificação
José Romerito Silva
Recebido 25, jun. 2006/Aprovado 25, ago. 2006

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo focalizar,
especificamente, os processos de intensificação
no que se refere aos seus aspectos semântico-cog-
nitivos. Para isso busca os subsídios teóricos da
semântica cognitiva, segundo a qual a linguagem
codifica os esquemas cognitivos estruturados a
partir de nossa experiência com a realidade. Essa
codificação reflete combinações metafóricas exis-
tentes entre domínios de natureza mais “concreta”,
adquiridos do modo como conceitualizamos nossa
relação com o mundo, e outros de natureza mais
abstrata. Nessa perspectiva, admite-se que o recur-
so à intensificação, em boa medida, constitui uma
construção metafórica, operada pelo estabeleci-
mento de relações analógicas com noções oriundas
de determinados conceitos de base mais “concreta”,
como quantidade, tamanho/dimensão, localização
(horizontal ou vertical), peso/força etc.
Palavras-chave: intensificação; semântica cog-
nitiva; metáfora.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006


José Romerito Silva

Introdução
A intensificação, ao lado da transitividade, da predicação,
da negação e de outros, figura entre os universais semântico-
lingüísticos (LEHMANN, 1991; MARTIN, 2003; KEMMER, 2003).
Não há dúvida de que se trata de uma das estratégias discursi-
vas mais utilizadas nos processos de interação verbal, dos mais
simples e descontraídos, como é o caso de uma conversa íntima,
àqueles mais ritualizados e formais, como o discurso acadêmico,
por exemplo.
No entanto, embora reconheça o caráter funcional – i.e.
discursivo-pragmático – da intensificação (e estou considerando
esse aspecto em meu trabalho de doutoramento), pretendo, aqui,
focalizá-la exclusivamente no que se refere aos aspectos semân-
tico-cognitivos, advogando seu caráter metafórico, cujas bases
se assentam nas experiências físico-sensoriais, psicoafetivas e
socioculturais humanas, em que colaboram processos de natu-
reza cognitiva. Utilizo como referencial teórico os postulados da
semântica cognitiva, conforme defendidos por pesquisadores
como Lakoff e Johnson (1999, 2002), Tomasello (2003), Croft e
Cruse (2004), entre outros.
O material de análise é extraído do Corpus Discurso &
Gramática (FURTADO DA CUNHA, 1998) – doravante, Corpus
D&G, constituído de textos orais e escritos produzidos por alunos
dos níveis fundamental e médio e por universitários. Recorro,
ainda, a textos avulsos colhidos em situações reais de comunicação,
principalmente jornais e revistas, entre outros.
Breves considerações teóricas
Lakoff e Johnson (1999, 2002) postulam que o pensamento
tem base corporal. Isso porque é mediante o corpo que o indi-
víduo se relaciona consigo mesmo, com o mundo físico e com o
ambiente sociocultural ao seu redor. E é, portanto, através dessa
interação que constrói os conceitos, os quais, por sua vez, são
traduzíveis via linguagem. Logo, não há como negar a relação
intrínseca existente entre experiência, pensamento e linguagem
(cf. MARMARIDOU, 2000).
Para esses pesquisadores, o grande equívoco da tradição
filosófica ocidental tem sido a crença de que a razão é inde-
pendente do corpo, e que é essa autonomia que nos caracteriza
como seres humanos, distintos das outras formas de vida. Ao
contrário, o nosso sistema conceptual emerge de nosso contato
corporal com o mundo que nos cerca. Esses conceitos nos per-
mitem caracterizar mentalmente as categorias e raciocinar sobre
elas. Tais categorias são parte de nossa experiência, isto é, são
parte daquilo em que nossos corpos e cérebros estão engajados
em nossa relação com o ambiente biofísico e sociocultural.

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Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

O postulado da relação entre corpo e mente (ou da mente


corporificada) evidencia por que uma enorme quantidade de
conceitos abstratos emerge de noções “concretas”, tendo por base
a dimensão corporal. Lakoff e Johnson denominam esse fenô-
meno de metáfora primária, afirmando que estas são automática e
inconscientemente adquiridas na vivência comum do cotidiano
desde a infância.
É preciso esclarecer, de antemão, que o conceito de metáfora
tomado neste trabalho não se alinha à tradição clássica, na qual
a metáfora é vista como uma figura de estilo, ou seja, como um
desvio da linguagem comum e denotativa. Ainda conforme
essa perspectiva, a metáfora figura entre outras possibilidades
estilísticas da língua – os tropos –, mais reservadas para as
expressões poético-literárias, em que o falante recorre, criativa
e inusitadamente, aos efeitos especiais da linguagem para fins
estéticos e afetivos.
Aqui, ao contrário, o recurso à metaforização é considera-
do um fenômeno participante do discurso cotidiano, presente
tanto nas interações mais corriqueiras e informais como nas
comunicações mais formalizadas. Significa dizer que a metáfora
recobre uma quantidade considerável de categorias conceituais
utilizadas nas diversas formas de interlocução da convivência
social, emprestadas de noções que têm como fundamento signi-
ficados construídos a partir das experiências do indivíduo com
o ambiente circundante.
Portanto, adotando a idéia de que o pensamento é de na-
tureza eminentemente metafórica, elimina-se assim a clássica
distinção entre linguagem comum e linguagem literária, bem
como a idéia de linguagem figurada como uma realização lin-
güística especial. Em vez disso, considera-se a figuratividade
como um fenômeno central no processamento cognitivo, espe-
lhada em todas as manifestações da fala cotidiana (LAKOFF;
JOHNSON, 2002).
Sem querer deter-me nas discussões teóricas em torno da
metáfora, esta pode ser definida, grosso modo, como uma cons-
trução cujo conteúdo resulta da interação entre dois domínios
conceituais. Quer dizer, uma noção é concebida em termos de
outra. Um ponto importante nessa perspectiva é que a metáfora
é, antes de tudo, uma operação cognitiva. Significa que, apesar
de se realizar lingüisticamente, a metáfora é, por natureza,
uma estrutura conceitual, no sentido de que, em sua formação,
operam-se correspondências de relações entre domínios, repre-
sentadas no sistema conceitual, as quais se convencionalizam
entre os membros de uma comunidade de fala (CROFT; CRUISE,
2004).
Uma evidência disso é que, mesmo nas comunicações
de caráter técnico-científico, em que se espera uma linguagem
precisa e denotativa (“literal”), as metáforas ainda podem ser
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encontradas em abundância. Basta uma rápida observação a um


texto como este para que isso possa ser percebido claramente:
vejam-se neste pequeno parágrafo, por exemplo, palavras como
caráter, espera, podem, texto, claramente etc., as quais procedem de
alguns conceitos básicos de nossa experiência.
O processo de metaforização se verifica, por exemplo, no
deslocamento de idéia espacial a domínio temporal do verbo ir,
como se pode ver abaixo:
(01) “... todo veraneio que a gente vai pra lá [casa de praia]...
a gente vai pescar lá...” (Corpus D&G, 1998, p. 370);
(02) “... porque esses rapazes de hoje não pensa no amanhã
que vai ser.” (Corpus D&G, 1998, p. 363).
Note-se que, na primeira ocorrência em (01), ir tem um
valor genuinamente espacial, no sentido de movimento do cor-
po de um lugar a outro, confirmado pelo locativo anafórico lá;
na segunda – ainda no mesmo trecho –, acumula tanto a idéia
de deslocamento espacial como de ação habitual; na terceira
menção, no fragmento (02), esse verbo assume por completo a
condição de marcador temporal, isto é, como auxiliar indicativo
de futuro do verbo ser, o que representa uma noção bastante
abstratizada em relação às anteriores.
Assim, parte do sistema semântico-cognitivo de base físi-
ca é transferida, analogicamente, para a formação do universo
conceptual mais abstrato das construções gramaticais. Compar-
tilhando dessa mesma idéia, Slobin (1980) admite que as línguas
parecem expressar noções abstratas, por extensões metafóricas,
da experiência concreta do comportamento sensorimotor.
Assumindo o mesmo ponto de vista, Heine (1994) afirma
que a emergência de estruturas lingüísticas deriva de deter-
minados processos cognitivos básicos, através dos quais os
conceitos gramaticais são expressos em termos de algumas
experiências humanas básicas, relacionadas ao modo como nós
vemos o mundo, a onde as coisas estão localizadas, a como elas
se inter-relacionam, a como as ações são realizadas, e assim por
diante.
Confirmando essa perspectiva teórica, Marmaridou (2000,
p. 61) sustenta que “[...] o sentido emerge de nossas experiências
corporais e, dado que nossas experiências são física e cultural-
mente motivadas, parece plausível assumir que o pensamento,
compreendido como uma estrutura cognitivo-cultural, modela
a linguagem.” (Tradução nossa)
E acrescenta mais adiante:
[...] já que o sentido surge de uma compreensão da experiência
e já que ela é simbolicamente expressada através de uma forma
lingüística, segue-se que a forma lingüística expressa como os
seres humanos entendem a experiência, ou, alternativamente,
como eles conceptualizam a realidade. (MARMARIDOU, 2000,
p. 61, tradução nossa)

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Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

Sendo as construções lingüísticas uma codificação sim-


bólica do modo como conceptualizamos, através de operações
cognitivas, as coisas (categorias) com as quais interagimos
fisicamente, o contato corporal projeta-se imperativamente na
formação de conceitos mais abstratos. Assim, estes são reflexos
metafóricos das noções adquiridas pela experiência.
Baseado nesse postulado, advogo que, nos processos de
intensificação, estabelece-se uma conexão analógica entre o
conteúdo intensivo significado e outro de natureza mais “con-
creta”, resultante da nossa relação somática com o ambiente em
que vivemos. Nesse caso, por exemplo, o intensificador muito
emerge do esquema imagético de quantidade; -inho, da concepção
de tamanho/dimensão; a repetição lexical, da “imitação” icônica de
quantidade e tamanho, ao mesmo tempo; ultra- e super-, das idéias
de localização horizontal e vertical, respectivamente; a tonicida-
de prosódica – como em “... um HOrror!... [filmes] de terror eu
DEtesto!” (GONÇALVES, 2003, p. 48) – exprime a metáfora de
força muscular, uma vez que a sobrecarga sonora na sílaba das
palavras relaciona-se a peso, o que demanda esforço físico; bem
e terrivelmente apontam para as respectivas noções básicas de
estado/sensação psicoafetivo(a) de prazer e medo.
É importante esclarecer, no entanto, que essa experiência
física do indivíduo com o meio não pode prescindir do convívio
social para o estabelecimento dos conceitos. Na verdade, o ponto
de vista cultural sobre o mundo parece exercer um papel deci-
sivo no processamento cognitivo e na conseqüente codificação
lingüística. Por outro lado, não obstante a isso, pode-se admitir
que há uma relativa recorrência dos mesmos padrões de metafo-
rização nas estratégias de atribuição de intensidade. Quero dizer:
em geral, aproveitam-se noções derivadas, especialmente, das
idéias de distância espacial (horizontal ou vertical), quantidade,
tamanho e peso.
Se o recurso à intensificação tem como fundamento o em-
préstimo de noções adquiridas a partir de nossas experiências
corporais com o contexto biofísico, sociocultural e psicoafetivo
em que estamos envolvidos, então é válido postular que é pos-
sível haver um padrão semântico-cognitivo mais geral (ou uni-
versal) para a formação dos conceitos intensivos. Significa dizer
que, apesar das peculiaridades lexicais e gramaticais existentes
em cada língua, o fenômeno da intensificação se manifesta
translingüisticamente adotando mais ou menos os mesmos
princípios nocionais.
É por isso, por exemplo, que se observam praticamente
as mesmas idéias fundantes na expressão de intensidade, não
obstante à diversidade tipológica e às distâncias geográficas ou
cronológicas verificadas entre as línguas. Isto é, para exprimir
um conteúdo intensivo, os falantes recorrem basicamente às

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mesmas noções de quantidade, localização, tamanho, força ou


alguma sensação físico-psicológica impactante.
Evidências semântico-cognitivas da intensificação
Do ponto de vista formal, a intensificação pode ser expressa
das mais diversas maneiras:
1. no plano fonético – através de traços supra-segmentais,
em que se alonga e/ou se imprime maior tonicidade a um
componente sonoro. Ainda um outro recurso acústico é
o que Cagliari (apud GONÇALVES, 2003) chama de “fala
silabada”, na qual o falante produz a escansão de sílabas.
Exemplifico com estes dois fragmentos textuais colhidos
do autor citante (p. 48, 50, respectivamente):
(03) “E por falar nisso, a Dona Dalva fez ontem uma carne assada
gosTOOOOOsa...”;

(04) “O que? Adoro ele [Thiago Lacerda], que ele é lindo demais, que é GA-
TÉ-SI-MO!”.

2. no plano lexical – com carga intensiva no próprio lexe-


ma:
(05) substantivo: medo < pavor; raiva < ódio, buraco < rombo, casa <
mansão;

(06) adjetivo: bonito < lindo, pobre < miserável, bravo < furioso, frio <
gelado;

(07) verbo: pedir < implorar; falar < tagarelar, gastar < esbanjar, abrir <
escancarar;

(08) advérbio: pouco < muito < bastante < demais.

3. no plano morfológico – por meio da afixação:


(09) supermercado < hipermercado;

(10) “... é uma invenção caipira do caipiríssimo José Aparecido de Oliveira,


por sua vez cupincha do caipirésimo Itamar Franco...” (SABINO, M.
Veja, 24/07/1996).

4. no plano sintático – mediante combinação de formas


sintagmáticas/oracionais ou pela repetição da mesma
base lexical:
(11) “Eu acho isso que o namoro de hoje está muito avançado demais...”
(Corpus D&G, 1998, p. 363);

(12) “Ele [o presidente Lula] passou a acreditar em si mesmo muito além do


que seria razoável.” (TOLEDO, R. P. de. Veja, 13/07/05, p. 134);

(13) “A gente anda, anda, anda. Mas não vende nada.” (Isto É,
21/01/1998).

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Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

5. no plano textual – quando uma determinada palavra,


expressão ou sentença é repetida enfaticamente ao longo
dos segmentos textuais, com o fim de conferir “peso” a
uma idéia e realçá-la, ou, ainda, por meio da gradação,
revelada numa dada seqüência textual. Vejamos os frag-
mentos que se seguem:
(14) “... Tudo foi dado a eles: o sacrifício de direitos, o sacrifício de milhões
de empregos, o sacrifício de incontáveis empresas brasileiras, o
sacrifício da legitimidade do congresso, o sacrifício do patrimônio
nacional, o sacrifício da Constituição. E eles quebraram o país...
liberando o valor do dólar em relação ao real. Ou seja, desvalorizando ainda
mais o real...” (FREITAS, J. de. Folha de S. Paulo, 17/02/1998);

(15) “... O bicho não era um cão


não era um gato
não era um rato
O bicho, meu Deus, era um homem” (BANDEIRA, 1967).

6. Ainda um outro modo de exprimir intensidade é através


de proposições indiretas ou de implícitos, cujo signifi-
cado intensivo é extraído por inferência. Observem-se os
trechos a seguir:
(16) “Quando eu tentei ouvir pela primeira vez o Pierrot Lunaire de
Schoenberg senti um incômodo profundo.
Nada, nem o mais selvagem Death Metal ou o Hard Core mais
feio, sujo e malvado, se compara a [sic] devastação interior daquela
composição.” (CAPISTRANO, P. Metropolitano, 15/04/2005, p. 2);

(17) “Frio, cruel e insensível. Se o mocinho é assim, imagina como são os


bandidos.
‘A Missão’ com Robert de Niro.” (Isto É, 25/06/97, p. 137).

No fragmento (16), deduz-se que a composição Pierrot


Lunaire, de Schoenberg, é infinitamente mais devastadora se
comparada mesmo ao mais selvagem Death Metal ou ao Hard Core
mais feio, sujo e malvado. No trecho (17), o que se depreende a
partir da informação imagina como são os bandidos, tomando como
base o que foi declarado antes, é que eles são bem piores (isto
é: excessivamente mais frios, mais cruéis e mais insensíveis) do
que o mocinho.
Fica, portanto, evidente que o recurso à intensificação nem
sempre se processa de modo explícito, codificado diretamente
por meio de uma expressão lingüística denotativa. Significa que,
nesse caso, o falante conta com a capacidade dedutiva/inferencial
do interlocutor para apreender o conteúdo intensivo significado,
abstraindo-o de determinadas pistas deixadas no texto.
A motivação icônica observada nas estratégias de inten-
sificação reside em sua dimensão metafórica, que tem como
fundamento a percepção sensorimotora resultante de nossas

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José Romerito Silva

experiências com o mundo físico e sociocultural, conforme


abordado anteriormente. Explicando: a ênfase sonora, o alon-
gamento silábico e os demais recursos de acréscimo estrutural
representam, na verdade, uma analogia aos conceitos básicos
de peso/força, quantidade, tamanho/dimensão, espaço/distância e
sensações/estados bio-físicos ou psico-afetivos, derivados da relação
corporal do indivíduo com o espaço, seres, objetos e/ou situações
com que está em contato, numa tentativa de “imitar” expressiva-
mente, a partir dessas noções, a idéia de intensividade (LAKOFF;
JOHNSON, 2002).
Note-se que, no caso específico do português, uma quanti-
dade considerável das formas intensificadoras emergem direta-
mente dessas conceptualizações básicas. Quanto à transferência
metafórica proveniente da idéia “+concreta” de peso/força, pode
ser encontrada em palavras que exprimem essa noção, como pe-
sado, potente, poderos(o)/amente, reforçado, forte/mente, insuportável/
mente e similares, além daquelas expressas através da sobrecarga
fonética (intensidade prosódica) já demonstradas anteriormente.
Também pode ser percebida em expressões nas quais o falante
imprime maior carga tônica (ou seja, “peso” sonoro) a uma de-
terminada sílaba, para intensificar uma certa noção.1 Isso porque,
do ponto de vista físico, as coisas mais pesadas são vistas com
maior destaque em comparação com outras mais leves, uma vez
que demandam maior esforço de nossa parte para segurá-las
ou movê-las. Além disso, elas se impõem como merecedoras
de “consideração” especial, uma vez que se sobrepõem à nossa
capacidade física, oferecendo resistência a sua manipulação ou
remoção (os exemplos 1.(03) – gosTOOOOOsa – e 1.(04) – GA-TÉ-
SI-MO –, na p. 8, ilustram bem isso).
Como o recurso à intensificação é um esforço de nossa
parte em impor sobre o interlocutor o nosso ponto de vista sobre
algo e convencê-lo quanto à validade de nossa argumentação,
a sobrecarga fonética conferida ao item que queremos destacar
funciona como uma espécie de suporte de poder à idéia/concep-
ção que desejamos seja percebida como verdadeira, importante
1
Creio que seja esse (a
sobrecarga sonora) um e digna de aceitação (cf. MARMARIDOU, 2000).
dos motivos pelos quais Com relação à metáfora de quantidade, observem-se pa-
as formas em -íssimo, -ér-
rimo, -ésimo são sentidas lavras/expressões analíticas intensificadoras como quanto,
como mais intensivas do
que suas “equivalentes”
tão/tanto, muito, mais,2 demais, bastante, abastado, fart(o)/ amente,
analíticas. abundante/mente, copios(o)/amente, profuso/em profusão, pouco,
2
Na verdade, mais (de menos, além da conta, de mão cheia, um bocado (de), uma porção de,
mag is) tem a mesma
raiz de magno (gran- ou os sufixos -udo, -dor, -eiro(a)/-aria, além de outros, em que se
de), isto é, mag. Sendo
assim, observamos a
incluem referências hiperbólicas numérico-quantitativas, cujos
íntima relação entre as conceitos são construídos a partir do que é quantitativamente
noções de tamanho e
quantidade; quer dizer, o perceptível. Essa noção “concreta” é, portanto, transferida ana-
que é numeroso é tam- logicamente para significar aquilo que nos parece além do seu
bém percebido como de
maior dimensão/massa estado entendido como normal.
material.

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Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

A metáfora de tamanho/dimensão pode ser encontrada em


diversos exemplos. Entre eles estão as palavras exager(o)/ad(o)/
amente, grand(e)/ioso, gigante/sco, imens(o)/amente, enorme/mente,
ampl(o)/amente, larg(o)/amente; alt(o)/amente, vasto, grosso, o radical
magno (formador de palavras, como magnífico, magnitude, maior,
major/itariamente), baixo, pequeno, menor, diminuto; também os prefi-
xos mega-, macro-, maxi-, micro- e mini-; os sufixos -aço, -inho e -ão;3 a
forma senhor(a),4 ou expressões como de montão, um monte de, uma
montanha/pilha de. Todas essas formas, que são utilizadas para
mencionar grandezas em referentes “concretos”, são aproveita-
dos por similaridade conceitual para intensificar noções mais
abstratas de propriedades, valores (em substantivos/adjetivos)
e circunstâncias (em verbos/advérbios). Outra amostra desse
conceito é bastante evidente nos casos de alongamento formal,
seja no exagero da extensão silábica (isto é, no prolongamento
sonoro) ou nos exemplos em que se majora a codificação mórfi-
ca e/ou sintática, através do acréscimo/repetição de morfemas
presos ou dependentes. Nesse caso, ocorre, ao mesmo tempo, a
metaforização das noções de quantidade e tamanho, pelo fato óbvio
de ter havido acréscimo tanto do número de formas utilizadas
como no conseqüente crescimento estrutural da expressão. Os
exemplos a seguir corroboram as idéias defendidas nesses dois
últimos parágrafos:
(18) “Resultado mais efetivo ainda traria o anúncio de que o capturado
fora o próprio Saddam... Uma mentira a mais, uma a menos, não faz
diferença.” (TOLEDO, R. P. Veja, 10/09/2003, p. 122.);

(19) “Se tanto falaram nos sósias, por que não ir atrás deles? A captura
de um sósia do ex-ditador [Saddam Hussein], de perfil igualmente
rechonchudo, o bigodão espesso e o jeito absurdamente bonachão, para
alguém com as mãos tão manchadas de sangue,...” (ibidem);
3
Vale notar que -inho,
por sua relação com
pequenez, em geral apa- (20) “Uma noite, by Olimpo, das mais agradáveis... Que saudade! Adroaldo
rece como intensivo as- Carneiro foi – queridíssimo, Aladim! E Tony Glamour, metiiiido,
sociado a palavras cuja todo pé-de-alface!... Betíssima Almeida, linda! Linda! Linda! E Rita
noção indica direção Macedo – que astral, que charme!... Henrique Fonseca e Terezérrima,...”
para menos (como em
pequenininho, cedinho) E muito, muito mais.” (SABOYA, C. de. Diário de Natal, 09/10/2004,
ou valor negativo; no p. 3).
caso de -ão, a idéia in-
tensiva combina-se com
lexemas que denotam Observe-se que, em (18), o primeiro mais – reforçado por
direção para mais ou ainda – revela intensificação, enquanto o segundo denota inequi-
valor positivo (como em
grandão, bonitão etc.). vocamente quantidade, incluindo aí, também, menos. No frag-
4
Nesse caso, a relação mento (19), no início, tanto carrega um sentido mais quantitativo;
não é apenas quanto ao
maior taman ho, mas já na segunda vez (tão) encerra uma idéia intensiva. Do mesmo
também por ser mais modo, o primeiro -ão (em bigodão) expressa a noção de tamanho;
velho e dar a noção de
poder. Como exemplo, no segundo emprego (em bonachão), denota claramente intensi-
tem-se: “A banda [Mo-
tim] leva uma senhora
dade. No trecho (20), o primeiro mais é intensivo; o segundo dá
vantagem em relação aos a idéia de mais informação/novidade sobre os acontecimentos
g rupos mais jovens”
(Jornal Hoje. TV Globo, da noite anterior. Nas demais formas, vemos o alongamento si-
06/07/2004). lábico em metiiiido; os acréscimos morfológicos em queridíssimo,
Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006 209
José Romerito Silva

Betíssima e Terezérrima; e o aumento sintático, através da repeti-


ção enfática em linda! Linda! Linda! e muito, muito. Temos nessas
amostras, sem dúvida, evidências da extensão metafórica, nas
quais foram convocadas as respectivas noções mais “concretas”
de quantidade e tamanho.
Esse mesmo procedimento é também comum em outras
línguas. Por exemplo:
 s’i(n) = pequeno > s’i(n) s’i(n) = muito pequeno (extraí-
do do xipaya, língua indígena brasileira. CÂMARA JR,
1989);
 lapun = velho > lapunpun = muito velho (língua pidgin
da Nova Guiné. PETTER, 2003).
O conceito metafórico de espaço/distância – vertical ou
horizontal – é encontrado nos prefixos sub-, sobre-, super-, supra-,
hiper-, arqui-, ultra-, extra-, ex- (presente na idéia intensiva de em
excesso/iv(o)/amente, excepcional, exacerbado), ou em palavras/ex-
pressões como além, de longe, pra lá de... e similares. Há ainda os
lexemas intensivos, como sum(o)/amente, supremo, superior, elevado,
profund(o)/amente, abissal, extrem(o)/amente, avançando, avantajado,
um primor (de), primoroso também relacionados à metáfora es-
pacial. Outros que também se relacionam a localização são os
que se referem ao espaço sideral, como estratosférico, exorbitante,
astronômico (este mais relacionado a grandeza), por designarem
distância para além dos limites terrestres. Vejamos os seguintes
exemplos:
(21) “... você vê que a gente adota um pre/ elege um presidente... ele não
é solução pros nossos problemas... pelo contrário... a gente pensa que
vai ser... mas aí dificulta mais as coisas... o salário diminui... as coisa
aumenta... a inflação sobe lá pra cima... pronto... sobe lá pra cima... olha
que coisa... vai subir pra onde? pra baixo? mas... a... é uma situação
super difícil sabe? super difícil mesmo...” (Corpus D&G, 1998, p. 255-6);

(22) “Apesar do eleitorado feminino ser infinitamente maior, nenhuma


mulher assumirá, no próximo ano uma cadeira na Câmara.
- O que é profundamente lamentável.” (SABOYA, C. de. Diário de Natal,
09/10/2004, p. 3);

(23) “Juros altos são resultado da falta de confiança na capacidade do


Estado de saldar seus débitos. O Estado deve muito, gasta mais do que
arrecada e tenta arrecadar cada vez mais para poder gastar o que não
tem. O ciclo é infernal. (...) Dívida elevada, carga tributária excessiva, leis
trabalhistas retrógradas, burocracia enlouquecedora, ritos jurídicos e
judiciários desanimadores, rombo na Previdência.” (ALVARENGA, T.
Veja, 04/05/2005, p. 64).

Deve-se registrar também o prefixo -infra, que exprime a


noção de posicionamento inferior. No entanto, embora pouco
comum, foi utilizado no seguinte excerto, metaforicamente, com
noção intensiva: “... que era uma vida infra-humana que levava.”
(INQ356, INF452, apud LOPES, 2000, p. 5).

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Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

Um dado interessante sobre analogia a partir da noção


espacial é fornecido por Ribeiro (1956, p. 331). O que se vê nos
registros desse autor parece demonstrar que já era comum,
na língua latina, o uso de palavras/expressões indicativas de
intensidade como extensões metafóricas de significados mais
concretos. É o caso, por exemplo, de longe – designativo de lugar
distante – apresentado a seguir:
(24) “Longe nobilissimus et ditissimus apud Helvetios.”.

Said Ali (1971, p. 84) cita um caso do período renascentista


que evidencia igual procedimento com relação a extremo:
(25) “Os quaes peixes são muy peçonhentos por extremo.”

Ainda sobre a utilização da idéia espacial para indicar


intensidade é o que vemos no exemplo fornecido por Schachter
(apud ROSA, 2000, p. 93), encontrado no haússa, língua afro-
asiática falada principalmente na Nigéria:
(26) “Ya fi ni hankali (literalmente: “Ele me ultrapassa em inteligência”,
isto é, “Ele é mais inteligente que eu”).

Há também uma relação metafórica em vocábulos inten-


sivos que têm como fundamento semântico a experiência física
visual. São eles, por exemplo, deslumbrante, admirável/mente, um
espetáculo/espetacular, uma maravilha e maravilhos(o)/amente. Estes
vinculam-se à idéia de alguém ficar perplexo diante de algo vi-
sualmente impactante. Compare-se com os exemplos, os quais
atestam essa tendência já num período mais antigo da língua.
(27) “Quando Lançalot e Persival viram esta aventura, foram mui muito
maravilhados,...” (RIBEIRO, 1956);

(28) “... E elle era muy velho a maravylha.” (RIBEIRO, 1956).

Essa prática é confirmada também por Mattos e Silva (1984,


p. 207-8):
(29) “Mata mui grande e mui basta a maravilha.”

Existem outras amostras intensivas derivadas das metá-


foras de sensações/experiências físicas, tais como, por exemplo,
trabalho extenuante, calor sufocante, cheiro inebriante, barulho
ensurdecedor, beleza estonteante, vista de tirar o fôlego, brilho
ofuscante, frio de arrepiar, debate acalorado, ciúme doentio,
desejo ardente, crescimento vertiginoso, diferença que salta aos
olhos (algumas dessas até já um tanto clicherizadas). Também
encontramos, além dessas, outras expressões intensivas que, do
mesmo modo, provêm de noções ancoradas nas experiências
biofísicas, tais como feio que dói, podre de rico, lindo de morrer e
outras mais.
As intensificações em que se empregam expressões com
bem, bom, ruim, ótimo, péssimo, pavor/oso, medonho, estarrecedor,
Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006 211
José Romerito Silva

hediondo, um terror (de)/terrível/mente, um horror (de)/ horrível/


mente, assustador/amente, assombros(o(/amente, espantos(o)/amente,
tremend(o)/ amente, entre outras, refletem as metáforas de sen-
sações/estados psicoafetivos. Estas estão, em geral, associadas às
experiências básicas de bem-estar/satisfação físico(a) que nos
proporcionam benefício/prazer ou de desconforto/desagrado/
perigo/medo diante de algo poderoso e ameaçador que possa
trazer algum dano a nossa integridade física.
É digno de nota que, neste caso, o mesmo padrão exibido
no português contemporâneo e no inglês também se encontra,
por exemplo, no hebraico antigo. Comparem-se os exemplos a
seguir:
(30) terrify, terrific, terrible = atemorizar, espantoso, demasiadamente:
• to be terrified of = ter medo de/ficar atemorizado com (noção +/-
concreta de base psico-física);
• in a terrible hurry = com muita pressa/estar apressado demais;
• at a terrific velocity = numa velocidade espantosa/em alta
velocidade (nas duas últimas expressões, os vocábulos têm valor
intensivo).

(31) tremendous, astounding = tremendo, espantoso, assombroso:


• “... it is a tremendous store of heat called geothermal energy.” = “... é
uma tremenda reserva de calor chamada energia geotérmica”;
• “An astounding amount of energy indeed!” = “Uma espantosa
quantidade de energia, de fato!” (Exemplos extraídos de Awake!.
August 8, 2002, p. 13-15).

(32) ‫( ירא‬yare’) = temer, aterrorizar, assombroso, tremendamente:


• E temendo disse: Quão temível é este lugar!... – Gen. 28:17 (noção
psicológica “+concreta”);
• ... visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste;...
– Sal. 139:14 (exprime intensidade).

Essa tendência de transferir conceitos fundamentados na


experiência com o mundo concreto (como as noções de tama-
nho/dimensão, quantidade, localização espacial – de distância
ou altura –, peso/força etc) para a esfera mais abstrata da in-
tensificação é observada, conforme já demonstrado, em outras
línguas. Vejamos mais alguns casos:
1 - em alemão:
(33) sehr = muito:
• Das Glas ist sehr voll = O copo está muito cheio (quantidade
+concreta);
• Ich bin sehr krank = Eu estou muito doente (designa intensidade).

212 Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006


Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

(34) wenig = pouco:


• Ich habe wenig Geld = Eu tenho pouco dinheiro (noção quantitativa
+concreta);
• Ich habe wenig Zeit = Eu tenho pouco tempo (idéia intensiva +
abstrata).

(35) groß = grande:


• Das Haus ist groß = A casa é grande (noção +objetiva de tamanho);
• Ich habe ein großen Bruder = Literalmente: Eu tenho um irmão maior,
ou seja: Eu tenho um irmão mais velho (todos esses foram exemplos
fornecidos por falantes nativos).

É interessante notar, nesse último exemplo, a idéia intensiva


de mais idade/ser mais velho deriva da noção de grandeza, uma vez
que, segundo nossa experiência objetiva, aquele que é mais velho é,
em geral, também maior em tamanho.
2 - em mandarim:
(36) hĕn = muito(s), bastante(s)
• fáng zi lĭ rēn hĕn duō = Há muitas pessoas na casa (quantidade
; observável)
• tā gè zi hĕn gāo = ele é muito alto (idéia intensiva) – (exemplos
coletados de falantes nativos).

3 - em japonês:
(37) ippai = muito(s), bastante(s), demais
• ippai daigakusé ga = muitos alunos universitários (noção quantitativa);
• ippai muzukashii = muito difícil (exprime intensidade) – (exemplos
coletados de um falante nativo).

4 - em húngaro:
(38) nagy = grande, muito, demais:
• nagy ház = casa grande (noção de tamanho/grandeza);
• nagyon yó = muito bom (idéia intensiva).

(39) túlon = além, demasiadamente:


• a határi túlon magyarok = aos húngaros além da fronteira (localização
horizontal, indicando distanciamento);
• túlontul átpolitizálunk = politizados por demais (idéia intensiva)
– (Nepszava, 2004. Május 1, Szombat).

5 - no grego koinê – variante popular falada no início da era


cristã (ALAND et. al., 1970):
(40) πολυ (polú) = muito(s), mais, bastante(s), demais:
• expeliam muitos demônios e curavam numerosos enfermos,... – Mar.
6:13 (denota quantidade);
• ... um vaso de alabastro com preciosíssimo perfume de nardo puro;...
– Mar. 14:3 (idéia intensiva).

Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006 213


José Romerito Silva

(41) επι (epi) = sobre, em cima/acima de, demasiadamente, intensamente:


• ... viram Jesus andando por sobre o mar... – Jo. 6:19 (localização
vertical);
• ... Tenho desejado intensamente comer convosco esta páscoa,... – Luc.
22:15 (idem).

(42) υπερ (húper) = sobre, acima de, além, mais:


• Não ultrapasseis o que está escrito, a fim de que ninguém se
ensoberbeça... – I Cor. 4:6 (localização horizontal e intensificação,
respectivamente);
• São ministros de Cristo?... Eu ainda mais... em açoites, além da
medida;... – I Cor. 11:23 (ambos denotam, respectivamente intensidade
e quantidade).

(43) µεγα (mega) = grande, intenso:


• ... e saiu grande voz do santuário,... e ocorreu grande terremoto... e a
grande cidade se dividiu em três partes,... e lembrou-se Deus da grande
Babilônia,... porquanto o seu flagelo era sobremodo intenso. – Apoc.
16:17-21 (noções de intensidade nas duas primeiras ocorrências e na
última; na terceira, a idéia é de tamanho físico; e na quarta, parece
misturarem-se os sentidos intensivos de grandeza/dimensão tanto
física quanto em importância econômica, política e sociocultural).

6 - no hebraico antigo (HARRIS, 1998):


(44) ‫( גדול‬gadowl) = grande, alto, muito(s), mais, intenso:
• Fez Deus dois grandes luzeiros: o maior para governar o dia, e o
menor para governar a noite... – Gên. 1:16;
• ... Amnom sentiu por ela [sua irmã] grande aversão, e maior era a
aversão que sentiu por ela que o amor... – 2 Sam. 13:15.

(45) ‫( מאד‬me’od) = numeroso, muito(s), (o) mais, excessivamente:


• E o homem [Jacó] se tornou mais e mais rico; teve muitos rebanhos,...
– Gên. 30:43 (intensidade e quantidade, respectivamente);
• ... tu [Jônatas] eras amabilíssimo para comigo!... – 2 Sam. 1:26 (idéia
intensiva).

(46) ‫‘( על‬al) = sobre, acima, por cima de, além, mais, extremamente:
• ... do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do testemunho,
falarei contigo... – Ex. 25:22 (exprime localização vertical);
• “Pois tu, Senhor, és o Altíssimo sobre toda a terra; tu és sobremodo
elevado acima de todos os deuses.” – Sal. 97:9 (noções de superioridade
e de intensidade).

7 - O inglês é, em igual medida, pródigo nesses casos. Em


apenas um texto (Awake! August 8, 2002, p. 13-15) – sobre
energia geotérmica –, colhi as seguintes amostras:

214 Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006


Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

(47) huge = enorme, imenso, (em tamanho físico, importância ou valor):


• ... estas presilhas permitem a expansão e a contração dos enormes
tubos enquanto eles aquecem e esfriam. (expressa a idéia de
tamanho físico);
• Sob a superfície da terra repousa um enorme tesouro... é um
tremendo estoque de calor chamado energia geotérmica. (noção
metafórica de grandeza).

(48) large = grande (em dimensão física ou em termos metafóricos):


• ... Awake! visitou uma grande usina geotérmica chamada Mak-Ban,
na província filipina de Laguna. (exprime a idéia de dimensão
física);
• … as Filipinas tem se tornado um dos maiores produtores mundiais
de energia de fonte geotérmica. (grandeza intensiva).

(49) much = muito (em quantidade material ou em intensidade):


• ... Nós geramos tanta água quente e calor a cada hora que é necessário
injetar água separa de volta para o reservatório do solo... (noção de
quantidade material);
• Mas, no subsolo, as pressões são muito mais altas... (expressa
intensidade).

(50) more = mais (em quantidade material ou em intensidade):


• Mais tubos podem ser vistos trazendo vapor dos poços… (idéia de
quantidade material);
• Os desenvolvimentos futuros, sem dúvida, nos ajudarão a ver como
usar nossos tesouros mais beneficamente... (noção intensiva).

Há outros vocábulos cujas noções relacionadas a conceitos


“+concretos” se estendem igualmente para designar intensidade
abstrata. Podem ser incluídos nesse caso o que se vê em constru-
ções como top secret (super secreto), high tech (alta tecnologia), low
carb (alimentos com baixo teor de carboidrato), light food (comida
leve, ou seja, com pouca caloria), deep impact (impacto profundo),
broadminded (literalmente: com mente larga, isto é, de mentalidade
aberta/liberal), entre outras.
Ainda quanto a isso, vejam-se os trechos a seguir, retirados
do trabalho de Marmaridou (2000), quanto ao uso metafórico de
far (distante), wide (largo), large (grande) e strong (forte):
(51) A presente análise experiencialista de fenômenos pragmáticos é
amplamente justificada por questões similares na pesquisa atual,
indicando um interesse maior na conceitualização do sentido
pragmático. (p. 275);

(52) Acredita-se que o método experiencialista proposto, ainda que


largamente articulado na base dos dados construídos, não obstante,
encoraja fortemente – na verdade, exige –... (p. 279).5

5
Os exemplos nos ca-
sos (47) a (52), p. 20-
22, são todos traduções
minhas.

Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006 215


José Romerito Silva

Conclusão
Essas poucas amostras ajudam-nos a perceber a motivação
cognitiva que embasa a formação de intensidade. Tais configura-
ções lingüísticas vêm confirmar a idéia de que a intensificação,
do mesmo modo que muitas outras noções, é expressa em termos
metafóricos, cujo fundamento se encontra nas relações analógi-
cas operadas cognitivamente entre domínios da nossa relação
corporal (e, portanto, concreta) com o mundo físico-social em
que estamos inseridos e outros de natureza mais abstrata. Nesse
sentido, podemos facilmente recuperar as associações semân-
tico-metafóricas estabelecidas entre as formas intensificadoras
expostas e as respectivas noções de peso/força, tamanho/di-
mensão, quantidade, espaço, impacto visual, sensações/estados
psicoafetivos de base experiencial mais concreta.
O mais interessante nisso é que, mesmo considerando-se
o fato de que as metáforas não estão estocadas a priori na mente
dos falantes, sendo, portanto, construídas nos ambientes socio-
culturais específicos da cada comunidade de fala, a codificação
intensiva parece evidenciar, translingüisticamente, uma espécie
de padrão cognitivo mais ou menos comum, apontando, rela-
tivamente, para as mesmas noções básicas das quais deriva.
Quer dizer, para exprimir intensidade, os locutores lançam mão
dos mesmos recursos metafóricos em maior ou menor grau de
semelhança, ou seja, apóiam-se quase nas mesmas analogias
experienciais fundantes. Isso pode sinalizar que, muito prova-
velmente, existam esquemas metafóricos mais relacionados com
nossa própria maneira de ser e de estar no mundo, independente
das especificidades culturais e lingüísticas.

Abstract
The present paper aims to focuse the semantic
and cognitive aspects of the intensity processes.
Thus takes the theoretic accounts of Cognitive
Semantics, to which language encodes the cogni-
tive schemas structured from our experience with
reality. Linguistic symbols reflect the metaphorical
combinations between more “concrete” domains,
acquired from the way how we conceptualize
our relation with the world, and those of more
abstract nature. From this point of view, we
claim that intensifiers are mostly metaphorical
constructions based on analogical relations with
some more “concrete” concepts such as quantity,
size/dimension, localization (horizontal or verti-
cal), weight/strength and so on.
Keywords: intensity – cognitive semantics
– metaphor.

216 Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006


Aspectos semântico-cognitivos da intensificação

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218 Niterói, n. 21, p. 201-218, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos
marginais de formação de
palavras em português
Carlos Alexandre Gonçalves
Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Resumo
Estudo dos processos não-concatenativos do portu-
guês brasileiro, com base na morfologia prosódica
(McCARTHY, 1981, 1986). Descrição do formato
morfo-prosódico da reduplicação, do truncamento,
da hipocorização e do blend lexical.
Palavras-chave: morfologia não-concatenativa;
interface fonologia-morfologia; morfologia pro-
sódica.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Carlos Alexandre Gonçalves

Introdução
O objetivo deste texto é mostrar que o português, apesar de
ser uma língua de morfologia predominantemente aglutinativa,
também faz uso de processos não-concatenativos (McCARTHY,
1981) para ampliar seu vocabulário ou para expressar carga emo-
cional variada. Proponho que essas operações morfofonológicas
sejam distribuídas em três grupos: (a) processos de afixação
não-linear (reduplicação), (b) de encurtamento (truncamento e
hipocorização) e (c) de fusão (mesclagem lexical e siglagem).
Não descritos de forma sistemática em nossa língua e in-
terpretados como irregulares pela maior parte dos estudiosos
que lhes dedicaram alguma atenção (ROCHA, 1998; FREITAS,
1998; LAROCA, 1994; SANDMANN, 1990; BASÍLIO, 1987), os
chamados processos marginais de formação de palavras encon-
tram guarita em abordagens não-lineares, como a morfologia
prosódica (McCARTHY, 1986; McCARTHY; PRINCE, 1990), e
podem ser considerados circunscritivos (LACY, 1999): inteira-
mente desprovidos de conteúdo subjacente, têm materialização
segmental resultante da delimitação de um domínio sobre a(s)
base(s) e tamanho determinado por restrições sobre a forma
prosódica.
Na história da morfologia, processos não-concatenati-
vos – os “mal-comportados da formação de palavras” por não
se ajustarem bem ao modelo Item-e-Arranjo (JENSEN, 1991)
– foram diretamente responsáveis pelo esvaziamento da noção
de morfema, que de “coisa” também passou a ser interpretado
como “regra”. A razão desse mal-comportamento, mostra Spen-
cer (1991, p. 133), repousa no fato de tais operações não constitu-
írem morfologia pura, mas morfologia que requer acesso a informações
prosódicas, resultando da integração de primitivos morfológicos
(radical, afixo) com primitivos prosódicos (mora, pé).
Com o advento das fonologias não-lineares, operações não
processadas pela adjunção sintagmática de morfemas foram
progressivamente ganhando destaque, passando de morfologia-
fundo à morfologia-figura. Desde McCarthy (1981) – abordagem
pioneira sobre a infixação em árabe a partir do padrão CCC de
raízes –, vem crescendo o interesse por processos não-concate-
nativos: diversas análises sobre reduplicação, infixação e ablaut
proporcionaram o rápido desenvolvimento da morfologia pro-
sódica (McCARTHY, 1986) e, nos dias de hoje, operações desse
tipo são de interesse central na chamada “teoria da correspon-
dência” (McCARTHY; PRINCE, 1995), uma extensão da “teoria
da otimalidade” aplicada à morfologia (BENUA, 1995).
Pesquisas sobre fenômenos não-aglutinativos são vitais
para a consolidação da teoria da correspondência, cuja relevân-
cia vem sendo questionada nos últimos anos (HALE; KISSOCK;
REISS, 2000 ; WALTHER, 2001). Está sendo posta em xeque a

220 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

co-existência de vários conjuntos de restrições de fidelidade


numa gramática – input – output (McCARTHY; PRINCE, 1993),
output-output (FUKAZAWA, 1997), base-reduplicante (McCAR-
THY; PRINCE, 1995) e base-truncamento (BENUA, 1995). Para
resolver esse impasse, processos de cópia, como os analisados
neste texto, vêm emergindo da obscuridade e ocupando lugar
de destaque na lingüística contemporânea.
No presente artigo, além de salientar que a morfologia
portuguesa não se organiza unicamente pela sucessão linear de
formativos, busco: (1) mapear as estratégias não-aglutinativas
utilizadas com função lexical ou expressiva no português bra-
sileiro; (2) mostrar como elas se manifestam em nossa língua;
(3) apresentar os dispositivos morfo-prosódicos ativados por
elas; e, por fim, (4) argumentar em favor do reconhecimento de
três tipos básicos de processos – os de afixação não-linear, os de
encurtamento e os de fusão.
Esta abordagem, que deve ser interpretada como descri-
tiva, não propõe uma análise dos fenômenos à luz da teoria da
correspondência, o que é feito em Gonçalves (em preparação).
Com o intuito de refutar a idéia de que as construções aqui exa-
minadas são “imprevisíveis” (SANDMANN, 1990), “não-susce-
tíveis de formalização” (LAROCA, 1994) ou mesmo “processos
marginais de formação de palavras” (ALVES, 1990), utilizo a
morfologia prosódica (McCARTHY; PRINCE, 1990) para iniciar
uma descrição da contraparte não-concatenativa da morfologia
portuguesa.
O texto aparece estruturado da seguinte maneira: na seção
1, listo e exemplifico os processos que considero não-aglutina-
tivos em português, com ênfase em sua latitude funcional. Na
seção seguinte, destaco as semelhanças e as diferenças entre
eles, analisando o formato morfo-prosódico de cada um. Por fim,
elenco as principais conclusões do trabalho (seção 3), apresen-
tando as motivações que me levaram a distribuir as operações
nos grupos acima mencionados.
1. Processos não-lineares do português brasileiro
Estudos sobre o português, tradicionalmente alicerçados
na noção de “item”, tendem a conceber a morfologia como um
módulo sintagmaticamente determinado pelo encadeamento
de formativos. Sem dúvida alguma, o português é uma língua
que se ajusta bem a uma descrição que isola entidades morfo-
lógicas, uma vez que a grande maioria das operações é, de fato,
aglutinativa. Flexão (feliz-es), sufixação (pagod-eiro), prefixação
(in-certo), composição (puxa-saco) e circunfixação (des-alm-ado)
são processos que se manifestam pela concatenação de afixos
ou de radicais, de modo que há condições ótimas para a isola-
bilidade de morfemas.

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 221


Carlos Alexandre Gonçalves

No entanto, há processos que, mesmo considerados mar-


ginais, dão mostras de que o português, sobretudo o brasileiro,
também faz uso de expedientes morfo-prosódicos para formar
uma nova palavra ou para externar o ponto-de-vista do falante a
respeito de algo ou alguém.1 Esses processos são os seguintes:

1.1 Reduplicação
Em Couto (1999), encontra-se uma coleção de processos
de reduplicação utilizados no português do Brasil. Dessa lista,
duas operações são particularmente produtivas: (i) a cópia da
sílaba tônica de prenomes para formar hipocorísticos (primeira
coluna de 01) e (ii) a reprodução de todos os elementos de um
verbo para formar um substantivo, na grande maioria das vezes
lexicalizado (segunda coluna).
(1) Fátima > Fafá Puxa-puxa ‘doce’
Angélica > Gegé Bate-bate ‘carrinho de autopista’
Carlos > Cacá Pega-pega ‘brincadeira infantil’
Barnabé > Bebé Lambe-lambe ‘máquina fotográfica’
André > Dedé Pula-pula ‘brinquedo de parque
de diversão’

Por copiar segmentos de uma base, o reduplicante não


apresenta conteúdo segmental. Dessa maneira, o morfema re-
duplicativo pode ser considerado subespecificado, codificando
nada além de uma representação prosódica. Embora envolvam
reduplicação, os dados de (01) diferem em vários aspectos. A
primeira coluna exemplifica casos de cópia parcial (apenas
parte da base é reproduzida), enquanto a segunda ilustra casos
de cópia total (a palavra é reduplicada por inteiro). Além dis-
so, a circunscrição – procedimento analítico que delimita um
domínio prosódico sobre bases (McCARTHY, 1991) – funciona
1
De acordo com Rio-
Torto (1998), processos como um alvo para o qual segmentos melódicos são mapeados,
como a mesclagem le-
xical (‘chafé’) e o trun-
na segunda coluna: o reduplicante é anexado à palavra-matriz.
camento (‘vagaba’) não Nos hipocorísticos, ao contrário, a circunscrição funciona como
têm qualquer paralelo
no português europeu.
um delimitador que efetivamente reduz a base ao tamanho de
Em Araújo (2000), en- uma sílaba, que será posteriormente reduplicada.
contra-se uma discussão
pormenorizada das di- Do ponto-de-vista semântico, a reduplicação que caracteri-
ferenças entre a morfo- za os dados da primeira coluna deve ser vista não como processo
logia do PB e do PE. Em
linhas gerais, as duas que forma nova unidade lexical, uma vez que hipocorísticos e
variedades dispõem de
um conjunto nuclear
antropônimos diferem unicamente quanto ao valor estilístico/
de regras de formação contextual, funcionando, na verdade, como sinônimos. No caso
de palavras, mas o PB
lança mão de recursos au- dos verbos, há função sintática (mudança de classe) e, muitas
sentes na Gramática do PE vezes, o substantivo sinaliza uma ação continuamente repetida,
(ARAÚJO, 2000, p. 09).
Ao que tudo indica, os como se vê em (02), o que nos leva a interpretar a reduplicação
processos não-conca-
tenativos estão na base
como um morfema aspectual de iteratividade, seguindo Araújo
das diferenças entre as (2000).
duas variantes.

222 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

(02) corre-corre pinga-pinga


coça-coça empurra-empurra
beija-beija agarra-agarra
raspa-raspa roça-roça

1.2 Hipocorização
De acordo com Gonçalves (2001, p. 1), hipocorização é o
processo pelo qual nomes próprios são abreviados afetivamen-
te, resultando numa forma diminuta que mantém identidade com o
prenome ou com o sobrenome original. Hipocorísticos devem ser
interpretados, pois, como apelidos. Se, por um lado, hipocorís-
ticos são apelidos, por outro apelidos não são, necessariamente,
hipocorísticos. Em outras palavras, a seta que relaciona esses dois
conceitos não é bidirecional, uma vez que apelido, na qualidade
de hiperônimo, é, nas palavras de Monteiro (1987, p.187), termo
geral de que os hipocorísticos constituem espécie.
Para haver hipocorização, é necessário que o termo afetivo
apresente relação de correspondência com o prenome (GON-
ÇALVES, 2001), isto é, deve haver fidelidade suficiente para
que o antropônimo seja rastreado. Dessa maneira, ‘Chico’ é
hipocorístico de ‘Francisco’, mas não ‘Quino’, analisado apenas
como apelido.
Em Gonçalves (2001), apresenta-se uma lista de sistemas
de hipocorização encontrados no português do Brasil. O mode-
lo default, exemplificado em (03), preserva o acento lexical das
palavras-matrizes, escaneando, da direita para a esquerda, um
troqueu moraico. Se a sílaba final apresentar coda, o pé será mo-
nossilábico (coluna 1). Caso contrário, o troqueu será constituído
de duas sílabas leves (coluna 2).
(03) Raquel > Quel Felipe > Lipe
Irineu > Neu Marilena > Lena
Miguel > Guel Leopoldo > Poldo
Marimar > Mar Augusto > Guto
Marissol > Sol Fernando > Nando

2
Redução vocabula r Com função de atitude subjetiva (BASÍLIO, 1987), a hipoco-
(ALVES, 1990), abre-
viação (SANDMANN, rização não leva à formação de uma nova palavra, não apresen-
199 0), Braqu i s s em i a
(MONTEIRO, 1987) e
tando, portanto, função lexical. Por seu caráter essencialmente
retroformação (SÂN- afetivo, esse processo se assemelha à linguagem infantil, fazendo
DALO, 2001) são va-
riações terminológicas emergir formas não-marcadas (McCARTHY; PRINCE, 1994).
usadas para descrever
esse processo de forma-
ção de palavras que, ao 1.3 Truncamento
contrário da prefixação
e da sufixação, consiste Formações truncadas (04) sinalizam o impacto pragmático
na diminuição do cor-
po fônico da palavra
do falante em relação ao enunciado, ao referente ou ao interlocu-
derivante. tor. Dessa maneira, o truncamento2 pode ser concebido como re-
curso morfológico de natureza expressiva, estando relacionado,

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 223


Carlos Alexandre Gonçalves

portanto, à modalização apreciativa (LOURES, 2000), através da


qual o locutor imprime sua marca ao enunciado, inscrevendo-se,
explícita ou implicitamente, na mensagem.
(04) delega (delegado) salafra (salafrário) Maraca (Maracanã)
sapa (sapatão) analfa (analfabeto) estranja (estrangeiro)
cerva (cerveja) gurja (gorjeta) vagaba (vagabunda)

Como não há distanciamento de significado entre a parte (a


forma reduzida) e o todo (a palavra-matriz), pode-se dizer que o
truncamento não apresenta função lexical. De fato, formas como
‘comuna’ (por comunista) e ‘batera’ (por baterista) não têm por
finalidade a nomeação e/ou a caracterização de seres, eventos
ou estados. Tais construções têm a função de adequar a idéia
contida no item lexical às necessidades de utilização daquela idéia
– ou daquele item – para a formação de um tipo específico de enunciado
(BASÍLIO, 1987, p. 66). Em linhas gerais, formações truncadas são
responsáveis pela expressão do pejorativo, revelando o ponto-
de-vista do falante sobre o que diz, chamando atenção de seu
interlocutor para algo avaliado negativamente.
Como se vê em (04), o truncamento reproduz parte da
base, mas também se manifesta pelo acréscimo de uma vogal
final nem sempre existente na palavra-matriz (entre outros,
‘vestiba’, por ‘vestibular’, ‘estranja’, por ‘estrangeiro’, e ‘sarja’,
por ‘sargento’). A vogal -a funciona, pois, como uma espécie de
afixo de truncamento, que, por isso, pode ser considerado pro-
cesso simultaneamente não-concatenativo (cópia) e aglutinativo
(acréscimo de vogal final).

1.4 Mesclagem lexical


Também chamados de cruzamentos vocabulares (SAND-
MANN, 1990; SILVEIRA, 2002), palavras-valise (ALVES, 1990) e
misturas (SÂNDALO, 2001), mesclas lexicais são formas criadas
pela junção de duas palavras já existentes na língua, como se
vê em (05). Diferentes dos compostos, que tendem a preservar o
conteúdo segmental das bases (‘porta-luvas’ e ‘bóia-fria’), mes-
clas são caracterizadas pela interseção de palavras, de modo que
é impossível recuperar, através de processos fonológicos como
crase, elisão e haplologia, as seqüências perdidas.
(05) chafé (chá + café) sacolé (saco + picolé)
gayroto (gay + garoto) cariúcho (carioca + gaúcho)
cantriz (cantora + atriz) psicogélico (psicólogo + evangélico)
matel (mato + motel) apertamento (apartamento + aperto)

Como assinala Silveira (2002), a mesclagem, na grande


maioria dos casos, sinaliza o ponto-de-vista do emissor em rela-
ção ao objeto do enunciado, como em ‘tristemunho’ (‘testemunho’

224 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

+ ‘triste’), que externaliza a opinião do falante sobre o testemu-


nho, considerado difícil, penoso ou custoso. A pejoratividade
é, sem dúvida, o caso por excelência da expressão subjetiva do
falante (BASÍLIO, 1987). É nesse campo que as mesclas encontram
seu maior potencial de uso, revelando intenção depreciativa do
emissor, como ocorre em ‘crilouro’ (negro que se faz passar por
louro, tingindo os cabelos), ‘vagaranha’ (prostituta em excesso)
e ‘Chattoso’ (Mattoso Camara Jr., por sua obra, considerada
“chata” pelos alunos da Fac. de Letras da UFRJ).
A mesclagem, além de apresentar função discursiva,
também pode ser usada para formar novas unidades lexicais,
a exemplo do que ocorre com as já dicionarizadas ‘sacolé’ (um
tipo especial de picolé, em forma de saco) e ‘portunhol’ (mistura
de português com espanhol). Assim, esse tipo de processo, ao
contrário do truncamento e da hipocorização, também apresenta
função lexical, servindo para rotular e/ou caracterizar seres,
eventos ou estados.
Condições prosódicas devem ser satisfeitas no molde das
mesclas, de modo que o processo não é arbitrário, mas regido
sobretudo pela semelhança fônica entre as bases, como destaca-
rei na seção seguinte. A sistematicidade dessa operação só pode
ser observada na interação morfologia-prosódia, o que difere
mesclagem de composição, fazendo do primeiro uma operação
circunscritiva e do segundo um processo aglutinativo.

1.5 Siglagem
Siglagem, redução sintagmática (LAROCA, 1994), acro-
nímia (MONTEIRO, 1987) e abreviação (SANDMANN, 1990)
são termos que fazem referência a um processo que consiste
na combinação das iniciais de um nome composto ou de uma
expressão. Os dados de (06) evidenciam que o segmento inicial
pode ser um som ou uma sílaba.
(1) CUT (Central Única dos Trabalhadores)
BANERJ (Banco do Estado do Rio de Janeiro)
EMBRATEL (Empresa Brasileira de telecomunicações)
PT (Partido dos Trabalhados)
CDF (Cabeça de Ferro)

Uma vez criados e difundidos, os acrônimos passam a ter


autonomia em relação ao sintagma que lhes deu origem. Muitas
vezes, o falante, apesar de reconhecer o significado do acrônimo,
não consegue rastrear a expressão original, analisando a sigla
como palavra primitiva. Sendo passíveis de receber afixos, como
em (07), acrônimos podem formar derivados, o que comprova ser
a siglagem um processo em que predomina a função lexical.

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 225


Carlos Alexandre Gonçalves

(2) PT – petista, pró-PT, petice, petismo


AIDS – aidético, anti-AIDS
MOBRAL – mobralense, pré-Mobral
UFO – ufólogo, ufologia

O distanciamento das formas de base advém da pequena


relação de identidade entre a sigla e a expressão, uma vez que
apenas a seqüência inicial é copiada. Em decorrência, é grande a
probabilidade de o acrônimo suplantar de vez o sintagma-base,
a exemplo do que vem ocorrendo com CPF (abreviação de ‘ca-
dastro de pessoas físicas’), que já não mantém qualquer relação
de correspondência com a expressão que lhe deu origem.
Na próxima seção, procuro mapear as semelhanças e as
diferenças entre as operações ora apresentadas. Para tanto, pro-
ponho um formato morfo-prosódico para cada uma, utilizando
a circunscrição – procedimento amplamente difundido no
paradigma da morfologia prosódica (MAcCARTHY; PRINCE,
1990).
2. Sobre o formato morfo-prosódico dos processos
Os processos listados e exemplificados ao longo da seção
1 são considerados não-concatenativos pela falta de encadea-
mento. De fato, as bases não são modificadas pelo acréscimo de
afixos, palavras ou radicais, como nas operações aglutinativas.
Ao contrário, são delimitadas por um restritor que efetivamente
controla seu tamanho. Embora seja responsável pelo status não-
linear dos processos, é esse restritor que particulariza cada uma
das operações aqui examinadas.

2.1 O formato da reduplicação


Diferente dos outros processos, a reduplicação pode ser
considerada um tipo “diferente” de afixação (STRUIJKE, 2000, p. 2,
grifo nosso), pois o reduplicante é linearmente ligado à forma
projetada para o molde, via circunscrição prosódica (McCAR-
THY; PRINCE, 1995). Nos exemplos listados em (01), não há
como decidir se a porção reduplicada é preposta ou posposta à
base, uma vez que a cópia é total: nos hipocorísticos, a sílaba CV
é inteiramente reproduzida, enquanto na nominalização todo o
verbo sofre redobro.
Na nominalização, a base é a 3ª pessoa do singular do pre-
sente, uma forma neutra do ponto-de-vista cognitivo (BYBEE,
1985; GÉHARDT, 2001). Os dados de (08) evidenciam que não
há qualquer tipo de modificação estrutural em relação à base
– um dissílabo paroxítono sem coda. Estruturas menos marcadas
constituem tendência nesse tipo de reduplicação, uma vez que
o processo opera unicamente com formas verbais cuja 3ª pessoa
termine em vogal (segunda coluna de 08).
226 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006
Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

(3) pisca-pisca *retém-retém


bole-bole *advém-advém
pinga-pinga *quer-quer
raspa-raspa *corrói-corrói

Como a presença de um elemento em coda – uma nasal


não-especificada para ponto, uma vibrante ou uma semivogal
anterior – bloqueia a operação e a maioria esmagadora das bases
vem a ser um dissílabo paroxítono,3 é possível admitir que a
circunscrição escaneia toda a palavra prosódica para formar o
substantivo deverbal reduplicativo. O mecanismo derivacional
se processa como em (09) a seguir. O input inclui a base verbal e
o morfema reduplicativo, que, na representação abaixo, aparece
como prefixo, muito embora essa escolha seja arbitrária (STRUI-
JKE, 2000). A circunscrição delimita a própria base (uma palavra
prosódica – ω), pois todos os segmentos do verbo apresentam
correspondente no reduplicante.
(09)

Em (09), a circunscrição modela uma palavra prosódica (ω),


cujo conteúdo segmental será inteiramente copiado por RED. As
linhas de correspondência que relacionam o “recheio” do molde
As poucas formas mo-
com o output evidenciam total identidade entre base e redupli-
3

nossilábicas (‘cai-cai’)
e trissilábicas (‘agarra- cante, de modo que não há qualquer discrepância – nem mesmo
agarra’ e ‘esconde-es-
conde’) fogem à gene- de traços – entre esses elementos. Como se vê, a reduplicação de
ralização e constituem
problema marginal nes-
formas verbais realmente pode ser definida como um tipo de
sa análise. De qualquer afixação, tanto do ponto de vista morfossintático (por envolver
forma, levando em conta
os resultados de Araújo
mudança de classe e por veicular o conteúdo ‘iteratividade’),
(2000, p. 09), 90% dos quanto do ponto de vista da posição em relação à base.
casos de reduplicação
em verbos incidem em De acordo com McCarthy; Prince (1995), reduplicantes
bases dissilábicas. tendem a apresentar estruturas fonologicamente não-marcadas,
Em outras palavras,
levando-se em conta o leque de possibilidades fonotáticas da
4

reduplicantes tendem a
manifestar apenas um língua.4 Com base nos dados de (08), podemos afirmar que a
sub-conjunto de opções
fonotáticas permitidas reduplicação bane sílabas finais travadas, em favor de abertas,
pela língua. A expressão e incide basicamente em pés binários com cabeça à esquerda.
“emergência do não-
marcado” (McCARTHY; Estruturas ‘CV.CV – as que emergem na formação de substan-
PRINCE, 1994) explicita
a idéia de que línguas
tivos deverbais reduplicativos – são indiscutivelmente ótimas
desenvolvem estruturas em português: nenhuma outra forma da língua pode ser menos
não-marcadas nos con-
textos em que a influên- marcada que um dissílabo paroxítono constituído de sílabas
cia da fidelidade não é abertas.
tão imperativa.

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 227


Carlos Alexandre Gonçalves

A reduplicação utilizada na formação de hipocorísticos


também pode ser considerada afixação, mas difere da encon-
trada em verbos por envolver um mecanismo transderivacional
(McCARTHY; PRINCE, 1995). Nesse caso, a sílaba tônica do
prenome é mapeada pela circunscrição e, uma vez satisfeitas
as condições de “boa-formação silábica”, passam a funcionar
como base para a reduplicação, de modo que o reduplicante
guarda mais semelhança com o molde que com o antropônimo
propriamente dito. Vejam-se os dados de (10):
(10) André > Dedé Artur > Tutu José > Zezé Sueli > Lili
Carlos > Cacá Glória > Gogó Nílton> Nini Vívian > Vivi
Alberto > Bebé Augusto > Gugu Josefina > Fifi Valquíria > Kiki
Angélica > Gegé Américo > Memé Fátima > Fafá

Em todos os exemplos de (10), o hipocorístico apresenta a


mesma sílaba tônica que o antropônimo correspondente.5 Essa
sílaba, no entanto, não guarda identidade absoluta com a do
prenome, uma vez que não preserva a coda (‘Artur’ > ‘Tutu’)
ou o onset complexo (‘Glória’ > ‘Gogó’) da palavra-matriz. Como
na reduplicação de verbos, efeitos de marcação governam o
conteúdo segmental do reduplicante, que, nesse caso, deverá
apresentar, necessariamente, o formato CV. Nos verbos, as
condições de marcação atuam no próprio input, bloqueando
bases que contenham sílabas travadas ou pés monossilábicos.
Nos hipocorísticos, por sua vez, tais condições agem sobre uma
forma de output: o molde.
Ao contrário do redobro de formas verbais, a reduplicação
em hipocorísticos é processada em dois momentos diferentes.
Primeiramente, a circunscrição prosódica reduz a palavra-matriz
ao tamanho de uma sílaba, como se vê em (11) abaixo. Essa sílaba
é posteriormente avaliada pelas condições de marcação (não
complexidade no onset; não coda) e passa a ser base para a afixação
de RED. Na nominalização de verbos, a circunscrição funciona como
5
Há casos de redupli- um alvo, para o qual segmentos melódicos são mapeados. Na formação
cação em que a sílaba de hipocorísticos, diferentemente, a circunscrição vem a ser um
levada para o molde
não é a tônica, como delimitador prosódico que impõe minimalidade à palavra-matriz.
demonstrado em Gon-
çalves (2004). Hipoco- (11)
rísticos como ‘Vavá’ (de
‘Valdemar’), ‘Vivi’ (de
‘Violeta’) e ‘Lulu’ (de
‘Luciana’) são formados
a part ir da primeira
sílaba do antropônimo.
Somente um modelo
baseado em restrições
pode dar conta das va-
riações encontradas na
formação de hipocorís-
ticos, o que é feito em
Gonçalves (2004). Dados Nas formas verbais, a circunscrição faz um mapeamento
como esses não foram
considerados por ora. completo da base e leva para um alvo (o molde) todos os seg-

228 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

mentos utilizados por RED. Em (11), ao contrário, condições de


minimalidade atuam no input (prenome), gerando um output
(molde), que, por sua vez, passa a ser o input sobre o qual atuarão
as condições de boa-formação silábica formuladas em (12) a se-
guir. É nesse momento da derivação que aparece RED, cuja tarefa
é reproduzir a base por completo, levando ao output final.
(12) Condições sobre o molde: A sílaba do molde deve apresentar o formato
CV, de modo que não são permitidos onsets
complexos ou codas.

Pela representação precedente (11), somos forçados a inter-


pretar o processo como transderivacional (McCARTHY; PRIN-
CE, 1990), uma vez que há necessidade de um nível intermediário
entre base e produto: o molde é a fôrma gerada pela circunscri-
ção, mas também a forma (1) a ser regulada pelas condições de
marcação e (2) sobre a qual atua o morfema reduplicativo.
Concluindo, a reduplicação, apesar de circunscritiva, en-
volve afixação. Essa afixação é “diferente”, nos termos de Strui-
jke (2000, p. 02), porque não possui o esqueleto CV e a melodia
fonêmica. O reduplicante, por não apresentar especificação
segmental, toma emprestado da base todos os seus elementos,
incluindo a estrutura silábica e a estrutura melódica.

2.2 O Formato do truncamento e da hipocorização


O Truncamento e a hipocorização se assemelham por
promoverem diminuição no corpo fônico da palavra-matriz,
mas não podem ser considerados afixação, no sentido estrito do
termo, pelo fato de a porção copiada não se adjungir ao molde.
Diferentes da reduplicação, esses processos “separam uma seqü-
ência da base” (CABRÉ, 1994, p. 4, grifo nosso), mas são bastante
diferentes em forma e em função, de modo que não considero
a hipocorização um tipo de truncamento, como sugerem, entre
outros, Colina (1996) e Piñeros (2000).
Do ponto de vista morfo-prosódico, quatro são as dife-
renças entre truncamento e hipocorização: (a) a (não)formação
de palavras mínimas, (b) a (não)superficialização de estruturas
Para Gonçalves (2001),
marcadas, (c) a (não)existência de afixo de redução e, por fim,
6

esse sistema de hipoco-


rização é o acionado pri- (d) o tipo de circunscrição utilizado no processo (positiva ou
meiramente. Restrições
prosódicas (ausência negativa).
de onset na penúltima Em primeiro lugar, a hipocorização default (GONÇALVES,
sílaba ou estruturas si-
lábicas mais complexas) 2001)6 sempre isola uma palavra mínima na língua, de modo
podem levar aos demais
sistemas (reduplicação
que o hipocorístico nunca extrapola o limite de duas sílabas (cf.
à esquerda (‘Dudu’, de coluna 1, de 13). O truncamento, ao contrário, tende a formar
‘Eduardo’, e ‘Lelê’, de
Leandro) ou à direita da trissílabos (coluna 2).
base (‘Dedé’, de ‘André’, (13) Augusto > Guto Delegado > Delega
e ‘Teteu’, de ‘Mateus’)
e parsing à esquerda Filomena > Mena Salafrário > Salafra
(‘Edu’, de ‘Eduardo’, e
‘Rafa’, de ‘Rafael’)). Irineu > Neu Baterista > Batera

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 229


Carlos Alexandre Gonçalves

Isabel > Bel Vagabunda > Vagaba


Fabrício > Biço Comunista > Comuna
Débora > Deba Marginal > Margina

O processo de hipocorização se inicia com a definição de


um domínio sobre a palavra-matriz. Dois parâmetros regem
essa delimitação: (a) o do pé (a formação de um troqueu moraico
– ([µµ])) e (b) o da direcionalidade (da direita para a esquerda do
antropônimo – E D ##). Esses parâmetros definem a circuns-
crição positiva, já que o conteúdo segmental descartado é o que
fica fora desse domínio (McCARTHY; PRINCE, 1990). Portanto,
o material que aparece no hipocorístico é exatamente aquele
rastreado pela circunscrição prosódica, que atua no sentido de
isolar uma palavra mínima: um troqueu moraico é copiado do
domínio-fonte (a palavra-matriz) para o domínio-alvo (o molde).
Vejam-se mais dados em (14):
(14) Felipe > Lípe Raquel > Quél Alexandre > Xánde
Antônio > Tónho Isabel > Bél Edivaldo > Váldo
Augusto > Gúto Marimar > Már Fernando > Nándo
Filomena > Ména Nicolau > Láu Reginaldo > Náldo
Roberto > Béto Miguel > Guél Rosimeire > Méire

A vogal tônica do pé mais à direita constitui a primeira


mora do troqueu. Havendo coda ou ditongo pesado (BISOL, 1989)
na sílaba final, o troqueu será monossilábico, como em ‘Quel’
(‘Raquel’) e ‘Lau’ (‘Nicolau’). Se não houver ramificação no nú-
cleo ou na rima da sílaba final, ao contrário, ter-se-á um troqueu
dissilábico, como em ‘Lene’ (‘Marilene’) e ‘Xande’ (‘Alexandre’).
Os limites da circunscrição prosódica sempre coincidem com os
limites da sílaba, pois (i) onsets nunca desgarram de suas rimas,
(ii) núcleos não são apagados ou inseridos, (iii) nem codas são
ressilabificadas. Em (15), aparece formalizado o procedimento
da circunscrição prosódica. Tanto em ‘Marilene’ quanto em
‘Raquel’, a margem direita da base coincide com a margem
direita da circurscrição prosódica e, conseqüentemente, com a
margem direita do molde para a formação do hipocorístico. Da
direita para a esquerda, forma-se um pé bimoraico, que separa
a seqüência da base a ser utilizada na hipocorização.
(15)

230 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

No truncamento, a circunscrição mapeia uma seqüência


que não aparecerá na forma diminuta. Em outras palavras, a
circunscrição é negativa, pois o conteúdo segmental fora do
domínio é o que será aproveitado na forma truncada. Vejam-se
os dados em (16), a seguir. Diferente da Hipocorização, o trun-
camento não leva em conta o acento lexical da palavra-matriz
e sempre forma paroxítonas, independentemente da pauta
acentual da base.
(16) japa (japonês) sapa (sapatão) trava (travesti)
comuna (comunista) sarja (sargento) vagaba (vagabunda)
frila (free-lancer) granfa (grã-fino) malcra (mal-criado)

Os dados de (16) revelam que o truncamento opera de


modo semelhante em nomes simples e em compostos que fun-
cionam como unidade vocabular, do ponto de vista fonológico.
Construções como ‘granfa’ e ‘frila’, originárias dos compostos
‘grã-fino’ e ‘free-lancer’, respectivamente, apresentam o mesmo
comportamento de palavras como ‘trava’ e ‘sarja’, formadas a
partir dos nomes simples ‘travesti’ e ‘sargento’, nesta ordem.
Em todos os casos, forma-se um pé binário, da esquerda para
a direita, do qual será aproveitado somente o primeiro onset
que, alinhado à vogal -a, constituirá a última sílaba da palavra
braquissemizada. Nesse sentido, a representação subjacente do
truncamento pode ser analisada como uma seqüência de sílabas
vazias: a última é inteiramente dissociada e a penúltima tem
sua coda descartada, sendo copiado somente o onset – seja ele
simples, como em ‘Maraca’, ou complexo, como em ‘salafra’. As
sílabas anteriores (uma ou duas) constituirão parte da forma
que servirá de base para a afixação de -a. Em termos de repre-
sentação, teríamos o seguinte:
(17)

Essa análise preserva a idéia de que morfemas possuem


representações subjacentes. Nesse sentido, formações trunca-
das seriam caracterizadas por uma representação subespeci-
ficada,7 que consiste na preservação de todo o material fônico,
da esquerda para a direita, até o onset do pé mais à direita do
item derivante, incluindo-o, já que o material após esse onset

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 231


Carlos Alexandre Gonçalves

é circunscrito negativamente. Esse padrão geral só é violado


quando a penúltima sílaba da palavra-matriz não apresenta o
ataque. Por exemplo, em ‘confa’, formado a partir de ‘confiança’,
não são copiados os segmentos que imediatamente precedem
o pé binário mais à direita da palavra. Ao contrário, esse pé é
inteiramente descartado, fazendo com que a circunscrição avan-
ce para a esquerda e promova a cisão em ‘fi’ (con.f[i.an.ça] + -a).
Dados como esse revelam que a sílaba final do truncamento deve
necessariamente apresentar onset, em decorrência da afixação
de uma vogal.
Como se pode perceber, os dois fenômenos discutidos
nesta sub-seção apresentam diferenças consideráveis. A hipoco-
rização forma palavras mínimas, leva em conta o acento lexical
da base e não faz uso de qualquer tipo de afixo. Além disso, a
circunscrição prosódica age positivamente, levando a porção
rastreada a constituir o hipocorístico. O truncamento, ao con-
trário, não forma palavras mínimas e é cego à pauta acentual da
base. A circunscrição utilizada é a negativa, o que faz com que
a seqüência mapeada seja descartada para fins de adjunção de
um sufixo: a vogal -a. Outra diferença entre os processos são os
efeitos de marcação, discutidos a seguir.
Por se assemelhar à linguagem infantil, no sentido de
privilegiar “marcação sobre fidelidade” (GONÇALVES, 2001), a
hipocorização se sujeita a condições de boa-formação silábica,
o que não acontece com o truncamento. De fato, os exemplos de
(18) mostram haver diferenças entre o material circunscrito e o
que efetivamente aparece nos hipocorísticos. Estruturas silábicas
menos complexas constituem tendência nesse tipo de formação,
que privilegia sílabas destravadas (coluna 1), onsets simples
(coluna 2), além de não se iniciarem por vogais (coluna 3)
(1) Francisco > Chico Alexandre > Xánde Mariana > Nána
Roberto > Beto Euclides > Kíde Joelma > Mélma
Augusto > Guto Gertrudes > Túde Eduardo > Dado

Discrepâncias segmentais entre moldes e hipocorísticos


devem ser entendidas como resultantes do papel desempe-
nhado pelas condições de boa-formação silábica (11). Como os
7
Tal procedimento ana- reduplicantes, também os hipocorísticos banem qualquer tipo
lítico, conforme McCar-
thy (1986), consiste em de complexidade no onset, de modo que seqüências CC são
omitir informações na
representação subja-
sempre simplificadas. Nos truncamentos, há tolerância quanto
cente, preenchidas mais à presença de ataques complexos, como se vê em (19). Dessa
tarde, com o propósito
de se obter a representa- maneira, discordo de Araújo (2000), para quem o truncamento
ção de superfície. Dessa é um tipo de processo morfológico em que emergem estruturas
maneira, a presença de
uma estrutura prosódi- não-marcadas. No meu entender, o slogan “emergência do não-
ca não-preenchida en-
gatilharia um processo
marcado” (McCARTHY; PRINCE, 1994) somente faz sentido
automático de cópia dos nos casos de reduplicação e hipocorização. O truncamento
segmentos da base.

232 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

– que não necessariamente forma pés binários e sílabas abertas


e não impede a presença de onsets complexos – é caracterizado
por privilegiar fidelidade sobre marcação, sendo muito mais
fiel à base, preservando uma seqüência da palavra-matriz que,
levando em conta a ação da analogia (BASÍLIO, 1998), pode ser
reinterpretada como raiz.
(19) salafrário > salafra free-lancer > frila
flagrante > flagra mal-criado > malcra
grã-fino > granfa estrangeiro > estranja

De fato, a supressão encontrada nos casos de truncamento


é sempre de uma seqüência fônica tomada como afixo.8 Nas
palavras de Basílio (1987, p. 38), tem-se esse processo “ quando
uma palavra é interpretada como sendo uma construção base
+ afixo e então o afixo é retirado para se formar uma outra pa-
lavra, constituída apenas da suposta base”. A porção suprimida
pode não apresentar qualquer status morfológico, não sendo,
necessariamente, um sufixo (‘vestib-ular’, ‘sap-atão’, ‘cerv-eja’
e ‘Marac-anã’, entre outros). Do ponto de vista cognitivo, no
entanto, é possível analisar o truncamento como processo de
reanálise (ALVES, 2002), sendo a circunscrição negativa interpre-
tada como sufixo e o que resta, após a delimitação, como base.
Tem-se, portanto, mais uma diferença, desta feita morfológica,
entre hipocorização e truncamento.

2.3 O formato do blend


Mesclas lexicais têm sido interpretadas como uma subcate-
goria de compostos, uma vez que os morfemas que participam de
sua formação são livres ou potencialmente livres (LAUBSTEIN,
1999; PIÑEROS, 2000; SANDMANN, 1990). Como morfemas
livres equivalem a palavras morfológicas (MWds), admite-se
que mesclas e compostos combinam MWds para gerar um novo
lexema. Esse novo lexema, dessa forma, constitui uma MWd
complexa, representada por MWd*, como em (20) a seguir:
(1)

8
A grande maioria dos Nos blends, a combinação de palavras promove ruptura
sufixos do português na ordem linear estrita por meio de um ovelapping, que leva a
apresenta o mesmo for-
mato da circunscrição uma correspondência de um-para-muitos entre forma de base
negativa: um dissílabo
iniciado por vogal que,
e forma cruzada. Como resultado, uma das bases é realizada
com o onset da base, for- simultaneamente com uma parte da outra. Veja-se (21) abaixo:
mará a penúltima sílaba
da palavra derivada.

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 233


Carlos Alexandre Gonçalves

(21)

Em linhas gerais, mesclas podem ser entendidas como “


a junção de dois vocábulos, sendo que o segundo é usado para
completar uma parte do primeiro” (LAUBSTEIN, 1999, p.1);
dessa forma, distinguem-se de criações analógicas (22), aqui
interpretadas como substituições sublexicais, por envolverem a
incorporação de uma “palavra invasora” na chamada “palavra-
alvo”. A palavra-alvo (base) apresenta uma porção fonológica
que coincide com a encontrada numa forma de livre-curso da
língua. Em ‘macumba’, por exemplo, a seqüência ‘má’, que não
apresenta qualquer status morfológico, é idêntica ao adjetivo ‘má’.
A palavra invasora é projetada a partir dessa seqüência, levando
consigo suas estruturas métrica e silábica. ‘Boa’ promove o cons-
tituinte ‘ma’ à condição de radical, substituindo sublexicalmente
essa seqüência.
(1) mãedrasta (madrasta tão boa como uma mãe)
bebemorar (comemorar à base de bebidas)
tricha (homossexual afeminado em demasia; três vezes bicha)
halterocopismo (levantamento de “copos” com bebida alcoólica)

Blends não operam como criações analógicas, não podendo


ser analisados como substituições sublexicais. A mesclagem, na
verdade, vem a ser o resultado da fusão de dois vocábulos que
atuam em “planos alternativos”, ao contrário das formações
analógicas, cujas bases operam em “planos competitivos”. Nesse
último caso, o alvo é apenas uma das palavras, e a interseção das
bases é ocasiona da pela reanálise intencional da forma-alvo.
Cruzamentos são, portanto, junções de duas palavras:
palavra 1 (P1) e palavra 2 (P2). O ponto de quebra (local em que
essa fusão ocorre) permite levantar algumas conclusões acerca
da estrutura lexical das mesclas. Em linhas gerais, há dois pa-
drões para blends no português do Brasil: (a) um para os casos
em que P1 e P2 apresentam algum tipo de semelhança fônica
e (b) outro para aqueles em que P1 e P2 são totalmente desse-
melhantes do ponto-de-vista segmental. Essa (des)semelhança
fônica determinará o ponto de quebra.
Se as duas palavras envolvidas são monossílabas, a uni-
dade após a quebra pode ser identificada como rima (23). A
mescla de ‘pai’ com ‘mãe’, originando ‘pãe’ (pai zeloso ou pai
que cuida do filho sem a presença da mãe), separa o onset da

234 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

rima, aproveitando o ataque de P1 e a rima de P2, como se vê


na representação a seguir.
(23)

Dados como (23) nos levam a identificar a rima como uni-


dade de produção nos blends. Contudo, existe o problema de
detectar qual é a porção das bases que vêm antes e depois da
quebra. Bastante clara nos monossílabos, essa situação é mais de-
licada no caso de vocábulos maiores. As palavras ‘saco’ e ‘picolé’
apresentam uma sílaba em comum (‘co’). Essa semelhança deter-
mina não só a interseção das palavras, como também a posição
das bases no interior da mescla. Em decorrência de a sílaba ‘co’
ser átona final em ‘saco’, o blend preservará o acento de ‘picolé’,
fazendo com que essa forma funcione como P2 (cabeça lexical
do cruzamento) e seja responsável pela pauta acentual da nova
formação (‘sacolé’ – picolé em saco). Caso contrário, a mistura
não daria certo. Raciocínio semelhante pode ser encaminhado à
junção de ‘política’ com ‘sacanagem’, cujo blend é ‘politicanagem’.
A presença de uma sílaba comum (‘ca’) determina o ponto de
quebra: como essa sílaba é átona em ‘política’, P2, a cabeça lexi-
cal (núcleo da mescla), será ‘sacanagem’, que levará seu acento
lexical para a nova palavra, como se vê em (24):
(24)

Nos casos em que as bases são totalmente dessemelhantes,


não haverá descontinuidade morfológica. A quebra será feita com
base no melhor rastreamento das bases (maior grau de identi-
dade). Por exemplo, ‘português’ e ‘espanhol’ não apresentam
qualquer segmento em comum, do ponto-de-vista da estrutu-
ração silábica.9 Nesse caso, a quebra será feita nas tônicas, sendo
aproveitadas as duas sílabas iniciais de ‘português’ e a sílaba final
de ‘espanhol’, resultando em ‘portunhol’ (mistura de português
com espanhol). A outra possibilidade (‘espaguês’), por ser mais
opaca, dificilmente levaria às bases que motivaram o processo.
O mesmo acontece com ‘selemengo’ (o Flamengo, time de futebol
carioca, comparado à seleção brasileira), ‘cariúcho’ (gaúcho que

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 235


Carlos Alexandre Gonçalves

vive muito tempo no Rio e já se considera carioca) e ‘showmício’


(comício com apresentação de shows musicais).
O que segue ou o que precede o ponto de quebra nem sem-
pre é um constituinte morfológico, fazendo com que o blend seja
visto como fenômeno distinto da composição, cujo encademento
preserva a integridade das bases, mesmo que atue um processo
fonológico, como a crase (‘aguardente’), que modifique uma
delas. A despeito das similaridades morfossemânticas (SILVEI-
RA, 2002), há uma diferença crucial entre blends e compostos:
nos compostos regulares,10 cada um dos formativos projeta sua
própria palavra prosódica (PWd), enquanto nos blends os dois
formativos levam a uma só PWd, como se vê em (25):
(25)

Em resumo, a mesclagem lexical é um processo de forma-


ção de palavras que acessa informações fonológicas, como (a) a
posição do acento de P1 e P2, (b) o grau de semelhança fônica
entre as bases e (c) a natureza estrutural da seqüência comparti-
lhada pelas formas a combinar. Por esses motivos, deve ser vista
A semelhança fônica não como um caso de substituição sublexical, como as criações
9

deve ser interpretada


não como a mera pre- analógicas, mas como uma fusão que leva à concatenação não-
sença de um segmento
comum, mas como uma linear de bases, o que faz com que essa operação se diferencie da
semelhança em termos composição, cuja ligação sempre se dá por encadeamento, seja
de posição na est ru-
tura da sílaba. Assim, ele por justaposição (‘baba-ovo’, bajulador) ou por aglutinação
embora ‘show’ e ‘comí-
cio’ apresentem uma
(‘girassol’, tipo de flor).
vogal média posterior
em comum (/o/), essa 3. Palavras finais
identidade não é estru-
tural, uma vez que as No decorrer do texto, frisei que os processos morfológicos
rimas são diferentes: na
primeira palavra, a rima aqui examinados diferem dos demais (composição, flexão e
é ram ificada (/ow/), derivação) por não envolverem simples adjunção sintagmática
enquanto na segunda
a rima é const it uída de formativos a bases. Tendo em vista a falta de encadeamento,
unicamente da vogal
média (/o/). Dessa for-
propus que esses mecanismos sejam analisados como não-
ma, ‘show’ e ‘comício’ concatenativos em português. Apesar de semelhantes nesse
são interpretadas como
dessemelhantes, sendo aspecto, tais operações diferem em vários outros (p. ex., função
o blend formado a partir e formato morfoprosódico), o que me levou a distribuí-las em
do padrão 2 (‘showmí-
cio’). três grupos: (a) afixação não-linear (reduplicação), (b) encur-
10
De acordo com Villalva tamento (truncamento e hipocorização) e (c) fusão (siglagem e
(2000), Rio-Torto (1998) e
Silveira (2002) não são mesclagem lexical).
produtivos os chamados Os três primeiros fenômenos se assemelham por reque-
compostos aglutinados,
cujo produto leva a uma rerem mapeamento melódico a partir de uma única forma de
só palavra prosódica. base: uma seqüência da palavra-matriz é copiada e afixada (re-

236 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

duplicação) ou passa a funcionar como unidade lexical autônoma


(truncamento e hipocorização). Esses processos manipulam uma
só base e podem ser considerados casos de derivação, no sentido
de levar a um vocábulo diferente com o redobro (reduplicação) ou
com a supressão de segmentos (truncamento e hipocorização).
Ao contrário da hipocorização e do truncamento, a re-
duplicação utiliza aglutinativamente o conteúdo segmental
rastreado pela circunscrição prosódica. Por esse motivo, pode
ser considerada “afixação diferente” (STRUIJKE, 2000) – uma
afixação não-linear. Truncamento e hipocorização separam
uma seqüência da base, podendo ser vistos como processos de
encurtamento. Embora tomem emprestado do derivante todos
os seus elementos, o material copiado nunca é adjungido às
palavras-matrizes.
Os dois últimos fenômenos (blend e siglagem), semelhan-
tes entre si, diferem dos demais por envolverem mapeamento
de mais de uma base. No primeiro caso (mesclagem lexical),
uma parte da palavra 1 é fundida com uma parte da palavra 2,
resultando numa terceira forma, cujo conteúdo final pode ser
interpretado pela soma dos conteúdos parciais (‘psicogélico’ =
um psicólogo evangélico). A siglagem também faz uso de mais
de uma palavra-matriz, mas há maior distanciamento entre base
e produto, de modo que os falantes muitas vezes não conseguem
rastrear a expressão de onde provém o acrônimo. Uma vez que
pelo menos duas bases participam de sua formação, mesclas
e siglas podem ser interpretadas como casos de composição,
apesar de as primeiras operarem com, no máximo, duas pa-
lavras-matrizes (‘gayúcho’ = ‘gaúcho’ + ‘gay’) e as últimas com
um número que tende a ser superior a dois (‘IBGE’ – ‘Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística’). Mesclas lexicais e siglas
se caracterizam pelo aproveitamento de pelo menos duas bases,
mas, ao contrário da composição, utilizam apenas fragmentos
delas, o que nos leva a concluir que não há concatenação estrita,
mas fusão num plano multilinear.
Enquanto siglagem e blend quase sempre apresentam fun-
ção lexical, tendo o produto a finalidade de nomear uma nova
entidade, favorecendo a lexicalização, hipocorísticos e trunca-
mentos são sempre utilizados com função expressiva, muito
embora o tipo de expressividade seja diferente em cada um. Na
reduplicação, há casos que evidenciam função lexical (verbos
reduplicados) e casos unicamente com função expressiva, de
modo que esse processo se apresenta como multifuncional em
português (COUTO, 1999).
Portanto, são basicamente cinco as diferenças entre os pro-
cessos (a) de afixação não-linear (reduplicação), (b) de encurta-
mento (truncamento e hipocorização) e (c) de fusão (mesclagem
lexical e siglagem):

Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 237


Carlos Alexandre Gonçalves

(1) os dois primeiros grupos têm como input uma única base,
a partir da qual opera a circunscrição prosódica; os do
terceiro, ao contrário, requerem pelo menos duas bases;
(2) as operações dos grupos (a) e (b) podem ser consideradas
derivacionais, ao passo que os do grupo (c) devem ser
interpretadas como casos de composição;
(3) os processos do grupo (a) levam o material rastreado a
se adjungir à forma de base, o que não acontece com os
demais;
(4) os mecanismos do grupo (b) não formam palavras novas,
haja vista que o item derivado – que pode ser considerado
sinônimo do derivante – é marcado pela função expres-
siva (BASÍLIO, 1987);
(5) os do grupo (c) apresentam função lexical, uma vez que
o produto é geralmente uma nova palavra na língua.
No decorrer do texto, procurei refutar a tese de que esses
“processos marginais de formação de palavras” são idiossincrá-
ticos (ALVES, 1990; MONTEIRO, 1987). A regularidade de tais
operações provém da integração de primitivos morfológicos
com primitivos prosódicos e, por isso, uma abordagem mais
compreensiva de tais fenômenos requer enfoque a partir da
interface morfologia-fonologia. Os procedimentos analíticos da
morfologia prosódica – moldes e circunscrições – possibilitam
descrever processos não-concatenativos de modo bastante na-
tural, explicitando que eles não constituem, de fato, “morfologia
pura”, mas “morfologia fonológica”, nas palavras de McCarthy
(1986).

Abstract
Approaches of Brazilian Portuguese non-conca-
tenative morphological process within the fra-
mework of prododic morphology (McCARTHY,
1981, 1986). Description of morphological and
prosodic patterns of reduplication, truncation,
lexical blend, inter alia.
Keywords: non-concatenatie morphology;
phonology morphology interface; prosodic mor-
phology.

238 Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006


Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português

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Niterói, n. 21, p. 219-241, 2. sem. 2006 241


Usos do verbo ficar no português do
Brasil: classificação e análise
Ida Rebelo
Paulo Osório
Recebido 20, abr. 2006/Aprovado 20,ago. 2006

Resumo
O presente estudo propõe-se classificar e analisar
os diferentes usos do verbo ficar, sob o ponto de
vista semântico, à luz de um enquadramento fun-
cional. A descrição efectuada nesta investigação
respeita à variante brasileira do português.
Palavras-chave: usos, funcionalismo, ficar, pre-
dicação, semântica.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Ida Rebelo e Paulo Osório

Breves considerações introdutórias


O objecto de análise do presente texto toma como ponto
central de abordagem o uso do verbo ficar, uma vez que apre-
senta uma variedade de sentidos quando ligado a preposições,
adjectivos ou, até mesmo, a advérbios. Consideremos os seguin-
tes exemplos:1
(01) Eu me fiz de idiota para não me aborrecer.

(02) Deu trabalho, mas nós fizemos bonito na exposição.

(03) Não deu para chegar mais cedo, portanto vamos eliminar uma parte da
reunião.

(04) O exame deu negativo.

(05) Vamos de trem até São Paulo e depois alugamos um carro.

(06) Você vai de saia ou de calça?

(07) É melhor ir devagar com esse assunto.

(08) Só um ficou com o dinheiro, os outros morreram.

(09) Assim, fica difícil trabalhar.

Os verbos seleccionados nos exemplos de (01) a (07), ser-


vem, apenas, para ilustrar que os significados do verbo ficar
resultam da relação entre os sentidos possíveis de ficar e os sen-
tidos dos seus complementos. Em (08) temos a paráfrase reter,
que se estabelece a partir do sentido de mudança, próprio de
ficar, relacionado com a expressão iniciada pela preposição com
seguida de elemento determinado por artigo definido. Em (09)
o sentido de mudança liga-se ao significado do adjectivo difícil
e estabelece a paráfrase ganhar aparência de com sentido de apre-
ciação. A fim de proceder a uma análise das construções onde o
verbo ficar ocorre acompanhado de partículas preposicionais ou
de adjectivos, baseou-se este trabalho no conceito de predicador
como núcleo do enunciado.
O conceito de predicador, como núcleo do enunciado,
podendo ser um verbo ou um nome, é o ponto fulcral da teoria
desenvolvida por Peres (1984) e revista por Meyer (1991), traba-
lhos estes que constituem a base teórico-metodológica da análise
empreendida e têm como fundamento a gramática funcional de
Dik (1981). Assim, na análise desenvolvida serão trabalhados os
diferentes significados que se constroem no uso do verbo ficar
entendido como predicador. Esses significados são revelados
1
Todos os exemplos são na dinâmica entre o predicador e os seus complementos, façam
do português do Brasil eles parte da estrutura argumental do verbo ou constituam, por
e seguem, igualmente,
a ortografia dessa va- outro lado, complementos de outra natureza. Nos usos de ficar
riante. aqui seleccionados, esse verbo é estudado ao entrar na formação
244 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006
Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

de enunciados que são agrupados conforme os significados que


apresentam. Consideram-se 15 significados diferentes confor-
me os enunciados agrupados. A cada um desses significados é
atribuída uma paráfrase explicativa, sendo esta um rótulo que
identifica cada grupo de ocorrências com um mesmo significado.
Em cada um desses casos, o verbo mantém o sentido expresso
pela sua paráfrase explicativa com a possibilidade de uma gran-
de variação no preenchimento de seus complementos.2
As ocorrências encontram-se divididas pela carga se-
mântica peculiar a cada grupo dos exemplos seleccionados.
De notar, todavia, que nesses grupos há casos em que o verbo
ficar é seguido de preposição e casos em que isso não acontece.
Dentre os moldes em que ocorre preposição, há aqueles em que
a preposição compõe com o verbo uma unidade - como em (10).
Nestes casos, a preposição é invariável e o complemento que lhe
sucede faz parte da estrutura argumental do verbo, isto é, cons-
titui um dos argumentos necessários do predicador. Os casos do
tipo exemplificado em (10) são menos numerosos. Há, por outro
lado, um grande número de exemplos em que a preposição faz
parte de um sintagma preposicional e varia conforme os exem-
plos ou, então, pode ser substituída pelo adjectivo sem que haja
alteração do significado - como em (11) e (12).
(10) A PUC fica na Gávea. (Ficar em = localizar-se)

(11) Elas ficaram com o Chico na Igreja. (manter-se relativamente a)

(12) Eu e a Leila ficamos juntos alguns anos e depois separamos. (manter-se


relativamente a)

Nas ocorrências em que há sintagma preposicional, esta


não constitui a única possibilidade de complementação do
verbo ficar. Há outros elementos morfossintácticos que podem
ser seleccionados para exercer funções semânticas idênticas.
Pretendemos, pois, determinar o que concorre para regulari-
zar a selecção dos complementos pelo predicador e estabelecer
regras de uso.
1. Função e gramática funcional
2
Essa característica ga-
rante a distinção entre A gramática funcional de Dik tem, como um dos princípios
as ocorrências toma-
das como objecto desta
básicos da sua organização, a criação de entradas no léxico a
análise e aquelas que partir da constituição de marcos predicativos que contêm todas
podem ser considera-
das como expressões as informações necessárias à identificação dos itens lexicais. Dik
idiomáticas. Nas expres- (1981) postula que há três níveis que se inter-.relacionam para
sões idiomáticas há um
sentido individual para o estabelecimento do significado dos enunciados: o das relações
cada expressão tomada
de forma isolada. Este
pragmáticas, o das relações semânticas e o das relações sintácticas.
sentido não se mantém As informações contidas nos marcos predicativos devem dar
caso haja alteração dos
complementos através conta das características impostas em cada um desses níveis. O
de selecção no eixo sin- modelo descritivo baseado nos marcos predicativos é adaptado
tagmático.

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 245


Ida Rebelo e Paulo Osório

por Peres (1984) sob a terminologia de “moldes proposicionais”.


Na prática, o molde proposicional determina a distribuição dos
elementos constituintes das ocorrências linguísticas.
É na actualização do molde proposicional que se materiali-
zam as funções semânticas atribuídas aos termos do predicador
na formulação do molde. Essas funções semânticas são limitadas
por injunções sintácticas e pragmáticas. Neste estudo, em parti-
cular, utilizamos, na formulação do molde, o procedimento de
que, para cada grupo de exemplos, com um mesmo significado,
é gerado um molde onde são representados os elementos cons-
tituintes do enunciado – predicador, argumentos, funções dos
argumentos – com as suas características invariáveis assinaladas.
Essa representação leva à criação de rótulos – paráfrases explica-
tivas – para cada grupo com o mesmo significado. Esses rótulos
ou paráfrases, juntamente com a designação de item ordenado,
servem de título ao molde, como no seguinte exemplo:
Formalização do Molde de Predicado F1
F 1: Manter-se – estado físico
Molde de Predicado Estativo Básico
Φ (x1) O
: Φ ⇒ [FICAR + DS1] DS2
: DS1 ⇒ Adj () Sprep

+ condição física
: DS2 ⇒ Sprep

+ intervalo de tempo
: (x1 ) ⇒ SN

___ Φ

Esta formalização descreve, em linhas gerais, os elemen-


tos que constituem o molde de predicado em questão, assim
como o seu argumento e função: Φ representa o predicador, (x1)
representa o argumento do predicador e O indica a função do
argumento (x1), que é a de Objecto.
Uma outra noção que importa descrever é a de função. As
funções organizam-se pelas escolhas que o falante faz no uso
comunicativo da língua. As escolhas, por sua vez, são condicio-
nadas por funções já estabelecidas na língua e pré-existentes
às escolhas. Harder (1997) enfatiza a relação entre escolha e
regras:
I now turn to the only situation in which function can exist
from Searle´s point of view: within an intentional context,
where subjects can assign a function to something by virtue
of their own conscious choices. Intentional functions are

246 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

unique in being assignable by choice – but they share with all


other forms of function the dependence on a Background in
terms of which their contribution is normatively motivated.
(HARDER, 1997, p. 96)
É importante lembrar que uma gramática funcional não
é incompatível com uma formalização descritiva. Neves (1997)
faz uma avaliação detalhada da visão de gramática estabelecida
por Halliday (1974) e fundamenta a nossa concepção sobre a
adequação de um enfoque que considere as escolhas do falante
ao formular a hipótese sobre o significado com estabelecimento
de regras para o uso. A abrangência desse enquadramento pode
ser melhor ilustrada na afirmação de Halliday (1974, p. 44), ao
considerar o alcance da expressão “função” naquilo a que ele
chama de “Functional sentence perspective - FSP”.
Nesse texto, Halliday distingue dois conceitos dentro da
sua concepção do termo ‘função’: FSP (functional sentence pers-
pective) que refere às funções atribuídas aos constituintes dos
predicadores em consequência das escolhas do falante no acto
ilocutório e funções comunicativas que constituem o que esse
autor estabelece como as três funções da linguagem – ideacional,
interpessoal e textual. No entanto, nem todas as funções atribuídas
pelo falante encontram correspondência nas categorias da descri-
ção normativa da língua. A descrição normativa tende a deixar
de lado as ocorrências que não são acondicionáveis nas categorias
sintácticas estabelecidas ou a classificá-las indevidamente. Esse
é o caso das funções representadas por complementos verbais
que, na categorização normativa, extrapolam a categoria de ob-
jecto do verbo e nem sempre se encaixam nas outras categorias,
como a de adjunto adverbial, por exemplo. Neste estudo criamos
uma categoria – o definidor semântico – que tenta dar conta de
complementos verbais desse tipo.
Na busca de uma formalização descritiva, consideramos o
enfoque funcionalista, ao mesmo tempo, abrangente e económico
para caracterizar itens do léxico. A caracterização feita à luz do
funcionalismo utiliza pontos de vista gerados pela incidência,
no mecanismo da linguagem enquanto dispositivo de comuni-
cação, dos diferentes níveis citados, isto é, o nível das relações
pragmáticas, o das relações semânticas e o das relações sintácti-
cas. Por outro lado, uma gramática funcional que se baseia nas
relações de predicador e argumento e tem no verbo o núcleo
dessas relações mostra-se capaz de guiar uma análise que tem
como tema o estabelecimento dos valores semânticos envolvidos
no uso de determinada forma verbal.

1.1 A classificação de Peres e de Meyer


A descrição que Peres faz dos predicadores verbais em
português, baseada na gramática funcional de Dik, tem o mérito

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 247


Ida Rebelo e Paulo Osório

de diferenciar, mais adequadamente, os níveis que se inter-rela-


cionam na produção dos enunciados. Peres toma esses três níveis
e, a partir deles, estabelece a existência de quatro componentes:
componente ilocutório que determina os tipos de actos de fala
(contexto pragmático); componente semântico que corresponde
às estruturas de significação; componente textual que relaciona
as estruturas textuais (contexto discursivo) e componente formal
que relaciona as formas linguísticas (contexto morfo-sintáctico)
(PERES, 1984, p. 28).
Todas as propostas de construção de uma gramática
funcional são orientadas pelo princípio da predicação. Con-
forme explicitado em Meyer, a predicação é a descrição de um
estado-de-coisas de que participam um ou mais argumentos
relacionando-se com um termo predicador (MEYER, 1991, p.
42). A autora distingue as predicações simples das predicações
complexas. Embora o objecto da nossa análise seja a predicação
simples ou nuclear, importa considerar a definição de predicação
complexa ou alargada. Consideramos que a predicação complexa
é o campo onde transitam valores semânticos que podem escla-
recer certos comportamentos do predicador ficar considerado na
sua realização como núcleo da predicação simples.
No presente estudo, estabelecemos uma formalização de
moldes de predicado originados na observação dos usos do
predicador verbal ficar.
Peres ( 1984, p. 67) explica que
[...] a tipologia pode ser elaborada de forma indutiva, a partir
da construção de moldes proposicionais de um grande número
de predicados3 de uma língua ou, alternativamente, como um
modelo concebido a priori com base num determinado número
de propriedades pertinentes na classificação dos predicados.
O autor faz um levantamento a partir das valências estabe-
lecidas previamente para a maioria dos verbos portugueses. A
análise de Meyer, assim como a que se empreendeu neste estudo,
faz uso do procedimento indutivo. A partir da consideração de
um corpus é feita uma formalização que pretende generalizar o
comportamento do predicador ficar, agrupando-se as ocorrências
contidas nesse corpus em torno de 15 moldes de predicado. Os
predicadores são classificados conforme a descrição de Peres,
em função dos estados-de-coisas que representam e do tipo de
argumentos que seleccionam, e podem ser:
(a) Estativos - ocorrem em proposições que designam esta-
dos-de-coisas que não envolvem qualquer mudança no
intervalo de tempo da sua duração e que não se combi-
3
Adoptamos aqui a ter-
m i nolog ia de Meyer
nam com um termo que represente uma entidade dada
- predicador - para indi- como causador dos estados-de-coisas que as proposições
car o núcleo da predica-
ção, embora Peres use o designam. (PERES, 1984, p. 86-87)
termo predicado com as
mesmas intenções.

248 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

(b) Posicionais - ocorrem em proposições que designam


estados-de-coisas que não envolvem qualquer mudança
no intervalo de tempo da sua duração e que se combi-
nam com um termo que represente uma entidade dada
como causador dos estados-de-coisas que as proposições
designam. (PERES, 1984, p. 86).
(c) Processuais - ocorrem em proposições que designam
estados-de-coisas que envolvem uma qualquer mudança
no intervalo de tempo da sua duração e que não se com-
binam com um termo que represente uma entidade dada
como causador dos estados-de-coisas que as proposições
designam. (PERES, 1984, p. 86).
(d) Accionais - ocorrem em proposições que designam esta-
dos-de-coisas que envolvem uma qualquer mudança no
intervalo de tempo da sua duração e que se combinam
com um termo que represente uma entidade dada como
causador dos estados-de-coisas que as proposições de-
signam. (PERES, 1984, p. 86).
Conforme o tipo de argumento que seleccionam, os pre-
dicadores podem ser classificados em: básicos - os argumentos
seleccionados serão preenchidos por qualquer entidade desde
que ela não tenha função semântica de causador, experienciador
ou de lugar; experienciais - os argumentos seleccionados serão
preenchidos por entidades que sofrem experiência de carácter
psíquico; possessivos - os argumentos seleccionados são preen-
chidos por entidades envolvidas numa relação de posse ou de
mudança de posse e locativos - os argumentos seleccionados são
preenchidos por entidades envolvidas numa relação de locali-
zação ou de transferência de localização.
Importa observar que esta caracterização dos possessivos é
da criação de Meyer, pois Peres faz a distinção entre possessivos
(relação exclusiva de posse) e transaccionais (relação de mudança
de posse). Meyer demonstra que o único traço que marca essa
distinção em Peres é o de mudança e este traço já está expresso na
classificação dos estados-de-coisas. A selecção dos argumentos
pelo predicador implica a consideração das funções semânticas
atribuídas a esses argumentos. São as seguintes as funções se-
mânticas propostas por Peres para o português e adoptadas neste
estudo:4 causador atribuída a uma entidade que desencadeia um
estado-de-coisas; objecto atribuída à entidade envolvida em qual-
quer tipo de estado-de-coisas, onde não desempenhe qualquer
das restantes funções semânticas especificadas; experienciador
atribuída à entidade que se encontra numa situação ou que sofre
um evento de carácter psíquico; possuidor atribuída à entidade
4
Por razões que concer-
nem as características que tem a posse de outra entidade; recebedor atribuída à enti-
do verbo ficar, nem todas
as funções aqui descri-
dade que adquire a posse de outra entidade; dador atribuída à
tas são seleccionadas entidade que perde a posse de outra entidade; lugar atribuída à
por esse predicador.
entidade que constitui o espaço de outra entidade; origem atribu-
Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 249
Ida Rebelo e Paulo Osório

ída à entidade a partir da qual uma outra entidade é transferida


e destino atribuída à entidade que constitui o espaço para a qual
uma outra é transferida. (PERES, 1984, p. 118-119)
2 Usos do verbo ficar - classificação e análise
A listagem por significados baseia-se em dois critérios:
I – Critério semântico explora, no presente estudo, a oposi-
ção entre o carácter estativo e o resultativo. O título - semântico
- abrangeria mais do que está compreendido neste item, mas
foi adoptado por nos parecer ser o que melhor cobre a distinção
em questão. O primeiro critério subdivide-se em dois campos
distintos: (A) – não-mudança ou estativo e (B) – mudança ou
resultativo;
II – Critério funcional pragmático: baseia-se numa divisão
por tipos de predicador, conforme a classificação estabelecida
por Meyer. São eles: básico, experiencial, possessivo e locativo.
No quadro 1 apresentamos, de forma esquemática, a ma-
neira como os dois critérios se inter-relacionam, formalizando a
classificação proposta para os significados do verbo ficar:
Quadro 1 – Classificação dos Moldes de Predicado
A–I Estativos:
DS DS2
Básico manter-se F1
(+ condição física) (+ interv.tempo)
DS2
Experiencial manter-se DS (+ sentimento) F2
(+ interv.tempo)
Locativo localizar-se x 2 (+ lugar) F3

A – II Posicionais:
manter-se
Básico DS (+ modo) F4
relativamente à
Básico acção repetitiva DS (+ ação) F5
manter condição
Locativo x 2 (+ lugar) F6
anterior

B–I Processuais:
ganhar aparência
Básico DS (+ apreciação) F7
de
Básico alcançar um valor DS (+ numeral) F8
Básico classificar-se DS (+ item ordenado) F9
DS (+ origem () +
Básico restar F10
fim)
DS2
Básico resultar em DS (+ condição física) F11
(+causa () tempo)
DS2
Experiencial passar a sentir-se DS (+ sentimento) F12
(+causa () tempo)

B – II Accionais:
Possessivo reter x2 F13
Experiencial responsabilizar-se x2 F14

O procedimento de distribuição dos moldes de predicado,


como apresentado no quadro 01, deu origem a uma estatística
que discriminamos a seguir. Entre os significados mais fre-

250 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

quentes encontrados no uso do predicador ficar, temos 15 mol-


des de predicado, dos quais 14 realizam-se conforme mostra o
quadro 2:
Quadro 2 – Distribuição Estatística dos Moldes de Predicado
Moldes de Predicados Estativos 3
A - Não-Mudança
Moldes de Predicados Posicionais 3
Moldes de Predicados Processuais 6
B - Mudança
Moldes de Predicados Accionais 2

Registamos, ainda, a existência de um molde de predi-


cado accional que não se insere em nenhum dos dois critérios
semânticos escolhidos. Esse molde é formalizado no Quadro 3
conforme o segundo critério, Funcional-Pragmático. No Quadro
3 não está, entretanto, incluída nenhuma marca referente ao
primeiro critério:
Quadro 3 – Classificação do Molde de Predicado F15
Accional:
Experiencial comprometer-se x 2 (+ acção) F15

A classificação funcional-pragmática explica a excepção


– não inclusão no critério semântico - sem tirar consistência ao
critério criado. Trata-se de verbo que pode ser incluído no grupo
dito de ‘comunicação’ e, conforme Mateus e outros (1994), os
verbos de comunicação podem, eventualmente, ser incluídos
entre os verbos performativos5 da classificação de Austin e Se-
arle. Essas circunstâncias explicam a classificação do predicador
em accional; a paráfrase atribuída a F15, contudo, não autoriza
sua inserção em nenhum dos dois eixos – mudança ou não-mu-
dança – definidos no primeiro critério. Esta análise mostra-se
coerente com a classificação de accionais ao inserir F15 no grupo
que Mateus designa como verbos de comunicação. Para a autora,
há predicadores não estativos que, sempre que usados literal-
mente, são P agentivos, caso dos verbos como afirmar, declarar,
dizer, concluir, deduzir, inferir. Os predicadores não estativos que
exigem um argumento [+humano], e exprimem uma proprieda-
5
O s ve rb o s p e r for- de ou relação controlável por esse argumento, podem ser usados
mativos são definidos agentivamente. (MATEUS et al., 1994, p. 46)
por Austin (1970, p. 41)
através da oposição en- Para estabelecer com o máximo possível de adequação o
tre enunciados perfor-
mativos e enunciados
critério de mudança/não-mudança, servimo-nos do cálculo de
constativos. Formular Mudança-de-estado de Von Wright, explicitado por Peres (1984,
um enu nciado con s-
tativo, para Austin, é p. 88-89). Os símbolos utilizados são:
emitir uma afirmação
produzindo-a com uma (p) - “proposição”
referência h istór ica. (- p) - a contraditória de (p)
Formular um enuncia-
do performativo é, por (T) - operador diático, significa ‘a seguir’
exemplo, fa z e r u m a
aposta que não necessita
de referência histórica.

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 251


Ida Rebelo e Paulo Osório

A partir destes símbolos são construídas 4 fórmulas possíveis que representarão


um dos dois conceitos, isto é, Mudança ou Não-Mudança:

-p T p (Mudança)
P T p (Não-Mudança)
-p T -p (Não-Mudança)
P T -p (Mudança)

Sem adoptar a simples utilização do conceito de traço [+ ou


- mutacional], que Peres adopta mas que é, contudo, de contornos,
por vezes, difíceis de definir, preferimos utilizar esta fórmula
lógica para enquadrar o nosso critério semântico, fórmula essa
que se revelou de grande utilidade na determinação e justificação
da divisão dos moldes de predicado. A explicação de Peres para
essa fórmula lógica envolve a utilização dos verbos acontecer e
permanecer e tem a seguinte formulação:
acontecer (p) é definida como -p T p
permanecer (p) é definida como p T p
não acontecer (p) é definida como -p T -p
não permanecer (p) é definida como p T -p

Ao tomarmos exemplos do molde de predicado F1, que se


inclui no parâmetro da não-mudança, podemos fazer as seguin-
tes leituras, como assinalado entre parênteses:
(13) Ele ficou de cama durante 2 dias. (DS2 = durante 2 dias)

(14) Na festa da Paula, eu fiquei sozinho. (DS2 = enquanto durou a festa)

(15) Se não souber o que dizer, fique em silêncio. (DS2 = enquanto não souber
o que dizer)

(16) Sta. Teresa ficou sem água o dia inteiro. (DS2 = durante o dia inteiro)

(17) Fiquei sem meu ajudante por 3 meses. (DS2 = por 3 meses)

Nestas ocorrências, não são considerados intervalos de


tempo anteriores ou posteriores ao momento da enunciação.
Assim, lemos o símbolo (T) de uma forma ligeiramente diferente
da que é apresentada no cálculo de Von Wright. No molde de
predicado F1 (T) não é ‘a seguir’, mas sim, o intervalo de tempo
explícito pelo constituinte DS2.
Uma vez que este estudo tem por objectivo a determinação
dos valores semânticos de um predicador e não a sua análise
textual, consideramos que a leitura acima atende aos objectivos
a que nos propomos, ainda que, tomadas num contexto linguís-
tico alargado, essas construções pudessem ser consideradas de
mudança.
Considere-se o DS2 do molde de predicado F2, em (35):
(18) Nós ficávamos impacientes antes da aula. (DS2 = enquanto a aula não
começava)

252 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

O que nós alegamos para a classificação destes moldes


no critério de não-mudança é que a predicação simples [ficar +
DS1] não sofre mudança, enquanto sofre a influência de DS2,
constituinte expressando intervalo fechado de tempo. O que
pode causar, à primeira vista, uma certa flutuação do conceito
de não-mudança é o que Schmitt chamará de “constant meaning
of the verb”: a autora postula que ficar tem um traço de transition
que lhe é constante, mas que esse traço pode ficar ‘ensombrea-
do’ conforme os complementos que acompanham a realização
do predicador e que nos parece ser o fenómeno em causa nos
moldes F1 e F2:
I argue that the BECOME reading with adjectival predicates
is the result of combining part of the qualia of the adjectival
predicate with the TRANSITION fo ficar. The STAY readings
of ficar + adjective are the result of shadowing the transition.
[...] Unliked to any argument, the TRANSITION can only be
part of the ‘constant’ meaning of the verb (SCHMITT, 1999,
p. 227)
Corroborando esta afirmação, temos dois outros moldes -
F11 e F12 - que se incluem entre os de mudança e que têm como
DS1 os mesmos elementos que F1 e F2; entretanto, os seus DS2
atribuem um carácter de mudança ao predicador enunciado.
(19) Ele ficou doente pois não tomou os devidos cuidados. (DS2 + causa)

(20) Tenho 18 anos e fiquei indignada ao ler o depoimento da mulher que fez 3
abortos. (DS2 + tempo)

(21) Fiquei entusiasmado com a possibilidade de emagrecer. (DS2 + causa)

(22) As crianças ficam impacientes quando terminam o trabalho e não têm


mais nada a fazer. (DS2 + tempo/causa)

Nestes exemplos, o traço [+tempo] não pode ser traduzido


pela noção expressa pelos termos ‘durante’ ou ‘enquanto’ como
em F1 e F2 mas, sim, pelas expressões ‘assim que’ ou ‘a seguir’.
A presença dessas noções denota, definitivamente, a mudança
de estado que diferencia o carácter permansivo – F1 e F2 – do
carácter resultativo, também chamado de causativo por Mateus
e outros (1989, p. 96) - F11 e F12. Consideramos, portanto, que a
característica não-mudança, expressa pelo contexto linguístico,
se sobrepõe à característica de ‘transição’ inerente ao predicador
ficar. Todavia, para que fique clara a nossa utilização do traço
temporal, veja-se o que refere Pinto (1994), uma vez que o que
chamamos de tempo, é o que Pinto denomina tempo semântico,
que não é marcado na enunciação da mesma forma que o tempo
real, este, aliás, indicado por meio de sintagmas nominais que
descrevem datas ou fixam durações:

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 253


Ida Rebelo e Paulo Osório

Enunciados que não contenham datas ou durações, como ‘Pe-


dro chegou ontem’ ou ‘Quando Maria chegou, Pedro estava
jantando’, não são ancorados ao tempo físico e são totalmente
ambíguos quanto à data ou à duração dos estados-de-coisas
representados. Mas apresentam, no entanto, certas caracterís-
ticas gramaticais, como verbos conjugados, advérbios dêiticos
(“ontem”) e orações temporais, que são marcas do que vou
chamar de tempo semântico, objeto das operações de ancora-
gem temporal. (PINTO, 1994, p. 58)

2.1 Dos moldes de predicado de ficar

2.1.1 Apresentação dos moldes


Peres classifica os predicadores em básicos e derivados (PE-
RES, 1984, p.38) e atribui a cada predicador básico um molde
proposicional registado no léxico de uma língua. Neste estudo
adoptamos a terminologia de moldes de predicado ao invés de
‘moldes proposicionais’ e predicador ao invés de ‘predicado’,
ambos de uso em Peres (1984). Molde de predicado designa,
neste estudo, a fórmula lógica que traduz e generaliza o com-
portamento semântico, textual e morfossintático de cada tipo
de ocorrência do predicador ficar. A cada molde de predicado
atribuímos um significado comum. A decisão de não atribuir o
termo molde proposicional às fórmulas levantadas, neste estudo,
liga-se ao facto de que entre os enunciados de ficar encontram-
se predicadores básicos, onde ficar ocorre em presença de um
argumento x2 e, também, predicadores derivados, onde ficar
ocorre, obrigatoriamente, em presença de um DS indispensável
ao estabelecimento do significado do molde. Quanto ao termo
‘predicador’, é usado, igualmente, por Meyer (1991) e representa o
elemento núcleo do molde de predicado que no caso deste artigo
é representado pelo verbo ficar. As ocorrências do predicador
verbal ficar foram distribuídas em subgrupos que foram codifica-
dos em função do significado comum aos exemplos listados em
cada um. Esse código constitui-se por uma sigla alfanumérica
composta de uma letra ‘F’ maiúscula e de um algarismo; este
algarismo corresponde à posição ocupada pelo molde na lista-
gem de significados levantada por este estudo. Cada código é
seguido da paráfrase escolhida para o significado do subgrupo
de ocorrências. Assim, para cada molde de predicado temos um
título, como no exemplo a seguir:
F1: manter-se – condição física
O título, que indica o tipo de molde de predicado, aparece
na segunda linha do molde e pode ser expresso como no exem-
plo seguinte:
Molde de Predicado Estativo Básico

254 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

Esse título é seguido do molde, propriamente dito, que se


compõe de várias linhas onde estão dispostos os constituintes
na ordem em que ocorrem. A primeira linha do molde consiste
numa fórmula lógica contendo o símbolo Φ seguido dos argu-
mentos do predicador. Os argumentos são representados por (x1)
e (x2), onde o número que acompanha a letra (x) se refere a um
dos dois argumentos que podem ser encontrados na predicação
analisada. Cada (x) é seguido de uma letra maiúscula indicando
a função semântica atribuída ao argumento. A primeira linha
tem a seguinte configuração:
Φ (x1) O
A fórmula lógica expressa acima pode ser lida como:
predicador (Φ) de 1 lugar ou de um único argumento, onde o
argumento (x1) tem a função (O) de objecto do estado-de-coisas
expresso pela predicação. Na segunda linha temos a explicita-
ção, através da actualização lexical, do predicador seguido dos
itens que se relacionam directamente com esse predicador sem,
entretanto, constituírem argumento da predicação. Por não se
tratarem de argumentos do predicador, esses itens são desig-
nados como definidores semânticos. Esta linha tem a seguinte
apresentação:
Φ ⇒ Ficar + DS1
Essa linha do molde é lida como: o predicador (Φ) será
actualizado pelo verbo ficar, seguido de um constituinte que
não se realiza como argumento da predicação e que é o seu
definidor semântico.
Nas linhas do molde que vêm a seguir a essa fórmula são
indicadas: as classes de palavras em que se pode actualizar cada
argumento da predicação; as restrições de selecção para cada
argumento; as classes de palavras em que pode(m) actualizar-
se o(s) DS(s); as restrições de selecção para cada DS e a posição
ocupada pelos argumentos em relação ao predicador. Quando
não é indicada nenhuma restrição de selecção, isto significa sim-
plesmente que não há restrições actuando sobre o elemento em
questão. Assim, no molde de predicado F1 formalizado a seguir,
(x1) actualiza-se no nível formal sem restrições de selecção. Nesta
formalização os colchetes indicam que o predicador como um
todo [FICAR + DS1] é modificado por um terceiro elemento da
predicação, o DS2.

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 255


Ida Rebelo e Paulo Osório

Formalização do Molde de Predicado F1


F 1: Manter-se – estado físico
Molde de Predicado Estativo
Básico
Φ (x1) O
: Φ ⇒ [FICAR + DS1] DS2
: DS1 ⇒ Adj () Sprep

+ condição física
: DS2 ⇒ Sprep

+ intervalo de tempo
: (x1 ) ⇒ SN
___ Φ

(23) Ele ficou de cama durante 2 dias mas depois foi trabalhar ainda que não
estivesse completamente curado.

(24) A verdade ficou oculta durante 100 anos.

(25) Os seus objetos de prata podem ficar reluzentes por cinco anos depois de
polidos. A prata recebe uma camada de verniz plástico incolor.

Considerem-se os argumentos (x1) de (23), (24) e (25), aos


quais podem ser atribuídos diferentes traços, respectivamente,
como se segue:
• (x1) é actualizado pelo SN ‘ele’ com traço [+humano];
• (x1 ) é representado por ‘a verdade’ e tem o traço [+abs-
tracto];
• (x1) corresponde a ‘os seus objetos de prata’ e tem o tra-
ço[- animado].
Esses traços não interferem no significado do molde, ou
seja, (x1) pode ser representado por todo e qualquer SN que possa
ser inserido nessa predicação com função semântica de Objecto
e não apresenta, portanto, nenhuma restrição de selecção.

2.1.2 Os argumentos nucleares e os argumentos opcionais


Segundo Martinet (1979), as gramáticas funcionais con-
sideram a existência de funções que são unidades linguísticas
definidas por uma forma e um valor. Dentre essas funções, é pre-
ciso distinguir aquelas que formam os argumentos nucleares de
certos predicadores verbais das que formam os seus argumentos
opcionais. Os argumentos nucleares são elementos relacionados
com o predicador verbal de forma intrínseca, estando previstos
no próprio valor semântico do núcleo predicador, já argumentos
opcionais de um predicador verbal são facultativos e não fazem
parte da valência verbal. O significado do verbo não depende
dos seus argumentos opcionais, uma vez que estes apenas
256 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006
Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

acrescentam novos dados ao sentido básico. Como diz Meyer


(1991, p. 45-46):
São nucleares os argumentos correspondentes aos lugares pre-
vistos na estrutura semântica do predicador. São opcionais os
argumentos que, não estando previstos na estrutura semântica
do predicador, podem ser-lhe acrescentados, caso o predicador
os aceite e caso haja intenção comunicativa para tal.
Por oposição aos argumentos opcionais, os argumentos
nucleares são indissociáveis do significado do predicador ver-
bal a que se ligam e são subentendidos mesmo ‘in absentia’. Em
(26) temos um exemplo desse relacionamento dos argumentos
nucleares com o predicador e em (26’) temos a adição de argu-
mentos opcionais. Em (26’’) o número de argumentos nucleares
não foi reduzido, apenas um dos argumentos foi omitido, mas
está subentendido.
(26) João disse a ela que saísse.

(26’) João disse a ela, sem levantar os olhos, que saísse, imediatamente.

(26’’) João disse que saísse.

As funções expressas pelos termos “João”, “a ela” e “que


saísse” são argumentos nucleares do predicador verbal e carac-
terizam a valência do verbo “dizer”. Sem esses termos, o predi-
cador verbal, em questão, não traz informação suficiente para
ser aceite como elemento com carga informacional autónoma;
assim, os argumentos nucleares caracterizam a valência dos
predicadores que acompanham. O termo ‘valência’ é definido
por Martinet (1979, p. 159):
Parmi les fonctions en tant qu’unités linguistiques définies
par une forme et une valeur, on distinguera celles qu’on ne
rencontre jamais avec certains verbes et qui, en conséquence,
caractérisent les verbes auprès desquels on les rencontre. Ces
fonctions sont celles qui constituent ce qu’on désigne souvent
comme la valence du verbe.
Dentre as muitas definições existentes para o termo va-
lência, incluímos aqui essa noção de ‘valência’ expressa por
Martinet, por considerarmos sua definição útil para a compre-
ensão do relacionamento que se estabelece entre argumentos e
predicadores. Entretanto, por razões de economia descritiva e
da especificidade do nosso objecto de análise, limitar-nos-emos,
ao longo da análise, às propostas avançadas por Meyer e Peres.
Além disso, o predicador ficar extrapola o conceito de valência.
Quanto à polémica sobre a distinção entre argumentos
nucleares e opcionais, levantada por Peres e Meyer, não conside-
ramos a sua discussão no âmbito deste trabalho. Esclarecemos
tão somente que, com vista a uma generalização quanto ao tipo
de argumentos seleccionados por ficar, podemos afirmar que

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 257


Ida Rebelo e Paulo Osório

este predicador sempre selecciona, pelo menos, um argumento


que terá a função semântica quer seja de objecto (O), de expe-
rienciador (Ex) ou causador (C). É importante observar que estas
duas últimas vão ser definidas na constituição semântica do
molde, uma vez que há a possibilidade de se ter um argumento
experienciador que pode ou não acumular a função semântica
de causador.
Outra observação é que ficar, eventualmente, selecciona
um segundo argumento; entretanto, nos casos - mais numero-
sos – em que selecciona apenas um argumento, ficar encontra-se,
invariavelmente, ligado a um definidor semântico (DS), consti-
tuindo, assim, um predicado derivado, conforme a concepção
de Peres. A categoria ‘derivado’ é considerada em oposição à dos
‘básicos’, que se realizam, segundo este autor, sem a presença
de constituinte ligado ao verbo que não exerça a função de
argumento. Observamos, igualmente, que uma das categorias
consideradas na formalização de Peres como função semântica
exclusiva de argumentos opcionais aparece, no presente estu-
do, como argumento nuclear. Trata-se da dimensão espacial
que, como se pode comprovar nos exemplos apresentados, é
representada por argumentos com traço [+ lugar]. Isto acontece
em virtude do argumento com a referida função semântica
responder, integralmente, nos moldes de predicado de ficar, às
injunções necessárias para ser considerado como argumento
nuclear, conforme a teoria proposta por Meyer.
O quadro 4 dá uma visão de conjunto do relacionamen-
to que se estabelece entre moldes de predicado e argumentos
seleccionados, tendo como parâmetro as funções semânticas
destes últimos:
Quadro 4 – Selecção das Funções Semânticas
Tipos de Selecção das Funções Semânticas para cada Argumento
ocorrências x1 x2
Ficar em O C L
R
Ficar com O
C
Ficar de C O
Ficar + DS O Ex C Ø

A selecção de funções semânticas pelo predicador ficar para


os seus argumentos obedece a um direccionamento facilmente
compreensível quando se consideram as propriedades dos mol-
des de predicado em que ocorrem. A função objecto (O) tanto
pode ser seleccionada para (x1) como para (x2). Entretanto, só o
será para o primeiro argumento em moldes de predicado estati-
vos, como em (27) ou processuais, como em (28) que são aqueles
em que o estado-de-coisas é considerado como ‘não-causado’
por nenhuma das entidades envolvidas. Este mesmo argumen-

258 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

to apresentará a função causador (C), mas somente nos moldes


de predicado posicionais, como em (29) ou accionais, como em
(30). As funções semânticas experienciador (Ex) e recebedor (R)
partilham traços com a de causador e estarão presentes apenas
nos moldes em que se considera que se sobreponham a esta
última:
(27) Ele fazia seu discurso e todos ficamos em silêncio.(F1)

(28) Você fica muito bem com essa roupa.(F7)

(29) Eu fico muito tempo conectado, mas prefiro as madrugadas pois a


ligação é mais barata.(F4)

(30) Resistindo à tentação de ficar com todas, decidi ficar sempre com a que
traz, além das tabelas e dos mapas, as fases da lua.(F13)

Quanto à função lugar (L), tem como peculiaridade ocorrer


apenas em moldes que seleccionam dois argumentos. Há, apenas,
dois moldes de predicado apresentando argumentos com traço
[+lugar]: F3, para seres inanimados e localidades geográficas –
Molde de Predicado Estativo Locativo; e F6, para seres animados
desde que apresentem mobilidade autónoma (plantas e peixes
em aquário, por exemplo, estão excluídos) – molde de predicado
posicional locativo. Esses moldes são, também, os únicos, no
critério semântico de não-mudança, que admitem um segundo
argumento - (x2)- e têm, em comum, a presença de uma única e
mesma preposição em todas as ocorrências – EM. A existência
de preposição única simultânea à selecção de um segundo argu-
mento nuclear vai repetir-se no grupo classificado no segundo
critério – mudança – em que os dois únicos moldes a admitirem
o segundo argumento – (x2) – têm, igualmente, o predicador
ficar ligado, invariavelmente, à mesma preposição – COM. São
os moldes F13 – Molde de Predicado Accional Possessivo – e
F14 – Molde de Predicado Accional Experiencial.

2.2 Os definidores semânticos – DS


Deste estudo resultou a criação de uma terminologia para
designar constituintes que, ligados ao predicador verbal, são
imprescindíveis para a construção do significado do molde de
predicado sem constituírem argumento desse predicador ver-
bal. Esses constituintes estão aqui designados como definidores
semânticos (DS). O DS caracteriza-se por ser um constituinte
ocorrendo junto ao verbo e representado no componente formal
por: adjectivo (Adj), sintagma preposicional (Sprep), advérbio
(Adv) ou por uma oração (Or). Há, ainda, muito raramente, a
possibilidade de um sintagma nominal assumindo função de
advérbio como o DS2 em (31).

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 259


Ida Rebelo e Paulo Osório

Alguns dos moldes de predicado que se constroem como


ficar + DS necessitam de um outro definidor semântico, que
modifica o predicador como um todo. Sendo assim, temos de-
finidores semânticos de duas naturezas: (1) aquele que constrói
o significado do molde, explícito na paráfrase e (2) aquele que
restringe esse significado, diferenciando as ocorrências do res-
pectivo molde de outras que se apresentem morfossintaticamente
idênticas, mas que pertençam a outro molde de predicado.
(31) Sta. Teresa ficou sem água o dia inteiro. (F1)

(32) Sta. Teresa ficou sem água por uma falha da CEDAE. (F11)

Em (31), como em (32), temos o predicador ficar ligado a


um DS1 representado por Sprep com o traço [+ condição física]
– sem água. Em (31), entretanto, o DS2 [+ intervalo de tempo],
representado por “o dia inteiro” o distingue de (32), onde o DS2
[+ causa] “por uma falha da CEDAE” atribui um valor resultativo
ao predicador. Isto é, o DS2 é o responsável pela distinção entre
o critério semântico de Mudança em (32) e o de não-mudança
em (31).

2.1.1 Representações dos DS


em algumas categorias morfossintáticas
Um grupo considerável, dentro do leque de significados
atribuídos a ficar, constrói-se com DS. Além disso, a maioria des-
ses moldes de predicado admite a representação do DS por uma
expressão com função adjectiva, ou por uma oração com valor
adjectivo ou adverbial. Essas razões levam-nos a descrever, de-
talhadamente, as possibilidades de ocorrência que caracterizam
esse constituinte nos moldes de predicado de ficar. Considerados
os critérios (i) semântico e (ii) funcional-pragmático utilizados
nesta análise, a determinação das categorias morfossintácticas
tem um papel secundário. O valor semântico de que são por-
tadores os DS sobrepõe-se ao que possam incluir as categorias
morfossintácticas atribuídas aos elementos que compõem es-
ses DS. Tendo em vista o carácter classificatório desta análise
entendemos que se torna necessária a descrição de todos os
elementos que compõem o molde de predicado. Vamos, assim,
ocupar-nos, inicialmente, das ocorrências com adjectivo. Dentre
os moldes em que ficar se faz acompanhar por DS, apenas em
F10 não ocorrem expressões com função adjectiva. Todo o resto
apresenta a possibilidade de ocorrência de adjectivo, ou de ex-
pressão equivalente, na predicação.
Adjectivo (Adj)
Em português, a função adjectiva pode fazer-se represen-
tar, no componente formal, pelos seguintes itens lexicais:

260 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

• adjectivos comuns
• adjectivos deverbais
• formas V+do
• locuções prepositivas
Deixando de lado, por agora, as locuções prepositivas, res-
ta-nos um grupo de formas classificadas indistintamente como
adjectivos. Dentro deste grupo encontram-se as formas [V+do],
que poderiam representar um problema de classificação quando
consideradas na análise dos constituintes das predicações de
ficar. Isto dá-se, em primeiro lugar, por uma certa dificuldade,
à primeira vista, de se determinar se, em presença das formas
[V+do], o predicador ficar não pode ser classificado como verbo
auxiliar. Isto é, há necessidade de se eliminar a possibilidade de
tratar-se de um predicador em que ocorre passivização, pois,
como determina Peres, só verbos plenos podem ser predicadores
de um estado-de-coisas.
Tendo em conta Mateus e outros (1989), que consideram
uma parte das ocorrências de ficar como variante aspectual de
estar, e considerando que, enquanto variante aspectual de estar,
ficar não ocorre como verbo pleno, as ocorrências com ficar +
[V+do] não poderiam, portanto, ser analisadas, no âmbito deste
estudo. Tornou-se, deste modo, relevante mostrar que as formas
[V+do] encontradas entre os constituintes das predicações ana-
lisadas não têm função verbal, ou seja, não participam de uma
transformação resultante do procedimento de passivização de
uma forma verbal transitiva directa. Para este fim, submetemos
essas ocorrências à aplicação das 10 propriedades relacionadas
por Pimenta-Bueno (1986) para a distinção das circunstâncias
textuais e dos ambientes sintácticos em que se realiza uma ou
outra função das formas [V+do], ou seja, se em função adjectival
ou se em função verbal.
A fim de enquadrar a nossa análise com dados justificáveis
pelas hipóteses estabelecidas por Pimenta-Bueno, analisamos
cada uma das ocorrências [V+do] encontradas entre os exem-
plos listados. Tomemos o predicador Φ ⇒ Ficar + DS1, onde DS1
terá como representação, no componente formal, elementos que
ocorrem, indistintamente, como:
• Adjectivos comuns (sozinho, impaciente, etc);
• Adjectivos deverbais ( parado, transitável, etc);
• Formas [V+do] originadas de verbos transitivos directos
que obedeçam à tipologia das propriedades levantadas
por Pimenta-Bueno.
Antes de expor os resultados da análise das formas [V+do]
contidas no corpus deste estudo, consideramos relevante fazer
referência à classificação estabelecida por Pimenta-Bueno, que
estabelece uma minuciosa descrição das formas [V+do]. Para a
autora, as formas [V+do] dividem-se em dois grupos: (a) vocá-
bulos cuja base não é um verbo transitivo directo e que são os
Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 261
Ida Rebelo e Paulo Osório

adjectivos deverbais comuns, que não têm maiores implicações


na distinção que ora pretendemos fazer, pois não participam
dos processo de passivização; (b) vocábulos que têm por base
os verbos transitivos directos e que actuam, segundo o contexto,
ora como verbo, ora como adjectivo, ora com características de
ambas as classes, verbos e adjectivos. (PIMENTA-BUENO, 1986,
p. 207-208).
Pimenta-Bueno enumera 10 propriedades sintácticas das
formas [V+do] que tenham por base um verbo transitivo di-
recto. Para a autora, essas propriedades servem para esclarecer
em que contextos sintácticos ocorrem as formas [V+do] e em
quais deles essas formas são consideradas, respectivamente,
adjectivo ou verbo (PIMENTA-BUENO, 1986, p. 208-214). Essas
propriedades são por nós utilizadas para validar o “rótulo” de
adjectivo atribuído às formas [V+do] que participam das ocor-
rências analisadas neste estudo. Dado o carácter instrumental
do trabalho de Pimenta-Bueno para o nosso estudo, não faremos
uma exposição exaustiva das propriedades em questão. Mostra-
remos, apenas, de que forma uma dessas propriedades auxilia
no esclarecimento das características dos adjectivos deverbais
envolvidos nos predicadores de ficar. A primeira propriedade
restringe as consequências da ocorrência de formas [V+do] no
nosso corpus. Transcrevemos a descrição dessa propriedade, a
seguir:
1a. propriedade: adjectivo
Podem ocorrer em posição predicativa em sintagmas
verbais.
a) Em posição de pós-cópula;
b) Em formas atributivas introduzidas por como;
c) Como complemento da classe restritiva de SV que inclui
os verbos sentir-se, julgar-se, crer-se, achar-se e considerar-se
entre outros;
d) Como complementos de verbos indicadores de Mudança
de estado como tornar-se e ficar. (PIMENTA-BUENO, 1986,
p. 208)
O item (d) da citação acima leva-nos a excluir da discussão
sobre as formas [V+do] todos os moldes de predicado de ficar
em que há mudança de estado. São os moldes listados de F7 a
F14, no Quadro 1. Restam-nos, então, os moldes de predicado
classificados como de “não-mudança”. São os moldes listados
de F1 a F6. Dentre esses moldes, apenas F1, F2 e F4 poderiam
levantar a possibilidade de indeterminação da natureza do
adjectivo constante no DS1, uma vez que F3 e F6 são moldes de
predicado em que ficar não se liga a DS e sim a argumento (x2).
O tipo de teste que Pimenta-Bueno propõe é o de se substituir a
ocorrência [V+do] que se quer analisar sucessivamente por um
outro adjectivo primitivo e por um verbo em forma flexionada,

262 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

caso este último se revele uma construção aceitável: teríamos


então um verbo, no particípio passado, e não um adjectivo.
Apresentamos, a seguir, uma outra razão para que as cons-
truções ficar + [V+do] não sejam consideradas como passivas,
uma vez que, na voz passiva, ainda que de forma implícita e/ou
indeterminada, há a presença de um elemento agente. Neste
estudo, porém, mesmo em exemplos onde ocorram estruturas
[V+do] derivadas de verbo transitivo, há um apagamento da
função de sujeito da activa/agente da passiva. Isto é, essa função
não se produz na frase. Vejamos os exemplos:
(33) Assumo sempre o que digo [...] Mas eu não tenho que obedecer, por
duas razões: 1º porque não têm que proibir o que eu já não proíbo; 2º
porque ficarei enterrado na terra, sem mais nada a não ser a terra.

(34) O prédio ficou abandonado durante anos depois de ter sido


desocupado pelos antigos moradores.

Em (33) e (34) não se trata de considerar uma acção - ser


enterrado, ser abandonado - sob o ponto de vista do elemento sobre
o qual ela incide, como é o caso da construção passiva. Trata-
se é da constatação de uma condição física do argumento com
função semântica de objecto do estado-de-coisas expresso pelo
enunciado. (33) e (34) não servem como resposta às seguintes
perguntas: Por quem ele foi enterrado? ou, Por quem o prédio
foi abandonado?
Estas constatações levam-nos a afirmar que, no caso dos
moldes de predicado F1, F2 e F4, a possibilidade de ficar ser
considerado auxiliar da passiva deve ser afastada, dado que, a
partir da aplicação das propriedades estabelecidas por Pimenta-
Bueno, as leituras possíveis dos enunciados do corpus excluem a
possibilidade de se tratar de formas da voz passiva.
Sintagma preposicional (Sprep)
Outro ponto a ser esclarecido quanto aos elementos que
compõem os DS é o que diz respeito às ocorrências de Sprep.
Se considerarmos predicadores formados com DS como um
conjunto de moldes com características comuns teremos, dentro
deste conjunto, um subconjunto formado pelos moldes onde o
DS se constitui de Sprep ligado ao predicador, com ele formando
um todo. Esse Sprep tem função adjectiva ou adverbial e, nor-
malmente, pode ser substituído por adjectivo ou por advérbio
consoante a função respectiva exercida. Encontram-se neste
subconjunto os moldes: F1, F2 e F4, do 1º critério semântico - e
F8, F9, F10, F11 e F12, do 2º critério semântico, em que há pontos
comuns a todos. Todos esses moldes representam predicadores
de um só lugar com a ocorrência de elementos ligados ao verbo
por preposição sem que esses elementos possam ser caracteri-
zados como (x2). A preposição usada, diferentemente do que
acontece nos predicadores que apresentam argumento (x 2),
Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 263
Ida Rebelo e Paulo Osório

pode variar e não é condição obrigatória para a classificação


do molde de predicado, uma vez que também ocorrem nesses
moldes as formações de predicador + Adj e - apenas em F11 e F12
- de predicador + Adv, sem a participação de preposição. Essa
variação da preposição pode conduzir à ambiguidade, por ser
marcada com formas idênticas em moldes cujos significados são
diferentes. Assim, as actualizações dos moldes podem coincidir
nas categorias morfossintácticas, ainda que venham a diferir na
carga semântica.
(35) Ela ficou com as pernas doendo de tanto dançar. (F11)

(36) O gato ficou com tanto medo que subiu literalmente as paredes. (F12)

(37) Depois do assalto só um ficou com o dinheiro, os outros correram. (F13)

Em (35), (36) e (37) temos o predicador ficar, conjugado


no pretérito perfeito do indicativo, em moldes de predicado
cujo argumento (x1) tem o traço [+animal]. O predicador verbal
é seguido da preposição [com] que, por sua vez, precede um
complemento formado por SN. Estas são as características que
têm em comum os elementos que entram na construção dos
exemplos citados e que são coincidentes para os três exemplos,
ainda que em (35) o SN faça parte de uma oração reduzida de
gerúndio. Tendo em vista o componente semântico, porém, (35),
(36) e (37) se actualizam em três diferentes moldes de predicado,
como se segue:
(53) F11 ⇒ Molde de Predicado processual básico. Paráfrase: resultar em,
onde (x1) será objecto de um estado-de-coisas que implica em
experiência não-psíquica.

(54) F12 ⇒ Molde de Predicado processual experiencial. Paráfrase: passar


a sentir-se, onde (x1) será objecto de um estado-de-coisas que
implica em experiência psíquica.

(55) F13 ⇒ Molde de Predicado processual possessivo. Paráfrase: reter,


onde (x1) recebe a posse de uma entidade (x 2), definitivamente
ou por algum tempo.

A partir das constatações, acima, justifica-se a diferença


de significados notada na simples leitura dos exemplos em
questão. Em presença de um DS, o sentido do enunciado como
um todo é definido por esse elemento. Quando da existência de
dois argumentos no enunciado analisado, o sentido da mesma
constrói-se no inter-relacionamento do predicador com os seus
argumentos, como é o caso de F13, onde há uma transferência
de posse.
O nosso estudo parece apontar para o facto de que a ho-
monímia só existe se considerarmos unicamente a forma lexical
ficar isolada. Ao enfocarmos o ambiente frásico em que ela se
encontra temos um caminho bifurcado: ou essa forma lexical

264 Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006


Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

se apresenta ligada a um DS revelando-se um outro constructo,


lexical e semanticamente definido; ou ficar é regido por uma
preposição constante e selecciona um argumento compatível
com o significado do predicador. Assim, o conceito de carga
valencial perde em importância, pois neste estudo fica exposta
uma outra realidade: a de que a valência do verbo ficar não é
suficiente para determinar o significado do verbo: este depende,
em muitos casos, de algo mais do que seus argumentos para
ser determinado. Um corolário da afirmação anterior é que ficar
constitui-se como uma forma verbal mutacional que, mesmo sem
ter aumentado o número de seus argumentos, encontrou novos
sentidos graças à presença dos definidores semânticos (DS) que
a ele se ligam de forma estreita e com ele criam uma unidade
geradora de sentido, sentido este que se renova a cada alteração
nos traços que caracterizam o DS.

Abstract
The study presented here aims at classifying and
analysing the different uses of the verb ficar from
a semantic point of view, following a functionalist
approach. This description concerns the Brazilian
variety of the Portuguese language.
Keywords: uses, functionalism, ficar, predication,
semantics.

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Moderna, 1995.

Niterói, n. 21, p. 243-267, 2. sem. 2006 267


O uso do modo subjuntivo em orações
relativas e completivas no português
afro-brasileiro
Vívian Meira
Recebido 21, jun. 2006/Aprovado 21, ago. 2006

Resumo
Este trabalho apresenta um estudo sobre a variação
no uso do modo subjuntivo nas orações relativas
e completivas no falar de quatro comunidades
rurais afro-brasileiras do interior do Estado da
Bahia. Com o suporte teórico-metodológico da
sociolingüística variacionista e o recurso ao pacote
de programas VARBRUL para o processamento
quantitativo dos dados lingüísticos, analisou-se o
encaixamento desse processo variável na estrutura
lingüística e social das comunidades de fala estu-
dadas. Do ponto de vista lingüístico, as formas do
modo subjuntivo ocorrem com maior freqüência
em duas situações: (i) uma de base morfológica,
em que o uso das formas de subjuntivo se dá tanto
com verbos quanto com o tempo em que a oposi-
ção subjuntivo versus indicativo é mais saliente;
(ii) outra de base semântica, em que o contexto
de irrealidade tende a favorecer o uso do modo
subjuntivo.
Palavras-chave: sociolingüística; língua portu-
guesa - subjuntivo; comunidades afro-brasilei-
ras - Bahia.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


Vívian Meira

Introdução
Neste trabalho, aplicamos a teoria da variação lingüística
laboviana, além de nos pautar também na teoria da transmissão
lingüística irregular (TLI), como forma de explicar a variação
no uso dos modos verbais entre falantes de comunidades ru-
rais afro-brasileiras isoladas, situadas no interior do estado da
Bahia. Com efeito, em linhas gerais, consideramos a hipótese
de que a variação no uso do subjuntivo nessas comunidades
seja resultado do processo de transmissão lingüística irregu-
lar, desencadeado pelo massivo contato do português com as
línguas africanas, ocorrido nos períodos colonial e imperial.
Acreditamos que nessas comunidades, diferentemente do que se
observa em pesquisas no português urbano, o subjuntivo vem
gradativamente ganhando ambiente antes ocupado apenas pelo
indicativo, visto que os antepassados desses falantes devem ter
adquirido através do processo de TLI as formas do indicativo,
pois este modo, por se referir a eventos reais, tende a ser mais
usado na comunicação, podendo ser definido como o modo
morfologicamente não marcado. Atualmente, o subjuntivo vem
sendo adquirido por estes falantes em decorrência da difusão
dos meios de comunicação e de toda a infra-estrutura propiciada
pela urbanização de nosso país.
1 O fenômeno estudado: o modo subjuntivo
A tradição gramatical apresenta um sistema de modo
verbal, cujo emprego se baseia ora em critérios semânticos, ora
em critérios sintáticos e formais. De fato, se nos pautarmos na
gramática tradicional, observaremos uma miscelânea de regras
que norteiam o emprego dos modos verbais, especificamente
do subjuntivo.
Esse conjunto de fatores arrolados pela tradição gramatical
portuguesa atesta a variação no emprego dos modos verbais,
uma vez que apresenta, por exemplo, a anteposição ou pospo-
sição do advérbio talvez ao verbo como regra de emprego de
subjuntivo ou de indicativo, respectivamente, como se o advérbio
por si só marcasse a atitude que deveria ser categoricamente
expressa pelo verbo, como em:
(i) Talvez eu compre uma camisa;

(ii) Comprarei talvez uma camisa.

Os modos verbais são também condicionados por regras


facultativas cuja aplicação é regulada por fatores intencionais e
subjetivos, pois, muitas vezes, cabe à atitude do falante o em-
prego de determinado modo, mesmo que a estrutura gramatical
indique o uso de um modo específico. Por outro lado, verificamos
também que a complexidade em estudar a forma verbal se dá

270 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

inicialmente a partir do fato de que um mesmo morfema acu-


mula em si as noções de tempo e de modo. Semanticamente são
valores distintos, mas são indissociados morfologicamente.
O respaldo teórico apresentado pela gramática tradicional
é muitas vezes contraditório com o uso. Tomando como base
Santos (2003), achamos conveniente, como primeiro passo, ob-
servar o que existe de comum em:
(i) Quero que você estude hoje.

(ii) Talvez você estude hoje.

(iii) Duvido que você estude hoje.

Curiosamente, poderíamos nos perguntar o que permite a


mesma forma – estude – assumir conteúdos semânticos distintos,
como dúvida, vontade, sentimento etc. Levando em conta o que
prescreve a tradição gramatical, no que diz respeito ao emprego
do subjuntivo, diríamos que tal modo é determinado automati-
camente pelo tipo de verbo da oração principal e, assim, depara-
mo-nos com um “problema” sintático. Por outro lado, assume-se
também que o modo verbal é dependente de uma atitude do
falante diante de um fato ou de uma proposição enunciada,
referindo-se, assim, a uma questão semântico-pragmática.
No entanto, o emprego do subjuntivo não se deve exclu-
sivamente a uma questão sintática ou semântico-pragmática,
mas também, e com certa freqüência, a expressões de dúvida,
a conjunções, a advérbios etc. Daí poderíamos supor que os
princípios sintático e semântico-pragmático de emprego do sub-
juntivo estariam estreitamente relacionados com tais partículas.
Em outras palavras, uma explicação meramente sintática não
abarcaria todas as ocorrências do subjuntivo e, devido a isso,
recorre-se a critérios puramente semânticos, que, por sua vez,
são insuficientes, não cobrindo todos os aspectos de uso desse
modo em português, valendo-se, assim, de definições de vária
ordem.
É extremamente complexo o estudo da flexão verbal de
modo em português, pois, quando observamos, por exemplo, o
contexto semântico de emprego do subjuntivo em que o falante
opta voluntariamente por impulso expressivo por determinado
modo, verificamos que há uma mudança no sentido da frase,
portanto, não há variação. Para a teoria variacionista, quando a
opção implica uma diferença no valor semântico da oração, ou
seja, quando os contextos em que há alternância entre as formas
do subjuntivo e do indicativo indicar mudanças semânticas, não
há variação, pois os significados são distintos, ao passo que a
variação remete ao processo de alternância entre duas formas
que, no mesmo contexto, remetem ao mesmo significado.

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 271


Vívian Meira

A análise do uso do modo verbal sob a perspectiva da


sociolingüística quantitativa permite-nos demonstrar em que
medida o contexto lingüístico condiciona o emprego dos mo-
dos, bem como com que freqüência uma camada da estrutura
social impulsiona a aplicação do mesmo. Empregamos, para a
análise quantitativa dos nossos dados, o pacote de programas
VARBRUL.
2 Metodologia
Nosso estudo objetiva discutir a variação no uso do modo
subjuntivo em português, verificando a freqüência de emprego
desse modo em quatro comunidades rurais afro-brasileiras do
interior do estado da Bahia: as comunidades de Cinzento, Hel-
vécia, Barra e Bananal e Sapé. Para análise dos dados dessas
comunidades, utilizaremos os corpora constituídos pelos pesqui-
sadores do Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia.
Serão analisadas 28 entrevistas.
Os informantes foram distribuídos em sexo (masculino
e feminino), idade (faixa I: de 20 a 40 anos; faixa II: de 41 a 60
anos; faixa III: de 61 a 80 anos e faixa IV, com mais de 80 anos),
escolaridade (analfabeto e semi-analfabeto) e estada fora da co-
munidade (aqueles que viveram pelo menos seis meses fora da
comunidade e aqueles que se ausentaram da comunidade por
um período inferior a seis meses).
A variação no uso do subjuntivo apresenta diferentes graus
de intensidade, a depender, não apenas do contexto interno,
como também dos fatores sócio-históricos que caracterizam a
comunidade pesquisada. Optamos pelo estudo dessas comuni-
dades pelo fato de elas serem constituídas por afro-descendentes,
cujo passado está ligado ao contato entre línguas e ao processo
de TLI e por apresentarem certo grau de isolamento de outros
meios sociais. Segundo nossa hipótese de trabalho, o contato
entre a língua portuguesa e as línguas africanas faladas pelos
antepassados dos membros que hoje vivem em tais comuni-
dades e a transmissão irregular daquela a estes falantes foram
responsáveis por muitas das variações ocorridas no português
do Brasil, especialmente em sua variedade rural.

2.1 O contexto lingüístico:


a variável dependente e as variáveis explanatórias
Delimitamos duas variáveis dependentes para estudo: (i)
o uso do modo subjuntivo em orações relativas e (ii) o uso do
subjuntivo em orações completivas, com variantes binárias em
cada uma delas, presença/ausência da forma do subjuntivo.

272 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

2.1.1 O emprego do subjuntivo em


orações relativas: fatores lingüísticos
As variáveis lingüísticas explanatórias utilizadas para a
análise do uso do subjuntivo em orações relativas são as seguin-
tes: (i) tempo do subjuntivo previsto no uso culto; (ii) localização
temporal do evento expresso na oração relativa em relação ao
momento da enunciação e (iii) morfologia verbal.
Com as variáveis tempo do subjuntivo previsto no uso culto
e morfologia verbal, tanto na análise do uso do subjuntivo nas
orações relativas quanto nas completivas, procuramos avaliar
a atuação do princípio da saliência fônica, isto é, se as formas
mais marcadas foneticamente na oposição subjuntivo versus
indicativo favorecem o uso do subjuntivo. Isso será válido tanto
para a diferença entre as formas do presente e do imperfeito
do subjuntivo, quanto com relação à questão da regularidade e
irregularidade dos verbos.
Por outro lado, como se trata de comunidades que apre-
sentam um passado marcado pelo contato entre línguas e pelo
processo de TLI, esperamos que as marcas do tempo futuro
(de verbos regulares) sejam mais recorrentes, visto que estas se
assemelham às formas do infinitivo, o que teria facilitado a sua
aquisição pelos falantes. Nesse sentido, observe-se que a marca
do futuro tende a se assemelhar à do infinitivo, mesmo em ver-
bos irregulares, como em “É aonde nós tamos por aí até o dia
que Deus querê” (SubR_R24).
Com a variável localização temporal do evento expresso na
oração relativa em relação ao momento da enunciação, levamos em
consideração a hipótese de que uma referencialidade posterior
ao momento da enunciação, por se relacionar a eventos irreais
e hipotéticos e, portanto, ao valor semântico do subjuntivo,
tenda a favorecer o uso desse modo verbal. Destacaremos três
localizações temporais do evento: (i) anterior (ii) simultâneo e
(iii) posterior ao momento da enunciação.

2.1.2 O subjuntivo nas orações completivas:


fatores lingüísticos
Os fatores lingüísticos selecionados para a análise dos cor-
pora foram os seguintes: (i) tipo da oração em que a completiva
está encaixada; (ii) tipo do verbo da oração em que a completiva
está encaixada; (iii) avaliação do falante acerca do nível de re-
alidade do evento referido na oração completiva; (iv) tempo do
subjuntivo previsto no uso culto e (v) morfologia verbal.
Com as variáveis tipo da oração em que a completiva está en-
caixada, tipo do verbo da oração em que a completiva está encaixada e
avaliação do falante acerca do nível de realidade do evento referido na
oração completiva, procuramos verificar a relação entre o modo
subjuntivo e o valor semântico de irrealidade contido na oração
Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 273
Vívian Meira

principal, ou seja, se o contexto semântico do evento referido


na oração principal tende a favorecer a aquisição das formas
de subjuntivo pelos falantes das comunidades de fala analisa-
das. Assim, esperamos que esse modo verbal tenda a ocorrer
em completivas encaixadas em orações que, em linhas gerais,
contenham proposições hipotéticas, que estejam sob o domínio
da dúvida e da incerteza e, portanto, que estejam associadas ao
valor semântico do subjuntivo.
3 A análise dos dados
Com relação ao uso do subjuntivo em orações relativas,
encontramos, nos 28 inquéritos, um total de 827 ocorrências, das
quais selecionamos apenas 162 referentes aos contextos em que
é previsto o emprego do subjuntivo de acordo com os padrões
normativos. De fato, o número de ocorrências foi reduzido.
Obtivemos um total de 23% de uso de subjuntivo. Pimpão
(1999), ao estudar o português urbano, utilizando corpus do
projeto VARSUL, encontrou, aproximadamente, 82% de uso do
subjuntivo nas relativas no tempo presente, ao passo que, em
nossos corpora, registramos apenas 18% de uso do subjuntivo
nesse tempo verbal. Assim, os nossos resultados não estão de
acordo com aqueles encontrados em falantes do meio urbano, o
que contribui para demonstrar a concorrência de duas gramá-
ticas, uma referente ao português urbano e outra ao português
rural, em especial, afro-brasileiro.
Quanto ao uso do subjuntivo em orações completivas,
foram encontradas 858 ocorrências. No entanto, quando selecio-
namos apenas os contextos prescritos como de uso do subjuntivo,
foram registradas 80 ocorrências. Nesse contexto, o subjuntivo foi
usado apenas em 23 ocorrências, portanto, 29% do total, número
bastante reduzido. Por outro lado, Pimpão (1999) encontra o total
de 84% de uso do subjuntivo nas completivas, no tempo presente,
num corpus constituído por 83 ocorrências (70 apresentaram o
uso do subjuntivo) e, em nossos corpora, registramos apenas 24%
de uso do subjuntivo no tempo presente. A disparidade desses
resultados ratifica as diferenças entre a gramática do português
urbano e a do português afro-brasileiro.
A partir de nossos resultados, acreditamos que, no por-
tuguês afro-brasileiro, o indicativo está perdendo (aos poucos)
ambiente para o subjuntivo, pois este modo vem sendo grada-
tivamente adquirido pelos membros dessas comunidades. Na
verdade, no processo de TLI, ocorrido durante o contato entre
línguas, o modo indicativo, não marcado morfologicamente,
deve ter sido mais facilmente adquirido pelos falantes, pois,
por se referir a eventos reais, este modo tende a ser mais usa-
do na comunicação do que o subjuntivo. Nesse sentido, com a
crescente urbanização de nosso país e todos os benefícios por
ela propiciados, é provável que as formas referentes ao modo
274 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006
O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

subjuntivo tenham sido mais facilmente transmitidas aos falan-


tes do meio urbano; por outro lado, temos a realidade do meio
rural, especificamente aquelas comunidades constituídas por
afro-brasileiros, que, por muito tempo, se mantiveram isoladas
de outros grupos sociais e de todo processo urbanizador, como
propõe Lucchesi (2001).

3.1 A análise dos dados das orações relativas: o fenômeno


sob a perspectiva lingüística
O VARBRUL selecionou com nível de significância .044
três variáveis lingüísticas e uma social. A ordem das variáveis
lingüísticas e extralingüísticas selecionadas foi: (i) localização
temporal do evento expresso na oração relativa em relação ao
momento da enunciação; (ii) tempo do subjuntivo previsto no uso
culto; (iii) morfologia verbal e (iv) estada fora da comunidade.

3.1.1 Localização temporal do evento expresso


na oração relativa em relação ao momento da enunciação
Como podemos ver a partir dos resultados da Tabela 1,
o uso do subjuntivo é largamente favorecido quando o evento
referido na relativa se localiza em um momento posterior ao
momento da ilocução.
Tabela 1 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português
afro-brasileiro segundo a localização temporal do evento
expresso na oração relativa
(Nível de Significância: .044)
nº de oc./
LOCALIZAÇÃO TEMPORAL Freq. P.R.
Total
1. Posterior à ilocução 17/31 61% .93
2. Simultaneamente à ilocução 09/38 13% .36
3. Anterior à ilocução 12/66 15% .37

TOTAL 38/135 28%

O uso do subjuntivo é desfavorecido quando os eventos


referidos são anteriores ou simultâneos ao momento da ilocução,
como exemplificados, respectivamente, em “... as comida que
num dava pá comê, num podia come” (SubR_C09) e “É difici i(r)
assim alguém que num usa o chapéu” (SubR_C01). Isso se ajusta
ao valor semântico do subjuntivo, pois este se relaciona a eventos
hipotéticos e irreais, que, por sua vez, abarcam também uma
referencialidade posterior ao momento da enunciação. De fato,
esse plano do irrealis está mais diretamente ligado ao futuro,
a momentos posteriores do que ao presente e ao passado; na
verdade, os eventos que se situam no futuro são objetivamente
irreais, por maior que seja a certeza do falante em face da sua

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 275


Vívian Meira

realização. Como exemplos da localização posterior ao momento


da ilocução, temos: “Quando a gente vai tem em quarqué um
das casa que fô...” (Cinz., 09).

3.1.2 Tempo do subjuntivo previsto no uso culto


O subjuntivo no português afro-brasileiro é mais usado
nos contextos em que o uso culto prevê as formas do futuro e
do imperfeito, como podemos verificar na Tabela 2.
Tabela 2– O uso do subjuntivo nas orações relativas no português
afro-brasileiro segundo a forma prevista na norma culta
(Nível de Significância: .044)
FORMA PREVISTA NO USO n.º de oc./Total Freq. P.R.
CULTO
1. Futuro do Subjuntivo 17/31 55% .78
2. Imperfeito do Subjuntivo 09/38 24% .46
3. Presente do Subjuntivo 12/66 18% .38
TOTAL 38/135 28%

Verificamos que o grande favorecedor do uso das formas


do subjuntivo é o futuro, conforme exempliicado em “...tua ex-
mullhé pode chegá aqui pa conversá comigo... quarqué uma
coisa que precisá, eu sô mulé pa empresta” (Sapé, 12), enquanto
o imperfeito fica um pouco abaixo da média geral de uso (24%
contra 28%, do geral), desfavorecendo ligeiramente o emprego do
subjuntivo (p.r. de .46), como exemplificado em “...aí todo dinhêro
que ele pegasse, ele... de pemêro não, quando tava numa boa mais
eu...” (Sapé, 05). O contexto de presente é aquele que mais desfa-
vorece o uso desse modo verbal, como exemplo, temos “...graças
a Deus, tem tudo em quarqué lugá que ‘cê chegue” (Cinz., 03).
Segundo Mattoso Câmara (1979), não existia no latim vul-
gar o tempo futuro do subjuntivo, que se originou de formas fle-
xionais volitivas e subjuntivas e, a partir daí, desenvolveu-se um
futuro modal, que conduziu às línguas românicas a um futuro
temporal. Para Lyons (1979), o caráter modal do tempo futuro,
existente desde o latim, atua no futuro temporal das línguas
românicas. Pimpão (1999) defende que a noção de futuridade,
desencadeada pelo tempo presente, favorece o uso do subjuntivo
e não o valor nocional de irrealidade.
A partir dos nossos resultados, registramos que o uso
do subjuntivo em comunidades afro-brasileiras é favorecido
pelo tempo futuro (55%), com um peso relativo de .78 e não
pelo tempo presente (18%). Isso pode ser explicado da seguinte
maneira. A idéia de projeção futura desencadeada pelo tempo
futuro pode se relacionar com o traço irrealis, na medida em que
o futuro indica apenas uma suposição, hipótese ou, como afirma

276 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

Mattoso Câmara (2002 [1970]), o tempo futuro. Assim como o


pretérito mantêm uma oposição em orações que designam uma
condição prévia do que será dito, pois um evento futuro sugere
que poderá acontecer ou não. Além disso, as formas do futuro
em sua grande maioria coincidem com as formas do infinitivo,
o que facilitaria a sua aquisição. Já o imperfeito e o presente,
que apresentam morfemas exclusivos, seriam mais lentamente
incorporados ao uso da comunidade de fala. E, entre esses dois,
as formas do imperfeito levariam vantagem por apresentarem
um morfema foneticamente mais saliente e regular, o -sse- (que
possui o padrão silábico CV). Por outro lado, a alternânica da
vogal temática que marca as formas do presente do subjuntivo
seria a de mais difícil aquisição, o que nos leva a crer que a forma
de futuro foi facilmente adquirida pelos falantes no processo de
TLI, desencadeado pelo contato entre línguas.
Tendo em vista apenas as formas do imperfeito e do pre-
sente, esperávamos, tomando como base o princípio da saliência
fônica, que aquelas fossem as favorecedoras do uso do subjun-
tivo, o que pode ser confirmado em nossos resultados, já que
encontramos um peso relativo de .46 para o uso das formas do
tempo imperfeito e de .38 para o uso do presente. Assim, defen-
demos que, no processo de aquisição da norma culta, os falantes
das comunidades de fala analisadas tendem a usar inicialmente
a forma de subjuntivo que se assemelha a outras formas de nossa
língua e, em outro sentido, os falantes adquirem as formas de
subjuntivo em que o material fônico é mais perceptível, pois nos
ambientes em que o material fônico é menos saliente o uso de
subjuntivo foi menor.
Acreditamos que essas comunidades adquiriram mais
facilmente, no processo de TLI, as formas do tempo futuro
por coincidirem com as formas do infinitivo; por outro lado,
nos grandes centros, o alto índice de uso da forma do tempo
presente pode ser explicado pelo fato de nesses meios haver a
difusão do padrão culto através dos meios de comunicação e da
escolarização.
Segundo Wherritt (apud FARIAS, 2005, p. 50), há duas fases
no processo de aquisição das formas de subjuntivo:
a) uma em que o subjuntivo é adquirido na comunidade por
meio do input, por exemplo, o aparecimento do futuro do sub-
juntivo em orações adjetivas, com conectivos como ‘se’, ‘como
se’, ‘quando’, ‘onde’ e depois de palavras que indicam incerteza;
b) outra que é adquirida por meio da educação formal, em que
aparece o uso do subjuntivo nas orações adjetivas (no presente
e no pretérito) e em orações substantivas introduzidas por
conjunções diferentes das mencionadas acima.
Tomando como base as comunidades de fala analisadas,
podemos encaixá-las nessa primeira fase, uma vez que as for-
mas do futuro podem ter sido adquiridas pelo input no processo

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 277


Vívian Meira

de TLI. Por outro lado, isso também explicaria o uso do tempo


presente pelos falantes do português urbano, uma vez que es-
tes, mesmo que muitos não tenham passado por uma educação
formal, mantêm sempre contato com os meios difusores da
norma culta.

3.1.3 Morfologia verbal


Esperávamos que, por influência do material fonético
envolvido na diferença entre a forma do subjuntivo nos verbos
regulares e irregulares, fosse mais empregada a marca de sub-
juntivo nestes. No entanto, os verbos regulares favorecem mais
o uso das formas do subjuntivo do que os verbos irregulares,
como podemos verificar na Tabela 3:
Tabela 3 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português
afro-brasileiro segundo a morfologia flexional do verbo
(Nível de Significância: .044)
FLEXÃO VERBAL Nº de oc./Total Freq. P.R.
1. Regular 14/50 28% .66
2. Irregular 24/112 21% .42
TOTAL 38/162 23%

Essa realidade pode ser explicada da seguinte forma: le-


vando em consideração o fato de que o futuro teve um maior
percentual de uso nessas comunidades rurais (55%), com um
peso relativo de .78 e de que as formas desse tempo verbal
coincidem com as formas do infinitivo, o emprego das marcas
de subjuntivo nos verbos regulares também coincide com as
marcas de futuro e de infinitivo, o que teria facilitado o processo
de aquisição por parte dos falantes. A ocorrência “Mas a criação
que ‘ocê... ‘ocê sustentá na mão, ‘cê é obrigado tê a mandioca”
(Cinz., 12) é exemplo do uso do subjuntivo em verbos regulares,
ao passo que “Se eu topá ôta pessoa que me dá assistênça e me
ajuda é o pai a mesma coisa” (Cinz., 06) exemplifica o não uso
desse modo em verbos irregulares.

3.1.4 O fenômeno sob a perspectiva social


Com relação à variável comunidade, consideramos neces-
sário distinguir entre as quatro comunidades afro-brasileiras
(duas que estão mais sujeitas à influência externa e duas cujo
contexto era de origem quilombola ou que se registrou vestígios
de fala crioulizada) a que apresentava o maior peso relativo no
uso do subjuntivo nas relativas. No entanto, este item não foi
considerado significativo pelo programa, o que não nos impede
de tecer alguns comentários sobre esta variável.
As comunidades de Rio de Contas (Barra e Bananal), de-
vido à estrutura turística propiciada pela região da Chapada
278 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006
O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

Diamantina, não apresentam uma história de isolamento tão


acentuada quanto a comunidade de Cinzento. Como podemos
verificar, na Tabela 4, Rio de Contas apresentou o maior índice
de uso do subjuntivo, ficando um pouco acima da média geral,
ao passo que registramos em Cinzento o menor índice, já que
a história dessa comunidade está relacionada com uma origem
quilombola, o que a distingue das demais. Em Sapé foi registrado
um total de 28% de uso do subjuntivo, o que poderia ser explica-
do pelas alterações na estrutura social, propiciadas pela difusão
dos meios de comunicação. Helvécia está praticamente na média
geral de uso do subjuntivo. Observemos a tabela a seguir:
Tabela 4 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português
afro-brasileiro em cada comunidade de fala
FORMA PREVISTA NO USO CULTO Nº de ocorrências/Total Freqüência
1. Rio de Contas 09/29 31%
2. Sapé 08/29 28%
3. Helvécia 09/37 24%
4. Cinzento 12/67 18%
TOTAL 38/162 23%

3.1.4.1 Estada fora da comunidade


Das variáveis sociais, o VARBRUL só selecionou como es-
tatisticamente relevante a estada fora da comunidade, confirmando
os valores das freqüências absolutas, como podemos visualizar
na Tabela 5:
Tabela 5 – O uso do subjuntivo nas orações relativas
no português afro-brasileiro segundo a variável social
estada fora da comunidade (pelo menos seis meses).
(Nível de Significância: .044)
ESTADA FORA DA COMUNIDADE Nº de oc./Total Freq. P.R.
1. Não 28/92 30% .69
2. Sim 10/70 14% .26
TOTAL 38/162 23%

Esses resultados contrariam a expectativa, pois aqueles


que não saíram da comunidade usam mais o subjuntivo do que
aqueles que já viveram fora da comunidade. Entretanto, devemos
salientar que, com um número de ocorrências tão baixo como o
que se obteve nos corpora analisados, dificilmente poderíamos
chegar a resultados confiáveis no plano das variáveis sociais.

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 279


Vívian Meira

3.2 A análise dos dados das completivas:


as variáveis lingüísticas
Registramos apenas 80 orações de contextos variáveis de
uso do subjuntivo em orações completivas. A base de dados
restante ficou bastante reduzida, não possibilitando a obtenção
de resultados consistentes no nível da análise probabilística do
Programa das Regras Variáveis – VARBRUL. Por isso, os resul-
tados apresentados serão baseados apenas na freqüência relativa
expressa nos resultados percentuais.

3.2.1 Tipo da oração em que a completiva está encaixada


Com essa variável, amalgamamos os fatores, reunindo-os
em apenas três: afirmativo, negativo e a junção entre os fatores
condicional e oração com verbo modal. Esperávamos com essa
variável verificar se o contexto semântico do evento referido na
oração principal tende a influenciar a aquisição das formas de
subjuntivo pelos falantes das comunidades de fala analisadas,
pois predicações hipotéticas e não factivas estão mais associadas
ao valor irrealis, que, por sua vez, está relacionado ao modo sub-
juntivo. Levando em conta o fato de a oração condicional estar
impreterivelmente associada a hipóteses e eventos duvidosos,
nossa expectativa era a de que os falantes tendessem a fazer
uso do subjuntivo quando a oração principal apresentasse uma
condição hipotética sobre um evento. Além disso, temos também
as negativas que modificam a modalidade de predicação, pois
um evento tido como possível quando negado passa ao seu con-
traditório. Por outro lado, as orações afirmativas parecem estar
mais relacionadas a eventos reais, o que poderia contribuir para
desfavorecer o uso das formas do subjuntivo. Os resultados são
apresentados na tabela a seguir e confirmam a relação do modo
subjuntivo com o valor semântico de irrealidade:
Tabela 6 – O uso do subjuntivo nas orações completivas
no português afro-brasileiro segundo o tipo de oração
em que a completiva está encaixada
TIPO DE ORAÇÃO n.º de ocorrências/Total Freqüência
1. Condicional 03/07 43%
2. Negativa 06/18 33%
3. Afirmativa 14/55 25%
TOTAL 23/80 29%

Observamos que quando está dependente de uma oração


condicional ou de uma oração negativa (cf. exemplo “se você
num quisesse que ela fosse, você ficava queto, num mandava
ela arrumá” (Sapé, 01), com respectivamente 43% e 33% de uso
do subjuntivo, a completiva favorece mais o uso do subjuntivo
do que quando está subordinada a uma oração afirmativa (cf.

280 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

exemplo “...e se ela vem na nova, ...a gente espera qu’ela vem na-
quele mesmo... naquela mesma base, né, é por isso qu’a gente tá
visano, né?” (Cinz., 06).

3.2.2 Tipo do verbo da oração em


que a completiva está encaixada
Tendo em vista o fato de que o subjuntivo se relaciona com
o valor semântico de irrealidade, esperávamos que os contextos
semânticos de desejo, sentimento, pedido e ordem propiciados
respectivamente pelos verbos volitivos, avaliativos, inquiritivos e
causativos condicionassem o uso das formas do modo subjuntivo,
uma vez que nestes o fato expresso pela oração principal está
associado a eventos irreais ou duvidosos. Por outro lado, verbos
cognitivos, por se relacionar a eventos em que o falante tenha de
se posicionar a respeito de um fato e daí tendem a acreditar em
seu posicionamento, terminam selecionando o modo indicativo,
que, por sua vez, está associado a valores certos e reais.
As ocorrências dos verbos declarativos e perceptivos foram
descartadas por se tratar de contextos categóricos de uso do
indicativo nas comunidades de fala analisadas. Por outro lado,
as ocorrências de verbos volitivos, avaliativos e inquiritivos foram
reunidas em um mesmo fator em função do seu baixo número
de ocorrência. Feitos esses ajustes, os resultados desse grupo de
fatores são apresentados na seguinte tabela:
Tabela 7 – O uso do subjuntivo nas orações completivas no
português afro-brasileiro segundo o tipo do verbo da oração
em que a completiva está encaixada
TIPO DO VERBO nº de ocorrências/Total Freqüência
1. Volitivos, Avaliativos e Inquiritivos 10/23 43%
2. Causativos 07/18 39%
3. Cognitivos 03/32 09%
TOTAL 23/80 29%

Como podemos notar, o uso do subjuntivo é favorecido


quando a completiva é subcategorizada por verbos volitivos,
avaliativos (cf. exemplo “Quem sabe? Eles num gostam que ande
entrano no mato pa caçá não?” (Sapé, 04)., inquiritivos (43%) e
causativos (39%), como exemplificado em “Aí ele rezô ela e mandô
que fosse po hospital, que essa menina tava muito ruim” (RC,
13), sendo desfavorecido quando a completiva está subordinada
aos verbos cognitivos – conforme exemplo “Aí ela pensava que
era brincadêra, né?” (Sapé, 01), com os quais registramos apenas
09% de uso do subjuntivo.
Mais uma vez a relação do uso do subjuntivo em proposi-
ções com o traço semântico [-realis] foi ratificada, em função do
seu menor uso com verbos do tipo pensar, crer, achar em que o
nível de incerteza do falante em relação à proposição expressa

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 281


Vívian Meira

na oração completiva é menor do que quando essa oração está


ligada a verbos do tipo gostar, querer, perguntar etc., que tendem
a subcategorizar mais proposições com um maior grau de in-
certeza, ou mesmo irrealidade.
Com relação ao português urbano, apesar de o grupo
relacionado à natureza semântica da forma verbal não ter sido
selecionado como estatisticamente significativo pelo VARBRUL,
Pimpão (1999) encontrou, em seus dados, ocorrências de uso do
subjuntivo em completivas selecionadas por verbos cognitivos,
afirmando que esse tipo de contexto instaura o escopo da baixa
certeza e assim assinala “[...] o não comprometimento do falante
com que é dito. Estratégias lingüísticas dessa natureza codificam
a fraca proximidade do falante com o conteúdo proposicional”
(PIMPÃO, 1999, p. 92).

3.2.3 Tempo do subjuntivo previsto no uso culto


A partir da variável tempo do subjuntivo previsto no uso culto,
tínhamos em vista verificar se o material fonético envolvido na
diferença entre a forma do imperfeito e a do presente do subjuntivo na
oposição subjuntivo/indicativo contribuiria para a aquisição da norma
culta pelos falantes das comunidades analisadas. Nossa expectativa
era a de que a forma mais perceptível (a do imperfeito) favorecesse o
uso das formas do subjuntivo.
Nas comunidades de fala analisadas, o subjuntivo é mais
usado nos contextos do imperfeito do que nos contextos de pre-
sente, como podemos observar na seguinte tabela:
Tabela 8 – O uso do subjuntivo nas orações completivas no português
afro-brasileiro segundo o tempo do subjuntivo previsto no uso culto
CONTEXTO DE USO nº de ocorrências/Total Freqüência
1. Contexto de Imperfeito do Subjuntivo 11/33 33%
2. Contexto de Presente do Subjuntivo 11/45 24%
TOTAL 22/78 28%

Confirmamos a aplicação do princípio da saliência fônica,


visto que a alta freqüência de uso do subjuntivo nos contextos
de imperfeito (cf. explicitado em “Eu queria que estudasse, eu
tinha dois menino... os dois menó tá estudano (Sapé, 05) se deve
à maior força morfofonológica desse tempo verbal; na verdade,
o morfema do imperfeito -sse- apresenta um padrão CV mais
consistente em termos de seu material fonético do que a alter-
nância vocálica que indica o presente do subjuntivo (cf. exemplo
“Tá difícil... e essas aí, eles num qué que tire não...” (Hel., 07)

282 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

3.2.4 Avaliação do falante acerca do nível de


realidade do evento referido na oração completiva
Esperávamos verificar, com essa variável, que contextos
semânticos poderiam em maior intensidade influenciar o uso
do subjuntivo. A nossa expectativa era a de que as formas de
subjuntivo fossem mais recorrentes nos contextos de irrealidade,
visto que há tradicionalmente uma associação entre este contexto
e o modo subjuntivo.
A fim de avaliarmos o grau de variação no uso do sub-
juntivo em função desta variável, foram retiradas as ocorrên-
cias de eventos efetivamente ocorridos e pressupostos, porque se
mostraram contextos de uso categórico do indicativo. A Tabela
9 apresenta os resultados obtidos na quantificação dos dados.
Tabela 9 – O uso do subjuntivo no português afro-brasileiro de acordo
com a variável nível de realidade do evento referido na oração comple-
tiva
NÍVEL DE REALIDADE DO EVENTO nº de ocorrências/Total Freqüência
1. Irreal 08/23 35%
2. Hipotético 07/26 27%
3. (In)desejado 08/30 27%
TOTAL 23/79 29%

Como exemplo de ocorrência de fato considerado irreal,


temos 1a.; 1b., de fato hipotético; e 1c., de fato (in)desejado:
1a. Eu tive lá nove dia, fiz um exame, a médica num queria que
eu viesse. Eu falei: não, neném, eu preciso ir embora, minha
fía... tem a casa, tem as criação, num tem quem cuide, antonce
eu preciso ir embora (RC, 24).

1b. Tá bonito... cemitéro era como daí pra lá, pro dentro des-
ses eucalipe. Ieu...Ieu fui lá quando tava pequeno ‘inda. Até...
pode sê que eu vô quand’eu tivé...quand’eu morrê, [às vez] vô
contente, porque a tera de nós verdadêra é esse lá (Hel., 13).

1c....e se ela vem na nova, ...a gente espera qu’ela vem naquele
mesmo...né? (Cinz., 06).
O contexto de irrealidade pode ser considerado um fator fa-
vorável ao uso desse modo verbal. Assim, a forma de subjuntivo
nas comunidades de fala analisadas é também condicionada por
um parâmetro semântico. Observamos que as formas de sub-
juntivo, nos contextos marcados pelo traço de irrealidade, vem
ganhando ambiente junto ao modo indicativo. Observe que os
valores hipotético e (in)desejado apresentam uma percentagem
(27%) abaixo da média geral (29%) de uso do subjuntivo e que
o fator irreal apresenta apenas 35% de uso do subjuntivo, per-
centagem reduzida quando comparado com o uso desse modo
verbal no português urbano.

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 283


Vívian Meira

Tendo isso em vista, podemos citar a teoria da transparên-


cia semântica, segundo a qual a reestruturação da gramática por
parte de falantes de línguas pidgins e crioulas tem como base
estruturas cognitivas, semânticas e não apenas gramaticais.
Nesse sentido, a estrutura semântica, por ser mais universal,
trans­parente e menos marcada, tende a ser mais fácil de ser
aprendida do que as estruturas de superfície. Na verdade, tais
falantes fazem uso de variados meios expressivos com o intuito
de se comunicarem. Daí podermos entender o porquê de nestas
comunidades haver uma associação entre o subjuntivo e o valor
irrealis e, assim, a reestruturação da gramática se dá também a
partir da estrutura semântica, indo ao encontro do padrão da
língua alvo. Em outras palavras, as estruturas semânticas uni-
versais tendem a influenciar a aquisição e o uso das formas de
subjuntivo nessas comunidades.

3.2.5 Morfologia do verbo da oração completiva


A variável morfologia do verbo da oração completiva diz
respeito à diferença de material fônico nas formas dos verbos
regulares e irregulares no uso do modo subjuntivo. A tabela a
seguir apresenta os resultados dessa variável:
Tabela 10 – Uso do subjuntivo no português afro-brasileiro
segundo a morfologia do verbo da oração completiva
TIPO MORFOLÓGICO DO VERBO n.º de ocorrências/Total Freqüência
1. Irregular 15/49 31%
2. Regular 08/30 27%
TOTAL 23/79 29%

A partir dos resultados, verificamos que nos verbos ir-


regulares, que apresentam alto nível de saliência na oposição
subjuntivo versus indicativo, a freqüência de uso do subjuntivo
é maior, 31%, conforme exemplo “Norberto mandô dizê o senhô,
meu compade, que o senhô me desse cinqüenta mil… pra minha
viage!” (Hel., 20), do que nos verbos regulares, que apresentam
um nível baixo de saliência fônica na oposição subjuntivo-indi-
cativo, demonstrando apenas 27% de uso do subjuntivo, abaixo
da média geral, como em “E aí num qué que ela mora má... má
o marido dela” (Sapé, 05).

3.2.6 As variáveis sociais


Com o baixo número de ocorrências dos corpora, decorrente
da reduzida faixa de variação encontrada, não obtivemos resul-
tados consistentes no plano do encaixamento social da variável
analisada. Nenhuma variável social, portanto, foi selecionada
pelo Programa VARBRUL.

284 Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006


O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

Considerações finais
Para compreendermos o português do Brasil, é necessá-
rio conhecer a história tanto do português urbano, quanto do
português rural, observando a origem e a constituição dessas
realidades lingüísticas. Temos os negros e seus descendentes
como um dos agentes na difusão do PPB, em partes do terri-
tório brasileiro. Os negros adquiriram o português de forma
irregular, sem auxílio de meios normatizadores, produzindo
uma variedade da língua portuguesa marcada pela redução na
morfologia flexional do verbo. Em decorrência da urbanização
e da difusão dos meios de comunicação, as comunidades rurais,
especificamente as afro-brasileiras, passaram por um proceso de
mudança em direção à aquisição das formas de subjuntivo.
Diante do exposto, identificamos, em nossa análise varia-
cionista dos padrões de comportamento lingüístico das comu-
nidades afro-brasileiras do interior do Estado da Bahia, que a
aquisição do subjuntivo por falantes de comunidades constitu-
ídas por afro-descendentes desencadeia-se, do ponto de vista
lingüístico, a partir de dois fatores: (i) um de base morfológica,
em que a forma mais saliente, em termos morfofonológicos (tan-
to os verbos quanto os tempos), favorece a implementação das
formas do subjuntivo; (ii) outro fator semântico: as formas do
subjuntivo começam a ser empregadas nas referências a eventos
claramente irreais. Na verdade, partindo da idéia de que, na
oposição entre indicativo e subjuntivo, este estaria associado ao
traço semântico irrealis e aquele ao traço realis, acreditamos que o
princípio da transparência semântica pode explicar o incremento
das formas do subjuntivo, a partir do momento em que o falante
percebe uma oposição entre um modo relacionado com o realis e
outro associado ao irrealis, passando a dispor de diferentes meios
expressivos para efetivar a comunicação. Sendo assim, nas co-
munidades afro-brasileiras analisadas, a aquisição do subjuntivo
tem, a priori, base tanto morfológica quanto semântica.

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 285


Vívian Meira

Abstract
This works presents a study of the variation of
the usage of subjunctive mood in relative and
completive clauses on the speaking of four black
rural Brazilian communities at the countryside of
Bahia. Based on the theoretical and methodological
framework of the Sociolinguistics of varieties and
by means of VARBRUL software-set for the quan-
titative processing of the linguistic data, this work
analyzed the adequacy of that variable process in
the social and linguistic structure of the speaking
communities. From the linguistic point-of-view,
the subjunctive-mood forms occur more widely in
two situations: (1) one of a morphological compo-
nent, in which subjunctive forms are compatible
with both verbs and with time when subjunctive
X indicative opposition is more prominent; (2)
the other of semantic component, in which the
context of unreality tends towards a wider usage
of subjunctive mood.
Keywords: sociolinguistics, Portuguese langua-
ge – subjunctive mood; black Brazilian commu-
nities – Bahia.

Referências

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o uso das conjunções ‘mas’ e ‘embora’ em textos de alunos da Educação
Básica. 110f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade de
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LUCCHESI, Dante. O conceito de transmissão lingüística ir-
regular e o processo de formação do português do Brasil. In:
RONCARATI, Cláudia; ABRAÇADO, Jussara. Português brasileiro:
contexto lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro:
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LUCCHESI, Dante. As Duas Grandes Vertentes da História So-
ciolingüística do Brasil (1500-2000). D.E.L.T.A, São Paulo, v. 17,
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LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. Trad. Rosa Virgínia
Mattos e Silva e Hélio Pimentel, rev. e superv. de Issac N. Salum.
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MATTOSO CÂMARA Jr., Joaquim. Estrutura da Língua Portugue-
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______. História e estrutura da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Padrão, 1979.

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O uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro

PIMPÃO, Tatiana S. Variação no presente do modo subjuntivo: uma


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SANTOS, Maria Joana de Almeida Vieira dos. Os usos do conjun-
tivo em Língua Portuguesa: uma proposta de análise sintáctica e
semântico-pragmática. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003.

Niterói, n. 21, p. 269-287, 2. sem. 2006 287


O papel da mesclagem conceptual
na construção do significado
do angulador um tipo de
Angelina Aparecida de Pina
Recebido 15, jun. 2006/Aprovado 15, ago. 2006

Resumo
Baseado na teoria dos espaços mentais, o principal
objetivo deste artigo é verificar o papel que a mes-
clagem conceptual desempenha na construção do
significado do angulador do português um tipo
de. Analisando sentenças contendo esse angula-
dor, é possível concluir que o significado de um
tipo de depende da mesclagem conceptual que ele
incita: um mapeamento entre um espaço ‘input’
(entidade) e um outro espaço ‘input’ (categoria /
membro mais prototípico de uma categoria), um
espaço genérico, uma projeção parcial para o espaço
mescla (a entidade, a categoria / membro mais pro-
totípico de uma categoria e algumas propriedades
partilhadas) e uma estrutura emergente (categoria
flexível / hiperonímia).
Palavras-chave: angulador um tipo de; mescla-
gem conceptual; construção do significado.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006


Angelina Aparecida de Pina

1. Introdução
Tomando por base a teoria dos espaços mentais, este artigo
pretende verificar o papel que a mesclagem conceptual desem-
penha na construção do significado do angulador do português
um tipo de, em sentenças como “A baleia é um tipo de peixe” e “O
órgão é um tipo de piano”.
A teoria dos espaços mentais fornece um modelo para
investigar a interação entre conexões cognitivas e a linguagem.
Segundo Fauconnier & Sweetser (1996, p. 8), as conexões cogni-
tivas desempenham um papel central na semântica e, de modo
mais geral, na organização do pensamento.
No modelo de espaços mentais, a construção do significado
e o valor das formas lingüísticas dependem de três operações
básicas (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 6):
(1) Identidade: reconhecer semelhanças e diferenças, isto é, estabelecer iden­
ti­dade e oposição.

(2) Integração: realizar integração (mesclagem) conceptual, que tem estrutura


elaborada, propriedades dinâmicas e restrições operacionais.

(3) Imaginação: o produto da integração conceptual é sempre imaginativo e


criativo.

Essas complexas operações são realizadas inconsciente-


mente e ativadas na mente através de formas lingüísticas. Em
outras palavras, “as formas lingüísticas são instruções (parciais
e subdeterminadas) para construir domínios interconectados com
estrutura interna.” (FAUCONNIER, 1997, p. 35, grifos do autor)
Portanto, este artigo tem como principais hipóteses:
(a) A linguagem reflete aspectos e mecanismos da cognição humana;

(b) A escassez do significante é inerente à linguagem;

(c) A mesclagem conceptual é uma operação mental básica que determina a


construção do significado;

(d) A impossibilidade de uma análise composicional do angulador um tipo de


decorre da estrutura elaborada na mescla;

(e) O angulador um tipo de promove mesclas conceptuais, a fim de flexibilizar


fronteiras categoriais e suspender condições de verdade.

O artigo está organizado da seguinte forma: Na Seção 2,


será apresentada uma breve revisão da literatura sobre angula-
dores. Na Seção 3, serão explicados, de modo simples e conciso,
a teoria dos espaços mentais e seus avanços mais recentes. Na
Seção 4, serão analisados três exemplos contendo um tipo de, a
fim de explicitar o papel decisivo que a mesclagem conceptual
desempenha na construção do significado. Na Conclusão, serão
expostas as principais conclusões do estudo.

290 Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006


O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

2. Anguladores: breve revisão da literatura


O assunto “anguladores” (hedges) foi introduzido nas in-
vestigações lingüísticas por Lakoff (1972). O autor não estava
interessado no valor comunicativo do emprego de angulado-
res, mas preocupado com as propriedades lógicas de palavras
e sintagmas como rather, largely, a kind of, e loosely speaking, em
sua habilidade para tornar os significados “mais imprecisos
ou menos imprecisos”. Como define o autor (LAKOFF, 1972,
p. 195), o significado dos anguladores “implicitamente envolve
imprecisão (fuzziness)”.
Do ponto de vista da cognição, em uma pesquisa centrada
em protótipos semânticos, Rosch (1978) afirma que os angulado-
res são mecanismos lingüísticos para “codificar” gradações de
pertencimento categorial. Sob essa perspectiva, a formulação de
conceitos na comunicação diária requer o emprego de angulado-
res porque conceitos (ex. ‘peixe’) evocam imagens prototípicas
em nossas mentes, de sorte que é necessário marcar seus repre-
sentantes menos prototípicos. Isto é, se marcamos um conceito
com um angulador, não nos referimos a um representante pro-
totípico da classe, mas a um representante não-prototípico. Por-
tanto, uma sentença como A baleia é um tipo de peixe é aceitável,
uma vez que o angulador um tipo de flexibiliza as fronteiras da
categoria ‘peixe’ (focalizando apenas características periféricas,
como tem habitat aquático, tem nadadeiras, etc.), permitindo que
a baleia seja incluída nessa categoria.
Segundo Kay (1997), na sentença Amplamente falando, o
primeiro homem nasceu no Quênia, o angulador amplamente falando
suspende as condições de verdade do enunciado, na medida
em que, na cadeia evolucionária, o primeiro homem teria sido
diferente do homem moderno e, na configuração geopolítica do
mundo, não havia o Quênia.
Ao longo dos anos, o conceito de angulador foi sendo am-
pliado, especialmente desde de que foi adotado por pragmatistas.
Nos dias de hoje, o termo não se restringe apenas a expressões
que modificam o pertencimento de um predicado ou sintag-
ma nominal a uma categoria. Em pragmática, os anguladores
modificam o valor de verdade da proposição inteira, em vez de
tornar mais imprecisos os elementos individuais da proposição
(cf. FRASER, 1975; VANDE KOPPLE, 1985; MARKKANEN;
SCHRÖDER, 1992; CLEMEN, 2002; entre outros), ou modificam
o grau de comprometimento do falante/escritor com relação à
verdade da proposição, instanciando modalidade epistêmica
(cf. PALMER, 1988), ou servem a propósitos de polidez para
preservação de face (cf. BROWN; LEVINSON, 1987).
Tomando como fundamentação teórica os pressupostos
básicos da lingüística cognitiva, Almeida (1999, 2004) vem se
dedicando a caracterizar os anguladores como construções

Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006 291


Angelina Aparecida de Pina

gramaticais que formam uma categoria funcional híbrida, rea-


lizada por elementos provenientes de diferentes classes lexicais
(adjetivos, advérbios, locuções prepositivas e adverbiais, verbos,
orações reduzidas e desenvolvidas).
Tendo em vista as diferenças morfológicas e sintáticas dos
anguladores, a autora trabalha com a noção de radialidade cate-
gorial, segundo a qual uma categoria pode ter elementos mais
centrais (que expressam mais as propriedades da categoria) e
elementos mais periféricos (que se afastam mais ou menos desse
centro).
Ao investigar o funcionamento dos anguladores em por-
tuguês, a autora (1999, p. 135) descobre que um aspecto comum
a todos os anguladores é o fato de “serem sempre recurso para
o falante exprimir sua opinião sobre o que está proferindo”,
introduzindo um comentário a respeito do item escopado.
São exemplos de anguladores do português: uma forma de,
um tipo de, praticamente, de um modo geral, estritamente falando, de cer-
ta maneira, em certos aspectos, ser de (se) Vinf. (cf. PINA, 2004), etc.
3. Teoria dos espaços mentais
A teoria dos espaços mentais (FAUCONNIER; SWEETSER,
1996; FAUCONNIER, 1997), desenvolvida à luz da lingüística
cognitiva, tem como foco a interação entre estruturas lingüísticas
e cognitivas. A compreensão, ou melhor, a construção do signi-
ficado é operada por mapeamentos entre domínios cognitivos
localmente estruturados, que se denominam espaços mentais. Eles
são dinâmicos, no sentido de que, “à medida que pensamos e
falamos, espaços mentais são construídos, estruturados e co-
nectados sob a pressão da gramática, do contexto e da cultura.”
(FAUCONNIER; SWEETSER, 1996, p. 11) Os espaços mentais são
parcialmente estruturados por bases de conhecimento relativa-
mente estáveis (os frames e os modelos cognitivos Idealizados ou
MCIs). A conexão entre espaços mentais se realiza principalmen-
te por mapeamentos de identidade, que conectam um elemento
no espaço-base com sua contraparte no espaço-alvo.
Os construtores de espaços mentais são mecanismos lingüís­
ticos que abrem um novo espaço ou deslocam o foco para
um espaço já existente. Podem ser sintagmas preposicionais,
advérbios, conectivos, anguladores, etc. Na sentença No filme
Titanic, Leonardo DiCaprio morre, o sintagma preposicional “no
filme Titanic” cria um espaço mental de drama (peças teatrais,
filmes e afins). No espaço-base, o espaço de realidade, Leonardo
DiCaprio é um ator. O ator não morreu; quem morreu foi Jack
Dawson, seu personagem no filme. O espaço de realidade e o
espaço de drama são conectados por um link de identidade entre
Leonardo DiCaprio e seu personagem, isto é, entre um elemento
do espaço-base e sua contraparte no espaço-alvo.

292 Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006


O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

Todo esse processo cognitivo é possível devido ao princípio de


acesso (ou princípio de identificação), o qual regula a relação entre
uma entidade (= alvo) e a forma lingüística utilizada para se referir
a ela (= gatilho). Em outras palavras, a forma lingüística empregada
para nomear uma entidade do domínio-base deve permitir o acesso a
uma entidade no domínio-alvo. O nome Leonardo DiCaprio permite o
acesso a seu personagem no filme Titanic. Essa relação de identidade
está representada na Fig. 1.

Figura 1 – Link de identidade entre a (Leonardo DiCaprio) e sua


contraparte a’ (Jack Dawson)
A estrutura interna do espaço-alvo é representada por um
valor mnemônico (escrito em letras maiúsculas) referente à cena
experiencial evocada pelo verbo + seu(s) participante(s). No caso
do exemplo visto anteriormente, a notação seria MORTE a’.
Além do espaço de drama, é possível construir espaços
mentais de tempo, de lugar, de crença, de hipótese, de contra-
factualidade, entre outros. Sob esse prisma, o significado da
forma lingüística é escasso, na medida em que o significado é
resultado de complexas operações cognitivas de mapeamentos
entre espaços mentais.
À medida que o discurso se desdobra, é criada uma rede
de espaços mentais através da qual os participantes do discurso
metaforicamente se movem. Esse deslocamento é determinado
por três conceitos-chave: base (espaço que fornece um Ponto-de-
vista e um Foco iniciais), ponto de vista (espaço a partir do qual
outros podem ser acessados ou criados) e foco (espaço no qual
estruturas estão sendo adicionadas) (FAUCONNIER; SWEET-
SER, 1996, p. 12; FAUCONNIER, 1997, p. 38, p. 49).
A teoria obtém avanços importantes a partir da “descober-
ta” de uma operação cognitiva básica do homem, que governa
uma parte da criatividade (produção de novos links, novas confi-
gurações e novos significados e conceitos correspondentes) e que
depende dos mapeamentos cognitivos entre espaços mentais:
a mesclagem conceptual. (FAUCONNIER, 1997; FAUCONNIER;
TURNER, 2002)
Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006 293
Angelina Aparecida de Pina

A mesclagem opera sobre dois espaços mentais: input I1 e


I2, sob as seguintes condições:
(a) Mapeamento entre espaços − Há um mapeamento parcial de contra­par­
tes entre os dois espaços input.

(b) Espaço genérico − Há um espaço genérico, que mapeia em cada espaço


input. Esse espaço genérico reflete a estrutura e a organização (comuns
e abstratas) partilhadas pelos espaços input e define o mapeamento
central entre os espaços.

(c) Mescla − Os inputs I1 e I2 são parcialmente projetados em um novo


espaço, a mescla.
(d) Estrutura emergente − A mescla tem uma estrutura emergente que
não é fornecida pelos espaços input. Isso ocorre de três maneiras inter-
relacionadas:
(1) Composição: Em conjunto, as projeções dos inputs criam novas
relações, inexistentes nos inputs separados.
(2) Completamento: O conhecimento dos frames, modelos cognitivos e
culturais permite que a estrutura compósita projetada na mescla
pelos inputs seja vista como uma parte da estrutura mais complexa
contida na mescla. O padrão na mescla ativado pelas estruturas
herdadas é “completado” na estrutura emergente, mais complexa.
(3) Elaboração: Consiste na tarefa cognitiva realizada dentro da mescla,
de acordo com sua própria lógica emergente. Em outras palavras,
consiste em “operar a mescla”.

Portanto, as características centrais da mesclagem são


o mapeamento entre espaços mentais, a projeção parcial dos
inputs, o espaço genérico, a integração de eventos ou entidades,
e a estrutura emergente. (FAUCONNIER, 1997, p. 157)
Considere-se o exemplo da corrida de barcos (cf. FAUCON-
NIER, 1997, p 155; FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 63), que
envolve um barco à vela moderno Great America II viajando de
São Francisco à Boston em 1993, sendo comparado a um barco
à vela antigo Northern Light, que fez a mesma viagem em 1853.
Poucos dias antes do Great America II chegar a Boston, observa-
dores podiam dizer: Neste ponto da viagem, o Great America II está
4,5 dias mais adiantado que o Northern Light. A expressão “mais
adiantado que” coloca ambos os barcos viajando no mesmo curso
durante o mesmo período de tempo em 1993. Ela mescla os even-
tos de 1853 e de 1993 em um único evento. Há um mapeamento
entre espaços que conecta as duas trajetórias, os dois barcos, os
dois períodos de tempo, as posições no curso, etc. A projeção
dos inputs na mescla é parcial: a data de 1853, as condições do
tempo em 1853 e o motivo da viagem são desprezados. Devido
à estrutura emergente do espaço mescla, os dois barcos podem
ser comparados, de modo que um pode estar “mais adiantado
que” o outro. Essa estrutura de dois barcos viajando na mesma
direção, no mesmo curso, partindo de São Francisco no mesmo
dia, evoca um frame cultural familiar: uma corrida. Isso fornece
uma estrutura emergente adicional por completamento. Uma im-
portante propriedade do frame de corrida é seu valor emocional,
que pode ser projetado para o espaço input do Great America II,

294 Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006


O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

cuja tripulação pode experienciar as emoções de uma competi-


ção. Além disso, inferências a partir da mescla podem retornar
aos inputs: as velocidades e posições dos dois barcos em suas
respectivas viagens, separadas por 140 anos. (cf. Fig. 2)
Segundo Fauconnier e Turner (2002, p. 92), através da mes-
clagem, uma gama de informações sofre compressão, definida
como um mecanismo conceptual que promove insight global,
entendimento em escala humana e novo significado.
A compressão opera sobre relações vitais, isto é, relações
conceptuais básicas, que se baseiam na neurobiologia humana
e na experiência social compartilhada. Há 15 relações vitais, a
saber: Mudança, Identidade, Tempo, Espaço, Causa-Efeito, Parte-
Todo, Representação, Papel, Analogia, Desanalogia, Propriedade,
Similaridade, Categoria, Intencionalidade e Unicidade. Uma
relação pode ser comprimida em uma versão mais curta dela
mesma, uma ou mais relações podem ser comprimidas em outra
relação, ou novas relações comprimidas podem ser criadas. No
exemplo da corrida de barcos, o Tempo é comprimido em simulta-
neidade e a Intencionalidade (do Great America II) é comprimida
em intencionalidade consciente por parte das tripulações de
ambos os barcos.

Figura 2 – Rede de mesclagem da corrida dos barcos


Em síntese, a mesclagem opera a integração de estruturas
parciais de dois espaços mentais separados em uma estrutura
única com propriedades emergentes dentro de um espaço mes-
cla, cuja estrutura é tipicamente mais rica que as estruturas dos
espaços input.

Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006 295


Angelina Aparecida de Pina

4. Análise de exemplos
Tendo em vista que o conceito de mesclagem conceptual
constitui instrumental teórico recente e apurado para explicar a
construção do significado, e que o objetivo deste artigo é verificar
o papel que a mesclagem conceptual desempenha na constru-
ção do significado do angulador um tipo de, o primeiro exemplo
analisado será a clássica sentença A baleia é um tipo de peixe.
Para construir o significado dessa sentença, é realizada a
mesclagem de dois espaços mentais input: no primeiro, há a en-
tidade ‘baleia’ com suas propriedades específicas e, no segundo,
a categoria ‘peixe’ com suas propriedades definitórias. O espaço
genérico define o mapeamento entre os espaços input, conectando
as propriedades da baleia e as propriedades dos peixes (ou da
categoria ‘peixe’). A projeção para o espaço mescla é seletiva: a
entidade ‘baleia’, a categoria ‘peixe’ e algumas de suas proprie-
dades, as quais são partilhadas pela baleia (vertebrado, habitat
aquático, locomoção por nadadeiras e forma hidrodinâmica), são
projetadas para a mescla. A mescla tem estrutura emergente pró-
pria, permitindo que a ‘baleia’ seja incluída na categoria ‘peixe’,
na medida em que a categoria tem suas fronteiras flexibilizadas,
focando apenas propriedades periféricas. (cf. Fig. 3)
A baleia e os peixes são análogos em alguns aspectos e
desanálogos em outros. Na mescla, as Analogias entre a entidade
‘baleia’ e a categoria ‘peixe’ são comprimidas em Similaridade
(conecta elementos com propriedades partilhadas). A Similari-
dade é comprimida em Categoria, pois uma categoria é definida
por propriedades comuns e partilhadas entre seus membros.
A categoria criada na mescla é uma flexibilização da categoria
existente no espaço input 2. A mescla se mantém solidamente
conectada aos espaços input, de modo que as Desanalogias entre
a entidade ‘baleia’ e a categoria ‘peixe’ ainda estão presentes na
sentença A baleia é um tipo de peixe. Essa sentença difere de A ba-
leia é um peixe, que é simplesmente falsa. Até mesmo uma pessoa
ciente de que a baleia é um mamífero cetáceo pode produzir a
sentença A baleia é um tipo de peixe, pois o angulador um tipo de
suspende as condições de verdade do enunciado. Isso constitui
apenas uma forma de definir, de modo simples e inexato, uma
entidade (‘baleia’) em termos de uma categoria conhecida (‘pei-
xe’), tendo em vista suas propriedades conhecidas pelo senso
comum. Entretanto, uma pessoa que desconhece a que classe a
baleia pertence pode afirmar que A baleia é um peixe, da mesma
maneira que pode afirmar que A baleia é um tipo de peixe, A sardi-
nha é um tipo de peixe, A corvina é um tipo de peixe, etc. Nesse caso,
um tipo de não é angulador e seu significado corresponde a uma
forma de exemplificar a categoria (tipo equivale a exemplo).

296 Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006


O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

Figura 3 – Rede de mesclagem de “A baleia é um tipo de peixe”


Sendo assim, o angulador um tipo de nos incita a realizar
uma mesclagem, através da qual é construído o significado da
sentença: a flexibilização da fronteira categorial. Considerando
que um tipo de suspende as condições de verdade do enunciado,
ele é freqüentemente empregado para reduzir o comprometimen-
to do falante/escritor com a verdade (ou falsidade) do enunciado,
a fim de preservar a face nas interações verbais.
Como o exemplo 1, a sentença O órgão é um tipo de piano
também promove mescla conceptual. Há dois espaços mentais
input: no primeiro, há a entidade ‘órgão’ com suas propriedades
específicas e, no segundo, a entidade ‘piano’ com suas proprie-
dades específicas. No espaço genérico, há um mapeamento entre
os espaços input, conectando as propriedades do órgão e as pro-
priedades do piano. No espaço mescla, são projetadas seletiva-
mente: a entidade ‘órgão’, a entidade ‘piano’ e algumas de suas
propriedades, as quais são partilhadas pelo órgão (instrumento
musical dotado de teclas). A mescla tem estrutura emergente
própria, permitindo que a entidade ‘órgão’ seja definida em
termos da entidade ‘piano’, que é o membro mais prototípico
da categoria ‘instrumento musical dotado de teclas’, de acordo
com o senso comum. Dessa forma, o angulador um tipo de fle-
xibiliza as fronteiras expressivas do ‘piano’ e transforma-o em
um hiperônimo de todos os membros da categoria ‘instrumento
musical dotado de teclas’, na medida em que focaliza apenas
propriedades periféricas. (cf. Fig. 4)
A mesclagem incitada pela sentença O órgão é um tipo de
piano apresenta os mesmos tipos de compressão realizados pela

Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006 297


Angelina Aparecida de Pina

sentença A baleia é um tipo de peixe, bem como a mesma construção


do significado. Portanto, é possível que o angulador um tipo de
incite sempre o mesmo tipo de mesclagem: mapeamento entre
uma entidade e suas propriedades no espaço input 1 e uma ca-
tegoria (ou membro mais prototípico de uma categoria) e suas
propriedades no espaço input 2, sendo projetadas para a mescla
a entidade do input 1 e a categoria (ou membro mais prototípico
de uma categoria) do input 2, apenas com as propriedades parti-
lhadas entre ambas. Essa mesclagem conceptual é responsável
pela construção do significado do angulador um tipo de.

Figura 4 – Rede de mesclagem de “O órgão é um tipo de piano”


Outro exemplo interessante pode ser encontrado no corpus
do Grupo de Estudos Discurso & Gramática, no qual a infor-
mante descreve oralmente a cozinha de sua casa.
I: e em cima dessa pia tem... uma/ ah... é um tipo de uma prate-
leira só que não é uma prateleira... é uma parada bem alta... onde a gente
pendura as panelas... tem várias panelas que... minha mãe comprou e
que a gente pendura... é prático à beça... (Regina)
Como se pode observar a informante está definindo uma
entidade desconhecida, que não sabe conceituar (‘uma parada
bem alta’), em termos de uma entidade conhecida pelo senso co-
mum (‘prateleira’), mas adverte que não é uma prateleira. Nesse
caso, há dois espaços mentais input: no primeiro, há a entidade
desconhecida com suas propriedades específicas (sabemos ape-
nas que é alta e serve para pendurar panelas, mas a informante
dispõe de mais evidências) e, no segundo, a entidade ‘prateleira’
com suas propriedades específicas. No espaço genérico, há um
mapeamento entre os espaços input, conectando as propriedades
da entidade desconhecida e as propriedades da prateleira. No
espaço mescla, são projetadas seletivamente: a entidade desco-
nhecida, a entidade ‘prateleira’ e algumas de suas propriedades,
298 Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006
O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

as quais são partilhadas pela entidade desconhecida (alta, serve


para guardar objetos, etc.). A mescla tem estrutura emergente
própria, flexibilizando as fronteiras expressivas da ‘prateleira’ e
transformando-a em um hiperônimo de toda espécie de tábua
ou estante em que se guardam diferentes objetos.
5. Conclusão
Considerando a mesclagem conceptual uma operação
mental básica que determina a construção do significado, este
artigo desenvolveu a análise de dois exemplos contendo o angu-
lador um tipo de. Em linhas gerais, é possível listar as seguintes
conclusões:
(1) angulador um tipo de incita uma mesclagem que envolve
dois espaços mentais input (uma entidade e uma catego-
ria / membro mais prototípico de uma categoria), um
espaço genérico, projeção seletiva para o espaço mescla
(a entidade, a categoria / membro mais prototípico de
uma categoria e algumas propriedades partilhadas por
ambas) e uma mescla com estrutura emergente própria
(flexibilização da categoria / hiperonímia);
(2) Na mescla, as Analogias entre a entidade e a categoria são
comprimidas em Similaridade, a Similaridade é compri-
mida em Categoria, e as Desanalogias entre a entidade e
a categoria não são comprimidas.
(3) O angulador um tipo de suspende as condições de verdade
do enunciado;
(4) O angulador um tipo de é uma forma de definir, de modo
simples e inexato, uma entidade em termos de uma cate-
goria conhecida.
(5) A construção do significado do angulador um tipo de é
determinada pela mesclagem conceptual e, em especial,
pela estrutura emergente contida na mescla.
Por fim, convém ressaltar que o papel da mesclagem con-
ceptual na construção do significado dos anguladores ainda
demanda muito estudo e, portanto, a análise apresentada para o
angulador um tipo de não pretende ser exaustiva. Outros aspectos
desse angulador ficam reservados para trabalhos futuros, bem
como a análise de outros anguladores do português.

Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006 299


Angelina Aparecida de Pina

Abstract
Based on Mental Space Theory, the main purpose
of this article is to verify the role that conceptual
blending plays in meaning construction of Por-
tuguese hedge um tipo de. Analysing sentences
containing that hedge, we conclude that the
meaning of um tipo de depends on conceptual
blending that it prompts: a cross-space mapping
between an input space (entity) and another input
space (category / prototype of a category), a generic
space, a partial projection to the blend (the entity,
the category / prototype of a category and some
shared properties) and an emergent structure
(flexible category / hyperonymy).
Keywords: hedge um tipo de; conceptual blen-
ding; meaning construction.

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Niterói, n. 21, p. 289-301, 2. sem. 2006 301


Aquisição lingüística sob a ótica dos
modelos multirepresentacionais
Christina Abreu Gomes
Aline Rodrigues Benayon
Márcia Cristina Pontes Vieira
Recebido 5, jun. 2006/Aprovado 5, ago. 2006

Resumo
Esse artigo apresenta os resultados de três pesqui-
sas focalizando a aquisição da variação estruturada
de padrões fonológicos por crianças na comuni-
dade de fala do Rio de Janeiro, tendo os Modelos
Baseados no Uso como referencial teórico. Nessa
abordagem, assume-se que a variação sociolingü-
ística é representacional, não uma regra, conforme
a tradição dos estudos sociolingüísticos, e é parte
do conhecimento lingüístico do falante, que deve
ser adquirido. Distribuições de freqüências das
variantes observadas na produção das crianças por
faixa etária podem ser vistas como reflexos da ma-
neira como as variantes estão sendo armazenadas
e adquiridas. Gradualidade e efeitos de freqüência
permeiam o processo aquisitivo.
Palavras-chave: variação, aquisição, freqüência

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

1. Introdução
Esse artigo discute resultados sobre a aquisição de estru-
turas variáveis do português brasileiro por crianças da comu-
nidade de fala do Rio de Janeiro, tendo como base pressupostos
teóricos dos Modelos baseados no Uso e da Lingüística Probabi-
lística. Os resultados observados apontam para a gradualidade
da aquisição dessas estruturas e a importância do papel do input,
no que diz respeito à distribuição das ocorrências das variantes
envolvidas, para explicar as diferenças de desenvolvimento
aquisitivo observadas.
Os estudos sobre a aquisição da variação estruturada são
mais recentes (ROBERTS, 2002) e a variação passou a ter um
novo status dentro dos modelos multirepresentacionais (PIER-
REHUMBERT, 2001; BYBEE, 2001). Com os resultados aqui apre-
sentados, pretendemos demonstrar a contribuição dos estudos
sobre aquisição de estruturas variáveis para a compreensão da
aquisição lingüística.
2. Fundamentos conceptuais dos Modelos
Multirepresentacionais
Modelos baseados no Uso, Modelos emergentistas e Lin-
güística Probabilística são rotulagens que definem teorias lin-
güísticas que compartilham diversos pressupostos teóricos, mas
com focos diferentes. Os diversos modelos compartilham o fato
de que o conhecimento lingüístico do falante não é invariante,
conforme já havia sido postulado por Weinreich, Labov e Herzog
(1968). Os falantes não abstraem uma gramática invariante, e a
variação de qualquer tipo, tanto as identificadas com a concep-
ção laboviana como as de outra natureza, estão representadas
na gramática abstraída pelos falantes.
Os modelos pretendem equacionar a relação entre gramá-
tica e uso, estabelecendo uma relação diversa da encontrada no
formalismo gerativista, definindo a gramática como a organiza-
ção cognitiva da experiência de uma pessoa com a linguagem,
e as facetas dessa experiência, como, por exemplo, a freqüência
de uso de certas construções ou ocorrências específicas de cer-
tas construções, têm impacto nas representações, na aquisição,
mudança e processamento (BYBEE, 2005). A proposta é que
capacidades cognitivas gerais do cérebro humano, que permi-
tem a categorização por identidade, similaridade e diferença,
trabalham nos eventos lingüísticos de que a pessoa participa,
categorizando e registrando na memória essas experiências. O
resultado é uma representação cognitiva denominada gramática.
A gramática, embora abstrata, uma vez que todas as categorias
cognitivas são, está fortemente ligada à experiência que o falante
tem com a língua.

304 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

Para dar conta da representação mais detalhada, os mode-


los propõem uma organização probabilística do conhecimento
lingüístico. O conhecimento da linguagem é entendido, não
como um conjunto mínimo de restrições ou regras categóricas,
mas como um conjunto redundante de informações gradientes,
que podem ser caracterizadas por uma distribuição estatística
(BOD; RENS; JANNEDY, 2003). Assim, as estruturas emergem
do sistema de armazenagem e não são apriorísticas. Essas pro-
posições têm como base diversos resultados obtidos em estudos
sobre percepção, aquisição, variação sociolingüística, mudança,
processamento (cf. BOD; HAY; JANNEDY, 2003). Em função do
caráter probabilístico do conhecimento lingüístico, as freqüên-
cias terão papéis importantes na organização interna do léxico,
pois afetam a produção lingüística e a representação mental
dos itens lexicais. A freqüência de ocorrência (token frequency)
refere-se a quantas vezes uma determinada palavra ocorre em
um corpus, seja este oral ou escrito. As entradas lexicais exibirão
diversos graus de força lexical em função da sua freqüência de
uso. Logo, palavras muito freqüentes têm ótima autonomia lexi-
cal e formam conexões mais fracas, já que itens mais freqüentes
no input podem ser aprendidos independentemente de outros,
e, por isso, exibirão uma independência semântica e uma auto-
nomia que faz com que elas sejam facilmente acessadas e que
resistam a qualquer tipo de mudança analógica. Por outro lado,
palavras que são altamente freqüentes são mais suscetíveis a
mudanças foneticamente motivadas, já que este efeito é relacio-
nado ao fato de que a língua muda em tempo real, e, portanto,
quanto mais uma palavra for usada, mais chances ela terá de
ser modificada (BYBEE, 2001, p. 11). A freqüência de tipo (type
frequency) refere-se à freqüência de dicionário de um padrão
particular. Sabe-se que quanto mais uma estrutura for recorrente,
mais ela será produtiva, tendo, portanto, mais chances de ser
atribuída a novos itens. Logo, os diversos tipos de freqüência
apresentam papéis importantes na organização interna do léxico
com reflexos na percepção, produção, aquisição, processamento
e mudança (BYBEE, 2001).
Além de procurar equacionar a relação entre uso e conhe-
cimento abstrato diferentemente do que foi postulado inicial-
mente no estruturalismo, com o estabelecimento da dicotomia
langue e parole e, depois, no formalismo gerativista, através dos
conceitos de competência e desempenho e, posteriormente, lín-
gua-I e língua-E, esses modelos propõem também o abandono
da doutrina do dualismo que separa a discussão em torno de
duas perspectivas conhecidas como nature x nurture, situando os
modelos teóricos ou em função de uma concepção estritamente
biológica e inata da linguagem humana em oposição a uma visão
que enfoca a importância da experiência com o uso. O abandono
da doutrina do dualismo implica considerar a linguagem, ao
Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006 305
Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

mesmo tempo, em seu aspecto cognitivo e sua interação com


o meio ambiente, isto é, a sociedade, conforme sumarizado na
citação a seguir:
Language as a cognitive system imputed to individuals is thus
to be explained in terms of general facts about the physical
world (such as the fact that the resonances of an acoustic tube
are determined by its shape); in terms of specific capabilities of
the human species which arose through evolution (including
both gross anatomical properties, such as the position of the
larynx, and neurophysiological properties); and in terms of
the interactions of the organism with its environment during
development. In this view, social interaction is subsumed un-
der the same umbrella, as a phenomenon of nature. Human
societies, like all other mammalian social groups, are natural
collections of individuals. And social interactions form part
of the natural environment for the species, which influence
individual members through natural (physical) mechanis-
ms, such as propagation of sound and light waves, physical
contact, and pheromones. On the basis of this viewpoint, we
reject the traditional distinction between knowledge of natural
phenomena and knowledge of social conventions (with social
conventions differing from natural phenomena in being arbi-
trary). (PIERREHUMBERT; BECKMAN; LADD, 2001, p. 2)
Nos Modelos baseados no Uso, a aquisição é definida como
um processo progressivo e gradual de abstração de categorias
lingüísticas a partir de generalizações feitas a partir da arma-
zenagem de estruturas concretas. Isto é, em relação à fonologia
postula-se que (VIHMAN; CROFT, 2006; PIERREHUMBERT,
2003) as categorias emergem gradualmente a partir do léxico
adquirido, e categorias sintáticas são gradualmente abstraídas
de construções específicas que as crianças armazenam (hipó-
tese do “verbos-ilha” de TOMASELLO, 2000). Assumir que o
conhecimento lingüístico emerge do armazenamento gradual
realizado pela criança no período aquisitivo implica uma ar-
quitetura de gramática em que os diversos níveis lingüísticos
estão conectados através de redes de associações em função de
critérios de similaridade e semelhança.
Ainda, essa abordagem não se posiciona a favor da descon-
tinuidade entre a gramática da criança e a gramática do adulto.
Para Tomasello (2000, p. 237), a continuidade entre a gramática
da criança e a do adulto está no próprio processo de armazena-
mento e abstração de categorias, que é o mesmo na aquisição e
na gramática constituída, e não na posse de categorias abstratas
previstas na GU.
3. Aquisição de estruturas lingüísticas variáveis do PB
Trabalhos como os de Foulkes, Docherty e Watt (2002) e
Roberts (1996, 2002) têm apresentado evidências de que a va-
riabilidade observada nas crianças é em parte estruturada, e

306 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

essa sistematização está em conformidade com o input que elas


recebem. Os trabalhos de Benayon (2006), Gomes et al. (2006) e
Vieira (2006) observaram a aquisição de estruturas variáveis do
PB em crianças adquirindo o português carioca.
Os dados foram coletados da Amostra AQUIVAR/UFRJ
(Amostra para o estudo da aquisição da variação estruturada).
Trata-se de uma amostra transversal, constituída por 19 crianças
de faixas etárias diversas, visando abarcar o continuum etário de
2;0 a 5;0 anos. É uma amostra em constituição, que se pretende
que seja estratificada, além dos pontos etários, em função do
sexo e da classe sócio-econômica, a qual foi estabelecida em
relação à renda familiar, segundo o IBGE. Um dos objetivos da
amostra é observar o desenvolvimento da aquisição em crianças
com níveis sociais diferentes. Os trabalhos aqui apresentados
focalizaram a distribuição das variantes em função somente da
faixa etária, além dos aspectos lingüísticos relevantes para cada
estudo. Cada trabalho utilizou uma sub-amostra do total não
necessariamente com as mesmas crianças.
1
Ditongos de realização A pesquisa de Benayon (2006) analisou a aquisição dos
categórica no dialeto ditongos orais decrescentes categóricos e variáveis do dialeto
carioca
[ay]- pai, papai, praia,
carioca.1 Estudos recentes sobre a fonologia da criança, como os
ba i la r i n a, papaga io, de Bates e Goodman (1997) e de Beckman (2004), questionam a
m a ior, m a iô, ga iola,
Caio postulação gerativista de que a aquisição ocorreria a partir de
[ey]- areia, sereia, feia, um curso maturacional característico, no qual os componentes
feio rei, peito, leite,
cheia, cheio, deito, di-
gramaticais emergiriam de acordo com uma programação fixa
reito, meio, veio, leitão, e ordenada (CHOMSKY, 1975, p. 53) e postulam a determinação
deitado
[ou]- dois, coisa, biscoi-
do tamanho do vocabulário sobre as formas fonológicas, isto
to, depois, coisinha é, propõem uma estreita ligação entre a gramática abstraída e
[aw]- mau, pau, tchau, a ampliação do léxico. Com isso, a emergência das estruturas
degrau, bacalhau
[ew]- eu, meu, meus,
fonológicas ocorreria a partir da armazenagem de uma quanti-
seu, seus Romeu, Deus, dade de itens lexicais suficiente para a abstração de determinada
Mateus
categoria.
[uj]- muito, muitos, mui-
ta, muitas, muitão, cui- Tendo como ponto de partida a importância do input e
do, cuidado o papel do léxico na aquisição de ditongos categóricos, obser-
[Óy]- dodói, bóia
[εw]-céu, chapéu e cha-
vou-se a freqüência dos ditongos orais na comunidade adulta,2
peuzinho obtendo-se a seguinte distribuição: ditongos mais freqüentes,
[uy]- fui, riu, saiu, caiu [ej], [aj], [aw] e [oj], por ocorrerem em um número de itens lexi-
Ditongos de realiza-
ção variável no dialeto
cais bem mais elevado que os de freqüência baixa, que, por sua
carioca vez, são: [ew], [uy], [Óy] e [εw]. Há ainda aqueles de freqüência
[ey] peixe, beijar, queijo,
cadeira, lareira, feijão,
baixíssima, [εy] e [iw], que estão diretamente relacionados com
primeiro, queimou o status morfológico que carregam, respectivamente, são parte
[ay] baixo, baixa, embai- da flexão nominal e flexão verbal, razão pela qual foram exclu-
xo, caixa, caixinha,
2
Para o estudo da freqü-
ídos desse estudo. Uma vez que se postula que as crianças não
ência de tipo na comu- adquirem sons ou estruturas isoladas, mas itens lexicais a partir
nidade de fala adulta,
analisou-se a Amostra dos quais os segmentos e as estruturas fonológicas abstratas se
Ce n so (1980 - U FRJ/ realizam, é de se esperar que, no período aquisitivo, em que o
PEUL) com o apoio do
programa computacio- léxico das crianças está em expansão, haja uma preponderância
nal Concappv4. na freqüência de ocorrência dos itens lexicais com ditongo em
Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006 307
Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

relação à freqüência de tipo dos ditongos na aquisição dessas


estruturas.
A partir da Amostra AQUIVAR, foram coletados 771 dados,
considerando todos os tipos de ditongos e todas as ocorrências
em itens lexicais diferentes ou repetidas do mesmo item lexical.
Como um dos objetivos era o de comparar os resultados da
aquisição no português carioca com os encontrados no estudo de
Bonilha (2003), foi utilizada a mesma metodologia usada em seu
estudo. Os dados foram computados considerando a ocorrência
do ditongo em palavras diferentes, sem levar em consideração
a produção em palavras repetidas.
Os dados foram analisados agrupando os ditongos em
função da freqüência de ocorrência no léxico adulto. A tabela 1 a
seguir, que agrupa os ditongos mais freqüentes, mostra que não
há estabilização plena desses ditongos até a idade de 3 anos, uma
vez que não apresentaram categoricidade, exceto para o ditongo
[aw]. Notou-se, entretanto, a estabilização destes ditongos nas
faixas etárias posteriores, onde parece também ocorrer aumento
relativo dos itens lexicais que possuem tais ditongos. Vale res-
saltar, no entanto, que no caso do ditongo [oy] tal aumento não
é tão expressivo quando comparado aos outros.
Tabela1 – Freqüência de tipo nos ditongos [ej], [aw], [aj] e [oj]
[ej] [oj] [aj] [aw]
Idade Possibilidade % Possibilidade % Possibilidade % Possibilidade %
Ocorrência Ocorrência Ocorrência Ocorrência
2 2/3 67 0/2 0 ½ 50 2/2 100
2,3 ¾ 75 2/3 67 2/4 50 2/2 100
2,7 4/5 80 2/2 100 2/3 67 2/2 100
3 6/6 100 ¾ 75 2/3 67 2/2 100
3,3 9/9 100 3/5 60 4/4 100 3/3 100
3,7 6/7 86 2/3 67 6/6 100 3/3 100
4 8/8 100 3/4 75 7/7 100 4/4 100
4,6 9/9 100 6/6 100 8/8 100 4/4 100

Por outro lado, os ditongos menos freqüentes, na Tabela 2,


apresentaram um comportamento de ocorrência categórica em
todos os itens observados desde a faixa etária inicial da amostra.
Nota-se, também, que não podemos dizer que houve um au-
mento do vocabulário, pois esses ditongos possuem ocorrências
semelhantes em todas as faixas etárias.

308 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

Tabela 2 –Freqüência de tipo nos ditongos [ew], [uj], [Ój] e [Éw]


[ew] [uj] [Ój] [εw]
Possibilidade Possibilidade Possibilidade Possibilidade %
Idade % % %
Ocorrência Ocorrência Ocorrência Ocorrência

2 2/2 100 1/1 100 - - 2/2 100


2,3 2/2 100 2/2 100 1/1 100 1/1 100
2,7 1/1 100 1/1 100 - - - -
3 3/3 100 3/3 100 2/2 100 2/2 100
3,3 4/4 100 3/3 100 1/1 100 3/3 100
3,7 3/3 100 3/3 100 1/1 100 3/3 100
4 3/3 100 2/2 100 - - 2/2 100
4,6 5/5 100 3/3 100 1/1 100 3/3 100

A comparação das duas tabelas revela que a freqüência de


tipo é bem distribuída nos diversos ditongos e equilibrada nas
faixas etárias, apresentando apenas uma pequena diferenciação
no [ej], a partir dos 3 anos, no [aj] aos 3 e 7 meses e no [Ój] somente
na última fase. Na verdade, dentro dos postulados dos Modelos
Multirepresentacionais, a freqüência de tipo só desempenha um
papel importante na produtividade e na generalização de estru-
turas lingüísticas quando podem ser estabelecidas quais formas
são mais freqüentes e quais são menos freqüentes, isto é, quais
possuem um número de itens lexicais alto e quais apresentam
um índice de palavras relativamente baixo no léxico adquirido.
Em outras palavras, as estruturas fonológicas não são abstraídas
diretamente do input, mas do léxico armazenado. O comporta-
mento das crianças entrevistadas, no entanto, parece demonstrar
que ainda não ocorreu totalmente tal definição, uma vez que se
trata de um período de expansão lexical. Esta postulação pode
ser reforçada por outro aspecto: nota-se que a categorização e
estabilização dos ditongos [ej], [aj] e [oj] ocorrem juntamente
com o relativo aumento do número de itens lexicais produzidos,
isto é, a partir das faixas entre 3 anos e 3 e 7 meses, dependendo
do ditongo. Isso pode indicar, então, que a freqüência de tipo
começa a determinar a aquisição dos ditongos decrescentes orais
a partir somente de uma quantidade específica de palavras no
léxico. Como se explicaria, então, as ocorrências categóricas dos
ditongos menos freqüentes?
As tabelas 3 e 4 a seguir apresentam o conjunto de ocor-
rências do ditongo (agora incluindo as ocorrências repetidas
e o número de itens lexicais diferentes em que ocorrem). Na
tabela 3, com os ditongos mais freqüentes, observa-se que [ey],
[ay] e [oy], no decorrer do processo aquisitivo, apresentam uma
incidência equilibrada de palavras, não havendo nenhum item
lexical que se destaque em termos de ocorrência, isto é, não há
uma alta concentração desses ditongos em poucos itens lexicais.
Tal análise permite postular uma freqüência de ocorrência re-
lativamente baixa dessas palavras.

Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006 309


Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

Tabela 3 – Freqüência de ocorrência nos ditongos [ej], [aw], [aj] e [oj]


[ey] [aw] [ay] [oy]
Nº de Nº de Nº de Nº de
Idade O/P palavras % O/P palavras % O/P palavras % O/P palavras %
diferentes diferentes diferentes diferentes

2 4/5 3 80 2/2 2 100 7/8 2 87 0/3 2 0


2,3 7/8 4 87 2/2 2 100 11/14 4 78 7/9 3 77
2,7 6/6 4 100 2/2 2 100 9/10 3 90 2/2 2 100
3 7/8 5 87 2/2 2 100 12/13 3 92 7/8 4 87
3,3 13/13 7 100 3/3 3 100 13/13 4 100 10/11 5 91
3,7 16/17 9 94 6/6 3 100 19/19 6 100 5/6 3 83
4 15/15 8 100 7/7 4 100 26/26 7 100 5/6 4 83
4,6 17/17 9 100 12/12 4 100 28/28 8 100 26/26 6 100
85/89 95 36/36 100 125/131 95 62/71 87

Nos ditongos menos freqüentes (tabela 4), observamos uma


relação inversa: há uma distribuição concentrada em determi-
nadas palavras. Assim, notamos, desde as faixas iniciais, uma
produção considerável desses ditongos, porém todos concentra-
dos em pouquíssimos itens lexicais. Isso nos permite dizer que
a freqüência de ocorrência desses itens é bem alta.
Tabela 4 – Freqüência de ocorrência nos
ditongos [ew], [uj], [ j] e [εw]
[ew] [uy] [Óy] [εw]
Nº de Nº de Nº de Nº de
Idade O/P palavras % O/P palavras % O/P palavras % O/P palavras %
diferentes diferentes diferentes diferentes

2 30/30 2 100 5/5 1 100 - - - 5/5 2 100


2,3 23/23 2 100 8/8 2 100 2/2 1 100 3/3 1 100
2,7 10/10 2 100 4/4 1 - - - - - - -
3 34/34 3 100 9/9 3 100 7/ 7 2 100 4/4 2 100
3,3 39/39 3 100 20/20 3 100 3/3 1 100 6/6 3 100
3,7 25/25 3 100 11/11 2 100 5/5 1 100 7/7 3 100
4 46/46 3 100 15/15 2 100 - - - 7/7 2 100
4,6 79/79 5 100 23/23 3 100 1/1 1 100 13/13 3 100
286/286 100 95/95 100 18/18 100 45/45 100

O referencial teórico adotado permite a postulação de


que os itens lexicais em que se encontram os tipos de ditongos
mais freqüentes possuem baixa autonomia lexical e, portanto, a
emergência de [ey], [ay] e [oy] parece ser dependente da armaze-
nagem de um determinado número de itens lexicais. Essa pode
ser uma explicação possível para o fato de esses ditongos não
apresentarem realização categórica nas primeiras faixas etárias.
Os itens lexicais que abarcam os ditongos menos freqüentes e o
[aw], por apresentarem uma freqüência de ocorrência bem alta,
possuem relativa autonomia lexical. Isto significa dizer que essas
palavras não necessariamente precisam estar relacionadas com
várias outras. Tais itens lexicais parecem ser adquiridos como

310 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

tais. Com isso, não se pode afirmar que a generalização desse


padrão fonológico ocorreu completamente, mas sim que se ma-
nifesta em função das palavras que foram adquiridas.
Em relação à aquisição dos ditongos variáveis, observou-
se que as crianças parecem adquirir a variação existente entre
[ey] ~[e] e [ay] ~ [a]. Na verdade, as crianças dão preferência
à variante mais freqüente do input: o núcleo simples (CV). A
freqüência da estrutura complexa CVV é muito baixa nesses
contextos e, conseqüentemente, sua generalização é mais difícil
de ocorrer nesse período, já que suas conexões seriam abarcadas
por poucos itens lexicais sendo, portanto, muito fracas. Durante
o processo aquisitivo, observou-se, a partir de 3 anos e 3 meses
para [ey] e 3 anos e 7 meses para [ay], a produção da forma
ditongada. Isso pode ser explicado pelo fato de que mais itens
lexicais com os ditongos foram adquiridos, permitindo, assim,
o reforço das conexões relativas ao padrão CVV em contexto
variável. Notou-se também que nas fases em que ocorreram
as produções dos ditongos, houve um aumento do número de
itens lexicais produzidos, o que permite dizer que ocorreu uma
expansão do léxico.
GOMES et al. (2006) investigaram a aquisição dos grupos
consonantais formados por obstruinte + líquida, em relação aos
quais se observa a existência de dois processos variáveis corren-
tes na comunidade de fala do Rio de Janeiro: a alternância [l]
~ [r], como em [globu] ~ [grobu] e o cancelamento da vibrante,
como em [outru] ~ [outu], conforme detectados nos trabalhos
sobre a comunidade de fala. Estudos sobre a manifestação des-
sas alternâncias em adultos indicam como em Mollica e Paiva
(1991), condicionamento lingüístico em função da 1ª consoante
do grupo e da ocorrência de outra líquida na palavra, ao passo
que Gomes (1987) e Cristófaro-Silva (2002) apontam para forte
correlação com condicionamento lexical no caso da alternância
entre (l) e (r). Existem evidências de que, no processo aquisitivo
do PB (LAMPRECHT, 1991), a estrutura CCV é uma das últimas
estruturas silábicas adquiridas. No final do processo, as crianças
deverão apresentar dois tipos de grupo: um com alternância
entre lateral e vibrante alveolar e outro com alternância entre
realização e cancelamento da vibrante alveolar (C/l/ -plástico
~ prástico, C/r/ -prato). A autora não menciona o aspecto va-
riável da estrutura silábica em questão, mas observa que, no
processo aquisitivo, as crianças escolhem uma das líquidas
como estratégia para a fixação do padrão CCV. De acordo com
Ribas (2004) não há ordem de domínio dos diferentes grupos
de onset complexo.
A distribuição da ocorrência da sílaba CCV por faixa etá-
ria em função do alvo – grupo consonantal formado por lateral
(globo ~ grobo) ou formado pelo tap (livro ~ livu) – revelou que
os itens lexicais com grupo alvo com lateral são realizados mais
Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006 311
Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

freqüentemente com a estrutura CCV do que os que têm o tap


com o alvo. Há tanto a possibilidade de ocorrer a lateral como o
tap nos dois tipos de alvo. A acuracidade na realização da palavra
com a segunda consoante do grupo consonantal, observada nas
taxas percentuais mais altas de ocorrência dessa estrutura, se
dá antes de as crianças obterem os mesmos percentuais para as
palavras que têm o tap como alvo. A interpretação é a de que a va-
riação lingüística detectada na comunidade de fala que envolve
manutenção do tipo silábico CCV na alternância globo ~ grobo,
mas que implica alternância de type em livro ~ livu, interfere
na abstração do padrão CCV. Os resultados para a realização do
grupo somente em sílaba tônica confirmam o que foi encontrado
para os dados observados em conjunto (gráficos 1 e 2):

Gráfico 1 – Ocorrência de CCV em função da líquida por idade

Gráfico 2 – Ocorrência de CCV na sílaba tônica


em função da líquida por idade
Esses resultados apontam para uma explicação das diferen-
ças desenvolvimentais observadas em função de aspectos lingüís­
ticos específicos da ocorrência das formas no input ao invés de
restrições universais, que seriam gerais para a estrutura CCV. A
acuracidade progressiva na realização da estrutura silábica em
questão está relacionada às variantes disponíveis no input, que
envolvem competição entre realizações fonéticas diferentes da
mesma palavra e competição entre tipos estruturais diferentes,
como no caso da alternância CCV – CV das palavras que têm o
tap como alvo.

312 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

O estudo de Vieira (2006) focalizou a aquisição da flexão


variável de 3ª pessoa do plural, que constitui uma variável
sociolingüística na comunidade de fala do Rio de Janeiro. De
acordo com Naro e Scherre (1996, 2000) Scherre e Naro (1993,
1997, 1998, 2000), o português vernacular do Brasil tem sido
um campo fértil para a análise do fenômeno da concordância
verbal, já que apresenta uma vasta variação na produção da
fala, podendo produzir tanto formas como “todos os técnicos
levam a equipe” quanto “todos os técnicoØ levaØ a equipe”;
“nós vamos à praia” quanto “nós vaiØ à praia”. A partir, então,
desses trabalhos, verificou-se que há uma variação sistemática
nos processos de concordância de número, podendo a forma
verbal exibir tanto a marca explícita de plural, bem como sua
ausência. A concordância pode, portanto, ser analisada com base
nos princípios da teoria da variação (LABOV, 1972), na qual a
língua passa a ser concebida como uma estrutura inerentemente
variável, e a variação como passível de descrição sistemática,
em função de restrições lingüísticas e não-lingüísticas. Vale
destacar, também, que a variação na concordância no português
brasileiro representa uma deriva latente, de longo prazo, docu-
mentada até mesmo antes da fase clássica do latim e das línguas
européias que a precederam, conforme atestaram Scherre e
Naro (2000), que encontraram evidências que indicam que a
concordância entre o sujeito e o verbo na 3ª pessoa do plural já
era variável nos textos pré-clássicos.3 O estudo sistemático dos
dados da comunidade de fala, portanto, torna-se importante
na medida que esta constitui o input para a fala das crianças,
direcionando-as a uma determinada estrutura em detrimento
de outras, indicando que o resultado do processo aquisitivo não
pode ser exclusivamente a abstração de um sistema invariável
de estruturas exclusivamente categóricas.
As ocorrências de 3ª pessoa do plural coletadas na amos-
tra foram classificadas e analisadas em função das variáveis já
observadas para a fala dos adultos, a saber: posição do sujeito
em relação ao verbo, saliência fônica, traço humano do núcleo
do sujeito, tempos verbais, efeito gatilho (presença da marca de
plural em forma verbal da fala do entrevistador imediatamente
anterior à da criança), marcas do sujeito no nível oracional e faixa
etária. Os dados foram submetidos à análise multivariacional
pelo programa VABRUL, versão MS-DOS, que selecionou as se-
3
- a todos aqueles que guintes variáveis independentes: efeito gatilho; posição do sujei-
se fazem (3ª pl.) afora
da carreira do pecado e to; saliência fônica e idade, tendo como input de concordância .57.
TORNA (3ª sg.) a direita
da carreira. (A Deman-
Os seguintes grupos de fatores não foram selecionados: tempo
da do Santo Graal, XXI, verbal, os marcadores discursivos oracionais e o traço humano.
160, p. 223)
Uma vez que um dos objetivos é verificar a aquisição gradual
- Entom os pa rentes
OUVE (3ª sg.) conselho dos condicionamentos da concordância verbal no período aqui-
e confessaron (3ª pl.) (Os
Diálogos de São Gregó-
sitivo, foram realizadas rodadas subseqüentes com cruzamento
rio, 1.24.23 (35)) de fatores (faixa etária x efeito gatilho, faixa etária x saliência
Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006 313
Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

fônica, faixa etária x posição do sujeito). Para os objetivos desse


artigo serão comentados os resultados para saliência fônica.
De acordo com Scherre e Naro (1997), a saliência fônica
controla o uso variável da marca de 3ª pessoa do plural na fala
dos adultos. O efeito da saliência fônica é definido em função
de que itens mais salientes favorecem o uso da marca (maior
diferença entre a forma não marcada e a forma marcada – fez/
fizeram, é/são), e itens menos salientes desfavorecem-na (menor
diferença entre forma não marcada e a marcada - fala/falam).
Como a variação é inerente ao sistema, postula-se, então, que
tanto a variação quanto seus condicionamentos também farão
parte do processo aquisitivo e serão adquiridos gradualmente, tal
como outras estruturas lingüísticas. Com relação a esse controle
da concordância verbal no PB, Vieira (2006) observou se o efeito
da saliência fônica se mantinha o mesmo, independente da faixa
etária, ou se haveria diferença em função do período aquisitivo.
Tal correlação pode ser observada na tabela 5 a seguir. Em função
do número de dados obtidos, os seis níveis de saliência fônica
foram reagrupados nos dois níveis principais:
Tabela 5 – Efeito da saliência fônica em função da faixa etária
1; 11 - 2;01 2;10 – 3;0 3;07 4;0 – 4;04 4;11 – 5;0
Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR
[-saliênc. fon.] 1/16 6 .12 0/5 0 0/9 0 32/55 58 .48 7/16 44 .27
[+saliênc.fon.] 25/44 37 .41 6/7 86 .60 0/4 0 49/69 71 .56 22/28 79 .86

Como se observa na tabela, não há diferença entre os ní-


veis de saliência na faixa etária de 1;11-2,0, com os dois grupos
desfavorecendo a marca. Na segunda faixa, de 2;10-3;0, não há
dados com verbos [- salientes], ao contrário do que ocorre com
os de [+ salientes]; entretanto, não se pode falar ainda em uma
aquisição do condicionamento já que não há uma grande quan-
tidade de dados. Na faixa de 3;08, não houve quaisquer dados
com a marca de plural. Na de 4;0 – 4;04, embora não apresentem
uma diferença muito grande no peso relativo, já se percebe uma
tendência em verbos [+ salientes] favorecerem a marca explícita
de plural. Já na última faixa etária, 4;11-5;0, observa-se claramen-
te que, quanto mais saliente for o verbo, mais freqüente será a
marca de concordância.
Esses resultados espelham, de forma geral, os mesmos
resultados encontrados no estudo da Amostra Censo – comu-
nidade de fala adulta, em que os itens mais salientes favorecem
mais a concordância do que itens menos salientes. Como já era
previsto, à medida que a criança for tendo mais contato com o
input, a marca de concordância será mais freqüente naqueles
contextos em que é mais favorecida na comunidade de fala. Vê-
se, então, que desde o começo do período aquisitivo, já há uma
manifestação do efeito dos condicionamentos observados na co-
munidade de fala adulta. Pode-se, então, deduzir que as crianças

314 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

estão adquirindo gradualmente os padrões de distribuições das


variantes em função dos contextos lingüísticos.Esses resultados
apontam para o fato de que os contextos de condicionamento de
uma variável lingüística são adquiridos gradualmente ao longo
do processo aquisitivo.
4. Considerações finais
Os resultados apresentados sobre a aquisição de padrões
fonológicos e a flexão variável de 3ª pessoa do plural, estuda-
dos em crianças adquirindo o dialeto carioca, evidenciam a
necessidade de se incluir a perspectiva da variação lingüística
nos estudos sobre aquisição. Além disso, demonstram também
sua importância para a compreensão das diferenças desenvol-
vimentais, observadas através da freqüência de ocorrência das
variantes ao longo das faixas etárias.
As evidências aqui apresentadas demonstram a graduali-
dade da aquisição lingüística, observada na aquisição gradual
de condicionamentos variáveis (o caso da saliência fônica para a
flexão verbal), na influência da distribuição das variantes no input
em função da variável sociolingüística (variantes do ditongo [ey]
e alternância nos grupos consonantais), e na relação entre léxico
armazenado e freqüência de tipo e de ocorrência de itens lexicais
(realizações categóricas dos ditongos orais decrescentes).
Henry (2002, p. 280-281) observa que as crianças não só
adquirem formas variáveis cedo no período aquisitivo como
também refletem a proporção de distribuição em que as variantes
ocorrem no input a que estão expostas. Isso significa, de acordo
com Henry, que as crianças adquirem propriedades estatísticas
das estruturas lingüísticas (seu foco é a sintaxe) como parte do
processo aquisitivo. Acreditamos, no entanto, que o tipo de pro-
porção de distribuição das variantes durante o período aquisitivo
e ao final esteja ligado não só à distribuição das variantes no
input, mas também ao fato de a variável sociolingüística cons-
tituir-se em variação estável ou mudança em progresso. Henry
(2002) conclui que o dispositivo de aquisição da linguagem da
criança não só deve estar apto a incorporar a variação como
também é sensível à freqüência.

Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006 315


Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

Abstract
This paper presents the results of three researches
focusing on the acquisition of structured variation
of phonological and morphological patterns by
children in the speech community of Rio de Janeiro
taking the theoretical assumptions of the Usage-
based Models. In this approach, sociolinguistic
variation is assumed to be representational, not
a process or a rule as stated in the main tradition
of sociolinguistic studies, and it is also part of the
speaker’s knowledge, which must be acquired.
Frequency distributions of variants observed in
children production across age levels can be seen
as reflexes of the way the variants are being stored
and acquired. Gradualness and effects of frequency
encompass acquisition process.
Keywords: variation, acquisition, frequency

Referências

BATES, E.; GOODMAN, J. On the inseparability of grammar


and the lexicon: evidence from acquisition, aphasia and real-time
processing. In: ALTMANN, G. (Ed.). Special issue on the lexicon:
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318 Niterói, n. 21, p. 303-318, 2. sem. 2006


A construção da referência e
do sentido: uma atividade
sociocognitiva e interativa*
Cláudia Roncarati
Sílvia Regina Neves da Silva
Recebido 10, jun. 2006/Aprovado 10, ago. 2006

Resumo
Este artigo trata da noção de cadeia referencial na
progressão textual e discute a questão dos usos
referenciais e atributivos no processo de constru-
ção do objeto-de-discurso. A partir do enfoque
da teoria da referenciação de base sociocognitiva
interativa, demonstramos que o estabelecimento de
cadeias referenciais constitui um dos mecanismos
mais eficazes de que a língua dispõe para produzir
efeitos de sentido.
Palavras-chave: processos referenciais; cadeia
referencial; uso referencial; uso atributivo.

*
O presente artigo con-
tou com a colaboração
do bolsista de IC/CNPq
Ronaldo Eduardo Ferri-
to Mendes, do Curso de
Graduação em Letras
da UFF, como auxiliar
de pesquisa.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006


Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

Introdução
Neste artigo, focalizamos processos de constituição e de
funcionamento das cadeias referenciais (CRs) no processamento
textual e discutimos o problema da distinção entre os empregos
referencial e atributivo com base em textos de gêneros diversifi-
cados. Inicialmente, contextualizamos as tendências em pesquisa
sobre referência. A seguir, apresentamos as noções de progres-
são referencial e de cadeia referencial, assim como um quadro
resumitivo das relações anafóricas que norteiam as análises das
CRs. Por fim, apontamos questões relativas à adequabilidade do
enfoque metateórico aqui adotado, pautado na teoria da referen-
ciação de base sociocognitiva interativa.
O estudo da referência textual tem sido alvo de inúmeras
pesquisas e, conseqüentemente, de reformulações teóricas. É
truísmo afirmá-lo como um tema em que se debruçam estudio-
sos de diferentes domínios do conhecimento, como a filosofia, a
lógica, a semântica, a lingüística, a pragmática, a psicolingüística,
a sociolingüística, a semiótica, a cognição, a análise do discurso
e as ciências sociais.
Entretanto, os pesquisadores e os teóricos que se ocupam
desses estudos se dividem basicamente em duas tendências pre-
dominantes quanto ao tratamento e à concepção da referência:
uma, a mais tradicional, concebida segundo uma perspectiva
lógico-semântica e outra, pautada em uma perspectiva sociocog­
nitiva interacionista, surgida mais recentemente.
Por longo tempo, a concepção dominante foi aquela dos
estudos lógico-semânticos, para os quais a linguagem é uma
representação extensional (dêitica, apontadora) da realidade ob-
jetiva e circundante, e a referência, uma forma de representação
do mundo. Nessa vertente, o processo de constituição de elos
referenciais se reduz, então, a uma operação ou mecanismo de
atamento de uma forma nominal ou pronominal ao seu referente
no âmbito da sentença, e o referente é tratado como uma entidade
apriorística e estável, um objeto do mundo extralingüístico:
Neste caso, tanto a linguagem como o mundo estão previa-
mente discretizados e podem ser correlacionados por proces-
sos referenciais de correspondência. A referência seria uma
contraparte extramente de um conceito ou uma expressão
lingüística. As significações teriam uma referência no mundo
objetivo. Os referentes, nesta teoria, são objetos do mundo e a
atividade de referi-los é um processo de designação extensio-
nal. (MARCUSCHI, 2000, p. 11)
Tal noção de referência ainda conta com muitos adeptos.
Todavia, cada vez mais, aumenta o número de seguidores que,
ao conceberem a linguagem como uma atividade interativa e so-
ciocognitiva, passam a ver a referência como um contrato discur-
sivamente produzido, em que os referentes são imanentemente

320 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006


A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

objetos-de-discurso, entidades alimentadas e sancionadas pela


atividade discursiva. Neves da Silva (2002, p. 18), em consonância
com este enfoque metateórico, considera que
[...] a referência é a base da significação, a fonte contextual da
produção de sentidos que viabiliza a construção do referente
como objeto-de-discurso. A referência é uma entidade de
existência discursiva, criada pelos sujeitos, à medida em que
eles identificam e designam indivíduos, fatos, ações, estados
de coisas, sejam eles concretos ou abstratos, seres reais ou
virtuais. A referência é, pois, aquilo que o referente designa.
É um tipo de materialidade ou representante virtual do refe-
rente. No entanto, sua existência no texto não a constitui como
entidade independente, autônoma, com existência garantida
fora do mundo discursivo.
Sendo a referência constituída através de relações semân-
ticas variadas no processamento de retomadas ou remissões da
cadeia referencial, a sua própria significação (cf. MARCUSCHI,
1999) pressupõe o acesso a uma série de domínios, quais sejam:
ideacional (informativa e de base lexical); discursivo (informa-
tiva e de base co(n)textual); interacional (interpessoal, de base
interativa e cognitiva) e situacional (de base pragmática). A sig-
nificação da referência não é um construto pronto e acabado, ao
contrário, ela se sujeita a revisões e alterações em função mesmo
dos quadros cambiantes dos domínios em que se inscreve. Vá-
rios fatores contribuem para a significação da referência: o uso
lingüístico (léxico-semântico), a intencionalidade e a situação
(contexto). A significação lingüística, que diz respeito à seleção
de itens lexicais, à intencionalidade e à experiência cognitiva
representadas na memória histórica e social dos interlocutores,
sofre, portanto, a pressão desses domínios.
Assim, por exemplo, quando o significado da referência é
implícito, a interpretação passa a depender quase crucialmente
de processos inferenciais que se apóiam no saber partilhado.
Eventualmente, a recuperação do sentido referencial (a inter-
pretação) pode torna-se impraticável, caso em que o interlocutor
não consegue acessar e ativar, em sua memória sócio-discursi-
va, os esquemas conceituais implícitos no texto, ou parte deles,
condição sine qua non à ativação de operações inferenciais. É
senso comum que as condições de acesso ao conhecimento
enciclopédico possam restringir as possibilidades de produção
de sentido. As possibilidades de atribuição de significação às
cadeias referenciais, são, portanto, sujeitas a uma série de fatores
intervenientes: nas cadeias de remissão de um mesmo referente,
os elementos de significação relacionados podem partilhar uma
ou outra propriedade referencial, explícita ou implícita, podendo
haver entre eles apenas relações de associação, inclusão e conti-
güidade, entre outras (BRONCKART, 1999, p. 269).

Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 321


Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

A significação da referência, cumpre novamente enfatizar,


não constitui um processo definitivo e nem se calca em esquemas
conceituais previamente fixados, uma vez que a relação de sig-
nificação entre referência e referente se realiza a cada passo no
fluxo informacional. Em princípio, todos os referentes evoluem
– mesmo em retomadas por paráfrase, sinônimo ou repetição – já
que em cada remissão novas molduras comunicativas e reorien-
tações argumentativas se estabelecem. Assim, na continuidade
referencial, o referente pode ser lexicalmente recategorizado e
exibir eventuais modificações em sua predicação atributiva, em
função da negociação interacional, dos movimentos variáveis
de enquadres comunicativos e das intencionalidades argumen-
tativas.
A lingüística textual tem revitalizado, com novos ares e
promissor alento, o conjunto de conhecimento já produzido so-
bre a organização da informação, da estruturação textual e da
referência. Os resultados das pesquisas nessa área nos levam a
considerar a existência de uma teoria da referenciação, funda-
mentada em uma semântica do texto sócio-interativamente con-
cebida (cf. KOCH; MARCUSCHI, 1998, p. 173). A interpretação
de uma expressão referencial anafórica nominal ou pronominal,
portanto, não implica a localização de um antecedente ou de um
objeto específico no mundo, mas de um objeto ou informação
anteriormente produzida na memória discursiva compartilhada
e publicamente alimentada pelo próprio discurso (cf. APOTHÉ-
LOZ; REICHELER, 1999).
Como constituir cadeias referenciais
na progressão referencial
Segundo Koch e Marcuschi (1998, p. 170) e Marcuschi
(1999, p. 2), a progressão referencial diz respeito à introdução,
identificação, preservação, manutenção e retomada de referen-
tes textuais, correspondendo às estratégias de designação de
referentes e formando o que se pode denominar cadeia referen-
cial. A interpretação dessas cadeias, um dos fatores atuantes na
interpretação da progressão tópica, ou seja, na compreensão da
evolução dos assuntos tratados ao longo do fluxo discursivo,
revela-se como uma estratégia de relevância didático-pedagó-
gica para a compreensão/produção textual, área de estudos
interdependentes e com grande concentração de dificuldades.
Problemas de rastreamento da evolução dos assuntos tratados
ao longo do fluxo discursivo, de falta de concordância verbal e
nominal e ocorrência de frases truncadas e trechos sem coesão
e, não raro, sem coerência podem resultar, entre outros fatores
intervenientes, da não percepção de diferenças entre estraté-
gias de designação e de encadeamentos de referentes nos usos
discursivos.

322 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006


A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

O tema da progressão referencial ainda apresenta muitas


questões em aberto, tornando-se realmente convidativo à pes-
quisa. O recorte aqui adotado − análise das cadeias referenciais
na produção discursiva oral e escrita − é ainda pouco explorado
como instrumento de análise das transformações de designação
que um mesmo referente pode apresentar em sua cadeia de
remissão (por exemplo, por retomada através de repetição de
item lexical, pronominalização, elipse, ou ainda, por diferentes
mecanismos de recategorização: associação, sinonímia, paráfra-
se, metonímia, metáfora, hiponímia, hiperonímia, etc.).
A progressão referencial, segundo Neves da Silva (2002,
p. 29), é um dos fatores relevantes na formação de cadeias re-
ferenciais que influem na evolução e tessitura do texto. Essas
cadeias estabelecem relações semânticas e cognitivas entre os
itens lexicais que as constituem e contribuem para discriminar,
seqüencializar e entrelaçar os estágios de um argumento na
progressão temática. No fluxo da informação ingressante, o
foco de consciência se desloca continuamente de uma porção ou
segmento de unidade informacional para outro, deslocamento
este que regula a manutenção do referente na memória de cur-
to e longo termo (CHAFE, 1994, p. 98) integrando informações
velhas com novas, com suporte da argumentação. Eis aqui esses
princípios de referenciação envolvidos no foco de consciência, tal
como detalhados por Koch (2002, p. 83): ativação - um referente
até então não mencionado é introduzido no fluxo discursivo
(primeira menção); reativação- um referente já introduzido é
novamente ativado na memória de curto termo, por meio de uma
forma referencial; deativação - um outro referente é introduzido,
deslocando a atenção do referente anteriormente em foco.
É nesse aspecto, por conseguinte, que se diz que a continui-
dade referencial e o desenvolvimento do tópico contribuem para
alicerçar a organização e progressão discursiva ao longo do texto.
Um dos problemas mais comuns na produção/compreensão
textual é a dificuldade de manutenção dos referentes na memó-
ria discursiva, processo este balizado nas relações anafóricas
e catafóricas responsáveis pelas estratégias de designação e
encadeamento referencial. Mas também, como já ressaltamos,
muitos dos problemas de estabelecimento de progressão refe-
rencial podem estar relacionados ao grau de capacidade de mo-
bilização e reelaboração de conhecimentos socioculturalmente
compartilhados e registrados ou não na memória discursiva,
importante fonte de atribuição de coerência e orientação dis-
cursivo-argumentativa.
As cadeias referenciais, ao facilitarem a construção de uma
rede multidimensional de pistas prospectivas e retrospectivas na
superfície textual, contribuem para a identificação e o domínio
de estratégias sociocognitivas de seleção, antecipação, inferência
e verificação no processamento textual.
Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 323
Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

A noção de Cadeia Referencial (CR) corresponde à noção


de cadeia anafórica. Ambas foram conceituadas por Chastain
(1975, p. 205) e retomadas por Corblin (1995, p. 151). Em um
enunciado ou um texto, chamamos de CR toda seqüência de itens
que remete a um mesmo referente. A CR constitui, portanto, um
mecanismo de progressão referencial, através do qual se procede
à categorização do estatuto dos referentes.
No entanto, conforme têm demonstrado Neves da Silva
(2002), Roncarati, Cavalcante e Mendes (2004) e Roncarati (2005),
o teste da aplicação das CRs em diferentes gêneros textuais
da fala e da escrita envolve uma série de problemas de ordem
semântico-argumentativo associados ao emprego referencial e
atributivo dos referentes textuais.
A determinação do estatuto teórico dos itens lexicais, na
avaliação de Koch e Marcuschi (1998, p. 177-179), é uma ativida-
de de categorização dos referentes no discurso que, por não se
circunscrever a uma mera etiquetagem de operações de desig-
nação, desloca o problema da significação literal para aspectos
estratégicos e processuais, já que o estabelecimento das CRs se
processa em uma rede multidimensional de relações semântico-
argumentativas. A constituição de uma CR põe em foco o estado
discursivo das designações referenciais.
Portanto, a determinação do estatuto dos referentes textu-
ais em uma CR nos leva a rever a noção de que somente os sin-
tagmas nominais utilizados referencialmente são suscetíveis de
empregos anafóricos. Esta noção, para Halliday e Hasan (1976),
diz respeito à visão estreita de anáfora – o caso da anáfora direta
– que constitui sempre uma co-referenciação. O enfoque que aqui
adotamos, no entanto, se baseia numa visão ampla de anáfora,
usada “[...] para designar expressões que, no texto, se reportam a
outras expressões, enunciados, conteúdos ou contextos textuais
(retomando-os ou não) contribuindo assim para a continuidade
tópica e referencial” (MARCUSCHI, 2005, p. 54-55).
Nesse sentido, há que se considerar a função de expressões
atributivas no processo da construção da referência e de seu
sentido, uma vez que a referência constitui o próprio objeto-de-
discurso e este, por sua vez, é construído no interior do texto.
Portanto, parece pertinente que sua constituição deve levar em
conta também os atributos de predicação que lhe são remeti-
dos. O uso de expressões atributivas pode oferecer recursos de
sentido importantes para a construção do objeto-de-discurso, a
depender da tipologia das seqüências discursivas que compõem
a estrutura dos gêneros. Por exemplo, seqüências descritivas
tendem a apresentar aporte de novas informações por meio de
atributos predicativos, como demonstramos mais adiante na
análise dos textos. Nesses casos, observa-se, ainda, que essas
expressões atributivas podem ser remetidas e retomadas na CR.
Segundo Koch e Elias (2006, p. 137), muitas pesquisas têm evi-
324 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006
A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

denciado que as expressões nominais referenciais desempenham


funções cognitivo-discursivas, que, como formas de remissão,
possibilitam ativação e reativação na memória do interlocutor.
Nesse sentido, as autoras admitem que há “[...] formas híbridas,
referenciadoras e predicativas, isto é, veiculadoras não só de
informação dada, mas também de informação nova” (KOCH;
ELIAS, 2006, p. 138).
No entanto, a questão é controversa na literatura. A dis-
tinção entre emprego referencial e emprego atributivo se deve
a Donnellan (1966). Vejamos o caso clássico, apontado por este
e retomado por Lyons (1977) e Apothéloz (2003). Lyons (1977, p
153-154) considera que
Não se deve pensar que a única função dos sintagmas nomi-
nais definidos seja fazer referência a indivíduos (ou classe de
indivíduos) específicos. Um sintagma nominal definido pode
ocorrer como o complemento do verbo ‘ser’, podendo então
ter uma função predicativa, e não referencial. Isto poderá ser
ilustrado pela seguinte frase:
(2) Gisgard d’Estaing é o Presidente de França.
Assim, (2) pode ser compreendida de diversas maneiras e, em
particular, como exprimindo uma proposição comparável a
proposições como: Gisgard d’Estaing é oriundo de Auvergne,
gosta de jogar tênis, etc. Nesta interpretação de (2), o sintagma
‘o Presidente de França’ não é usado para referir um indivíduo,
mas com função predicativa, para dizer alguma coisa acerca
do indivíduo que é referido por meio da expressão-sujeito
‘Gisgard d’Estaing’.
A nosso ver, cabe ressaltar aqui que esta ‘alguma coisa’
dita acerca do referente, em forma de atributo predicativo,
delimita seu sentido referencial e contribui para a evolução do
referente.
Mais adiante, Lyons (1977, p. 153-154) admite:
Mas há uma outra interpretação de (2), segundo a qual tanto
‘Gisgard d’Estaing’ como ‘o Presidente da França’ funcionam
como expressões referenciais, estabelecendo a cópula uma
relação de identidade entre os dois referentes. Assim, acontece
que em Inglês e em muitas outras línguas, embora nem todas,
a cópula predicativa e a cópula equativa são idênticas: o verbo
‘ser’ é usado em ambos os casos. Não obstante, há diferenças
importantes entre as frases predicativas e as frases equativas
que contêm o verbo ‘ser’: se (2) for tomada como uma frase
equativa, as duas expressões referenciais são intermutáveis
(tal como os dois termos numa equação como 32= 9) e o artigo
definido é uma componente obrigatória de ‘o Presidente da
França’; se (2) for considerada uma frase predicativa, os dois
sintagmas nominais não são intermutáveis e o artigo é facul-
tativo no sintagma nominal predicativo.

Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 325


Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

O problema reside, pois, no fato de se considerar a possi-


bilidade de haver relações anafóricas também para expressões
predicativas e não somente para expressões referenciais.
Neste aspecto, Apothéloz (2003, p. 61) considera que, para
Halliday e Hasan (1976),
a referência só é um tipo de relação anafórica, dentre outras.
Mas certos autores só utilizam o termo anáfora para designar
as expressões referenciais. Neste sentido restrito do termo,
somente os sintagmas nominais utilizados referencialmente
são suscetíveis de empregos anafóricos.
Neves da Silva (2002, p. 20), com base em evidência empí-
rica extraída de diferentes gêneros textuais da fala e da escrita,
destaca a possibilidade de uma mesma referência “operar sele-
ções lexicais variadas, a depender dos atributos que vão sendo
colocados e que, não raro, geram evoluções referenciais, recate-
gorizações e reorientações discursivas e argumentativas”. Não
há dúvida de que não se pode confundir o uso referencial com
aquele atributivo, mas, por outro lado, o uso atributivo fornece
novas informações sobre o referente, contribuindo para uma
construção mais detalhada do objeto-de-discurso. Por fim, de
acordo com Mondada (2005, p. 12), a referência é “um fenômeno
que concerne simultaneamente à cognição e aos usos de lingua-
gem em contexto e em sociedade”.
Esse conjunto de argumentos metateóricos nos leva nos
leva a considerar que nenhum dado informativo relativo ao re-
ferente, seja ele referencial ou atributivo, deve ser descartado na
construção da referência. Desse modo, parece-nos teoricamente
coerente considerar a remissão de atributos predicativos como
dados informativos de valor referencial. Apesar disso, pouca
atenção se tem dado à predicação atributiva, que também tem
seu papel no sentido de transformar e fazer evoluir o objeto-de-
discurso no desenvolvimento da CR.
As CRs e os mecanismos de referenciação
estabelecidos por relações endofóricas
O estabelecimento e funcionamento das CRs são esque-
matizados a partir do seguinte quadro de relações anafóricas
proposto por Marcuschi (1999) e já adaptado e aplicado por
Neves da Silva (2002) em diferentes gêneros textuais da fala e
da escrita:

326 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006


A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

Quadro das relações endofóricas


Relação anafórica Esquema categorial
{1} Retomada explícita de antecedente por repetição ± correferência*
de item ou construção lingüística com estabilidade/ − recategorização
continuidade referencial + co-significação
+ correferência
{2} Retomada explícita do antecedente por pronome com
− recategorização
estabilidade / continuidade referencial
− co-significação
{3} Retomada implícita de antecedente por sinonímia, ± correferência*
paráfrase, associação, meronímia e metonímia com + recategorização
estabilidade/ continuidade referencial − co-significação
{4} Com remissão e retomada implícita de antecedente não − correferência
pontualizado e com reorientação referencial realizada por + recategorização
dêiticos textuais − co-significação
{5} Com remissão e retomada implícita de antecedente − correferência
e reorientação referencial por nominalização/verbo ou + recategorização
hipo/ hiperonímia − co-significação
{6} Com remissão sem retomada de antecedente e − correferência
reorientação referencial por rotulações metalingüísticas (?) recategorização
ou de força ilocutória (?) co-significação
{7} Sem remissão e sem retomada de antecedente, com (?) correferência
construção referencial induzida por pronome/nome ou (?) recategorização
construção nominal (?) co-significação
{8}Elipse. Retomada implícita de antecedente por elipse
+ correferência
do referente (argumento do verbo: sujeito ou objeto)
− recategorização
com estabilidade / continuidade referencial. Trata-se de
− co-significação
anáfora zero.

Esse quadro apresenta os mecanismos de remissão, retomada e


referência, em processos de relações endofóricas que podem garantir
continuidade referencial ou não, a depender do estabelecimento de
correferência, recategorização e co-significação. A correferenciação
é uma remissão com retomada do referente já introduzido, através
de repetição, sinônimo ou de designação alternativa para um mesmo
referente; a co-significação, uma relação de identidade léxico-
semântica estabelecida entre elementos lingüísticos e constituída
por relações anafóricas ou catafóricas; a recategorização, a remissão
a um aspecto co(n)textual antecedente (item lexical ou co(n)texto),
operando como espaço informacional para a inferenciação; pode ou
não envolver retomada implícita (parcial, total ou similar).
Para demonstrar a constituição e organização das CRs
selecionamos três textos: um fragmento de romance de Júlio Verne,
A volta ao mundo em oitenta dias; uma fábula de La Fontaine e um
trecho de uma entrevista semi-informal de uma informante com ensino
superior incompleto.
Eis o primeiro texto em análise, em que destacamos somente a
CR concernente à personagem de Jean Passepartout.
Sem ser suntuosa, a casa de Saville Row destacava-se pelo ex-
tremo conforto. Aliás, pelos hábitos invariáveis do locatário, o serviço
reduzia-se a pouco. No entanto, Phileas Fogg exigia de seu único criado
uma pontualidade e uma regularidade extraordinárias.

Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 327


Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

Naquele mesmo dia, 2 de outubro, Phileas Fogg havia despedido


James Foster – acusara o rapaz de ter-lhe trazido a água para fazer a
barba a oitenta e quatro graus Fahrenheit, ao invés de oitenta e seis -, e
esperava seu sucessor, que devia se apresentar entre onze horas
e onze e meia.
Phileas Fogg, confortavelmente instalado em sua poltrona, os dois
pés juntos, como os de um soldado numa parada, as mãos apoiadas nos
joelhos, o corpo ereto, a cabeça erguida, olhava a marcha dos ponteiros
de seu relógio de pêndulo – aparelho complicado que indicava as horas,
os minutos, os segundos, os dias, as datas do mês e o ano. Às onze e
meia em ponto, de acordo com seus hábitos cotidianos, o senhor Fogg
deveria deixar sua casa para ir ao Reform Club.
Naquele momento, bateram à porta da sala onde estava Phileas
Fogg.
James Forster, o dispensado, apareceu.
– O novo criado – disse.
Um rapaz de cerca de trinta anos apresentou-se e cumpri-
mentou-o.
– O senhor é francês e se chama John? – perguntou-lhe Phileas
Fogg.
– Jean, com o seu perdão – respondeu o recém-chegado. – Jean
Passepartout, um apelido que permaneceu, e que justifica minha
aptidão natural para me ∅ livrar de confusões. ∅ Creio ser um rapaz
honesto, senhor, mas para ∅ ser franco ∅ exerci muitas profissões.
∅ Fui cantor ambulante, picador de um circo ∅ andei na corda
bamba, como Léotard, e ∅ dancei como Blondin; depois ∅ me tornei
professor de ginástica para empregar meus talentos e, finalmente,
∅ fui sargento do Corpo de Bombeiros em Paris. Em meu dossiê
constam até incêndios notáveis. Mas eis que ∅ abandonei a França há
cinco anos e, ∅ querendo gozar da vida familiar, ∅ acabei como criado
de quarto na Inglaterra. Ora, ∅ encontrando-me desempregado e ∅
tendo ouvido dizer que o senhor Phileas Fogg era o homem mais regular
e mais sedentário do Reino Unido, ∅ apresentei-me em sua casa, senhor,
com a esperança de aqui ∅ viver tranqüilo e até ∅ me esquecer deste
nome de Passepartout...
(VERNE, Júlio. A volta ao mundo em oitenta dias. São Paulo:
Companhia Melhoramentos, 1996. p. 11-12).
CR: Jean Passepartout
CR: {6} seu sucessor que devia se apresentar entre onze
horas e onze e meia > {3} o novo criado > {3} um rapaz de cerca
de trinta anos > {2} o senhor > {3} francês > {3} John > {1} Jean
> {3}o recém-chegado > {1} Jean Passepartout, um apelido que
permaneceu > {3} minha aptidão natural > {8 } ∅ livrar > {8}
∅ creio ser > {6} um rapaz honesto > {8}∅ ser > {8} ∅ exerci {8}
∅ fui > {6} cantor ambulante > {6} picador de um circo > {8} ∅
andei > {8} ∅ dancei > {6} > {8} ∅ tornei > {6} professor de gi-
nástica > {3} meus talentos > {8} ∅ fui > {6} sargento do Corpo

328 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006


A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

de Bombeiros em Paris > {6} meu dossiê > {8} ∅ abandonei >
{8} ∅ querendo > {8} ∅ acabei > {6}como criado de quarto na
Inglaterra > {8} ∅ encontrando-me > {6} desempregado > {8}
∅ tendo > {8} ∅ apresentei-me > {8} ∅ me esquecer > {4} deste
nome de Passepartout.
Este excerto presta-se para discutir o problema do emprego
referencial e atributivo na constituição da CR, tendo em vista o
processo de construção da referência e de seu sentido, ou seja,
a construção do objeto-de-discurso.
Na progressão referencial, as formas híbridas, referencia-
doras e atributivas (cf. KOCH; ELIAS, 2006, p. 138) veiculam
informações novas que contribuem para desenhar o perfil da
personagem (o novo criado), com base na memória discursiva
sociocognitiva, através de uma construção dialógica em que
participam diferentes vozes, agentes do percurso temático
(narrador, Phileas Fogg, James Foster e o novo criado). Assim, cada
participante da trama narrativa vai aduzindo novas informações
que são compartilhadas pelo leitor ao tempo em que constroem
interativamente o objeto-de -discurso (Jean Passepartout). Ressal-
te-se que a alternância de locutores incorpora a referenciação
dêitica, a partir do momento em que o próprio Jean Passepartout
toma o turno e faz uma apresentação de si mesmo, a modo de
um dossiê (fui cantor ambulante, etc...), com o emprego da dêixis
(referenciação dêitica em 1ª p.), codificada por anáfora zero,
estratégia {8}: ∅ livrar, ∅ creio ser, ∅ ser, ∅ exerci, ∅ fui, ∅ andei,
∅ dancei, ∅ me tornei, ∅ fui, ∅ abandonei, ∅ querendo, ∅ acabei, ∅
encontrando-me, ∅ tendo ouvido dizer, ∅ apresentei-me, ∅ viver, ∅
me esquecer.
Em {6} seu sucessor que devia se apresentar entre onze horas
e onze e meia (realizada por expressão referencial formada por
determinante + nome + oração relativa), temos a primeira men-
ção do referente ativado por predicação atributiva de função
catafórica, com remissão a referente antecedente sem retomada.
Além da função atributiva, o sintagma nominal ‘seu sucessor’
remete, por catáfora, a ‘o novo criado’. Em {3} o novo criado, te-
mos a identificação do referente, por associação, com remissão
e retomada implícita do antecedente (seu sucessor) e aporte de
nova informação. Já em {3} um rapaz de cerca de trinta anos, temos
uma retomada implícita ao modo de introdução de novo refe-
rente (expressão nominal indefinida) com função predicativa
que carreia informação nova a referente já introduzido. Em {2}
O senhor, temos retomada explícita do antecedente por prono-
me de tratamento com continuidade referencial. Em {3} francês,
John temos remissão e retomada implícita de antecedente por
associação com busca de identificação por dêixis social (origem
e nome próprio) através de uma pergunta feita por Phileas Fogg.
Em {1} Jean e Jean Passepartout, um apelido que permaneceu, temos
retomadas explícitas de antecedente (John), no primeiro caso, por
Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 329
Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

repetição de item lexical com reparo e preservação de face, em


relação à origem de seu nome, feito pelo próprio Passepartout
e, no segundo, retomada explícita com aporte de novos dados
(um apelido que permaneceu) com continuidade referencial. Em
{3} o recém-chegado, temos uma retomada implícita por paráfrase
com aporte de informação nova. Em {3} minha aptidão natural e
meus talentos, temos retomadas implícitas do antecedente por
1
A Transilvânia era associação meronímica (parte do referente que o identifica) de
um estado vassa- valor atributivo sem correferencialidade. Em {6} um rapaz honesto,
lo do Sublime Portal
(o Império Otoma- cantor ambulante, picador de um circo, professor de ginástica, sargento
no), quando entrou
em um período de do Corpo de Bombeiros em Paris, como criado de quarto na Inglaterra
ampla autonomia. desempregado, temos uma série enunciativa de força ilocutória,
Como um vassalo, a
Transilvânia pagava por aporte de predicações atributivas, que, acrescentadas no
ao Portal um tribu-
to anual e fornecia percurso da CR, contribuem para compor o objeto-de-discurso
assistência militar; (o novo criado), tipificando um caso de evolução do referente na
em troca, os otoma-
nos compromete- progressão textual. Em {6} franco e tranqüilo, temos remissão sem
ram-se em proteger
a Transilvânia de retomada de antecedente por reorientação atributiva de força
ameaças externas.
Príncipes nativos a ilocucionária que oferece dados para a caracterização psicológica
governaram de 1540 da personagem. Em {6} meu dossiê, temos um caso de remissão
a 1690. As poderosas
famílias dominantes sem retomada do antecedente com reorientação referencial por
da Transilvânia, em
sua maioria hún- rotulação metalingüística ou metadiscursiva (dossiê) que resume
garas, cuja posição e encapsula os atributos predicativos apresentados na compo-
ironicamente se for-
taleceu com a queda sição da personagem pelo próprio Passepartout. Por fim, em {4}
da Hungria, geral-
mente escolhiam o deste nome de Passepartout, temos remissão e retomada implícita
príncipe, sujeito à de antecedente por dêitico textual (deste) associado a uma rotu-
aprovação do Portal;
em alguns casos, po- lação que encapsula todos os atributos que remetem ao perfil
rém, os turcos indi-
cavam diretamente da personagem, perfil este encarnado no nome simbólico e de
o príncipe. recurso semiológico da personagem, que indiciará seu papel
2
O Império Otomano,
fundado por Osman fulcral na estória: o de passe-partout, ‘a chave-mestra’, que há de
I (em Árabe Uthman, solucionar os problemas com quais a narrativa se enredará. Neste
de onde deriva o
nome “otomano”), ponto da trama, observa-se que a personagem quer se livrar do
foi um estado que
existiu entre 1281 e estigma do seu nome lhe confere.
1923 e que, no seu Agora, vamos ao segundo texto, a fábula Os Ladrões e o
auge, compreendia
um vasto domínio. Jumento, numa versão de La Fontaine.
Nos séculos XVI
e XVII, o Império
Otomano constava Os Ladrões e o Jumento
entre as principais
potências políticas
européias. Foi nesta Dois ladrões brigavam por
época em que La causa de um jumento roubado.
Fontaine escreveu
suas fábulas ideadas Enquanto ∅ trocavam bofetões,
no espírito clássico
racional do humor e apareceu um terceiro ladrão que
da crítica. A dinastia levou o asno.
Osmanli era, por ve-
zes, referida em cír- O jumento desta história
culos diplomáticos
como a da Sublime pode ser alguma infeliz provín-
Porte ou, simples-
mente, como a Porte, cia. Os ladrões são príncipes,
devido à cerimônia como o da Transilvânia,1 da
de acolhimento com Países romenos durante o governo Hungria ou do império oto-
que o Sultão agra-
ciava os embaixa- de Mihailviteazul (1593-1601). mano.2
dores à entrada do
palácio. Pode-se ver, acima, a Transilvânia.
330 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006
A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

Em lugar de dois, apareceram três,3 e já são bastantes. A provín-


cia conquistada não ficou para nenhum deles. Chega o quarto ladrão,
que deixa os outros de mãos vazias e ∅ leva o jumentinho.
(PEIXOTO, Paulo Marcos (Org.). Fábulas de La Fontaine. São
Paulo: Ed. Paumapé, 1993. p. 13)

O Império Otomano (Portal) no auge de seu domínio (1683).


Para analisar as CRs nesse fábula, optamos por segmentar
o texto em duas partes: tomamos a primeira como uma síntese
da versão clássica da fábula e a segunda, como uma paráfrase
contextualizada no século XVII.
Assim, na primeira parte, distinguimos três CRs: (1) os
ladrões; (2) o jumento e (3) um terceiro ladrão.
CR1: os ladrões (1ª menção) > {1} dois ladrões > {8} ∅ tro-
cavam
CR2: o jumento (1ª menção) > {1} um jumento roubado >
{3} o asno
CR3: um terceiro ladrão (1ª menção) > {2} que
Na CR1, a primeira menção, Os ladrões, constituída por
uma expressão nominal definida, ocorre no título; a retomada
do referente, no início do texto, se realiza por expressão nomi-
nal definida, com repetição de item lexical e especificador de
quantidade, {1} Dois ladrões; a seguir, a retomada por elipse, {8}
∅ trocavam, garante a continuidade referencial.
Segundo Chafe (1994, p. 98), a primeira menção do parti-
cipante no discurso deve ser codificada através de uma forma
nominal indefinida, caracterizando um referente ainda não co-
nhecido, o qual é subseqüentemente retomado através de forma
nominal definida, por já ser então conhecido. Mas, nas fábulas,
em geral, a primeira menção se realiza no título por expressão
nominal definida (cf. O ladrão e o corvo, A cigarra e a formiga, A
ostra e o camundongo, O leão e o cordeiro, etc...). Isso se explica talvez
3
Possivelmente, a pelo fato de que as fábulas fazem parte de um universo textual
associação aqui es- de longa tradição cultural sabidamente compartilhada na me-
tabelecida por La
Fontaine, ao citar os mória coletiva entre diferentes povos. Trata-se de gênero textual
três príncipes (Hun-
gria, Transilvânia e originado na oralidade e fixado através de padrões estruturais
Império Otomano),
diz respeito à teia de em que se antropomorfizam animais, tratados como referentes
poder, cuja instân- conhecidos. De qualquer modo, vale ressaltar que, em geral, a
cia superior eram os
Otomanos, grandes codificação de títulos é variável, a depender da intencionalidade
imperialistas.
do enunciador, que pode sugerir que o referente já é conhecido,
Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 331
Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

utilizando, para tanto, a expressão definida, ou fazer uso de


expressão nominal indefinida, quando nomeia um referente
novo, a ser apresentado no corpo do texto.
Na CR2, a primeira menção, o jumento, também se dá, no
título, por uma expressão nominal definida; a retomada, no
entanto, é realizada por uma expressão nominal indefinida, {1}
um jumento roubado, que caracteriza a particularização do refe-
rente: não se trata de um jumento qualquer, mas daquele que
foi roubado; a terceira ocorrência constitui uma retomada por
uma expressão nominal definida por sinonímia, {3} o asno, logo,
com continuidade referencial.
Já a CR3 segue o padrão previsto por Chafe (1994) com in-
trodução de um novo referente por expressão nominal indefinida
um terceiro ladrão, que, a modo de uma personagem desestabili-
zadora, abre nova possibilidade interpretativa, reorientando o
percurso argumentativo para uma direção imprevista, instau-
rando uma intertextualidade de conteúdo com o ditado latino
inter duos litigantes, tertius gaudet (entre dois litigantes, o terceiro
se alegra): o terceiro ladrão acaba “levando a melhor” ao ficar
com o asno.
Na segunda parte da fábula, há uma retomada temática
dos referentes, mas não há correferenciação, ou seja, os referen-
tes não constituem os mesmos objetos-de-discurso da primeira
parte da fábula, pois as CRs exibem uma releitura metaforizada 
no cotexto com remissão a um espaço histórico-geográfico de-
terminado, que permite inferir, através de conhecimento cultu-
ralmente compartilhado ou enciclopédico, os dados da situação
extralingüística em foco, desde que o leitor tenha acesso a esses
dados: por conhecimento prévio ou pesquisa direcionada.
Passemos, agora, à análise da segunda parte da fábula:
CR1: o jumento (1ª menção) > {1} o jumento desta história > {6}
alguma infeliz província > {1} o jumentinho
CR2: os ladrões (1ª menção) > {1} os ladrões > {6} príncipes, como
o da Transilvânia, da Hungria ou do império otomano > {8} dois ∅
> {8} três ∅ > {6} bastantes > {2} nenhum deles > { 2}  os outros >  { 3}
de mãos vazias
CR3: {7} o quarto ladrão > {2} que > {8} >  ∅ leva
Nesta segunda versão, o referente o jumento, da primeira
parte, é retomado por repetição de item lexical, {1} o jumento desta
história, com continuidade referencial sem correferencialidade; a
terceira ocorrência, {6} alguma infeliz província, constitui uma reo-
rientação por construção metafórica com atributo predicativo, de
força ilocutória; a seguir, {1} o jumentinho realiza uma retomada
por repetição de item lexical, com continuidade referencial, com
base na primeira menção.
Na CR2, o referente os ladrões do primeiro segmento do
texto é igualmente retomado por {1} os ladrões por repetição de
item lexical, com retomada sem correferencialidade; a seguir, {6}
332 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006
A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

príncipes, como o da Transilvânia, da Hungria ou do império otomano


constitui uma reorientação do referente por construção meta-
fórica com aporte de atributo predicativo e recategorização; na
seqüência referencial {8} dois ∅ retoma o referente, por meio de
especificador de quantidade, com elipse do núcleo referencial;
em {8} três ∅, a retomada segue a mesma estratégia, entretanto,
apresenta evolução referencial de atribuição predicativa quan-
titativa (não são mais aqueles dois ladrões iniciais e, sim, três);
na seqüência, {2} bastantes, para nenhum deles, os outros constituem
retomadas explícitas de antecedente por pronominalização; 
finalmente, {3} de mãos vazias faz uma reorientação referencial
com remissão e retomada implícita por meio de meronímia,
com aporte de atribuição predicativa: os ladrões ficam de mãos
vazias.
Na CR3, {1} o quarto ladrão, embora se trate de referente
novo, é introduzido ao modo de referente conhecido, uma vez
que retoma o terceiro ladrão da primeira parte, no sentido de se
tratar igualmente de personagem desestabilizadora (o que leva o
jumentinho), que abre nova possibilidade interpretativa reorien-
tando o percurso argumentativo para uma direção imprevista;
na seqüência, {2} que realiza retomada explícita por pronome
com continuidade referencial; e, finalmente, {8} ∅ leva retoma o
referente com elipse do sujeito referencial.
A fábula, termo equivalente do grego “mito”, segundo
Moisés (1974, p. 226-227), designa no interior do pensamento
aristotélico, a imitação das ações, a intriga, sendo considerada
um elemento da tragédia. De narrativa curta e alegórica, a
fábula, usualmente identificada com a parábola, encerra uma
moral, implícita ou explícita. Na avaliação de Aveleza (2002, p.
28), “Por vezes, a Fábula propõe imaginosas explicações sobre
a origem de certos comportamentos, ou situações, relaciona-
dos com animais ou com coisas ou objetos, assumindo, assim,
intenções etiológicas”. De longeva origem, provavelmente
oriental, a fábula, comum na antigüidade clássica, foi cultivada
notadamente por Esopo (século VI a. C.), por Fedro (séc. I d. C.)
e por La Fontaine, um dos mais destacados fabulistas da idade
moderna (1668 a 1694).
A fábula em questão apresenta um aspecto vário: trata-se
de uma ressignificação do papel que, tradicionalmente, caberia à
moral. Mas, na fábula de que tratamos, temos uma outra leitura
ou versão calcada no contexto sócio-histórico epocal, conforme
detalhado nas notas. Poderíamos considerar que a fábula tra-
dicional (primeiro segmento ou parte) se comporta como uma
epígrafe que inspira a outra versão. Neste sentido, ambos os seg-
mentos apresentam um dialogismo inerente, corporificado em
um tipo de metafábula. Em função dessa estrutura intertextual,
cada segmento exibe uma rede dimensional de CR específica
que se amalgama em uma mais ampla, com recategorizações
Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 333
Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

referenciais de cunho metafórico, com redirecionamento de


possibilidades interpretativas; o enunciador inaugura uma
linha argumentativa preferencial (veja-se a força ilocucionária
do modal sugerindo um recorte dessas possibilidades: o jumento
desta história pode ser alguma infeliz província.), sem, no entanto,
obstar outras interpretações ou releituras.
O último texto em análise é de uma entrevista semi-infor-
mal, de uma informante de 33 anos, com terceiro grau incom-
pleto, gravada em 1999 no bairro de Água Santa, Rio de Janeiro,
pertencente ao acervo do Projeto Programa de Estudos dos Usos
da Língua (PEUL/UFF/UnB).
F- (...) Então, o meu primeiro trabalho foi para alfabetização.
Olha, eu tenho o prazer de dizer que alfabetizei em três meses segundo a
própria alfabetizada – uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”)
empregada doméstica. Mas ela é dessas pessoas – eu não tenho
mais contato com ela, não (carro passando) sei notícias dela, não sei
se ela subiu a escada para um bem ou para um mal. Ela queria vencer.
(est) Então ela andava - parecia uma filhinha de madame , como diz,
bem arrumadinha. Ela queria vencer a todo custo. Eu acho que foi a
força de vontade dessa moça que ela aprendeu em três meses a ler.
Porque ela queria sair da casa da patroa para empregar-se no comércio.
(bonde passando) e diz ela que conseguiu (est) depois (“não tive”). (f)
Isso foi há uns doze anos atrás.
CR: Jovem alfabetizada
CR: {5} alfabetização (referente temático) > {3} a própria
alfabetizada - uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”) em-
pregada doméstica >{2} ela > {5} dessas pessoas > {2} ela > {2}
(notícias) dela > {2} ela > {2} Ela > {2} ela > {6} uma filhinha de
madame > {6} bem arrumadinha > {2} Ela > {3} a força de vontade
dessa moça > {2} ela > {2} ela > {2} ela > {2} Isso.
Neste excerto, destacamos somente uma CR, na qual o
falante relata sua experiência em alfabetizar uma pessoa adulta
(de dezoito anos, que conseguiu alfabetizar-se em três meses).
Trata-se de um relato breve, em que se observa variação nas
estratégias de progressão referencial.
Em {5} alfabetização, temos a introdução do referente-fonte
ou matriz, com remissão e retomada implícita e reorientação
referencial por hiponímia (retomada de termo mais genérico
“trabalho” por termo mais específico “alfabetização”). Em {3} a
própria alfabetizada, uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”) empregada
doméstica, temos a introdução de referente novo, por anáfora indi-
reta, de tipo semântico, ou seja, baseada no léxico, com vinculação
de atributos predicativos e rotulações. Em {2} ela, ela (notícias)
dela, ela, Ela, ela, Ela, ela, ela e ela, temos a retomada explícita
de antecedente a própria alfabetizada - uma moça de dezoito anos,
pobre, (“uma”) empregada doméstica por pronominalização com
continuidade referencial. Em {5} dessas pessoas, temos a – reto-

334 Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006


A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa

mada implícita de antecedente com reorientação referencial por


hiperonímia (retomada de termo mais específico “uma moça
de dezoito anos” por termo mais genérico “pessoas”), opera-
da por expressão referencial definida com menção a referente
estereotipado, situacionalmente evocado e, que pressupõe um
certo conhecimento compartilhado pelos interlocutores; no
caso, remete a um tipo de pessoa que se esforça por superar
dificuldades. Trata-se de referente culturalmente evocado, de
acordo com Roncarati (2003, p. 149). Em {6} uma filhinha de mada-
me, bem arrumadinha, temos retomada com remissão a atributos
predicativos por construção nominal de força ilocutória, que
supõe conhecimento compartilhado por parte do interlocutor.
Em {3} a força de vontade dessa moça, temos a retomada implícita
de antecedente por associação meronímica (parte do referente
que o identifica) de valor atributivo sem correferencialidade. Em
{2} Isso, temos a retomada implícita de discurso precedente por
pronome demonstrativo, com função resumitiva.
Esperamos ter evidenciado, com base nessas análises, que,
além das expressões referenciais, a predicação atributiva também
pode ser incluída no estabelecimento das CRs, com a finalidade
de melhor depreender as relações semânticas e cognitivas entre
os itens lexicais que colaboram para a construção do objeto-de-
discurso na memória sócio-cognitiva do interlocutor.

Abstract
In this paper, we deal with the concept of referential
chain in the textual progression, and we discuss the
problem of the referential and attributive usages
in the process of the construction of the discour-
se-object. Based on a theory of referentiation of
social-cognitive interaction basis, we show that
the constitution of the referential chain is one of
the most efficient mechanisms of the language to
produce effects of meaning.
Keywords: referential processes; referential chain;
referential usage; atributive usage.

Referências

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Niterói, n. 21, p. 319-337, 2. sem. 2006 337


Identité sociale et identité discursive,
le fondement de la compétence
communicationnelle
Patrick Charaudeau
Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Résumé
La question identitaire est une question complexe.
D’une part parce qu’elle résulte d’un croisement de
regards: celui du sujet communiquant qui cherche à
la construire et à l’imposer à son partenaire, le sujet
interprétant, lequel ne peut s’empêcher, à son tour,
d’attribuer une identité à celui-ci en fonction de ses
propres a priori. D’autre part parce qu’on a beau vouloir
éviter le piège de l’essentialisation, tout sujet a le désir
de se voir (ou de voir l’autre) constitué en une identité
unique, c’est-à-dire une essence.
Mots clefs: identité, sujets du discours, acte de
communication

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006


Patrick Charaudeau

Trois raisons, au moins, font que ce thème des identités


sociales et discursives me semble particulièrement important.
La première est que dans le domaine des sciences humaines et
sociales, et face à la montée en force de la sociologie, il justifie
l’existence d’une discipline du langage comme ayant une position
centrale, comme tissant un lien entre elles: pas de sociologie, pas
de psychologie sociale, pas d’anthropologie sans prise en compte
des mécanismes langagiers. La deuxième concerne les sciences
du langage elles-mêmes, car ce thème montre la nécessité de dis-
tinguer la langue du discours, dans un sens quelque peu inverse
à celui d’une certaine représentation qui veut que la langue soit
première et le discours second: c’est, en fait, le discours qui est
fondateur de la langue. Et si l’on veut dire que c’est par la langue
que l’on met en œuvre du discours, il faut préciser que c’est la
langue en tant qu’elle est discours, en tant qu’elle a enregistré
du discours. Cependant, cette position ne dit encore rien sur le
sujet qui parle. Et c’est en effet le troisième aspect que ce thème
met en évidence, celui de l’existence d’un sujet, d’un sujet qui se
construit à travers son identité discursive, une identité discursive
qui cependant ne serait rien sans une identité sociale à partir de
quoi se définir. C’est en tout cas ce que je voudrais montrer ici.
1. De l’identité en général
La philosophie contemporaine —principalement la phé-
noménologie— a largement traité cette question comme fonde-
ment de l’être: l’identité est ce qui permet au sujet de prendre
conscience de son existence qui se constitue à travers la prise de
conscience de son corps (un être-là dans l’espace et le temps), de
son savoir (ses connaissances sur le monde), de ses jugements
(ses croyances), de ses actions (son pouvoir de faire). L’identité
va donc de pair avec la prise de conscience de soi.
Mais cette prise de conscience, pour qu’elle se fasse, a be-
soin de différence, de différence vis-à-vis d’un autre que soi. Ce
n’est qu’en percevant l’autre comme différent que peut naître la
conscience identitaire. La perception de la différence de l’autre
constitue d’abord la preuve de sa propre identité qui devient alors
un: “être ce que n’est pas l’autre”. Dès lors, la conscience de soi
existe à proportion de la conscience que l’on a de l’existence de
l’autre. Plus cette conscience de l’autre est forte, plus fortement
se construit la conscience identitaire de soi. Il s’agit là de ce que
l’on appelle le principe d’altérité. Cette relation à l’autre s’institue
à travers des échanges qui font que chacun des partenaires se
reconnaît semblable et différent de l’autre. Semblable en ce que
pour qu’une relation existe entre les êtres humains il faut que
ceux-ci partagent, du moins en partie, des mêmes motivations,
des mêmes finalités, des mêmes intentions. Différent en ce que
chacun joue des rôles qui lui sont propres et que, dans sa singu-
larité, il a des visées et des intentions qui sont distinctes de celles
340 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006
Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

de l’autre. Ainsi, d’après ce principe, chacun des partenaires de


l’échange est engagé dans un processus réciproque (mais non
symétrique) de reconnaissance de l’autre et de différenciation
vis-à-vis de cet autre, chacun se légitimant et légitimant l’autre
à travers une sorte de «regard évaluateur» qui permet de dire
que l’identité se construit à travers une croisée des regards: “il y
a l’autre et il y a moi, et c’est de l’autre que je tiens le moi”.. Si l’on
voit les choses du point de vue de la communication langagière,
on dira en reprenant E. Benveniste qu’il n’y a pas de je sans tu,
ni de tu sans je: le tu constitue le je.
La différence étant perçue, il se déclenche alors chez le sujet
un double processus d’attirance et de rejet vis-à-vis de l’autre.
D’attirance, d’abord, car il y a une énigme à résoudre, l’énigme
du Persan dont a parlé Montesquieu, qui revient à se deman-
der: “comment peut-on être différent de moi ?” Car découvrir
qu’il existe du différent de soi, c’est se découvrir incomplet,
imparfait, inachevé. D’où cette force souterraine qui nous meut
vers la compréhension de l’autre ; non pas au sens moral, de
l’acceptation de l’autre, mais au sens étymologique de la saisie
de l’autre, de sa maîtrise, qui peut aller jusqu’à son absorption,
sa “prédation” comme disent les éthologues. Nous ne pouvons
échapper à cette fascination de l’autre, à ce désir d’un autre
soi-même. De rejet ensuite, car cette différence, si comme on l’a
dit est nécessaire, n’en représente pas moins pour le sujet une
menace. Cette différence ferait-elle que l’autre m’est supérieur ?
qu’il serait plus parfait ? qu’il aurait davantage de raison d’être
que moi ? C’est pourquoi la perception de la différence s’accom-
pagne généralement d’un jugement négatif. Il y va de la survie
du sujet. C’est comme s’il n’était pas supportable d’accepter que
d’autres valeurs, d’autres normes, d’autres habitudes que les
siennes propres soient meilleures, ou, tout simplement, exis-
tent. Lorsque ce jugement se durcit et se généralise, il devient
ce que l’on appelle traditionnellement un stéréotype, un cliché,
un préjugé. Le stéréotype joue d’abord un rôle de protection, il
constitue une arme de défense contre la menace que représente
l’autre dans sa différence.
On voit le paradoxe dans lequel se construit l’identité.
Chacun a besoin de l’autre dans sa différence pour prendre
conscience de son existence, mais en même temps il se méfie de
cet autre et éprouve le besoin soit de le rejeter, soit de le rendre
semblable pour éliminer cette différence. Le risque est, dans le
premier cas, que, à rejeter l’autre, il ne dispose plus de différence
à partir de laquelle se définir; dans l’autre cas, à le rendre sem-
blable il perd du même coup un peu de sa conscience identitaire
puisque celle-ci ne se conçoit que dans la différenciation. D’où
ce jeu subtil de régulation qui s’instaure dans toutes nos sociétés
(seraient-elles les plus primitives) entre acceptation ou rejet de
l’autre, valorisation ou dévalorisation de l’autre, revendication
Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 341
Patrick Charaudeau

de sa propre identité contre celle de l’autre. Il n’est donc pas


simple d’être soi, car être soi passe par l’existence et la conquête
de l’autre. “Je est un autre” disait Rimbaud; il faudrait préciser:
“Je est un autre moi-même semblable et différent”.
2. Les composantes de l’identité
Si l’on accepte que l’identité résulte d’un mécanisme com-
plexe au terme duquel se construisent, non pas des identités
globales, mais des traits d’identité, il convient de se demander
quelle est la nature de ces traits. Et pour ce faire, je partirai de
quelques exemples.
1° exemple:

Un père de famille rentre chez lui, et voyant son fils en train


de faire des constructions avec les assiettes en porcelaine de
Limoges héritées de la grand-mère, lui dit: “Ah ben, au moins
elles auront servi à quelque chose ces assiettes !”. Et l’enfant
remet les assiettes dans l’armoire.
Un père a une identité sociale à la fois par filiation biolo-
gique (géniteur de tel enfant) et par ce que dit la loi (il jouit de
certains droits et doit se soumettre à certains devoirs). C’est
cet ensemble qui lui donne une autorité parentale, au niveau
de ce que l’on nommera «identité sociale». Mais chaque père
se construit, en outre, par ses comportements et ses actes lan-
gagiers, différentes identités de père autoritaire, protecteur,
compréhensif, castrateur, indifférent, etc…. Ces identités sont
construites à travers des actes de discours. Au total, son identité
d’être résultera de la combinaison des attributs de son identité
sociale avec tel ou tel trait que construisent ses actes langagiers.
Dans cet exemple, le père se construit une identité de père non
autoritaire, ironique et, vraisemblablement, de personne réglant
ses comptes avec ce que représentent ces assiettes. Mais en plus
il obtient de son fils qu’il range l’objet de son forfait.
2° exemple:

[Dans une réunion de travail, après avoir élaboré un projet


de recherche qui doit être soumis à l’évaluation d’une com-
mission, l’un des membres du groupe suggère qu’il faudrait
savoir qui fait partie de ladite commission.] S’ensuit le dialogue
suivant:

A - Moi, je connais FP qui en fait partie.

B - Ah, ben moi aussi, je connais FP, et je te conseille de ne


rien lui dire car c’est une personne intègre qui a horreur qu’on
fasse pression sur lui.

A - Mais je n’ai pas dit que j’allais lui parler, j’ai seulement dit
que je le connaissais.

342 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006


Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

B - Non, mais je n’ai pas dit non plus que tu allais lui parler,
j’ai seulement dit qu’il fallait être prudent.
Ici, il s’agissait entre autres, pour B, de montrer qu’elle (il
s’agit d’une femme) connaissait mieux FP que A, qu’elle était plus
sage ou lucide que A, prenant une position haute par rapport
à A de «conseilleur». Si l’on sait en plus que, dans ce groupe, B
est la supérieure hiérarchique de A, on comprend que sa visée
était de rappeler à A, et au groupe, quel était son statut. L’identité
construite par les actes de langage sert ici à réactiver l’identité
sociale.
3° exemple:

[En 1988, à l’occasion de la campagne électorale pour la pré-


sidence de la République, F. Mitterand et J. Chirac se sont
trouvés confrontés dans un face à face télévisé. Au cours du
débat, F. Mitterand s’adressait à son adversaire en lui donnant
constamment du “Monsieur le Premier ministre”, puisqu’il
était en effet son Premier ministre en exercice]

— J.Chirac (quelque peu agacé): “Cessez, monsieur Mitterand,


de me traiter de Premier ministre. Ici, je ne suis pas votre Premier
ministre, et vous n’êtes pas le Président de la République. Nous
sommes seulement deux candidats qui se présentent aux suffrages
des électeurs”.

— F. Mitterand (avec un léger sourire): “ Bien sûr, vous avez tout


à fait raison, monsieur le Premier ministre”.
Voilà un cas où l’homme politique, par sa réplique, se
construit une image de personne à la fois dominatrice, sûre
d’elle-même; mais aussi distante et enjouée, pouvant se per-
mettre de jouer avec son adversaire, faisant un clin d’œil aux
téléspectateurs en pratiquant l’ironie; mais aussi paternaliste
(“allons, allons, tout cela n’est qu’un jeu”) comme l’aiment bien
les Français. Ici, tout se joue dans une stratégie de discours qui
construit divers masques d’identité psychologique.
4° exemple:

Enfin, je rappellerai le slogan publicitaire d’une des campagnes


de la banque BNP en France: “Votre argent m’intéresse”. Ce
slogan apparaissait sur une affiche de rue, à côté d’un homme
représentant le cadre supérieur (costume-cravate et cheveux
gominés vers l’arrière), en position frontale, dans une sorte de
clair-obscur austère, et regardant le passant bien droit dans
les yeux.
Il s’agissait, à l’époque, de construire une certaine image
du banquier qui était censée correspondre à celle qui circule
dans les représentations sociales (et confortée par une enquête
préalable), mais généralement non dite: «le banquier n’est pas
un altruiste, il profite de notre argent».

Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 343


Patrick Charaudeau

L’identité construite par le slogan était, semble-t-il, des-


tinée à produire un effet de sincérité: à ne pas masquer une
certaine identité sociale du banquier (celle qui circule dans les
représentations), on pouvait entendre un discours implicite du
genre: “moi, au moins, je vous dis la vérité; donc vous pouvez
avoir confiance”.
On voit par ces exemples d’une part que l’identité du sujet
communiquant est composite. Elle se compose de données bio-
logiques (“on est ce qu’est notre corps”), de données psychoso-
ciales qui sont attribuées (“on est ce que l’on dit que vous êtes”),
de données construites par notre propre comportement (“on est
ce que l’on prétend être”). Mais comme, du point de vue de la
signification, les données biologiques acquièrent celles que leur
donnent les groupes sociaux, on peut dire que ces composantes
se ramènent à deux: celle que l’on nommera, par commodité,
identité sociale, et celle que l’on nommera identité discursive. De
plus, ces exemples nous montrent d’une part que l’identité sociale
n’est pas le tout de la signification du discours, l’effet possible
d’influence de celui-ci n’étant pas entièrement donné par avance,
d’autre part que le discours n’est pas que langage, sa signification
dépendant, pour une part, de l’identité sociale de celui qui parle.
L’identité sociale a besoin d’être confortée, renforcée, recréée ou,
au contraire, occultée par le comportement langagier du sujet
parlant, et l’identité discursive, pour se construire, a besoin d’un
socle d’identité sociale. On posera donc qu’existe une différence
entre ces deux types d’identité, et que c’est du fait de leur combi-
naison que se construit le pouvoir d’influence du sujet parlant.
L’identité sociale
Elle a cette particularité de devoir être reconnue par les
autres. Elle est ce qui donne au sujet son «droit à la parole», ce
qui le fonde en légitimité. Il faut donc voir en quoi consiste cette
légitimité
La légitimité est une notion qui n’est pas exclusive du domai-
ne politique. D’une façon générale, elle désigne l’état ou la qualité
de qui est fondé à agir comme il agit. On peut être légitimé ou
non à prendre la parole dans une assemblée ou une réunion, à
édicter une loi ou une règle, à appliquer une sanction ou donner
une gratification. Le mécanisme par lequel on est légitimé est un
mécanisme de reconnaissance d’un sujet par d’autres sujets, au
nom d’une valeur qui est acceptée par tous; ainsi en est-il dans
les exemples précédemment cités. Aussi, la légitimité dépend-elle
des normes institutionnelles qui régissent chaque domaine de
pratique sociale et qui attribuent des statuts, des places et des
rôles à ceux qui en sont investis.
Par exemple, dans le domaine juridique, qui est régi par
une logique de la loi et de la sanction, les acteurs sont légitimés
par l’obtention d’un diplôme et le statut institutionnel acquis
344 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006
Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

du fait d’un système de recrutement par concours accompagné


d’un système de nomination par les paires ou les supérieurs
hiérarchiques. La profession est donc protégée par les règles de
l’institution. Mais qu’une entorse soit faite à l’une d’entre elles
(le secret professionnel) ou qu’un comportement semble diver-
ger d’une norme attendue (comme ce que d’aucuns appellent le
“harcèlement juridique”), et immédiatement se trouve mise en
cause la légitimité de l’action des juges. Il en est de même dans
le domaine de certaines professions libérales comme la profes-
sion médicale qui, soumise à une logique d’expertise en relation
avec une finalité de lutte contre la souffrance et la mort, verrait
mise en cause la légitimité de certains de ses acteurs si ceux-ci
venaient à commettre des erreurs médicales ou à faire passer
leur intérêt financier devant leur activité de médecin.
Dans le domaine économique, qui est régi par une logique
du profit, les acteurs sont tenus de respecter des règles de con-
currence, et dans le domaine de l’entreprise qui lui est lié, les lois
du travail. Au nom de cette logique, il n’est pas illégitime que
l’on licencie, que l’on cherche à prendre la plus grande part d’un
marché, ou même que l’on fasse de la culture extensive. Mais
qu’une entreprise fasse travailler les enfants, qu’elle exploite son
personnel, qu’elle licencie abusivement sans reclasser, qu’elle
exerce un monopole sur un marché, ou que l’on découvre les
effets néfastes d’une politique économique (culture extensive), et
voilà que l’on peut l’attaquer du côté de sa légitimité (ne pas avoir
le droit d’agir de la sorte). Cependant, il s’agit d’une illégitimité
au regard de la morale et non du profit.
Dans le domaine médiatique, encore, qui est régi par une
double logique d’information citoyenne et de concurrence com-
merciale1 la mise en cause de la légitimité de ses acteurs est plus
difficile à obtenir, tant la machine médiatique a un pouvoir de
récupération de ses propres dérives.2 Mais la course effrénée
pour obtenir et diffuser un scoop (le syndrome paparazzi), la
diffusion d’informations fausses et non vérifiées (le syndrome
de Timisoara), la trop grande spectacularisation de la mise en
scène de l’information peuvent remettre en cause le sacro-saint
devoir d’informer.
Mais il est également une autre légitimité, celle qui est at-
tribuée de fait, par la seule force de la reconnaissance, de la part
des membres d’une communauté, de la valeur de l’un des leurs.
1
Voir notre Le discours C’est la légitimité que donne l’attribution d’un prix (comme dans
d’ information médiati- les festivals) ou d’un titre honorifique, ou l’intronisation dans
que: la construction du
miroir social. Paris: Na- une société savante (l’Académie), ou, dans un autre type d’acti-
than-INA, 1997. chap.4. vité, la performance ou la victoire dans la compétition sportive.
2
Voir notre Le discours
d’ information médiati- Il peut aussi se produire, parfois, un glissement curieux entre
que: la construction du cette légitimité attribuée au nom d’un certain savoir-faire et
miroir social. Paris : Na-
than-INA, 1997. chap.13 une «légitimité à dire»: celle des anciens sportifs devenant des
et 14. journalistes ou des réalisateurs de films devenant des critiques
Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 345
Patrick Charaudeau

de cinéma, etc.; celle de l’engagement personnel qui permet de


parler au nom de sa pratique (“je suis du parti communiste, je
sais de quoi je parle”); celle du témoignage qui permet de parler
au nom de son vécu (“ça m’est arrivé” ou “j’y étais”, “je peux en
témoigner”). C’est que le primé, le médaillé, l’honoré, l’engagé
et le témoin sont comme placés sur un piédestal, c’est en eux
qu’une communauté peut se regarder et se reconnaître. Cette
«légitimité à dire» procède d’un «savoir-faire».
L’identité sociale (psycho-sociale, faudrait-il dire car elle est
empreinte de traits psychologiques) est donc un «attribué-re-
connu», un «construit par avance» au nom d’un savoir reconnu
par institutionnalisation, d’un savoir-faire reconnu par la per-
formance de l’individu (expert), d’une position de pouvoir recon-
nue par filiation (être bien né) ou par attribution (être élu/être
décoré), d’une position de témoin pour avoir vécu l’événement ou
s’être engagé (le militant/le baroudeur). L’identité sociale est en
partie déterminée par la situation de communication: elle doit
répondre à la question que se pose le sujet parlant lorsqu’il prend
la parole: “Je suis là pour quoi dire, en fonction du statut et du
rôle qui m’est assigné par la situation ?”. Mais on va voir que cette
identité sociale peut être reconstruite, masquée ou déplacée.
L’identité discursive
L’identité discursive a la particularité d’être construite
par le sujet parlant en répondant à la question: “Je suis là pour
comment parler ?”. De là qu’elle corresponde à un double enjeu
de “crédibilité” et de “captation”.
Un enjeu de crédibilité qui repose sur le besoin pour le sujet
parlant d’être cru, soit par rapport à la vérité de son propos, soit
par rapport à ce qu’il pense réellement, c’est-à-dire sa sincérité.
Le sujet parlant doit donc défendre une image de lui-même (un
«ethos») qui l’entraîne stratégiquement à répondre à la question:
“comment puis-je être pris au sérieux ?”. Pour ce faire, il peut
adopter plusieurs attitudes discursives:
• de neutralité, attitude qui l’amène à effacer dans son dis-
cours toute trace de jugement ou d’évaluation personnelle.
Cette attitude est celle du témoin qui parle sur le mode
du constat, rapporte ce qu’il a vu, entendu, éprouvé. Evi-
demment, il ne faut pas que l’on puisse avoir le moindre
soupçon sur les motifs qui animent le témoin à parler,
et surtout qu’on ne puisse pas penser qu’il a été com-
mandité par quelqu’un pour servir sa cause. Hors de ce
cas, le discours testimonial est un discours de vérité «à
l’état brut» qui ne peut, par définition, être mis en cause.
3
Voir notre Le discours
d ’ inf or m at io n m édia - Dans la communication médiatique, l’enjeu de crédibilité
tique: la construction se traduit par un discours d’authentification des faits, à
du miroir social. Pa-
ris : Nathan-INA, 1997. grand renfort de témoignages.3
chap.11.

346 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006


Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

• de distanciation, qui conduit le sujet à adopter l’attitude


froide et contrôlée du spécialiste qui raisonne et analyse
sans passion, comme le ferait un expert, que ce soit pour
expliquer les causes d’un fait, commenter les résultats
d’une étude ou démontrer une thèse.
• d’engagement, qui amène le sujet, contrairement au cas de
la neutralité, à opter (de façon plus ou moins consciente)
pour une prise de position dans le choix des arguments
ou le choix des mots,4 ou par une modalisation évalua-
tive apportée à son discours. Cette attitude est destinée à
construire l’image d’un sujet parlant «être de conviction».
La vérité, ici, se confond avec la force de conviction de
celui qui parle, et celle-ci est censée influencer l’interlo-
cuteur.
Tout cela au service d’une attitude démonstrative en imposant à
l’autre des arguments et un certain mode de raisonnement, que
celui-ci devrait accepter sans discussion. Car il s’agirait ici d’une
vérité incontournable, indépendante des sujets qui la défendent,
et à laquelle tout un chacun doit se soumettre. Persuader l’autre
revient dans ce cas à placer cet autre dans un univers d’évidence
qui ne souffre aucune discussion.
Un enjeu de captation qui naît chaque fois que le Je-par-
lant n’est pas, vis-à-vis de son interlocuteur, dans une relation
d’autorité. Si cela était le cas, il lui suffirait de donner un ordre
pour que l’autre s’exécute. L’enjeu de captation repose donc sur la
nécessité pour le sujet de s’assurer que le partenaire de l’échange
communicatif entre bien dans son projet d’intentionnalité, c’est-
à-dire partage ses idées, ses opinions et/ou est «impressionné»
(touché dans son affect).5 Il lui faut donc répondre à la question:
“comment faire pour que l’autre puisse «être pris» par ce que je
dis”. Dès lors, la visée du sujet parlant devient une visée de «faire
croire» pour que l’interlocuteur se trouve dans une position de
«devoir croire». Il lui faudra tenter de persuader (faire penser en
ayant recours à la raison) ou de séduire (faire ressentir en ayant
recours à l’émotion) l’autre qui devra donc penser ou ressentir
comme cela lui est signifié. Pour ce faire, le sujet peut choisir
entre plusieurs attitudes discursives parmi lesquelles:
• une attitude polémique, en essayant d’imaginer, pour les le-
4
Exemple : l’hom me
politique de l’extrême
ver, les objections possibles que l’autre (ou d’autres) pour-
droite française, J.M. Le rait présenter, ce qui amènera le sujet parlant à mettre en
Pen, choisit d’attaquer
ses adversaires par le cause certaines des valeurs que défend l’interlocuteur ou
choix du terme “l’éta- un tiers. Il s’agit ici de «détruire un adversaire» en mettant
blissement” au lieu de
“l’establishment”. en cause ses idées, et, si besoin est, sa personne.
5
Voir notre problémati- • une attitude de séduction en proposant à l’interlocuteur
que discursive de l’émo-
tion: a propos des effets un imaginaire dont l’interlocuteur pourrait être le héros
de pathémisation à la bénéficiaire. Cette attitude se manifeste la plupart du
télévision, dans le Les
émotions dans les interac- temps par un récit dans lequel les personnages peuvent
tions, Lyon, 2000.

Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 347


Patrick Charaudeau

jouer le rôle de support d’identification ou de rejet pour


l’interlocuteur.
• une attitude de dramatisation, qui amène le sujet à décrire
des faits qui concernent les drames de la vie, racontés avec
force analogies, comparaisons, métaphores, etc.. La façon
de raconter s’appuie davantage sur des valeurs d’affect
socialement partagées car il s’agit de faire ressentir cer-
taines émotions.
Cette identité discursive est construite à l’aide des modes
de prise de parole, de l’organisation énonciative du discours
et du maniement des imaginaires socio-discursifs. Et donc, à
l’inverse de l’identité sociale, l’identité discursive est toujours
un «à construire-construisant». Elle résulte des choix du sujet,
mais en tenant compte évidemment des données de l’identité
sociale. Ainsi, en reprenant les exemples de départ, on constate
que tantôt l’identité discursive réactive l’identité sociale (ex 2),
tantôt elle la masque (ex 1), tantôt elle la déplace (ex 4).
C’est dans ce jeu de va-et-vient entre identité sociale et
identité discursive que se réalise l’influence discursive. Selon
les intentions du sujet communiquant ou du sujet interprétant,
l’identité discursive collera à l’identité sociale formant une iden-
tité unique «essentialisée» (“je suis ce que je dis”/“il est ce qu’il
dit”), ou s’en différenciera formant une identité double d’«être»
et de «dire» (“je ne suis pas ce que je dis”/“il n’est pas ce qu’il
dit”). Dans ce dernier cas, soit on pense que c’est le «dire» qui
masque l’«être»(mensonge, ironie, provocation), soit on pense que
le «dire» révèle un «être» qui s’ignore (dénie, révélation malgré
soi: “sa voix le trahit”).
3. Les identités en situation de communication
Ce jeu entre identité sociale et identité discursive, et l’in-
fluence qui en résulte, ne peut être jugé en dehors d’une situation
de communication. C’est la situation de communication, en son
dispositif, qui détermine par avance (de par le contrat6 qui la dé-
finit) l’identité sociale des partenaires de l’acte d’échange verbal,
et qui, en outre, leur donne des instructions quant à la façon de
se comporter discursivement, c’est-à-dire définit certains traits
de l’identité discursive. Restera au sujet parlant la possibilité
de choisir entre se montrer conforme à ces instructions en les
respectant, ou décider de masquer ces instructions, les subvertir
ou les transgresser.
Il est donc nécessaire, en préalable à l’analyse des stratégies
qui relèvent de l’identité discursive, de considérer quelles sont
6
Pour cette notion voir les caractéristiques de l’identité sociale de chaque situation et les
notre article “ Le dia-
logue dans un modèle instructions fournies à l’identité discursive.
de discours ”, Cahiers
de linguistique française,
On en donnera un exemple en comparant les situations de
Genève, v. 17, p. 141-178, communication politique et publicitaire.
1995.

348 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006


Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

La situation politique
S’agissant du sujet politique, la question serait: “Je suis là
pour défendre quelles idées, et pour comment faire adhérer à
ces idées”. En effet, le sujet politique se trouve dans une position
double: d’une part, il doit être le porteur et le garant de valeurs
fondatrices d’une certaine «idéalité sociale», d’autre part, il doit
faire adhérer le plus grand nombre de citoyens à ces valeurs.
L’homme politique est donc pris entre «le politique» siège d’une
pensée sur le comment vivre en société, et «la politique» qui
concerne la gestion du pouvoir.
On comprend du même coup que le résultat de cette combi-
naison produise un «Je-nous», une identité du singulier-collectif.
L’homme politique, dans sa singularité parle pour tous en tant
qu’il est porteur de valeurs transcendantales: il est la voix de tous
à travers sa voix (“Ensembles, nous bâtirons une société meilleu-
re”). Mais en même temps, il s’adresse à ces «tous» comme s’il
n’était que le porte-parole de la voix d’un tiers énonciateur d’une
idéalité sociale. Dès lors, il établit un «pacte d’alliance» entre ces
trois types de voix (la voix du Tiers, la voix du Je, la voix du Tu-
tous) qui finissent par se fondre dans un corps social abstrait,
souvent exprimé par un «on» qui joue le rôle de guide (“On ne
peut accepter que soient bafoués les droits légitimes de l’indi-
vidu”) ou par un «nous» (“Si nous voulons pouvoir défendre
nos intérêts et sauvegarder notre indépendance…”).
L’identité sociale de l’instance politique se définit à travers
un principe de légitimité qui lui-même se fonde en souveraineté.
Cela dit, la légitimité par souveraineté institutionnelle n’est pas
une. Elle varie en fonction de la «position» et des «rôles» que les
acteurs sont amenés à tenir selon les situations d’échange social
dans lesquelles ils sont engagés, ce qui fait varier les discours
qu’ils sont amenés à tenir. On peut considérer qu’il existe deux
situations bien distinctes: celle de candidature au suffrage des élec-
teurs et celle de gouvernance. La première place le sujet politique
dans une position d’avoir à défendre et promouvoir un projet
de société idéal qui doit s’inscrire dans le droit-fil de certaines
valeurs, d’avoir à proposer un programme de réalisation de ce
projet, et de devoir s’engager sans faille pour la réalisation de
ce projet. La seconde place le sujet politique dans une position
d’avoir à décider (prendre des mesures concrètes, édicter des
décrets, faire appliquer les lois, engager des actions de défense,
d’hostilité, de répression) et d’avoir à justifier le bien fondé de ces
décisions. Ce qui fait que les types de discours qui s’attachent
à cette position sont pour une part performatifs, puisque dans la
décision “dire c’est faire”, et pour une autre part de justification
puisqu’il faut produire des explications soit par anticipation
(prévoir des objections), soit a posteriori (répondre à des critiques
et autres réactions de protestation).

Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 349


Patrick Charaudeau

Cette identité sociale joue donc un double rôle: d’une part,


elle donne au sujet des instructions qui l’obligent à construire
à travers son discours un «nous» énonciateur rassemblant le
Je-instance politique, le Tu-instance citoyenne et un Il-voix d’un
Tiers de référence qui fonde les valeurs sur lesquelles il s’appuie;
d’autre part elle constitue la base sur laquelle le sujet politique
pourra tenter de se construire une crédibilité, soit en rejetant les
valeurs auxquelles il s’oppose, soit en renforçant les valeurs qu’il
défend soit en justifiant les valeurs et actions qu’il a accomplies
et qui sont mises en cause.
La situation publicitaire
L’identité sociale de l’instance publicitaire est —malgré
ce qu’on en dit parfois— bien différente de celle de l’instance
politique. L’instance publicitaire est pourvoyeuse d’un rêve
(«rester jeune») tout en étant extérieure au destinataire dont la
voix —voix du désir— est ce qui construit le rêve. Ici pas de pacte
d’alliance, la publicité s’adressant à l’individu (“Votre beauté est
différente”), pas d’idéalité sociale, que de la singularité du désir
(“Gillette, une caresse amoureuse”).7 Trois grandes différences
apparaissent entre discours politique et discours publicitaire.
La première est que les deux activités discursives de
persuasion et de séduction se trouvent en proportion inverse
7
Il s’agit ici des carac- dans ces deux types de situation de communication. Dans le
téristiques générales discours publicitaire, domine l’activité de séduction, dans le
du contrat publicitaire,
ce qui n’empêche qu’il discours politique l’activité de persuasion pour des raisons fa-
soit toujours possible,
à des fins stratégiques,
ciles à comprendre: le premier de ces discours tente de toucher
de jouer avec les termes le singulier de l’individu en s’adressant au désir, le second traite
du contrat, voire de les
transgresser comme l’a
l’individu en sujet collectif en s’adressant à la raison. Il s’agit
fait Benetton avec ses donc pour le sujet politique de mettre en avant le sérieux de
campagnes de promo-
tion. Voir notre article l’activité persuasive. Cela explique d’ailleurs, que chaque fois que
“Le discours publici- la visée séductrice se montre de façon exagérément ostensible,
taire, genre discursif”,
Mscope, Versailles , v. 8, apparaissent des commentaires ironiques, des caricatures, des
p. 34-44, 1994. moqueries susceptibles de jeter le discrédit sur celui qui en est
8
Cela com mença de
façon nette en France, l’auteur8. Ce qui n’est pas le cas du sujet publicitaire, jamais pris
en 1959, avec la première en défaut d’excès de tentative de séduction.
campagne télévisée pour
l’élection au suffrage La deuxième différence réside dans le fait que dans le dis-
universel du Président
de la république. Jean
cours publicitaire l’annonceur ne se confond pas avec le produit,
Lecanuet, qui apparais- alors que l’homme politique est à la fois l’auxiliaire de l’idéalité
sant pour la première
fois aux téléspectateurs, sociale (il se met au service de celle-ci) et celui qui propose le
avait pris des leçons de projet politique. Voter pour tel homme politique, c’est voter à
maintient et de diction
pour y apparaître à son la fois pour lui et pour son programme. Acheter telle marque
avantage. Les humo-
ristes, caricaturistes et
d’un produit, ça n’est jamais qu’acheter le produit sous une cer-
autres commentateurs taine marque. Cela explique que le sujet politique doive faire
s’en donnèrent à plein
joie sur le côté pantin montre de conviction, adhérant à son propre projet, s’engageant
de l’homme politique, lui-même dans la quête qu’il propose aux citoyens, alors que
ce qui, après avoir créé
la surprise, lui fut fina- l’instance publicitaire, elle, doit se montrer une instance frivole,
lement défavorable. pourvoyeuse de plaisir.
350 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006
Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

La troisième est que l’instance publicitaire n’a besoin, à


priori, d’aucune légitimité. Plus exactement, c’est son succès
comme acte de séduction-persuasion qui la rend légitime (c’est
pourquoi elle n’a pas besoin non plus d’être crédible). Alors que
l’instance politique présupposant une position de légitimité a
constamment besoin de la conforter, puis, celle-ci étant renforcée,
d’y ajouter par-dessus de la crédibilité.
4. Identités et modèle d’analyse
Cette réflexion sur la différence entre ces deux types
d’identité conforte le modèle communicationnel d’analyse du
discours que je propose, et que j’ai récemment redéfini autour
de trois types de compétence, et de trois types de stratégies que
je rappellerai ici.
Une compétence communicationnelle (ou situationnelle) qui
correspond, pour le sujet, à son aptitude à reconnaître la struc-
turation et les contraintes de la situation de communication où,
entre autres choses, sont déterminées les caractéristiques de
l’identité sociale des partenaires de l’échange langagier, et où
les relations qui doivent s’instaurer entre ces partenaires sont
organisées à l’intérieur d’un dispositif: leur statut, leur rôle social
et la place qu’ils occupent dans la relation communicationnelle.
C’est d’après cet ensemble de traits qui constituent l’identité
communicationnelle de ces sujets que seront déterminés leur
légitimité —c’est-à-dire ce qui justifie leur “droit à la parole”—,
et le rapport de force qui s’instaure entre eux. Cette identité est
sociale (attribuée par statut) mais elle comporte également les
instructions qui président à la construction de l’identité discur-
sive. Une compétence sémantique qui correspond, pour le sujet, à
son aptitude à organiser les différents types de savoirs dont il
a connaissance et constituent ses références, et à les “thémati-
ser”.9 Une compétence discursive qui correspond aux possibilités
d’organisation énonciative, narrative et argumentative du dis-
cours, en fonction des contraintes du cadre communicationnel,
organisation à l’aide de laquelle se construit, entre autres choses,
l’identité discursive du sujet. Mais il faut également au sujet une
compétence sémiolinguistique, laquelle lui permet d’agencer des
formes (choix des formes en relation avec leur sens et leurs règles
de combinaison), en fonction des contraintes de la langue, et en
relation avec les contraintes du cadre situationnel et des données
de l’organisation discursive. L’identité discursive y trouve ici sa
“mise en corps”.
Les stratégies discursives, elles, se définissent par rapport au
9
Pour cette question contrat de communication. Elles consistent, pour le sujet, d’abord,
de l’organisation des
savoirs, voir notre ar-
à évaluer la marge de manœuvre dont il dispose à l’intérieur du
ticle « Les non-dits du contrat pour jouer entre, et avec, les contraintes situationnelles, et
discours : la voix cachée
du Tiers. Paris: L’Har- les instructions de l’organisation discursive et formelle. Ensuite, à
mattan, 2004. » choisir parmi les modes d’organisation du discours et les modes
Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 351
Patrick Charaudeau

de construction textuelle, en rapport avec différents savoirs de


connaissance et de croyances dont il dispose, les procédés qui
correspondent le mieux à son propre projet de parole, aux visées
d’influence qu’il a vis-à-vis de l’interlocuteur et aux enjeux qu’il
se donne. Ces stratégies sont multiples, mais elles peuvent être
regroupées dans trois espaces dont chacun correspond à un type
d’enjeux. Ces enjeux ne sont pas exclusifs les uns des autres, mais
se distinguent par la nature de leur finalité. On parlera d’enjeux:
de légitimation, de crédibilité et de captation. L’enjeu de légitimation
repose sur la nécessité de créer ou de renforcer la position de
légitimité du sujet parlant. Nécessité qui apparaît lorsque le
sujet parlant a des doutes sur la façon dont l’autre perçoit son
“droit à la parole”. Il lui faut alors persuader son interlocuteur
que sa prise de parole et sa manière de parler correspondent
bien à la position d’autorité qui lui est conférée par son statut.
L’enjeu de crédibilité entraîne le sujet parlant, non plus à assurer
sa légitimité (bien que souvent les deux soient liés), mais à faire
croire à l’interlocuteur que ce qu’il dit est “digne de foi”. L’enjeu
de captation entraîne le sujet parlant à faire en sorte que l’inter-
locuteur adhère de façon absolue (non rationnelle) à ce qu’il dit,
et, au-delà, à sa propre personne.
Ces trois types de stratégies construisent une identité dis-
cursive propre au sujet, alors que le contrat de communication
construit par ses instructions une identité discursive convenue,
celle de la conformité au contrat. Ainsi, au niveau des stratégies,
le sujet communiquant peut choisir de parler de façon conforme
ou non aux instructions données par les contraintes du contrat
de communication, et jouer sa spécificité identitaire.
***
Je terminerai en proposant un nouveau schéma qui reprend
l’idée d’une représentation pyramidale du fonctionnement de la
communication langagière:
Commentaires

(1) La base des imaginaires socio-discursifs est le lieu de struc-


turation des diverses représentations sociales. Celles-ci sont
appelées «socio-discursives» car il s’agit des représentations
qui sont construites par du dire, et donc repérables et iden-
tifiables dans et par les discours qui circulent dans les grou-
pes sociaux. Elles relèvent tantôt d’un savoir de croyance,
10
Vo i r n o t r e a r t i - tantôt d’un savoir d’expérience, tantôt d’un savoir savant, et
cle «Tiers, où es-tu ? souvent d’un mélange entre ces différents types de savoir.10
A propos du tiers du Parmi ces représentations, et sans qu’on puisse toujours bien
discours», en «Les non-
dits du discours: la voix distinguer ces différentes dimensions, certaines sont d’ordre
cachée du Tiers. Paris: culturel, d’autres d’ordre sociétal, d’autres encore d’ordre
L’Harmattan, 2004.»
communautaire et d’autres d’ordre groupal.11 Ces imaginaires
11
Evidemment, il n’est
pas toujours facile de socio-discursifs exigent de la part du sujet une compétence
faire le départ entre ces sémantique.
quatre ordres.

352 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006


Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

(2) Le cadre socio-communicationnel est le lieu où se stabilisent


les échanges sociaux en constituant des dispositifs d’échange
qui jouent le rôle de contrats de communication et fournissent
des instructions sur les façons de se comporter langagièrement.
On peut également dire qu’il est le lieu de la constitution des
genres, mais qu’on appellera “genres situationnels” pour bien
signifier que ce n’est qu’un lieu d’«instruction du comment
dire». Il exige une compétence communicationnelle (ou si-
tuationnelle).

(3) Le niveau de la mise en scène discursive est le lieu où le


sujet, ayant plongé dans les imaginaires socio-discursifs, et
compte tenu des contraintes du cadre communicationnel et de
ses instructions, procède à l’organisation de son discours, et
partant se construit une identité plus ou moins «individuée».
Ici doivent être mises en œuvre les compétences discursive et
sémiolinguistique.12
On peut donc conclure dans un premier temps que la
distinction entre identité sociale et identité discursive est pour
le moins opératoire: sans identité sociale pas de repérage possi-
ble du sens et du pouvoir de l’identité discursive; sans identité
discursive différente de l’identité sociale et révélatrice du «posi-
tionnement» du sujet, pas de possibilité de stratégies discursives,
et sans stratégies discursives pas de possibilités pour le sujet de
s’individuer, c’est-à-dire que l’on aurait affaire à un sujet sans
désir.
Dans un deuxième temps, on peut conclure que l’on n’est
jamais sûr de pouvoir saisir la totalité d’une identité, et donc la
prudence voudrait que l’on parle de «traits identitaires», les uns
psycho-sociaux, les autres discursifs pour éviter de tomber dans
le piège de l’«essentialisation».
Mais la question identitaire est une question complexe.
D’une part parce qu’elle résulte d’un croisement de regards:
celui du sujet communiquant qui cherche à la construire et à
l’imposer à son partenaire, le sujet interprétant, lequel ne peut
s’empêcher, à son tour, d’attribuer une identité à celui-ci en
fonction de ses propres a priori. D’autre part parce qu’on a beau
vouloir éviter le piège de l’essentialisation, tout sujet a le désir
12
Pour ces différents
de se voir (ou de voir l’autre) constitué en une identité unique, le
types de compétence, désir de se savoir «être quelque chose», c’est-à-dire une essence.
voir notre article “De
la compétence sociale C’est ce mouvement d’essentialisation constitutif du processus
de communication aux identitaire qui fait dire à certains que l’identité n’est qu’une il-
compétences de dis-
cours”, en COLLES L. lusion.13 Comme un masque qui serait donné à voir à l’autre (et
et al. (Éd.). Didactique
d es lang ues romanes:
à soi-même), mais un masque qui, si on le retire, laisse voir un
le développement de autre masque, puis un autre masque et un autre encore,… Peut-
compétences chez l’ap-
prenant. Louvain-la- être que nous ne sommes qu’une succession de masques. Mais
Neuve: DeBoeck-Du- faute de pouvoir résoudre cette énigme, on maintiendra que la
culot, 2001. p. 34-43.
13
BAYART, J.F. L’ illu-
distinction entre identité psychosociale et identité discursive
s i o n i d e nt it a ir e . Pa -
r i s: Faya rd, 19 96.

Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006 353


Patrick Charaudeau

permet de comprendre comment se joue ce jeu social de subs-


titution de masques.

Resumo
A questão da identidade é complexa porque resulta
de um entrecruzamento de olhares: o do sujeito
comunicante que busca construí-la e impô-la a
seu parceiro, o sujeito interpretante; este, por seu
turno, não pode deixar de atribuir uma identidade
ao comunicante em função de seus olhares, a priori.
Em contrapartida, todo sujeito deseja ver a si mes-
mo (e ao outro) constituído com uma identidade
única, ou seja, uma essência.
Palavras- chaves: identidade, sujeitos do discur-
so, ato de comunicação.

Referências

BAYART, J.F. L’illusion identitaire. Paris: Fayard, 1996.


CHARAUDEAU, P. Da competência social de comunicação às
competências de discurso. In: COLLES, L. et al. (Éd.). Didactique
des langues romanes: le développement de compétences chez l’ap-
prenant. Louvain-la-Neuve: DeBoeck-Duculot, 2001. p. 34-43.
. Le discours d’information médiatique: la construction du
miroir social. Paris: Nathan-INA, 1997.
. Le dialogue dans un modèle de discours. Cahiers de
linguistique française, Genève, v. 17, p. 141-178, 1995.
. Le discours publicitaire, genre discursif. Mscope, Ver-
sailles, v. 8, p. 34-44, 1994.
. Tiers, où es-tu? A propos du tiers du discours. In:
. Les non-dits du discours: la voix cachée du Tiers. Paris:
L’Harmattan, 2004.
. Une problématique discursive de l’émotion: à propos
des effets de pathémisation à la télévision. Les émotions dans les
interactions, Lyon, 2000.

354 Niterói, n. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção
de subjetividade na linguagem
Décio Rocha
Recebido 10, jun. 2006/Aprovado 10, ago. 2006

Resumo
Com base em declarações concedidas pelo presiden-
te dos Estados Unidos da América, G. W. Bush,
em entrevista realizada em 16 de setembro de 2001,
precisamente cinco dias após o ataque terrorista
ao World Trade Center, este artigo discute o duplo
papel da linguagem – linguagem-representação e
linguagem-intervenção – nas relações estabeleci-
das entre sujeito e mundo. Nosso interesse pela
análise do referido texto se justifica pelo fato de
Bush fazer referência a uma “cruzada” contra
o inimigo, expressão inadequada que suscitou
uma vigorosa reação da comunidade islâmica. O
conceito de cenografia proposto por Maingueneau
mostra-se produtivo para pensar a dimensão de
intervenção da linguagem.
Palavras-chave: representação, subjetividade,
alteridade, cenografia, terrorismo.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Décio Rocha

A leitura de textos que problematizam a produção de


subjetividade na perspectiva assumida por Deleuze e Guattari
tem-se constituído em verdadeiro desafio nos estudos voltados
para as práticas de linguagem. O que pode, afinal, a linguagem,
para além de seu poder de representação de um dado estado de
realidade? Que papel desempenha na produção de diferentes
modos de subjetivação? Eis algumas das questões que soam
como verdadeira provocação e que abordarei neste trabalho.
Com efeito, sabemos, desde Nietzsche, que os conceitos
que produzimos para fazer referência à realidade permitem-nos
apresentá-la como sempre idêntica a si mesma, reconhecível
porque estabilizada em uma forma passível de ser comunicada.
Tal prática implica o aprisionamento do real, o aprisionamento
daquilo que sempre devém, em fórmulas identitárias que corres-
pondem tão-somente a uma das faces da linguagem: seu poder
de falar do mundo, produto de uma consciência vista como
“lugar da interioridade e da organização centralizadora do eu”
(MOSÉ, 2005, p.116). Linguagem-representação.
Porém, esse mesmo poder de falar do mundo significa que
nele encontramos não exatamente uma realidade per se, mas
fundamentalmente algo que nos afeta; tal encontro corresponde
à atividade de interpretação exercida pelo sujeito que vai buscar
no mundo ressonâncias suas, uma vez que, como o afirma Na-
ffah Neto (1998), é real aquilo que nos toca em nossos interesses.
Linguagem-intervenção.
Desde já, pressentem-se alguns ecos desse duplo modo
de atualização da linguagem no fragmento que transcrevo a
seguir:
[...] o mundo não é tão-somente exterior, nem tão-somente in-
terior; está sempre fora e dentro ao mesmo tempo ou, melhor
dizendo, constitui-se nessa imbricação de um exterior e de um
interior, fluindo e refluindo por movimentos de projeção e intro-
jeção [...] Fora e dentro participam, pois, da mesma substância,
o dentro constituindo-se como uma envergadura do fora; o fora
como uma multiplicidade de perfis projetados de dentro. Ao
fora aprendemos a chamar de mundo; ao dentro, de subjetividade.
(NAFFAH NETO, 1998, p. 70-1)
Eis, assim, relativizada a distância que separa o sujeito e o
mundo: o dentro e o fora como invenções de diferentes conjuga-
ções de forças, cujos resultados são marcados pela instabilidade
e transitoriedade. Qual pode ser precisamente o interesse do
fragmento citado para quem trabalha com práticas linguageiras
em uma perspectiva discursiva?
De modo sucinto, uma resposta à questão formulada
implicaria um duplo caminho de investigações: (i) explicitar
a natureza dos laços que se verificam entre o sujeito e seu en-
torno, vistos como formas em permanente interdelimitação;
(ii) circunscrever o lugar ocupado pelas práticas de linguagem

356 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

junto à produção de subjetividade e junto à articulação entre o


sujeito e o mundo.
Dada a impossibilidade de cumprir esse duplo itinerário
nos limites do presente artigo, é opção minha deixar em suspen-
so a primeira via de investigação – não, é claro, sem dizer um
mínimo a seu respeito – e propor, como objetivo central deste tra-
balho, uma possível cartografia da segunda via identificada.
O itinerário realizado
Pela extensão do caminho que ora proponho percorrer,
considero importante oferecer desde já ao leitor um mínimo
de informação a respeito das escolhas que faço e, desse modo,
deixar claro o que esperar ou não destas reflexões.
Assim, em “Sobre a produção de subjetividade e noções
afins”, apresento algumas poucas definições relevantes para si-
tuar a noção de subjetividade e o modelo de inconsciente que lhe é
subjacente. A seguir, em “Construção de um córpus e engendra-
mento de efeitos de sentido”, enfatizo a articulação entre práticas
linguageiras e evento da atualidade, sendo contextualizado o
tipo de investigação proposta, cuja “motivação temática” pode
ser assim apresentada: a partir do evento de 11 de setembro de
2001 (ataque aéreo ao World Trade Center), a convocação feita
por G. W. Bush, presidente dos Estados Unidos da América, de
uma “cruzada” contra os “agentes do mal” é vista como elemento
desestabilizador de uma dada ordem.
Uma vez apresentado e justificado o contexto das práticas
textuais midiáticas que servirão de suporte ao trabalho, inicio,
no item intitulado “Ensaios de leitura: caminhos da produção
de subjetividade nas práticas linguageiras”, um exercício de
análise dos dados selecionados (entrevista concedida por Bush
em 16/09/2001),1 propondo-me acompanhar os deslocamentos
que se operam em um duplo modo de funcionamento da lin-
guagem: por um lado, a linguagem-representação e, por outro,
o que denominarei linguagem-intervenção. Dentre outras con-
siderações, será conferida ênfase especial à noção de cenografia
(MAINGUENEAU, 1989) como dispositivo discursivo compatível
com o modo pelo qual a linguagem intervém na produção de
um mundo. No último item, em tentativa (provisória) de conclu-
são, argumenta-se a favor de uma certa concepção de alteridade
que nos parece muito compatível com a função de intervenção
da linguagem e, finalmente, reitera-se a dimensão política de
alguns dos desdobramentos possibilitados pelo recurso à noção
de cenografia.
Sobre a produção de subjetividade e noções afins
Em cumprimento ao que enunciei anteriormente, apre-
Fonte: <http://www. sento de modo sucinto algumas das posições que vêm sendo
1

whitehouse.gov/news/
release> reafirmadas a respeito do caráter necessariamente coletivo (isto

Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 357


Décio Rocha

é, do caráter nem individual, nem grupal) das práticas de enun-


ciação, as quais pressupõem a participação de fatores da ordem
do extrapessoal e do infrapessoal (respectivamente, o “além” e
o “aquém” do humano).2
A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação.
Os processos de subjetivação, de semiotização – ou seja, toda a
produção de sentido, de eficiência semiótica – não são centra-
dos em agentes individuais (no funcionamento de instâncias
intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes gru-
pais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam
o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser
tanto de natureza extrapessoal, extra-individual ..., quanto
de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal [...].
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 31)
Percebe-se aqui o projeto de desenvolver uma concepção
mais transversalista de subjetividade, sendo ultrapassada a opo-
sição clássica entre sujeito individual e sociedade. Eis, desse modo,
uma das definições que acolhemos para subjetividade:
[...] o conjunto das condições que torna possível que instâncias
individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir
como território existencial auto-referencial, em adjacência ou
em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma
subjetiva. (GUATTARI, 1992, p. 19)
O autor indica, deste modo, o jogo incessante de alternância
entre formas mais ou menos individuadas da subjetividade:
[...] em certos contextos, a subjetividade se individua: uma pes-
soa, responsável por si mesma, se posiciona frente a relações
regidas por usos familiares, costumes locais, leis jurídicas [...]
Em outras condições, a subjetividade se faz coletiva, o que
não significa que ela se torne por isso exclusivamente social.
Com efeito, o termo “coletivo” deve ser entendido aqui no
sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além
do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa,
junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica
dos afetos [...] A subjetividade não é fabricada apenas através
das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos « matemas do
Inconsciente », mas também nas grandes máquinas sociais,
mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser qualificadas
de humanas. (GUATTARI, 1992, p. 19-20)
Tal concepção de subjetividade em processo exercerá uma
ação não negligenciável sobre o modo como entendemos a pro-
dução de (efeitos de) sentido, além de implicar um modo próprio
de caracterização do funcionamento daquilo que denominamos
inconsciente. A estreita correlação entre inconsciente e produção
de subjetividade, assim como o lugar que nela ocupam os agen-
ciamentos coletivos de enunciação, podem ser identificados, por
2
Tal problemática, que
remete aos agenciamen- exemplo, na seguinte citação:
tos coletivos de enun-
ciação, é discutida em Os processos inconscientes não podem ser analisados em
Rocha (2005). termos de conteúdo específico, ou em termos de sintaxe estru-

358 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

tural, mas antes de mais nada em termos de enunciação, de


agenciamentos coletivos de enunciação. Estes, por definição, não
coincidem com as individualidades biológicas. (GUATTARI,
1985, p. 171)
Mas, afinal, de que inconsciente falamos? Qual o modelo de
inconsciente que subjaz à referida produção de subjetividade?
Para se referir a esse campo que ultrapassa os limites da
racionalidade do homem, Guattari fará a opção por um modelo
de inconsciente que se diferencia do modelo freudiano (também
dito clássico ou psicanalítico): à interioridade do modelo persono-
lógico, familiarista, do inconsciente freudiano, lugar de fixações
arcaicas do passado (narcisismo, instinto de morte, medo à cas-
tração), Guattari preferirá um inconsciente desterritorializado,
permeável às instituições e às forças do campo social, voltado
tanto para o presente, para o passado quanto para o futuro; um
inconsciente concebido como lugar de interação entre compo-
nentes semióticos e sistemas de intensidade diversificados.3 Um
modelo de inconsciente assim concebido Guattari chamou de
“maquínico” ou “esquizoanalítico”, o qual foi definido por Na-
ffah Neto com especial sensibilidade: “[...] a noção de Inconsciente
se amplia consideravelmente, rompendo a dicotomia individual
/ coletivo, para designar o conjunto dos diferentes campos de forças
mobilizados na produção do real, em suas articulações contingentes e
singulares.” (NAFFAH NETO, 1985, p. 25)
Construção de um córpus e engendramento
de efeitos de sentido
Diante da opção de aprofundar a questão referente ao papel
da linguagem na produção de subjetividade, trabalhamos com
o texto de uma entrevista concedida por G.W. Bush aos 16 de
setembro de 2001, exatamente cinco dias após o ataque aéreo às
torres-gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, aconte-
cimento que, como dissemos, deu origem a um pronunciamento
do presidente G. W. Bush versando sobre a necessidade de uma
“cruzada”: “Este é um novo tipo ... de mal. E nós compreendemos.
O povo americano está começando a compreender. Essa cruzada,
essa guerra contra o terrorismo levará algum tempo. E o povo
americano precisa ser paciente. Eu serei paciente.”4
Os efeitos de sentido que se produzem a partir do referido
pronunciamento são desastrosos: o termo “cruzada” desperta,
como memória discursiva, ressonâncias não desejáveis no que
se refere aos embates ocorridos entre o mundo ocidental e o
mundo muçulmano entre os séculos XI e XIII. Senão, vejamos
algumas das informações que figuram no verbete cruzada no
3
Na caracterização do
duplo modelo de incons- dicionário:
ciente que ora apresento,
recorri a Guattari (1985, cruzada 1 HIST.REL expedição militar e religiosa, conduzida
p. 166-71). principalmente por nobres cristãos na Idade Média entre os
4
Tradução nossa. anos de 1095 a 1270, com o fim de fazer a guerra denominada

Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 359


Décio Rocha

santa contra os muçulmanos, e reconquistar Jerusalém e o


túmulo de Cristo 2 p.ext. HIST.REL qualquer movimentação
militar de intuito religioso, esp. contra os representantes de
determinadas heresias na Idade Média <a c. contra os cátaros> 3
p.ext.fig. qualquer empreendimento mais ou menos grandioso
no sentido de se solucionar um mal, um problema de cunho
social etc. ou ainda de se defender alguma idéia, princípio
ou algum interesse próprio <os médicos fizeram uma c. contra a
febre amarela>.5
Observe-se que a tematização de “cruzada” não é exata-
mente um ato de criatividade de Bush: a referência aos «cruza-
dos» era bastante viva, pelo menos desde maio de 1998, quando
Bin Laden anuncia a criação de uma organização da qual a
Al-Qaeda passaria a fazer parte, intitulada «Frente Mundial
Islâmica contra os judeus e os cruzados”.6
Ao perceber a inadequação da declaração prestada, o go-
verno americano, em novo pronunciamento oficial assumido
dessa vez por Ari Fleischer, porta-voz da Casa Branca, faz o
possível para desfazer o “mal-entendido”: a ação pretendida
pelo governo tem por alvo o terrorismo, e não o mundo islâmico.
Assim, justifica o porta-voz da presidência:
[...] à medida que essa palavra [cruzada] tem conotações que
irritariam alguns de nossos parceiros ou qualquer um no
mundo, o presidente lamenta que qualquer coisa assim tenha
sido implicada. O sentido de sua declaração foi o tradicional
em inglês, de uma causa ampla.7
É interessante uma breve reflexão acerca do que Fleischer
denomina uso “tradicional” do termo: o porta-voz da Casa Bran-
ca tenta um deslocamento dos efeitos de sentido produzidos por
intermédio da escolha de cruzada, que conteria “conotações que
irritariam alguns de nossos parceiros”, e, arvorando-se de filó-
logo ao aludir a um pretenso uso tradicional do termo, propõe a
produção de um novo efeito de sentido, desta vez suficientemente
premeditado. Ora, o que Fleischer denomina “uso tradicional”
do termo coincide justamente com o que o dicionário considera
como uso figurado: “empreendimento mais ou menos grandioso
no sentido de se solucionar um mal”. Resultado: a ‘cruzada’ foi
5
Dicionário Houaiss da (verbalmente) desqualificada, e Bush, em busca de adesões es-
Língua Portuguesa.
6
Em outros textos da
tratégicas à sua ‘coalizão contra o terror’, passou a fazer de tudo
Internet, diz-se que a para convencer o mundo de que os Estados Unidos não estariam
Frente era o nome oficial
da Al- Qaeda, criada em guerra contra o islã (MAGNOLI, 2005).
por um decreto reli- Como entender tudo isso? De que modo pode esse relato
g io s o de Bi n L ade n
em 23/02/1998, com o contribuir para a questão que abordamos neste artigo?
objetivo de «matar os
americanos, civis e mi-
Pode-se dizer que, da dupla desestabilização a que assis-
litares». timos – desestabilização decorrente da destruição do World
7
Informações presta- Trade Center e desestabilização produzida por um determinado
das pela Associated
Press, citada pela Dow uso do termo cruzada –, trataremos neste trabalho do segundo,
Jones, Estadão.com.br
– 18/9/01.
tendo em vista nosso interesse em discutir a pertinência de um

360 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

enfoque que explicite esta dupla função da linguagem: por um


lado, representar, falar de um dado estado de coisas no mundo;
por outro, intervir nesse mesmo mundo, contribuindo para
produzi-lo.
Com efeito, poderíamos supor que, se tal função de in-
tervenção não tivesse sido acionada, isto é, se tudo pudesse ser
explicado pelo simples “mal-entendido” cometido por um sujeito
(individualizado) de enunciação, o episódio não teria certamente
tido a repercussão que teve e o pequeno “lapso” teria passado
por despercebido, ou, no máximo, teria sido facilmente retifica-
do, sem maiores conseqüências. Decididamente, não foi isso o
que se deu à época: conquanto tivéssemos diante dos olhos as
evidências oferecidas pela individualização de um corpo-Bush
falando (“ingenuamente”) de uma dada configuração de mundo,
algo denunciava a inconsistência, a transparência desse mesmo
corpo em seu dispositivo de enunciação,8 o qual, antes de falar do
mundo circundante, instituía-se como um dos mais poderosos
fatores de produção de tal estado de coisas. Desse modo, a en-
trevista selecionada para análise é particularmente interessante
sob essa ótica de uma dupla função da linguagem: representar
o mundo e intervir no mundo. O elemento deflagrador de toda
a querela – a menção a uma “cruzada” – possui, de fato, um
poder de representação (pois fala de uma realidade que pode
ser buscada na história medieval), mas também, certamente, um
poder de intervenção (pois é capaz de “tornar real” mais uma
vez o “extermínio dos infiéis”, justificando-o como ação “natural”
e “necessária” do mundo “civilizado”).
As reações do mundo islâmico ao uso inadvertido do vo-
cábulo parecem testemunhar uma leitura que privilegia a força
do mencionado plano de intervenção da linguagem. Com efeito,
a reação contra a escolha de “cruzada” denuncia o “estado de
mundo” que a alguns interessa produzir, um “estado de mundo”
resultante de forças interpretantes, de afetos: um mundo no qual
o verdadeiro alvo parece não ser a ação dos terroristas, mas os
poderes exercidos pelo mundo árabe da atualidade.
Como recuperar a referida dimensão de intervenção da
linguagem sobre as práticas cotidianas em questão? Como
oportunizar a apreensão dessa língua dos afetos, a linguagem-
intensidade (NAFFAH NETO, 1998) que coloca em jogo forças
potencializadoras do homem?
Ensaios de leitura: caminhos da produção
de subjetividade nas práticas linguageiras
Conforme foi dito, o objetivo que ora se persegue é apre-
O leitor encontrará um
ender, para além das evidências da linguagem-representação
8

maior detalhamento das


diversas vozes que po- (dimensão à qual facilmente se reconhece “direito de cidadania”),
dem ser apreendidas no
referido pronunciamen- uma outra dimensão, que denomino “linguagem-intervenção”.
to em Rocha (2005). Assim, não discutirei o poder de remeter ao real que a linguagem
Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 361
Décio Rocha

exerce, mas indagarei acerca do que mais a linguagem é capaz


de realizar. Ou melhor: indagarei sobre o que mais a linguagem
faz quando parece tão-somente falar de uma “realidade em es-
sência” que lhe preexistiria.
Linguagem-representação
Este primeiro plano é suficientemente nítido e evidente na
entrevista escolhida para análise. Com efeito, são fortíssimos os
vínculos que ligam o tema da referida entrevista a fatos ocorridos
naquela mesma semana nos Estados Unidos. Não há como não
perceber o projeto de reconstruir um evento da atualidade, isto
é, de re-apresentar aos interlocutores da entrevista uma deter-
minada configuração, uma forma que dê conta do modo como
se entende / entendeu o ocorrido no dia 11. É possível recuperar
passagens do texto que ilustram tal “congelamento de formas”
e que resgatam o fato-tragédia: em (i), a presteza das ações do
governo americano diante do ocorrido e o apoio financeiro ne-
cessário para fazer face à dura situação; em (ii), a iniciativa de
contatos internacionais importantes para combater o inimigo;
em (iii), a breve reconstituição do episódio do ataque às torres
do World Trade Center. Vejamos os fragmentos anunciados:
(i) Obviously, New York City hurts. Congress acted quickly. We worked
together, the White House and the Congress, to pass a significant
supplemental. A lot of that money was dedicated to New York, New Jersey
and Connecticut, as it should be.

(ii) I made a call to the leader of Pakistan.

(iii) No one could have conceivably imagined suicide bombers burrowing into
our society and then emerging all in the same day to fly their aircraft - fly
U.S. aircraft into buildings ...

Um outro lugar de inscrição de um plano predominante-


mente representacional em nosso córpus pode ser identificado
nos diferentes valores assumidos pelo termo people. Há, pelo
menos, quatro diferentes valores que podemos resgatar para o
referido vocábulo: em (i), o povo americano que protagoniza o
evento; em (ii), os aliados dos americanos, “pessoas que amam
a liberdade”; em (iii), o inimigo que declarou guerra e que será
punido; em (iv), as vítimas do evento. Vejamos os seguintes
fragmentos:
(i) the good people of America go back to their shops
the American people are beginning to understand.

(ii) We will call together freedom loving people to fight terrorism.

(iii) We’ve been warned there are evil people in this world.
people have declared war on America

362 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

... to bring people to justice


we’re facing people who hit and run

(iv) ... they would fly airplanes into buildings full of innocent people.

Penso que o referido plano das representações esteja su-


ficientemente concretizado nos fragmentos que transcrevo em
negrito. Veremos, a seguir, que tal plano ocupa um lugar bas-
tante reduzido no texto-entrevista do presidente americano, se
o compararmos aos fragmentos que se afastam de tal “projeto
de re-apresentação” de um dado estado de realidade. É de tal
diferença que trataremos no próximo subitem.
Linguagem-intervenção
Um olhar mais minucioso dirigido ao texto-entrevista de
Bush mostrará que, contrariamente, talvez, ao que pudéssemos
esperar, a superfície ocupada por um projeto de linguagem vol-
tada para a representação é mínima, se comparada à ocupada
por aquela que se volta para a intervenção. Com efeito, ao falar
do referido episódio em sua entrevista, Bush não apenas o re-
apresenta, mas participa efetivamente de sua construção.
Em primeiro lugar, quero deixar claro o que pretendo dizer
quando falo da construção linguageira de um dado episódio.
Com certeza, não pretendo reduzir a multiplicidade do real,
encarcerando-o nas malhas do verbal, sob cuja ótica tudo não
passaria de mero “artefato de linguagem”. Pelo contrário: sabe-
mos que o episódio em tela – ataque às torres gêmeas do W.T.C.
em Nova Iorque – foi produzido por (e, diríamos também, foi
produtor de) diferentes “misturas de corpos” que atualizaram
modos de sentir, de pensar, de agir, que não se limitaram a prá-
ticas verbais: se é verdade que, na ocasião, foram produzidos
enunciados, é igualmente verdade que também se produziram
expressões de dor, de sofrimento, gestos de desespero, gritos,
esperanças, compaixão, enfim, toda a sorte de ações e paixões
resultantes do encontro de forças diversas.
Em meio a tal profusão de modos de significar o real, quero
apenas reafirmar que, se o campo ao qual se refere a linguagem
“é muito mais mutante, muito mais polivalente do que uma
palavra seria capaz de exprimir” (NAFFAH NETO, 1991, p. 47),
também é certo que nem toda prática linguageira cumpre tão-
somente uma “vocação representacional”.
O texto-entrevista é bastante revelador de tal “poder de
intervenção” do lugar ocupado pelas práticas de linguagem
na produção de uma dada configuração de real. Com efeito, a
intervenção já se faz insidiosamente presente no modo como
são apresentados os aliados de Bush: simulando uma atividade
de mera referenciação daqueles que combaterão o terrorismo,
o enunciador coloca em cena os que “amam a liberdade” – de-

Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 363


Décio Rocha

signação que, longe de remeter a uma “imagem objetiva de


realidade”, já é a expressão de uma certa “qualidade de mundo”
que se deseja produzir.
Por importante que seja a presença da linguagem-interven-
ção em situações como a que acabo de expor, penso que o locus
por excelência de produção de um viés não representacional no
texto-entrevista deva ser localizado em seus cinco primeiros
parágrafos. Tomemos, pois, conhecimento do fragmento pelo
qual Bush inicia suas declarações:
THE PRESIDENT: Today, millions of Americans mourned
and prayed, and tomorrow we go back to work. Today, people
from all walks of life gave thanks for the heroes; they mourn
the dead; they ask for God’s good graces on the families who
mourn, and tomorrow the good people of America go back
to their shops, their fields, American factories, and go back
to work.

Our nation was horrified, but it’s not going to be terrorized.


We’re a great nation. We’re a nation of resolve. We’re a nation
that can’t be cowed by evil-doers. I’ve got great faith in the
American people. If the American people had seen what I
had seen in New York City, you’d have great faith, too. You’d
have faith in the hard work of the rescuers; you’d have great
faith because of the desire for people to do what’s right for
America; you’d have great faith because of the compassion
and love that our fellow Americans are showing each other
in times of need.

I also have faith in our military. And we have got a job to do


- just like the farmers and ranchers and business owners and
factory workers have a job to do. My administration has a job
to do, and we’re going to do it. We will rid the world of the
evil-doers. We will call together freedom loving people to
fight terrorism.

And on on this day of - on the Lord’s Day, I say to my fellow


Americans, thank you for your prayers, thank you for your
compassion, thank you for your love for one another. And to-
morrow when you get back to work, work hard like you always
have. But we’ve been warned. We’ve been warned there are
evil people in this world. We’ve been warned so vividly - and
we’ll be alert. Your government is alert. The governors and
mayors are alert that evil folks still lurk out there.

As I said yesterday, people have declared war on America, and


they have made a terrible mistake, because this is a fabulous
country. Our economy will come back. We’ll still be the best
farmers and ranchers in the world. We’re still the most inno-
vative entrepreneurs in the world. On this day of faith, I’ve
never had more faith in America than I have right now.

364 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

De que pistas podemos nos servir para afastar qualquer


entendimento do texto produzido enquanto mera representação
de um dado estado de coisas?
Uma primeira pista lingüística é a que podemos localizar
na oposição entre hoje (today) e amanhã (tomorrow). Não é difícil
perceber que não se trata de dêiticos remetendo a referências
coincidentes com o momento da enunciação: se assim o fosse,
o hoje estaria circunscrito ao dia da realização da entrevista (a
qual foi concedida por Bush em 16 de setembro) e, da mesma
forma, o amanhã estaria confinado ao dia seguinte, a saber, 17
de setembro. Não parece ser essa a situação: ao hoje parece cor-
responder predominantemente o momento das angústias, da
dor e da fé no povo americano; tempo do lamento e das preces;
ao amanhã, o momento da superação de todos os entraves, mo-
mento da afirmação da supremacia de uma nação, quando todos
retornarão a seu cotidiano de labor.
Uma outra pista lingüística que se pode depreender consis-
te nas escolhas lexicais para designar uma dupla conformação do
espaço: o espaço de grandeza e de determinação que caracteriza
os Estados Unidos (a great nation, a nation of resolve, the strongest
nation in the world) contra os espaços desprestigiosos e sombrios,
os subterrâneos onde se esconde a indignidade inimiga (they hide
in caves, to smoke out of their holes the terrorist organization).
A esse respeito, não é difícil perceber que lidamos não
com as coordenadas temporais ou espaciais de um plano do
real atualizado, mas com as de um plano cenográfico, o qual,
segundo formulação de Maingueneau (2004b), não é imposto
pelo tipo ou pelo gênero de discurso, sendo, antes, instituído
pelo próprio discurso:
A cenografia é ... ao mesmo tempo aquilo de onde vem o dis-
curso e aquilo que esse discurso engendra; ela legitima um
enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve estabelecer
que essa cenografia da qual vem a fala é, precisamente, a
cenografia necessária para contar uma história, denunciar
uma injustiça, apresentar sua candidatura em uma eleição,
etc. (MAINGUENEAU, 2004b, p. 96)
O que já foi dito acerca do tempo e do espaço – respectiva-
mente, cronografia e topografia pressupostos por uma cenografia,
segundo Maingueneau (1989) – também pode ser localizado na
produção dos coenunciadores: às virtudes que caracterizam o
americano, a saber, paciência, determinação, poder (the Ameri-
can people must be patient, they [the enemies] have roused a mighty
giant) vem se opor um perfil de inimigo altamente desfavorável
(evil-doers, evil folks, somebody barbaric, terrorists, people who hit and
run).
Em função do exposto, argumento no sentido de associar
o referido plano da cenografia ao que anteriormente denominei
“plano da linguagem-intervenção”. E desde já se percebe quão
Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 365
Décio Rocha

oportuna é a possibilidade de operar com o referido plano,


uma vez que apreender os textos produzidos por Bush em sua
entrevista como elementos da ordem da representação seria
dar guarida a uma certa posição assumida pelo referido ator no
campo de lutas que se travam na atualidade. Com efeito, assu-
mir que “as palavras de Bush apenas falam de um real, apenas
representam o real”, significaria, no mínimo, fazer uma opção
política: alinhar-se aos discursos proferidos pela Casa Branca.
Alinhamento que, por motivos óbvios, já não pode estar contido
no plano desinteressado da mera representação! É nesse senti-
do que indiquei como oportuna a inquirição desses discursos
enquanto produtores de um dado estado de real: algo como “o
discurso não é um ‘poslúdio’, não vem depois do ocorrido, mas
contribui, a seu turno, para dar visibilidade, inteligibilidade, a
uma dada situação de conjugação de forças”. Assim, pelo viés
do investimento cenográfico que se atualiza nos discursos, o
texto-entrevista é mais um elemento que concorre para a pro-
dução de um certo “modo americano de afrontar o perigo” e
de responder às agressões “injustamente sofridas”, bem como
para a produção de um perfil opositor de extrema maldade e
covardia – o perfil insidioso de alguém que, sob vários aspectos,
com seu modo de ser sombrio e escuso, encarna uma forma de
existência subumana.
Ainda sobre cenografia, linguagem-intervenção
e produção de subjetividade
O plano cenográfico parece encontrar-se, pois, diretamente
ligado à produção de uma dada “condição de realidade” que
não mantém necessariamente um vínculo com o empírico. Com
efeito, se é verdade que o texto-entrevista de Bush remete a um
evento da atualidade, também é certo que essa atualidade é ma-
téria sobre a qual o próprio discurso deve investir, modelando-a.
Como o próprio autor o indica, “a cenografia leva o quadro cêni-
co a se deslocar para o segundo plano [...]” (MAINGUENEAU,
2004a, p. 87), isto é, a cenografia funciona como uma espécie de
cilada ao se superpor ao que o autor denomina quadro cênico (tipo
e gênero de discurso), mitigando-lhe a presença.
Como vimos anteriormente, o investimento cenográfico
nesse texto-entrevista se dá por intermédio da produção de um
tempo-espaço que não mantém qualquer compromisso necessá-
rio com as coordenadas do empírico: de modo conciso, diremos
tratar-se de um tempo das provações, de um hoje que vem prepa-
rar o momento da vitória em um amanhã dado como certo, uma
vez que se conta com a determinação de atores valorosos, cuja
força de vontade será decisiva para a reconstrução de um espaço
apenas momentaneamente conturbado pelos “agentes do mal”.
Retomando a própria noção de cenografia, lembro que,
segundo Maingueneau, trata-se de um plano de “enlaçamento
366 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006
Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

paradoxal”, uma vez que “a fala supõe uma certa situação de enun-
ciação que, na realidade, vai sendo validada progressivamente
por intermédio da própria enunciação” (MAINGUENEAU,
2004a, p. 87). A reflexão do autor nos reenvia, desse modo, aos
estreitos laços que se verificam entre cenografia e uma certa pers-
pectiva das práticas linguageiras segundo a qual os enunciados
não “contam” o real, mas, antes, o “produzem”.9 Isso porque “a
cenografia não é [...] um cenário, como se o discurso apareces-
se inesperadamente no interior de um espaço já construído e
independente dele” (MAINGUENEAU, 2004a, p. 87), mas, ao
contrário, institui progressivamente a cena a partir da qual será
legítimo enunciar.
Além da produção de um tempo-espaço e de um certo
perfil de atores protagonizando o evento do qual se fala, assis-
te-se ainda ao acionamento de outros dispositivos cenográficos
no texto-entrevista. Citaremos apenas dois desses dispositivos
que se revelam absolutamente complementares: a escolha de um
dado campo lexical dos discursos religiosos e uma certa confi-
guração sintática (também em sintonia com o plano religioso,
conforme veremos) em que a repetição parece desempenhar um
papel de relevo.
O primeiro dos dispositivos indicados – campo lexical
que privilegia o religioso – pode ser facilmente evidenciado em
alguns fragmentos:
(i) Today, millions of Americans mourned and prayed, ...

(ii) Today, people from all walks of life gave


thanks for the heroes; [...] they ask for God’s good graces on the families
who mourn, ...

(iii) If the American people had seen what I had seen in New York City, you’d
have great faith, too. You’d have faith in the hard work of the rescuers;
9
Poderíamos ainda dizer
que os enunciados não
“contam” senão aqui- (iv) And on this day of - on the Lord’s Day,10 I say to my fellow Americans,
lo que afeta o sujeito, thank you for your prayers, thank you for your compassion, ...
aquilo que se torna um
objeto de investimento
desse sujeito. O que não
Como se percebe, é bastante recorrente a escolha de termos
significa, a meu ver, que que remetem à produção de uma atmosfera de fé e de devoção,
a cenografia seja uma
questão de “opção”, de a qual é absolutamente compatível com os dispositivos ceno-
“decisão” tomada pelo gráficos anteriormente apresentados: pessoas de bem lutando
sujeito: o investimento
em uma dada cenografia contra as adversidades de um tempo de provações, sem perder
(e não em outra) é sem-
pre regido por coerções
a fé no que de mais precioso possuem, a saber, o sentimento de
tão importantes quanto compaixão, de solidariedade, de confiança.
as que definem um gê-
nero de discurso, por Contudo, esse dispositivo cenográfico, que passamos a
exemplo. denominar “testemunho de fé”, se constrói ainda por meio de
A entrevista em ques-
um investimento em uma dada configuração sintática do texto: a
10

tão com o presidente


americano foi concedida sintaxe da repetição. Vejamos algumas de suas manifestações:
em 16/09/2001, domin-
go, razão pela qual se
faz referência ao Lord’s
Day.

Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 367


Décio Rocha

(i) Today, millions of Americans mourned and prayed, and tomorrow we


go back to work.
Today, people from all walks of life gave thanks for the heroes; [...] and
tomorrow the good people of America go back to their shops, their fields,
American factories, and go back to work.
We need to go back to work tomorrow and we will.

(ii) We’re a great nation.


We’re a nation of resolve.
We’re a nation that can’t be cowed by evil-doers.

(iii) I’ve got great faith in the American people. If the American people had
seen what I had seen in New York City, you’d have great faith, too. You’d
have faith in the hard work of the rescuers; you’d have great faith because
of the desire for people to do what’s right for America; you’d have great
faith because of the compassion and love that our fellow Americans are
showing each other in times of need. [...]
I also have faith in our military. [...]
On this day of faith, I’ve never had more faith in America than I have
right now. [...] ... I have great faith in the resiliency of the economy.

(iv) And we have got a job to do - just like the farmers and ranchers and
business owners and factory workers have a job to do. My administration
has a job to do, and we’re going to do it.

(v) I say to my fellow Americans, thank you for your prayers, thank you for
your compassion, thank you for your love for one another.

(vi) But we’ve been warned. We’ve been warned there are evil people in
this world. We’ve been warned so vividly - and we’ll be alert. Your
government is alert. The governors and mayors are alert that evil folks
still lurk out there.

(vii) And we understand. And the American people are beginning to


understand. [...] And the American people must be patient. I’m going to
be patient.

(viii) We will continue to work with Pakistan and India. We will work with
Russia. We will work with the nations that one would have thought a
couple of years ago would have been impossible to work with ...

(ix) They [Pakistan, India, Saudi Arabia] know what my intentions are.
They know my intentions are to find those who did this, find those who
encouraged them, find them who house them, find those who comfort
them, and bring them to justice.

368 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

Se dizemos que a cenografia que ora se atualiza é a do “testemunho de


fé” (fé na atitude dos americanos, no poder de recuperação da economia
do país, nos valores de justiça e liberdade), em estreita afinidade com a
retórica dos sermões religiosos, isso se deve em grande parte à insistência
nos paralelismos sintáticos que transcrevemos. Paralelismos que não
ocorrem por acaso! Com efeito, em estudo sobre a repetição nos sermões
do padre Vieira, Lopes (1997) indica, a partir da análise do Sermão da
primeira sexta-feira da Quaresma, alguns objetivos da repetição: “ativar a
imaginação, sustentar uma idéia ou pensamento por um determinado
tempo, imprimir uma imagem na mente mediante o martelar
constante de determinadas palavras ou frases e até, conforme o caso,
persuadir o receptor da mensagem, envolvendo-o emocionalmente”.
A repetição configura-se, pois, como procedimento que imprime uma
certa ritmicidade, garantindo a “variação na unidade”, a expressão
da “pluralidade de forma unitária” (HADDAD, 1968, p. 12):11 diz-se o
mesmo repetidas vezes, procedimento que não deixa de exercer um
papel relevante no que concerne à produção de subjetividade.

Conclusões
A partir de uma perspectiva discursiva para o tratamento
das práticas linguageiras, o objetivo deste artigo era aprofun-
dar, por intermédio de uma concepção de sujeito e mundo vistos
11
Em seu ensaio sobre os como posições relativas ocupadas por um dentro e um fora em
sermões do padre Antônio
Vieira, Haddad explicita
permanente movimento de reconfiguração, o debate acerca de
que a repetição vem atu- uma dupla função da linguagem – representação e intervenção
alizar uma das marcas
do autor: “a tendência à – face à produção de subjetividade e à articulação entre o su-
circularidade do estilo, jeito e o mundo: investigação que remete a uma concepção não
expressão da mais absoluta
u n id ade” ( H A DDA D, essencialista do real segundo a qual sujeito e mundo resultam de
1968, p. 12). dobras12 que se refazem continuamente. O que concluir, então,
12
Segundo Silva (2004),
“modo singular de flexão a respeito de tal modo de pensar a produção de subjetividade a
ou curvatura de um deter- partir das análises realizadas?
minado estado de relação
de forças que se atualiza Diríamos que, no texto-entrevista analisado, assistimos a
nos ‘processos de subje-
tivação’ ”.
uma dobra do religioso,13 a qual é responsável pela formação de
13
Vimos que a produção um dentro (promotor de uma subjetividade que acima de tudo
dessa dobra do religioso se caracteriza pela fé na atitude do povo americano, no poder
era possibilitada por in-
termédio das escolhas de recuperação da economia do país, nos direitos civis e nos
lexicais e da repetição
de estruturas sintáti-
valores de justiça e liberdade) e de um fora (o infiel, o que não
cas, procedimento que tem remorsos, o que não pode suportar a idéia de liberdade, o
mimetizava os sermões
religiosos. bárbaro).
14
É assim que entende- Tal modo de articulação entre sujeito e mundo (vistos como
mos a afirmação de que
terrorismo e globalização
elementos relacionais) como o que ora se propõe parece contri-
camin ham pari passu: buir significativamente para problematizar identidade e alteridade:
“O terrorismo atual não
descende de uma história com efeito, inexistiria uma diferença fundamental entre o mesmo
tradicional da anarquia, e o outro,14 uma vez que a forma de alteridade que ora se discute
do niilismo e do fanatis-
mo. É contemporâneo da é a da alteridade que habita o mesmo:
globalização ...” (BAU-
DRILLARD, 2003, p. 51). Não existe outro senão na medida em que ele constitui o
Acrescento que, nesse ensejo de um eu tornar-se outro. Se estou triste e alguém me
mesmo modo de con-
ceber identidade e alteri- sorri, o que posso desejar, nesse instante, senão um mundo
dade, particularmente possível de alegria? Da mesma forma, é exatamente o mundo
feliz é a “descoberta” de alegria que faz passar o mundo de tristeza. [...] Fique claro
da expressão “outr’em-
mim” por Naffah Neto então que alteridade não é propriamente aquilo que constitui
(1998).

Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006 369


Décio Rocha

o outro, sua qualidade, mas sim a relação do eu com aquilo


que o altera. (LAMBERT DA SILVA, 2001)
É possível ainda reafirmar a consubstancialidade entre
o outro e o mesmo por outra via de argumentos: a alteridade
pode efetivamente ser apreendida em diferentes planos de atu-
alização, e não apenas em suas macroformas já sedimentadas e
tornadas familiares. É assim que compreendemos a reflexão de
Baudrillard acerca da distância (uma distância que, paradoxal-
mente, implica proximidade) entre terror e terrorismo: “Quanto
ao terror, sabemos que já se encontra em toda parte, na violência
institucional, mental e física, em doses homeopáticas. O terro-
rismo apenas cristaliza todos os ingredientes em suspenso”.
(BAUDRILLARD, 2003, p. 31)
Em um mesmo sentido parecem caminhar as observações
de Guattari:
[...] há uma política que se dirige tanto ao desejo do indivíduo
quanto ao desejo que se manifesta no campo social mais amplo.
[...]. [É preciso] intervir ativamente contra todas as máquinas
de poder dominante, quer se trate do poder do Estado burguês,
do poder das burocracias de toda e qualquer espécie, do poder
escolar, do poder familial, do poder falocrático no casal, e até
mesmo do poder repressivo do superego sobre o indivíduo.
(GUATTARI, 1985, p. 174)
No que concerne ao papel desempenhado pela linguagem
na produção de um dado modo de subjetivação e no encontro
entre sujeito e mundo, explicitamos a função dos dispositivos
cenográficos em seu poder de linguagem-intervenção. Com
efeito, vimos que, no texto-entrevista de Bush, a cenografia de
sermão religioso parecia cumprir adequadamente sua função de
“armadilha”: trabalhando no sentido de “apagar” o quadro cênico
original (no qual teríamos o discurso político como cena englo-
bante e a entrevista como cena genérica), promovia uma outra
composição de forças na qual uma nova cena genérica (sermão
de conforto aos fiéis diante da ameaça do inimigo) vinha se inscrever
em uma cena englobante atinente aos discursos religiosos. Eis,
desse modo, a concretização de um dispositivo de cenografia
que funciona como agente de fluidificação de formas instituídas,
como promotor de uma linguagem-intervenção.
Que nova configuração de forças se dá mediante tal “des-
locamento” cenográfico? Não nos alongaremos nessa questão.
Diremos apenas, à guisa de conclusão, que, na passagem da
cena política à cena religiosa, da entrevista midiática ao “sermão
de admoestação aos ímpios”, o que ocorre é uma significativa
alteração dos efeitos de sentido até então produzidos: a punição
ao agressor, prometida em tom de ameaça pelo presidente, que
a infligiria por iniciativa própria, deixará de ser assumida pela
mão do homem e passará diretamente às mãos de Deus. Dis-

370 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

cursos que deixam entrever afetos e desejos, que buscam legiti-


mação instituindo a cena enunciativa que anuncia um mundo
apenas entrevisto no momento (e no qual terá lugar, em futuro
próximo, a redentora invasão de um certo país do oriente); um
mundo que, a seu turno, legitimará o direito de enunciar como
o faz o orador-presidente. God bless America!15

Abstract
Based on a corpus composed of an interview with
G. W. Bush, president of the U.S.A., which took
place on the 16th September 2001, precisely five
days after the terrorist attack to the World Trade
Center, this paper discusses the double role of
language, representing and intervening, in its
mediation between subject and world. The main
reason to explain the interest of the analysis of this
interview is the fact that Bush speaks of a “cru-
sade” against the enemy, inadequate expression
which brought about a vigorous reaction from
islamitic community. The concept of scenography
conceived by Maingueneau shows itself productive
in putting forward the intervening dimension of
language.
Keywords: representation, subjectivity, alterity,
scenography, terrorism.

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Canção escrita origi-
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15

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Irving Berlin, imigrante
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372 Niterói, n. 21, p. 355-372, 2. sem. 2006


Um ethos para Hércules: considerações
sobre a produção dos sentidos no
tratamento editorial de textos
Luciana Salazar Salgado
Recebido 15, jun. 2006/Aprovado 15, ago. 2006

Resumo
Muitos projetos editoriais têm investido na com-
preensão da autoria, de seu processo de consti-
tuição: no tratamento editorial de textos, dá-se,
na matéria textual que irá a público, uma espécie
de debate sobre as idéias e seu arranjo, uma in-
terlocução que se registra no corpo do original,
propondo correções, mudanças, questões diver-
sas. Entendido no âmbito da discursividade, esse
trabalho editorial se faz em manobras lingüísticas
reveladoras do quanto, nessa altura, o texto está
em construção. Embora se tenha estruturado como
versão final, ao passar por essa leitura/co-enun-
ciação, ele se move – às vezes em novas direções,
às vezes tornando contundentes certos traços, ou
abrindo mão de outros. Com base nisso, considero
a noção de ethos para a qual “o texto não é para ser
contemplado, ele é uma enunciação voltada para
um co-enunciador que é necessário mobilizar para
fazê-lo aderir ‘fisicamente’ a um certo universo de
sentido” (Maingueneau, 2005a) e analiso excertos
de tratamento editorial de uma versão dos Doze
Trabalhos de Hércules, nos quais alterações sutis
da cenografia discursiva necessariamente alteram
o ethos que dela participa, matizando o mito.
Palavras-chave: autoria, edição de textos, dis-
cursividade, ethos

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006


Luciana Salazar Salgado

“Cedo compreendi que o bom fra-


seado não é o fraseado redondo,
mas aquele que em cada palavra
tem uma função precisa, de caráter
intelectivo ou puramente musical,
e não serve senão a palavra cujos
fonemas fazem vibrar cada parce-
la da frase por suas ressonâncias
anteriores e posteriores. Não sei
se estou sutilizando demais, mas
é tão difícil explicar por que num
desfecho ou num verso esta linha
é viva, aquela é morta.”
(Manuel Bandeira. Itinerário de Pa-
sárgada)

Textualização e produção dos sentidos


Os atuais estudos da linguagem, dentro e fora da lingüís-
tica, sobretudo aqueles desenvolvidos nas fronteiras epistemo-
lógicas, têm se voltado muito especialmente para a produção
dos sentidos. No que diz respeito aos estudos dos textos e dos
discursos, cada vez mais se estudam questões relativas à opa-
cidade das línguas e à heterogeneidade dos dizeres, das quais
se desdobram discussões sobre as condições de produção dos
enunciados – o material extra-lingüístico como constitutivo do
lingüístico, a instituição da subjetividade e da alteridade como
fundantes das enunciações, as dinâmicas que alimentam as
interlocuções, as coerções que orientam tais dinâmicas.
Para abordar a produção dos sentidos num texto, do modo
como esse objeto interessa aqui, consideramos que os textos
têm sido definidos em toda teoria textual, desde a Antigüidade,
tanto por sua condição de inteireza quanto por sua condição
de abertura; em seu duplo funcionamento, um texto é uma
unidade e é inacabável, uma composição que é também possi-
bilidade de recomposições (ADAM, 1999, p. 07 et seq.). Trata-se
de considerar a textualização, sua dinâmica de construção, que é
sempre balizada por condicionantes sociais e históricas. Numa
perspectiva discursiva, este artigo se propõe observar a pro-
dução dos sentidos num texto destinado a publicação ou, mais
precisamente, os sentidos que se produzem numa textualização
que irá a público.
Para tanto, esta reflexão assenta-se em noções da análise
do discurso de linha francesa, em seus desenvolvimentos teó-
ricos que propõem os discursos como práticas discursivas, isto
é, como sistemas de restrições semânticas indissociáveis das
práticas sócio-históricas e verificáveis na matéria lingüística.
Considera-se, aqui, que tal indissociabilidade se deve ao fato de
que “os discursos não só surgem apenas se certas condições são
satisfeitas, mas também que eles podem afetar essas mesmas

374 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006


Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

condições” (POSSENTI, 2003, p. 221). Essa análise do discur-


so, estribada nas questões de linguagem, formula uma teoria
da leitura que supõe a língua como constitutivamente opaca
e polissêmica, os sujeitos como clivados e as conjunturas de
interlocução marcadas por lugares sociais definidos na sobrepo-
sição de tempos e funções de que se faz a história (POSSENTI,
2004). Trata-se, então, de uma proposta teórica que examina as
textualizações sempre em sua condição de interpretação, sendo
esta não uma decodificação de signos ou um desvendamento
do exterior textual, mas a leitura dos vestígios da rede de dis-
cursos que envolvem os sentidos, que levam a outros textos, que
estão sempre à procura de suas fontes [...]. Por isso os sentidos
nunca se dão em definitivo; existem sempre aberturas por onde
é possível o movimento da contradição, do deslocamento e da
polêmica (GREGOLIN, 2003, p. 48-49).
Mesmo em textos supostamente neutros, nos quais se faz crer
num verdadeiro apagamento do sujeito e na plena objetivida-
de dos problemas formulados – como freqüentemente se crê
que aconteça nas ciências naturais ou na matemática –, o que
se verifica é uma longa história de convenções estabelecidas
e sobretudo um treinamento dos cientistas, para que se ate-
nham a um modo de dizer, a um modo de manobrar sentidos
convencionados, pretendendo uma univocidade. E, se é feita
de convenções, essa univocidade pretendida “depende de uma
certa quantidade de repressão das idiossincrasias do leitor”,
pois “é nesses discursos, e como conseqüência de um longo
trabalho histórico, que tais palavras e tais enunciados têm uma
leitura unívoca, e não em língua portuguesa ou inglesa etc.”
(POSSENTI, 2002, p. 248).

Autoria e produção dos sentidos


Essa abordagem discursiva parece bastante proveitosa para
o estudo do processo de constituição da autoria de um texto, pois
permite examinar a inextricabilidade entre práticas sociais de
textualização, subjetividade e alteridade. No que tange à autoria
de textos destinados a publicação, produzidos para circular entre
diversos leitores, essa perspectiva permite observar as manobras
de textualização por que passa o “original” de um autor quando
entra em processo editorial. Nos apontamentos que a leitura de
um outro (no lugar de editor/preparador de textos) assinala na
matéria lingüística, no próprio corpo do texto, podemos ver o
que Chartier freqüentemente afirma: que a publicação de uma
obra “implica sempre uma pluralidade de atores sociais, de
lugares e dispositivos, técnicas e gestos” (CHARTIER, 2002a, p.
10). São bastante conhecidos seus estudos que relatam o quanto
os tipógrafos (encarregados até de pontuar os textos e decidir
sobre sua disposição) e os doutos correctores (eruditos contratados
ou convidados para o que hoje chamamos revisão de provas)
atuavam sobre a composição dos textos autorais, definindo-lhe
Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 375
Luciana Salazar Salgado

as feições públicas (CHARTIER, 1994, 2002a, 2002b, 2003). Tais


práticas, verificadas já antes do século XVII, mas marcadamente
nesse período e cada vez mais sistematizadas na crescente pro-
dução de cópias ao longo do século XVIII, foram sendo neces-
sariamente discutidas e reorganizadas até se promulgarem as
primeiras providências legais – como o copyright na Inglaterra
(1709) e certas medidas de proteção do autor na França (1777)
– que anunciaram a propriedade intelectual dos autores e, as-
sim, os modos pelos quais eles podiam dispor de suas criações
e negociar as características da versão a ser distribuída pelos
livreiros, quase sempre tipógrafos-livreiros, os únicos que co-
mercializavam os livros e que, por isso, detinham o poder sobre
as cópias, sobre a versão a ser copiada e sua circulação.
No século XIX, a designação editor aparece, institucionali-
zando lugares no mercado editorial e oficializando práticas de
publicação. Desde aí, ao editor cabe coordenar o processo de
edição e circulação pública, o que é, então, uma nova forma de
captar material a ser publicado e de compor equipes com traba-
lhadores especializados na edição de textos, inclusive em seus
aspectos gráficos e relativos ao suporte (BRAGANÇA, 2005). O
percurso histórico que institui a figura do editor revela que a
publicação de um texto nunca foi mera reprodução gráfica de
um material tal qual apresentado por seu autor.
No Ocidente, desde que a prática da leitura saiu dos monás-
ticos scriptoria medievais e se aprimorou o formato codex (folhas
dobradas em cadernos, que são costurados uns nos outros e
protegidos por uma encadernação) para a circulação dos textos,
mesmo quando as cópias eram todas manuscritas, a constituição
da autoria de textos produzidos com o fim de circular envolve
explícita e oficialmente gestos outros além dos do autor. Diversos
profissionais atuam como co-enunciadores trabalhando para
garantir a autoridade do autor, a proficiência do texto que lhe
confere esse lugar. Desse modo, embora a versão “original”, ao
passar por tratamento editorial, se movimente – às vezes em
novas direções, às vezes tornando contundentes certos traços,
ou mesmo abrindo mão de outros –, esse movimento do texto
não destitui seu autor, não se transforma em co-autoria, e não é
propriamente uma reescritura; é ainda escritura do autor, que,
por meio da leitura desse outro, anotada pontualmente, navega
águas que seu próprio texto permite e, com isso, se não pode
fechá-lo definitivamente (porque ele será sempre textualização,
movimento de produção dos sentidos diante de cada leitor futu-
ro), procurando garantir que certas leituras estejam mais auto-
rizadas que outras, e que certas memórias discursivas tendam
a se atualizar, filiando o texto a uma dada rede de dizeres.
Nos três últimos séculos, a leitura se tornou um gesto dos olhos, e
não mais do corpo todo (como fora por milênios, sobretudo na prática
freqüente da declamação de textos interiorizados). Contribuíram para
376 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006
Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

isso a disseminação do codex em lugar do volumen (livro de rolo,


cuja leitura ocupa as duas mãos simultaneamente) e, depois, os tipos
móveis, multiplicando velozmente as cópias de um mesmo texto. Isso
faz com que os textos não imponham a seus leitores um ritmo e as
ênfases de apropriação; forja-se, assim, uma distância entre leitor e
texto que é uma espécie de autonomia ou um habeas corpus do leitor,
conforme a formulação de De Certeau (2004, p. 272). Entretanto, é
bom lembrar, um habeas corpus não é uma liberação para qualquer
passo adiante, e as características desses textos que se dão a ler por
um público vasto, inferido e liberto de algumas imposições, se abrem
brechas para derivas – a condição de abertura de todo texto –, firmam
também um curso, uma linha-mestra – sua condição de unidade.
O tratamento editorial procura, então, ao mesmo tempo,
apontar nessas características o que parecem ser brechas para
deriva e o fio condutor, propondo ajustes e alterações sempre
pautados pelo projeto editorial, conforme o gênero de publica-
ção que se está preparando, e o editor de textos faz isso como
um co-enunciador inscrito na interdiscursividade em que essa
alteridade se põe. De fato, estão em jogo práticas da ordem do
discurso: a alteridade que se institui na composição da autoria,
junto com o autor, trabalhando pelo texto dele, no texto dele,
opera sobre a matéria lingüística (opaca e heterogênea), em sua
condição textual (una e inacabada), com base em modos de ler e
interpretar (que são históricos). Observando esse trabalho, vemos
que os sentidos se produzem não nesta ou naquela manobra, na
troca de uma palavra por outra ou numa nova pontuação, mas
no conjunto desses movimentos, com as coerções genéricas que
lhes delimitam.
Textualização, autoria e semântica global
Para observar esse trabalho editorial, que se dá numa inter-
locução discursiva anotada na matéria lingüística, apresentarei
exemplos de manobras propostas no tratamento editorial de um
texto, pondo em relevo o modo como elas penetram a autoria e
dela participam, legitimando-a.
Nos excertos a seguir, é possível examinar aspectos da
semântica global do texto instaurados pelas propostas do
editor/preparador, dos quais focalizarei um, detendo-me em
manobras lingüísticas que fazem mover-se o ethos do herói em
cena. Evidentemente, “um procedimento que se funda sobre uma
semântica ‘global’ não apreende o discurso privilegiando tal ou
tal de seus ‘planos’, mas integrando-os todos, tanto na ordem do
enunciado quanto na da enunciação” (MAINGUENEAU, 2005b,
p. 79); aqui, o recorte de observação não perde de vista essa
integração dos diversos elementos e instâncias que produzem
sentido num texto. Tais excertos foram selecionados justamente
por se tratar de um “original” sem infrações à norma culta ou
falhas de encadeamento lógico, mas de material traduzido ao
Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 377
Luciana Salazar Salgado

qual era preciso imprimir uma cadência de narrativa mítica


contada na variante padrão do português brasileiro contem-
porâneo, destinada à difusão entre jovens do ensino médio e
interessados em geral.
Embora difusa, essa é uma diretriz nada incomum no
meio editorial. Há materiais que não demandam propriamente
correções, mas uma formulação textual afinada com o perten-
cimento a um gênero e a uma rede de memória, que leve em
conta o “sistema que investe o discurso na multiplicidade de suas
dimensões” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 80). Na verdade, talvez
a diretriz não possa ser mais precisa, pois só no contato com a
malha textual, com seus nós e costuras, é que se saberá como se
tece essa cadência, ensejada para tal destino. Importante notar
que há um trabalho técnico; não é a súbita percepção de alguém
especialmente sensível que dita as manobras. Uma leitura cri-
teriosa, mobilizadora de certas redes de memória, de técnicas
e de práticas, ainda que não firme um trajeto seguro, convida a
dados percursos, traçando alamedas e boulevares. Uma breve
ilustração desse trabalho que é pontual e toca necessariamente
o global: no material de onde se reproduzem as passagens ana-
lisadas a seguir, procedeu-se à supressão de muitos pronomes
pessoais na posição de sujeito do verbo, imprescindíveis em
inglês mas freqüentemente dispensáveis em português, e isso
tornou a narrativa mais ágil e talvez se pudesse dizer verossímil
(para o público a que se destina), considerando-se o conjunto
de episódios aventurosos que são narrados – trata-se de uma
versão dos Doze Trabalhos de Hércules.
Não havia qualquer orientação editorial para modificar o
ethos do herói em cena. Aliás, seria possível supor que ele faz
parte do “núcleo duro” do texto: o mito já existe muito antes de
ser contada essa versão – quem não conhece Hércules, o bravo
herói grego, o único a passar pelo rito dos famosos Doze Tra-
balhos? Bem, se se pensa nas tantas versões, em tantas línguas
distintas (e mesmo em grego), nas variações destinadas a esse
ou àquele público, nas versões cinematográficas – de Hollywood
a Bollywood –, já não se pode presumir um núcleo que não se
move com tudo o mais.
Pressuposta a semântica global, com a imbricação de to-
dos os elementos que compõem um texto, o ethos pode ser visto
como o aspecto dos sentidos que designa a imagem de si que
um locutor constrói em seu discurso de modo a autorizar-se pe-
rante seu alocutário (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004,
p. 220). No caso de um mito que se conta, no qual, por definição
de gênero, há apagamento do locutor e ênfase noutros elementos
narrativos, o fiador do discurso – aquele que dá cobertura, que
garante, entre outras coisas, o ethos discursivo, avalizando o
dizer – apresenta-se numa voz que “o leitor deve construir com
base em indícios textuais de diversas ordens” e que se investe
378 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006
Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

“de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão


varia conforme o texto” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 72). Tal
corporalidade, uma espécie de compleição evocada, inclui mo-
dos de portar-se, de ocupar o espaço, que são apreendidos por
meio de um comportamento global amparado num “conjunto
difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas,
de estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua
vez, contribui para reforçar ou transformar” (Idem, ibidem).
O ethos está, assim, implicado na cenografia discursiva
(MAINGUENEAU, 1997, p. 42 et seq.). Para entender essa impli-
cação, consideremos como cenografia discursiva a conjugação
de uma dêixis discursiva (com os interlocutores, uma cronogra-
fia e uma topografia próprias) a uma dêixis fundadora (com sua
locução fundadora, cronografia e topografia fundadoras) que
lhe é anterior e, de algum modo, repete-se na cena discursiva
atual atribuindo-lhe “boa parte de sua legitimidade” (MAIN-
GUENEAU, 1997, p. 42 et seq.). Resultando dessa conjugação,
a cenografia “é, ao mesmo tempo, a fonte do discurso e aquilo
que ele engendra” (MAINGUENEAU, 2004, p. 99) e abriga um
“tom” que lhe dá autoridade. Uma “maneira de dizer” evoca uma
“maneira de ser”, noutros termos: os “conteúdos” enunciados
não são independentes da cena de enunciação que os sustenta.
Quem avaliza essa cena é o fiador, a voz que assume um tom e
assim constrói o mundo do qual participa, diz do mundo o que
esse mesmo mundo lhe permite e lhe propõe dizer; trata-se de
um “paradoxo constitutivo: é por meio de seu próprio enunciado
que o fiador deve legitimar sua maneira de dizer”, incorporando
um ethos (MAINGUENEAU, 2005a, p. 73). E essa incorporação
supõe que “o texto não é pra ser contemplado, ele é enunciação
voltada para um co-enunciador que é necessário mobilizar para
fazê-lo aderir ‘fisicamente’ a um certo universo de sentido”
(MAINGUENEAU, 2005a, p. 73).
Vejamos, nas passagens selecionadas, como se movimenta
a encarnação de Hércules entre o excerto original e as propostas
do tratamento editorial, a partir dos traços com que um fiador es-
trategicamente apagado enobrece a figura do herói, sofisticando
os perigos que ele enfrenta, imprimindo prontidão a suas ações
e precisando configurações do ambiente com que dialoga.

Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 379


Luciana Salazar Salgado

I. o Leão de Neméia (primeiro trabalho de Hércules)


original alteração proposta
De repente, quando começava o Caía o crepúsculo.1 Ouviu-se um
crepúsculo, ouviu-se um rugido terrível, rugido impiedoso, seguido de outro
seguido de um segundo e de um e mais outro2. Vinham de longe e
terceiro. Os rugidos vinham de longe e mostravam a fúria do leão diante do
mostravam que o Leão tinha ido para a bloqueio que encontrara 3. Quando
outra entrada da cova, e, encontrando- finalmente o animal voltou à primeira
a bloqueada, estava agora dando vazão entrada, a noite caíra. Hércules
a sua fúria. Quando finalmente ele percebeu que não seria inteligente
voltou à primeira entrada, a noite já enfrentar o monstro no escuro; assim,
tinha caído. Hércules percebeu que não deixou-o entrar na cova sem ser
seria inteligente enfrentar o monstro no perturbado e esperou, escondido, a
escuro; assim, deixou-o entrar na cova nova aurora.
sem ser perturbado e esperou escondido
até a chegada da aurora.

1) Crepúsculo é um termo ligado à noção de processo: é uma


luminosidade crescente ou decrescente, não tem traços
de “começo” propriamente, tampouco se costuma pensar
num crepúsculo repentino. Em português, como noutras
línguas latinas, há um uso consagrado para o termo com
acepção de ocaso, decadência, declínio do bem e da força.
Assim, o encurtamento do período parece pôr em relevo
essa noção, e instaura um clima de obscurecimento e ten-
são – o herói está vivendo aí o prenúncio de um grande
perigo, o primeiro dos ritos que cumprirá.
2) O monstro, já dito terrível, e indicado em passagens
anteriores como sem dó nem piedade, deu muitos gritos
ou pareceu serem muitos, dada a duradoura situação de
enfrentamento. A formulação proposta sugere que não
se contariam precisamente três rugidos identificáveis; a
troca de numerais por um pronome indefinido sugere
uma experiência menos racional que, com a recorrência,
cresce retumbante – ouviu-se um rugido impiedoso, seguido
de outro e mais outro, num sem-fim que exprime a ira do
Leão de Neméia.
3) Linhas acima se descreveu pormenorizadamente a estra-
tégia de Hércules para cerrar uma das entradas da cova,
assim, o termo bloqueio retoma o complexo procedimento,
buscando no elemento já dado (a empresa de bloquear
a cova) o impulso para o novo: o leão topou com a en-
trada bloqueada; o herói obteve êxito em sua estratégia.
1
De fato há muitas con-
Aparece-nos diferente a cena quando, em vez de o leão
siderações interessantes encontrar a cova bloqueada, encontra o bloqueio da cova, obra
a fazer sobre autoria
e tradução num caso substantiva de Hércules.
como esse, mas tal dis-
cussão foge ao escopo
deste artigo, que consi-
dera como texto original
aquele que, em portu-
guês, recebeu tratamen-
to editorial. Uma prática
freqüente no mercado
editorial.

380 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006


Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

II. as aves do lago Estínfalo (terceiro trabalho de Hércules)


original alteração proposta
Nenhuma das flechas do herói errou Nenhuma das flechas do herói errou
o alvo. Muitas delas chegaram até a o alvo. Muitas delas chegaram até a
derrubar duas aves de uma só vez, porque derrubar duas aves de uma só vez,
o veneno da hidra, no qual suas pontas porque o veneno da hidra, no qual suas
tinham sido mergulhadas, significava pontas tinham sido mergulhadas, num
que um mero arranhão era suficiente mero arranhão inoculava o suficiente
para matar. As aves caíam mortas do para matar 1. As aves caíam mortas do
céu, algumas para serem tragadas céu, algumas para serem tragadas pelas
pelas águas verdes do lago, outras águas verdes do lago, outras chocando-
chocando-se contra os juncos, outras, se contra os juncos, outras, ainda,
ainda, batendo contra as pedras abaixo batendo contra os penhascos2 com o
com um estrondo de penas de bronze. estrondo do bronze de que eram feitas 3.

1) Trata-se da descrição do poder de um veneno letal,


possivelmente o mais letal dos venenos – o da Hidra de
Lerna. Na proposta de alteração, ele não significa, mas
mata efetivamente. Procedeu-se à personificação do
veneno: ele, num mero arranhão, é quem inocula. Além
disso, o termo inocula retoma tanto o universo de víboras
e assemelhados quanto uma terminologia científica que
também tecnifica e tecnologiza a ação do envenenamento,
potencializando-a, pondo em relevo sua eficiência.
2) Seria possível, aí, modificar o provável calco de tradução
batendo contra pedras abaixo por rolando pedras abaixo. Mas
parece que soam mais dramáticos (tanto quanto outros
elementos da cena) os penhascos; com essa palavra, o
movimento se alonga, e a duração do evento também,
inclusive pela evocação da sonoridade da queda. E o
que há de sinistro e perigoso nos penhascos pertence a
uma memória literária e filmográfica de largo alcance.
Essa circunscrição combina com o caráter espetacular do
desfecho desse episódio.
3) A palavra penas do original pôde ser suprimida, pois é
o que se espera sobre as aves, e, assim, a passagem um
estrondo de penas de bronze, que refere um tipo de estrondo,
pode ser substituída por o estrondo do bronze de que eram
feitas, que particulariza tanto o som do estrondo como a
fatalidade do evento, remetendo à rijeza física das aves
e à severidade de suas ações.

Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 381


Luciana Salazar Salgado

III. o Touro de Creta (sétimo trabalho de Hércules)


original alteração proposta

Com toda sua força terrível, Hércules Com toda sua força temível,1 Hércules
forçou a cabeça do touro para baixo até empurrou a cabeça do touro para bai-
suas narinas rasparem o chão. O ani- xo até suas narinas rasparem o chão.
mal lutava furiosamente, mas em vão: O animal lutava raivoso, 2 mas em vão.
por mais que tentasse, não conseguia Por mais que tentasse, não conseguia
levantar a cabeça de novo. Seus cascos levantar a cabeça de novo. Seus cascos
traseiros arranhavam desesperadamen­ traseiros arranhavam desesperadamen­
te a terra tentando encontrar um ponto te a terra, tentando encontrar um pon-
de apoio, mas nada podia desalojar o to de apoio, mas nada podia desalojar
filho de Zeus ou fazê-lo perder o equilí- o filho de Zeus ou fazê-lo perder o
brio. Uma espuma borbulhava na boca equilíbrio. Uma espuma borbulhava
do touro em sua raiva impotente, mas na boca do touro, cheio de raiva im-
não havia nada que ele pudesse fazer. potente, 3 mas não havia nada que ele
Em pouco tempo suas últimas forças pudesse fazer. Em pouco tempo suas
esgotaram-se e ele se entregou a seu últimas forças esgotaram-se, e ele se
oponente sem resistir mais. entregou extenuado4 a seu oponente.

Neste episódio, o corpo-a-corpo vivido por Hércules é


bastante mais sofisticado que os havidos antes, contra monstros
e feras. O Touro de Creta deve ser freado em sua fúria, instilada
por Possêidon ofendido, mas, sendo um animal caro a um grande
deus, Hércules tem de dominá-lo e conduzi-lo sem jamais feri-
lo. É particularmente importante a distinção entre esse animal
furioso mas divino e os outros combatidos até aqui; vê-se que a
adjetivação e a predicação são elementos-chave nas propostas
de reformulação.
1) Força terrível tem tom algo abrutalhado para a sutileza
com que Hércules deve empreender essa tarefa. Aliás,
na progressão do mito, a iniciação do herói se vai cum-
prindo em estágios de sofisticação da enorme força que
ele tem desde nascido. A essa altura, tornara-se temível:
ele já impõe respeito por sua fama e glória, e não deve
mais provocar terror com seu tamanho descomunal ou
sua força bruta.
2) A substituição remete a tudo que se vem dizendo sobre
a força desse herói, retomando, numa continuidade tó-
pica, a evolução moral de Hércules. A luta já transcorria
há muito tempo, e o touro, prestes a ser vencido, lutava
com raiva, não exatamente de modo enfurecido, pois sua
fúria já perdia tônus. Observe-se, ainda, que trocar o ad-
vérbio furiosamente pelo adjetivo enraivecido daria a idéia
de tornado com raiva, de tomado por raiva àquela altura,
enquanto a terminação –oso sugere uma condição mais
perene. Retoma-se, lá do início da história, que esse touro
é um ser com raiva – a raiva instilada por Possêidon. Ele
não ficou com raiva de Hércules; vivia constantemente
nesse estado.
3) A construção original é longa, o que esvazia o impacto da
imagem, e a ambigüidade do pronome sua contribui para

382 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006


Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

esse esvaziamento. Nas alterações propostas, parece que


se busca garantir ao touro a raiva, ainda raiva, embora
impotente – afinal, o touro era sempre assim, esse era o
problema que Hércules deveria resolver.
4) Um touro tão assombrosamente forte e raivoso não se
entregaria desistindo da contenda; ele lutou até esgota-
rem-lhe as forças e foi rendido quando perdeu qualquer
possibilidade de ação. O termo extenuado compõe, no fim
do parágrafo e da luta, a expansão lexical da cena, numa
gradação que configura a mais importante informação
dessa passagem: o registro da rendição processual do
touro – raivoso, cheio de raiva impotente, extenuado. Ele não
parou de resistir, foi vencido. Suas forças sucumbiram à
astúcia dos golpes do herói.
IV. os cavalos de Diomedes (oitavo trabalho de Hércules)
original alteração proposta
O herói e seus companheiros chega- O herói e seus companheiros chega-
ram à Trácia pelo mar. Hércules logo ram à Trácia pelo mar. Hércules logo
descobriu o estábulo onde os cavalos descobriu o estábulo Øi e, enquanto os
estavam e, enquanto seus companhei- outros desabavam 2 sobre os guardas
ros caíam sobre os guardas e os amara- para amarrá-los, ele desacorrentou Øii
ram, ele desacorrentou rapidamente os os animais3 de suas baias e, seguran-
animais de suas baias e, segurando-os do-os pelas rédeas, conduziu o tropel
pelas rédeas, os conduziu até o navio. até o navio.

1) Elipses coesivas:
i. nos parágrafos anteriores, falou-se em “cavalos de
Diomedes” algumas vezes; aqui, o termo estábulo, pela
afinidade semântica sustentada por uma memória discur-
siva, logo remete aos cavalos de Diomedes, imprimindo
agilidade à cena, evitando repetições desgastantes.
ii. o longo termo rapidamente tira agilidade da ação em-
preendida e é desnecessário como informação, posto
que outros elementos da cena satisfazem a idéia de que
os animais foram desacorrentados no justo tempo que
havia: enquanto os outros desabavam..., ele desacorrentou...
2) A substituição de caíam por desabavam mantém a idéia do
assalto, mas, por seus traços semânticos de precisão, o
verbo desabar registra ao mesmo tempo a grande surpresa
do ato e sua proficiência.
3) Explorou-se a expansão lexical sugerida no excerto ori-
ginal: os famigerados cavalos de Diomedes, sob o poder
de Hércules, são simples animais, depois, rendidos, são
retomados por um sucinto pronome no plural – seguran-
do-os –, para se tornarem, enfim, um tropel, no singular.
É interessante notar que freqüentemente o termo tropel,
quando utilizado na composição de uma cena com gente,
assume a acepção de balbúrdia, mas utilizado para refe-
rir cavalos, assume a acepção de muitos e barulhentos,

Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 383


Luciana Salazar Salgado

mas tangíveis e administrados. A destreza de Hércules


se refina a cada trabalho.
V. o cinto de Hipólita (nono trabalho de Hércules)
original alteração proposta
O navio de Hércules agora havia che- O navio de Hércules já margeava as ter-
gado perto da margem, onde uma mul- ras1 onde uma multidão de amazonas
tidão de amazonas tinha se juntado, se formara 2, muitas delas montadas Ø3.
muitas delas montadas em seus cava- Talvez fosse a mera curiosidade a tê-las
los. Talvez fosse a mera curiosidade que levado até lá, talvez fosse um pressen-
as levara para lá – ou talvez fosse um timento... 4
pressentimento.

1) O navio de Hércules não atracará tão cedo, no decurso


do enredo. É que os mistérios e lendas em torno das
amazonas incitam um espírito de cautela. Considere-se,
ainda, que a nau vinha pelo mar: perto da margem não
parece designar essas águas sem limites, cuja mística está
ligada à falta de forma definida e à impossibilidade de
sua contenção. Já o verbo margeava soa compatível com
a maritimidade ao referir um movimento cauteloso da
embarcação: margear é também aproximar-se hesitante,
e essa hesitação se reforça com o pretérito imperfeito
marcando uma ação não acabada.
2) No original, o navio de Hércules chega a uma terra em
que uma multidão tinha se juntado. Além da inespecifici-
dade da terra de que se aproximou a nau, essa construção
sugere uma ingênua curiosidade das amazonas. Mas elas
são famosas por seus belicosos procedimentos, o que fica
marcado quando formam a multidão, donas de si. Hér-
cules sabia disso, assim como sabia aonde chegava, pois
partira rumo a essa terra. A proposta de uma restritiva
introduzida pela conjunção onde define isso.
3) Montadas permite a inferência, na cena que se compôs, de
cavalos ou algo semelhante. Não bastasse isso, o termo
amazonas, numa rede de memória bastante difundida,
refere-se a mulheres guerreiras que montam vigorosos
cavalos.
4) É muito expressiva a transformação da pontuação que
fecha esse parágrafo. Talvez não coubessem bem essas
reticências catafóricas no original como no texto refor-
mulado, no qual, retirada a sugestão de ingenuidade
ou curiosidade daquela multidão que se formara, parece
proveitoso enfatizar o clima de tensão e iminente batalha.
Trata-se da súbita chegada de homens a uma terra só de
mulheres, e a tarefa é nada menos que roubar à impera-
dora dessas guerreiras um cinto que legitimamente lhe
pertence. As reticências não só sugerem uma aguçada
intuição das amazonas, como também enfatizam o cará-
ter duvidoso dessa tarefa imposta a Hércules.

384 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006


Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

VI. os pomos das Hespérides


(décimo primeiro trabalho de Hércules)
original alteração proposta
Isso era tudo que Nereu tinha a dizer. Isso era tudo que Nereu tinha a di-
Hércules desamarrou-o e saiu sentindo- zer. Hércules desamarrou-o e saiu
se muito deprimido. Ele ficara sabendo deprimido. Ficara sabendo onde es-
onde estava a árvore, mas ele não sabia tava a árvore, mas não sabia como
como poderia pegar os pomos se eles pegar os pomos, se eram guardados
eram guardados por um monstro tão ter- por um monstro tão terrível. Que
rível. Ele não sabia o que fazer. Pela pri- fazer? Pela primeira vez, não tinha
meira vez, não tinha vontade de ir aonde vontade de seguir ao cumprimento
o dever conduzia. Muito desanimado, do dever.1 Muito desanimado, dei-
deixou que seus passos o guiassem para xou que seus passos o guiassem e,
onde quisessem e por fim viu-se no Cáu- lá pelas tantas, 2 viu-se no Cáucaso
caso rochoso e selvagem. rochoso e agreste 3.

1) A introdução de um discurso indireto livre permite rele-


vo da condição de conflito interno vivida por Hércules,
um herói que, além de talentoso e destemido, muito já
aprendeu e agora se vê diante não de um enigma, mas de
um impasse. Daí a pertinência da alteração do período
subseqüente à pergunta que ele se faz: o herói não tem
vontade de seguir ao cumprimento do dever – essa expres-
são designa, no universo mitológico, particularmente
nos episódios iniciáticos, o percurso a empreender ou
os lugares aos quais se dirigir. Sem essa orientação, não
há vontade que mova. Mas veja-se que justamente isso é
que permite a Hércules seguir a mais refinada intuição:
seus passos o guiam, ele se deixa estar, prenhe de conhe-
cimentos, não à deriva, mas à mercê de uma sabedoria
que só assim descobrirá ter.
2) Com base nas alterações comentadas em 1 é que a ex-
pressão lá pelas tantas faz sentido: ela retoma o ar de ne-
bulosidade em que Hércules está imerso: trata-se de uma
expressão adverbial temporal anunciadora de que afinal
algo acontecerá depois de um decurso não exatamente
cronológico. Um tempo passou, houve acontecimentos
e haverá mudança no estado de coisas. Hércules está
operando com a intuição, com suas habilidades menos
objetivas, não é guiado pela consciência. Além disso, a
surpresa do Cáucaso em que vai dar se esvaziava, no
original, com a expressão e por fim. O desfecho não está
próximo; ele acaba de chegar ao local onde enfrentará
ainda muitas agruras, o décimo primeiro trabalho está
apenas começando.
3) A propósito do comentário 2, vem bem a sugestão de alte-
ração do adjetivo final da cena. O ambiente é campestre,
não-cultivado, pode evocar a intuição virgem com que
o herói toma contato só nesse episódio; é tosco, rústico,
desabrido e algo difícil, mas não exatamente agressivo
ou feroz. Tampouco se trata de região de selva. Diga-se

Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 385


Luciana Salazar Salgado

ainda que já há, em muitas passagens do texto, o recurso


ao termo selvagem para referir as mais diversas criaturas
animalescas, desenfreadas ou torpes.
Considerações finais
Nas reformulações propostas, não se funda um novo mito,
mas é possível perceber que Hércules se tornou mais ágil, mais
viril e arguto; os espaços de ação mais sinistros ou intensos;
os rivais mais rudes ou cruéis. De todo modo, não se desfaz
a versão do autor/tradutor, tampouco seu lugar. Nem se pode
dizer que se trata de um novo texto, embora se tenha proposto
uma textualização outra. Algo se moveu e o ethos de Hércules
parece vivificado – o que se produziu num conjunto dinâmico
de manobras lingüísticas pontuais.
Nessa textualização, vemos como “a enunciação não tem
só ‘um rio acima’, ela tem também um ‘rio abaixo’, a saber, as
condições de emprego dos textos do discurso. Pode-se mesmo dizer
que essa distinção entre nascente e foz não opõe realidades inde-
pendentes: a maneira pela qual o texto é produzido e pela qual
é consumido estão ligadas” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 140).
Embora o editor de textos não possa, por definição, pretender que
sua leitura antecipe todas as leituras futuras das experiências de
Hércules narradas nesse texto, o que ele diz do que lê, ao propor
que imagens se enxuguem ou se prolonguem, que dificuldades
se intensifiquem ou se resolvam etc., dá feições novas ao texto-
primeiro. A autoria se compõem também delas agora, e o autor
tem de aprovar esse movimento proposto ou dialogar com ele,
movimentando mais a textualidade. Vê-se, porém, que mesmo
assim esse leitor-especialista não passa a autor do texto, a co-au-
tor ou mesmo a ghost writer; ele oferece em suas notas alterações
de elementos da cenografia e, com isso, alteram-se aspectos da
semântica global, ainda que o mito de Hércules siga sendo o
mesmo, os mesmos Doze Trabalhos, o mesmo rito iniciático, a
marcha de um herói de estirpe helênica.
Apesar de o texto traduzido, antes do tratamento editorial,
procurar ser bem próximo das construções do original inglês, é
possível que não resulte, provavelmente não pode resultar, tão
próximo do que se conta lá, afinal contar é já um modo de estar
no mundo e simultaneamente instaurar esse mundo, ocupando
nele um lugar. Os aspectos de recepção importam muito e é
importante também entender que a “recepção” não é um pro-
cessamento maquinal, baseado numa língua-default. Afinal, o
caráter de default é já uma convenção e se estabelece nos usos e
empregos, históricos, balizados por práticas sociais que incluem
modos de escritura e de leitura, portanto de textualização.
No caso analisado, é bastante claro que o trabalho se dá
em termos de semântica global. O texto traduzido recebeu um
tratamento lingüístico em português que operou em diversos
386 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006
Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

âmbitos do texto localizadamente, mas com o todo sempre em


vista. Por isso é interessante observar como o ethos se movi-
menta sutilmente com a participação de um leitor explícito, que
também trabalha como fiador do discurso e procura, com isso,
amadurecer certas orientações do texto-primeiro. Vemos nesses
excertos o quanto é pertinente para as reflexões sobre a produção
editorial e para uma prática de edição proveitosa compreender
o “processo pelo qual os diferentes atores envolvidos com a
publicação dão sentido aos textos que transmitem, imprimem
e lêem” (CHARTIER, 2002b, p. 61). E é preciso levar em conta,
ainda, quanto esse leitor-primeiro, co-enunciador, não determi-
na o texto, embora o faça pender para um lado ou outro, pois
“não é o leitor que é seu autor essencial, mas o próprio texto,
concebido como um dispositivo que organiza os percursos de
sua leitura”; o leitor é “o ‘lugar’ a partir do qual [o texto] pode
mostrar sua enunciação descentrada” (MAINGUENEAU, 1996,
p. 59). No caso do tratamento editorial, trata-se de explicitar esse
descentramento ainda em etapa autoral, de maneira que a versão
oferecida a futuros leitores enseje firmemente sua legitimação,
reconhecendo desde a formulação de sua tessitura a alteridade
que todo texto publicado aspira a renovar constantemente.
Abstract
Many editorial projects are looking forward to
comprehend the processes involved in the cons-
titution of authorship. Many evidences point out
to the fact that the publication of a book implies
many different social actors and technical devices.
In terms of the editorial treatment of texts, on the
textual materiality that will be published, there is a
kind of debate about its ideas and organization, i.e.
a kind of dialogue that takes place on the text body
in which are proposed corrections and changes,
and many questions are raised. Within the ambit
of discursivity, this editorial practice implies lin-
guistic maneuvers that reveal how, at this point,
this text is still under construction. Despite the
fact that the text has been structured as a final
version, after going through this reading/diolo-
gue process, it moves – sometimes towards new
directions, sometimes emphasizing some traces
or abandoning others. Considering all the aspects
above, I take into account the notion of ethos as
proposed by Dominique Maingueneau to analyze
excerpts of the editorial treatment given to one
version of “The Twelve Labors of Heracles”, for

Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 387


Luciana Salazar Salgado

which subtle changes in the discursive cenography


necessarily change the ethos that take part of it,
shading the myth.
Keywords: authorship, text edition, discursivity,
ethos

Referências

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Gallo, Maria da Glória de Deus Vieira de Morais. 3 ed. Campi-
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388 Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006


Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

MAINGUENEAU, D. Pragmática para o discurso literário. Trad.


Mariana Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
POSSENTI, S. Observações esparsas sobre discurso e texto (notas
de trabalho). Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, v. 44, p.
211-222, jan./jun. 2003.
. Sobre linguagem científica e linguagem comum. In:
POSSENTI. Os limites do Discurso. Curitiba: Criar, 2002
. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In:
MUSSALIM; BENTES (Org.). Introdução à lingüística: fundamentos
epistemológicos. v. 3. São Paulo: Cortez, 2004.

Niterói, n. 21, p. 373-389, 2. sem. 2006 389


Colaboradores ALINE RODRIGUES BENAYON
deste Número Doutoranda e mestre em Lingüística pelo Programa de Pós-Graduação
em Lingüística da UFRJ. Graduada em Letras (Português- Literatura) pela
UFRJ.

ANA LÚCIA DOS PRAZERES COSTA


Mestre em Lingüística e Filologia pela UFRJ e o doutora em Lingüística
pela mesma universidade. Leciona as disciplinas de Língua Portuguesa e
Lingüística na Universidade Castelo Branco. Tem experiência de pesquisa
na teoria da variação e mudança associada a hipóteses funcionalistas.

ANGELINA APARECIDA DE PINA


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas-Língua
Portuguesa da UFRJ e professora substituta de Filologia Românica na UFRJ.
Autora da resenha de Desvendando os segredos do texto (Revista Leitura: Te-
oria & Prática), dos artigos “Iniciação às investigações sobre anguladores”
(Revista Soletras), “Da Lógica Formal à Semântica Cognitiva: considerações
sobre as modalidades” (Revista Eletrônica do IH), e de trabalhos em anais de
congressos.

CARLOS ALEXANDRE GONÇALVES


Doutor em Lingüística pela UFRJ e professor de Língua Portuguesa da UFRJ.
Pesquisador-bolsista do CNPq e estágio de pós-doutoramento em Lingüística
na UNICAMP. Autor do livro “Flexão e derivação em português”, pu­blicado
pela Editora da Fac. de Letras da UFRJ em 2005 e coordenador, ao lado de
Maria Lúcia Leitão de Almeida, do NEMP (Núcleo de Estudos Morfosse-
mânticos do Português).

CÉLIA MARIA MEDEIROS BARBOSA DA SILVA


Mestre em Estudos da Linguagem, pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN), é professora e diretora do Curso de Letras da Universidade
Potiguar – UnP, pesquisadora do grupo D&G/UFRN e co-autora dos seguin-
tes livros: Comunicação e Expressão I. Natal/RN: NEAD/UnP, 2006, v. 1. p. 162;
e Comunicação e Expressão II. Natal/RN: NEAD/UnP, 2006, v. 2. p. 156.

CHRISTINA ABREU GOMES


Doutora em Lingüística pela UFRJ e professora do Departamento de Lin-
güística e Filologia da UFRJ, com pós-doutoramento na University of York,
Inglaterra. Tem publicado regularmente capítulos de livros e artigos em
periódicos especializados na área da sociolingüística, mudança e variação
lingüística, como Aquisição lingüística em contexto de input variável: a emergência
das variantes de dativo. Revista de Estudos da Linguagem, v. 12 (2004) e Varia-
ção e mudança na expressão do dativo no português brasileiro. In: Mudança
Lingüística em Tempo Real, Contracapa/Faperj (2003).

Niterói, n. 21, p. 391-395, 2. sem. 2006 391


CLÁUDIA RONCARATI
Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Univer-
sidade Federal Fluminense, pesquisadora I do CNPq e membro da equipe
científica do Projeto Estudos Sobre os Usos da Língua (UFRJ/UFF/UnB).
Organizou livros e tem publicado artigos em capítulos de livros e revistas
especializadas. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre variação sintática
e processamento textual de base sócio-cognitivista, cujos resultados estão
divulgados em artigos publicados e outros no prelo. É autora do livro O
discurso do câncer (2004).

DÉCIO ROCHA
Doutor em Lingüística pela PUC-SP. Professor da UERJ. Publicou, entre
outros títulos, Une approche discursive de la classe de langue étrangère en
tant que lieu de travail, na D.E.L.T.A., vol. 19, fasc. 1, 2003; Enlaçamentos nos
discursos da mídia sobre videojogos, em The ESPecialist, vol. 24, Número
especial, LAEL, PUC-SP, 2003; co-autor de Análise de Conteúdo e Análise
do Discurso: o lingüístico e seu entorno, na D.E.L.T.A., , vol. 22, no. 1, 2006, e
AC e AD: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória.
ALEA, UFRJ, vol. 7, no. 2, 2005.

IDA REBELO
Doutora em Linguística pela PUC-Rio. É professora na mesma instituição.
Tem apresentado trabalhos em inúmeros congressos (no Brasil e no exterior)
e tem feito conferências em diversas universidades, nomeadamente em
Portugal. Publica, regularmente, em revistas da especialidade e é membro
de projetos internacionais.

JOSÉ ROMERITO SILVA


Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e
doutorando em Lingüística Aplicada pela mesma universidade. É profes-
sor do curso de Letras da Universidade Potiguar, em Natal e coordenador
pedagógico da Escola Estadual Dr. Antônio de Souza, em Parnamirim, RN.
Publicou: Comunicação e expressão I. Natal, RN:NAD/UnP, 2006, v. 1. e Comu-
nicação e expressão II. Natal, RN: ENAD/UnP,2006, v.2.

LUCIANA SALAZAR SALGADO


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Unicamp.
Publicou: A inclusão personalizada, in Antas Jr., Dowbor & Silva (orgs),
Desafios do consumo, São Paulo: Vozes, 2006; A interlíngua de ‘Atrás da catedral
de Ruão’, Critica & Companhia, ano II, 2006; Um acontecimento discursivo
sobre a terra, in Fernandes & Santos (orgs.), AD: objetos literários e midiáticos,
Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006; A jurisdição semântica de uma teoria que
vai parar na escola”, Estudos Lingüísticos, v. 34, 2005; Um discurso da terra,
um acontecimento, in Ave Palavra, Alto Araguaia, v. 1, n. 5, 2004.

MÁRCIA CRISTINA PONTES VIEIRA


Mestre em Lingüística pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística da
UFRJ. Especialista em Literatura Brasileira pela UERJ.

392 Niterói, n. 20, p. 391-395, 2. sem. 2006


MARIA ALICE TAVARES
Doutora em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina, profes-
sora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na
área de Lingüística , com ênfase em Teoria e Análise Lingüística. Entre suas
publicações mais recentes, encontram-se: Abordagem sociofuncionalista da
mudança em tempo aparente. Revista do GELNE, v.6, nº1, João Pessoa, 2005,
p.91-110; Então inferidor como marca de constituição da subjetividade e da
instaciação de sentidos na entrevista sociolingüística. D.E.L.T.A., v20, nº1,
São Paulo, 2004, p.77-95.

MARIA ANGÉLICA FURTADO DA CUNHA


Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Suas publica-
ções mais recentes são: Corpus Discurso &Gramática: a língua falada e escrita
na cidade de Natal. Natal:EDUFRN, 1998 (org.); Procedimentos discursivos na fala
de Natal. Natal:EDUFRN, 2000 (org.); Lingüística Funcional: teoria e prática. Rio
de Janeiro:DP&A, 2003 (em co-autoria); Anais do X SEMINÁRIO DO GRUPO
DE ESTUDOS DISCURSO & GRAMÁTICA. Natal:EDUFRN, 2006 (org.).

MARIA BEATRIZ NASCIMENTO DECAT


Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É docente do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da UFMG, onde de-
senvolve pesquisas em sintaxe funcionalista, de orientação norte-americana,
com ênfase na interação entre Gramática e Discurso. É autora de vários
artigos, publicados no Brasil e no exterior e co-autora do livro Aspectos da
Gramática do Português: uma abordagem funcionalista, Editora Mercado de
Letras, publicado em 2001.

MARIO EDUARDO MARTELOTTA


Doutor em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994),
onde atua como professor. Tem experiência na área de Lingüística, com ên-
fase em Teoria e Análise Lingüística e Lingüística Histórica, pesquisando,
principalmente, os seguintes temas: funcionalismo, mudança lingüística,
gramaticalização, ordenação vocabular e advérbio. Mais recentemente
publicou: Lingüística funcional: teoria e prática. Rio e Janeiro: DP&A, 2003 (em
co-autoria); Gramaticalização. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2004
(em co-autoria).

MARIA ELIZABETH FONSECA SARAIVA


Doutora em Letras pela UFMG, atua como professora dos cursos de gradu-
ação e pós-graduação na mesma universidade. Dentre outras publicações de
sua autoria, destacam-se: Buscar menino no colégio: a questão do objeto incor-
porado em português (Ed. Pontes, 1997 ); Aspectos da gramática do português:
uma abordagem funcionalista, Editora Mercado de Letras, 2001. Organizou,
junto com Janice Helena C. Marinho, o livro Estudos da língua em uso: relações
inter e intra-sentenciais, FALE/UFMG, 2005.

Niterói, n. 21, p. 391-395, 2. sem. 2006 393


MARIA DA CONCEIÇÃO AUXILIADORA DE PAIVA
Doutora em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Atualmente é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem
experiência na área de Lingüística , com ênfase em Sociolingüística e Dia-
letologia. Atuando principalmente nos seguintes temas: ordenação, função,
cláusulas causais.

MARIA LUIZA BRAGA


Doutora em Linguistica pela University of Pennsylvania. Atualmente é
professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ. Tem experiência na
área de Lingüística, com ênfase em Teoria e Análise Lingüística, atuando
principalmente nos seguintes temas: português do Brasil, gramaticalização,
categorias cognitivas e orações de tempo.

NUBIACIRA FERNANDES DE OLIVEIRA.


Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é profes-
sora de Lingüística da mesma universidade. Entre suas publicações mais
recentes, constam: Mecanismos de manifestação da subjetividade no texto
argumentativo. In: FURTADO DA CUNHA, M.A. (org.); Procedimentos
discursivos na fala de Natal: uma abordagem funcionalista. Natal. EDUFRN:
2000. (p. 111-169); Limitações da gramática tradicional quanto aos recursos
de impessoalização. In: MOURA, D. (org.). Os múltiplos usos da língua. Maceió:
EDUFAL: 1999. (p. 175-178).

PAULO OSÓRIO
Doutor em Linguística Portuguesa, com pós-doutoramento na PUC-Rio na
área de Letras – Estudos da Linguagem. É professor na Universidade da
Beira Interior (Covilhã, Portugal) e investigador, em Linguística Comparada,
no Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa. É autor de livros
e artigos (em Portugal e no estrangeiro) em revistas da especialidade. Tem
proferido conferências em universidades portuguesas e estrangeiras (no-
meadamente PUC-Rio; UFF; UFRJ; USP; Heidelberg; Bonn; Caracas, entre
outras). Apresenta, regularmente, comunicações em congressos nacionais
e internacionais

PATRICK CHARAUDEAU
Professor de Ciências da Linguagem na Universidade Paris Nord (Paris XIII)
e diretor do CAD (Centre Dánalyse du Discours). Desenvolve pesquisas em
Análise do discurso sob a perspectiva comunicacional e seu objeto de estudo
são os discursos midáticos. Autor de uma gramática francesa : Grammaire du
sens, publicada pela Hachette Paris, 1992; tem publicado inúmeros artigos e
livros sobre o discurso. Recentemente publicou um Dicionário de Análise
do Discurso com Dominique Mainguenaeau, traduzido e publicado pela
Editora Contexto em 2004.

394 Niterói, n. 20, p. 391-395, 2. sem. 2006


ROBERTO GOMES CAMACHO
Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela UNESP, Campus de
Araraquara, com estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Amster-
dã. É professor do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da
UNESP, campus de São José do Rio Preto. Atua como vice-coordenador do
Grupo de Pesquisa em Gramática Funcional e como membro da equipe de
pesquisadores do Projeto de Gramática do Português Falado nas áreas de
Sociolingüística e Sintaxe Funcional. Publicou inúmeros artigos em revistas
nacionais e internacionais, além de capítulos de livros em obras coletivas.

SANDERLÉA ROBERTA LONGHIN-THOMAZI


Doutora em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNI-
CAMP), é professora do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários
da UNESP de São José do Rio Preto. Tem publicações em vários periódicos
nacionais, tais como Estudos Lingüísticos, Sínteses, Alfa, Revista da Anpoll e
Veredas.

SEBASTIÃO CARLOS LEITE GONÇALVES


Doutor em Lingüística pela UNICAMP e professor do Departamento de
Estudos Lingüísticos e Literários da UNESP – Campus de São José do Rio
Preto. É coordenador do Projeto ALIP (Amostra Lingüística do Interior
Paulista), financiado pela FAPESP, e integra o Grupo de Pesquisa em Gra-
mática Funcional do IBILCE/UNESP. Tem publicação em vários periódicos
de circulação nacional, como ALFA – Revista Lingüística, Estudos Lingüísticos;
Revista Sínteses, Revista Scripta, Revista Veredas, Cadernos de Estudos Lingüísticos,
Revista Delta, Boletim da Abralin etc.

SÍLVIA REGINA NEVES DA SILVA


Mestre em Língua Portuguesa e doutoranda no Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense. É professora das Faculdades
Integradas Campo Grandenses. Desenvolve pesquisas na área da referencia-
ção e de progressão textual em gêneros textuais da fala e da escrita.

VÍVIAN MEIRA
Mestre em Lingüística Histórica pela UFPB. Professora assistente de Língua
Latina e Diversidade Lingüística do Brasil da Universidade do Estado da
Bahia - UNEB, campus XX. Publicou A variação no uso do modo subjuntivo: Um
estudo sociolingüístico do português rural da comunidade de Morrinhos – BA no IV
Congresso Internacional da Associação Brasileira de Lingüística - ABRALIN,
2005, Brasília, e Encontros e desencontros na realização da vibrante em coda silábica
no Encontro Internacional de Fonética e Fonologia, Associação Brasileira de
Fonética e Fonologia, 2004, São Luis, Maranhão.

Niterói, n. 21, p. 391-395, 2. sem. 2006 395


UNIVERSIDADE
FE­DE­RAL FLUMINEN-
Normas de apresentação de trabalhos
SE
Instituto de Letras

Revista Gragoatá
1 A Revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da
Av. Visconde do Rio UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de
Branco s/nº
Campus do Gragoatá - interesse para estudos de língua e literatura.
Bloco C - Sala 501 2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que
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tipo de formatação, a não ser:
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3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.
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3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e perí-
odicos.
4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e
o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).
5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão
ser apresentadas no final do texto.
6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023).

Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação,


editora,data.
Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

Artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico),


volume e nº do periódico, data.
Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódi-
cos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1,
p. 81-104, jan./abr. 1989.

7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-


produção gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda,
e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig.
2 etc).

Niterói, n. 21, p. 397-400, 2. sem. 2006 397


8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e
abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de
3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês.
9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identifica-
ção (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo,
últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na
mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail.
10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista.
11 Os originais não aprovados não serão devolvidos.

Próximos números
Número 22
Tema: Relações latino-americanas: língua e literatura
Organizadores: Eurídice Figueiredo e Lívia Reis
Prazo para entrega dos originais: 30 de janeiro de 2007
Ementa: A interlocução entre Brasil e América Hispânica: história, principais embates, pers-
pectivas. Exploração dos conceitos de América Latina e de região. O grande Caribe.
Textualidades indígenas. Diglossia, monolingüismo: políticas lingüísticas. As
línguas ocidentais e suas variações na América. O ensino de língua ­estrangeira.
Número 23
Tema: Releituras da tradição
Organizadores: Silvio Renato Jorge e Solange Coelho Vereza
Prazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2007
Ementa: Conceitos de tradição. Paradigmas da pesquisa em lingüística e literatura re-
visitados. Contribuições da tradição para a análise interpretativa e a leitura do
contemporâneo. Redimensionamento de pressupostos teóricos e metodológicos da
investigação atual na área de Letras e Lingüística. Teóricos e pensadores – legados
para o novo milênio.
Número 24
Tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destino
Organizadores: Laura Padilha e Lucia Helena
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008
Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na
estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África
em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e
outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África.
Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia
na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.

398 Niterói, n. 21, p. 397-400, 2. sem. 2006


UNIVERSIDADE General Instructions for Submission of Papers
FE­DE­RAL FLUMI-
NENSE 1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the
Instituto de Letras areas of language and literature studies.
Revista Gragoatá 2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may
suggest changes in their structure or content. Papers should be
Av. Visconde do Rio submitted in floppy disks together with two printed copies, typed
Branco s/nº
Campus do Gragoatá
in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font
- Bloco C - Sala 501 12, without any other formatting except for:
24220-200 -
Niterói - RJ- Brazil 2.1 bold and italics indication;
e-mail: pgletras@vm.
uff.br 2.2 3cm margins;
Telefone: 2.3 1cm identation for paragraph beginning;
+55-21-2629-2608 2.4 2cm identation for long quotations;
2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)
for emphasis;
2.6 italics for foreign words and book or journal titles.

3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no


more than 8 pages.

4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible,


which are to be placed at the end of the text. As for references in
the body of the article, they should contain the author’s surname
in uppercase as well as date of publication and page number
in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).

5 Bibliographical references should be placed at the end of the text


according to the following general format:

Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of
publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding se-
cond language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal
(italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and
nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts.
TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).

6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend,


and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated
form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.).

7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English


version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to
5 keywords, also in Portuguese and in English, are required.

Niterói, n. 21, p. 397-400, 2. sem. 2006 399


8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution,
post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no
more than 5 lines in length.

9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled


to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.

400 Niterói, n. 21, p. 397-400, 2. sem. 2006

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