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EDIÇÃO 05 - MAR/ABR 2021

UM POUCO DE AÇÚCAR,
DENDÊ E PIMENTA
O encontro entre MC
Tha, Thais Dayane da
Silva e Thais de Oyá
EXPEDIENTE
LAROYÊ… 04 UMBANDA
EU CURTO 50 EMPREENDEDORISMO
DE TERREIRO

POMBOGIRA!
GABRIEL SORRENTINO

52
Diretor-geral

06
TERREIRO E
NAÍSE DOMINGUES YORUBÁ SOCIEDADE
Diretora de conteúdo Arreda, homem, aí vem mulher. E diálogo sobre pessoas LGBTQs na
vivência afrorreligiosa também. Sem falar, claro, na relação entre
pombagira e feminismos. Por fim, vários são os temas que você lerá nas

11 54
EDUARDO BARTKEVIHI
próximas páginas, nesta edição cujo debate principal é a relação entre
PENSAMENTOS O TERREIRO
Repórter
gênero e terreiro.

FABIO MATEUS
DE ABIAN É DELXS
Acredite: há muito o que falar. Aqui, apenas demos pinceladas, afinal,
Diretor de arte esse debate é infindável. Ainda mais em pleno século XXI, onde vemos

12 60
uma primavera de discussões importantes. Sejam elas sobre gênero,
VANESSA ALVES como fizemos aqui, sobre raça ou sobre classe. POMBAGIRA E AS FÉ DE
Designer sênior ESTRATÉGIAS DE ARUANDA
SOBREVIVÊNCIA
Com muito prazer, convido você a ler uma matéria que escrevi ao
entrevistar MC Tha. Ou Thais de Oyá. Ou Thais Dayane da Silva. Na
BRENO LOESER verdade, entrevistei o encontro dessas três. Independentemente, te

16 64
A ATUAÇÃO DOS
Ilustrador convido a ler uma reportagem sobre empoderamento feminino, sobre
funk, sobre Umbanda. Sobre ser mulher, sobre ser macumbeira, sobre PONTOS ARQUÉTIPOS
MARCO ALCÂNTARA ser filha de Iansã. Com fotos magníficas do Bendito, fotógrafo da
revista KOBÁ, se encante com as palavras desta artista que é uma
ILUSTRADOS NOS TERREIROS
Fotógrafo
representatividade para qualquer mulher de terreiro.

18 68
TATIANE FALHEIRO
Além disso, nesta edição, tivemos a honra de compartilhar com você dois
Diretora de negócios e relacionamento artigos de duas mulheres incríveis e de quem sou fã: Renata Pallottini, BABA PAPO NA
advogada e filha de Maria Padilha das Almas, e Mayara Gomes, dofona RESPONDE ENCRUZA
Acompanhe: de Xangô que está à frente de um projeto social de boxe voltado para as
crianças e mulheres da comunidade do Cavalão, em Niterói, no estado
@kobaexu

70
do Rio. Mulheres fortes, com falas fortes. Necessárias!

Assine gratuitamente a revista: MULHERES DE


TERREIRO
Entre as reportagens desta edição, há uma onde buscamos entender a
www.kobaexu.com.br verdadeira atuação dos arquétipos nas comunidades de terreiro: hoje,
características reforçadas têm o poder de ecoar negativamente em
A revista KOBÁ é uma publicação on-line relações interpessoais, contribuindo em problemáticas existentes na

22 71
e gratuita, venda totalmente proibida. sociedade. Por isso, nos debruçamos sobre este assunto.
GÊNERO E
HIBISCO
TERREIRO
Maria Mulambo, Maria Navalha, Oyá, Nanã, Rosa Baiana, Jussara — com
Envie sua pauta:
as bênçãos do meu Sagrado Feminino, te apresento a quinta edição da
koba.pauta@gmail.com
revista KOBÁ. Boa leitura!

48 SAGRADO FEMININO
72 ELAS NO
Anuncie na revista:

NO AXÉ COMANDO
Naíse Domingues
koba.comercial@gmail.com

Diretora de conteúdo
02 MARÇO/ABRIL 2021 MARÇO/ABRIL 2021 03
UMBANDA Voltemos então ao sincretismo apenas pinçar algumas características do

EU CURTO
santo católico que realmente se aproximam das qualidades do nosso Orixá
em questão. Jorge, nascido na Capadócia, na Turquia, no século III d.C.,

Alexandre Negrini
tornou-se capitão romano com apenas 23 anos graças à sua firmeza de
por:
caráter e honestidade com seus pares.

Segundo relatos históricos, negou-se a matar cristãos em nome do imperador


Diocleciano, afirmando também que os ídolos adorados nos templos pagãos
romanos eram falsos deuses. Torturado, nunca cedeu e manteve-se fiel às
suas crenças, até que foi degolado em 23 de abril de 303.

Em pouco tempo tornou-se símbolo de coragem, caráter, honra, força e


fidelidade. É o santo guerreiro da fé, a quem os católicos clamam quando

HONRA, CARÁTER
precisam tomar decisões difíceis, que envolvem disputas e embates.
Já Ogum é considerado o porto seguro, o senhor da Lei e vencedor das
demandas. Atua na ordenação divina e é clamado por direção e caminho. É

E HONESTIDADE:
o protetor dos que lidam com a agricultura e trabalhos manuais, com o ferro,
o fogo, a metalurgia, amparando-nos diante das batalhas contra o opressor.

PRECISAMOS DE
São Jorge e Ogum estão fazendo falta. As sociedades modernas em que
vivemos fecham os olhos para injustiças e desmandos. Desrespeitam a
hierarquia e a relação com o próximo. Palavras são proferidas ao vento,

MAIS OGUM EM
fazendo da honestidade um horizonte distante. Até as leis, bases fundadoras
do atual Estado Moderno de Direito, se mostram maleáveis aos ricos e
influentes enquanto são duras e implacáveis com os mais pobres.
Que o exemplo de Jorge, personagem histórico, e de Ogum, orixá da Lei e da

NOSSAS VIDAS?
Ordem na Umbanda, desperte em nós a necessidade de sermos humanos
melhores. E que, cada vez mais, integridade, respeito, honra e caráter não
sejam diferenciais e sim qualidades corriqueiras de todos nós. Sejamos
todos, desde já, guerreiros.

Por mais que se discuta, ainda é praticamente impossível falar de Ogum


sem relacioná- lo a São Jorge, santo católico com o qual ele se apresenta
sincretizado culturalmente no Brasil.

Sincretismo não é algo ruim por si só. Serve, num primeiro momento, para
inserir uma divindade desconhecida em determinada cultura, sobretudo em
Alexandre Negrini Turina
casos como o brasileiro onde os povos negros eram escravizados e impedidos é jornalista e cientista social
de se manifestarem em quase tudo, incluso suas crenças religiosas, embora formado pela Universidade de São
Paulo (USP). É cofundador do Umbanda Eu
fossem maioria.
Curto, maior portal agregador de conteúdo
umbandista na internet. Criado em 2011 como
Com o tempo, não apenas a abolição da escravatura como também a lenta uma fanpage, hoje está presente nas principais
inserção das religiões de matriz afro-brasileiras em nossa sociedade, foram redes sociais (@umbandaeucurto) e conta com o apoio de
colaboradores como Alexandre Cumino, Adriano Camargo, Engels
gerando discussões teológicas e comportamentais, levando ao descolamento de Xangô, David Dias, David Veronezi, Rodrigo Queiroz, Taiane
natural de São Jorge e Ogum em muitas tradições e templos de Umbanda. OK, Macedo e Rubens Saraceni (in memorian).
mas por que isso é importante?

04 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER MARÇO/ABRIL 2021 05
Sacerdotisa de Oya com as
espadas do clã de Oya desta

YORUBÁ
família, no estado de Òyó, na
Nigéria. (Foto: Baba
Flavio Monteiro)

por:
Renata Barcelos

AS ORIXÁS FEMININAS
DO PANTEÃO E SUA
FORÇA
Yemoja, Osun, Oya, Oba, Yewa, Olokun (orixá feminina na maior “Òşun, aquela que está cheia de conhecimento
parte do território Yorùbá) Aje Salunga, Nana, Otin, Orosun e A mulher que bloqueia a estrada que os homens estavam fugindo”
outras tantas orixás femininas fazem parte do panteão da Áfri-
ca Yorùbá. “Aquela que embosca a fim de afligir os inimigos”

Elas são em si toda a força da mulher, há quem possa se enga- “E ela sabe o que eles estão fazendo no culto secreto”
nar dizendo que suas habilidades estão apenas para a fertili-
dade, casamentos, amores, equilíbrio, ou até que suas funções “Ela ouve o impulso de pensamento dos malfeitores”
estão vinculadas apenas ao domínio de alguns espaços natu-
rais como rios, mar, ventos e tempestades. As orixás femininas “Òşun é aquela que destrói a casa dos conspiradores mentirosos”
do panteão possuem suas próprias narrativas e se mostram
muito combativas. “Pássaro vai arrancar os olhos dos inimigos em casa”

Vamos ver alguns trechos retirados de oriki (invocação), orin “ Vamos nos ajoelhar para cumprimentar as mulheres”
(canções) e ese (versos) de Osun em área Yorùbá. Escolhi
Osun para mostrar porque muitos apenas a vêem como aque- “Fomos todos nascidos por mulheres antes de sermos conheci-
la que provém um bom amor, é vaidosa e meiga. Vejamos: dos como humanos”

06 MARÇO/ABRIL 2021
Podemos ver nesses trechos uma Osun combativa, que é capaz de defender sua comunida-
de de devotos dos inimigos e ainda exalta a importância das mulheres para a humanidade.

Assim se repete com cada uma das orixás do panteão. Suas narrativas exalam todo seu
valor e não raro é vê-las protegendo os ofícios da comunidade como o mercado.

As mulheres possuem papel central dentro de muitos mercados iorubás, sendo elas a maio-
ria das vendedoras destes espaços e possuem liderança feminina — as Iyaloja.

O acaso é que, neste espaço do mercado, as comunidades de muitos orixás também se en-
contram: de orixás femininos, masculinos e de outras sociedades. Cada qual com sua mer-
cadoria e, às vezes, as mesmas. Neste contexto, não é raro que o orixá que aquela família
possui passe também a proteger o ofício. Alguns itan de alguns clãs de Oya dizem que ela
era vendedora de obi e até que encontrou Sango no mercado. Algumas famílias de Yemoja
afirmam que Yemoja fabricava e tingia tecidos — interessante essa perspectiva de que o
ofício das famílias também é protegido pelas orixás.

Muitas estruturas de famílias em área Yorùbá tem um orixá central, e é evidente que famílias
são compostas por homens e mulheres. Nesta formação, os homens que também fazem
parte dos clãs cujo orixá central é feminino são também os protetores destas habilidades.

É explícita a necessidade de que orixás, sejam eles femininos ou masculinos, tenham a ca-
pacidade de defender os integrantes e devotos de praticamente todo tipo de mal que pos-
sam sofrer — das doenças, da morte, das invasões. Ainda é importante notar que alguns ori-
xás, juntamente com seus clãs, desenvolveram habilidades mais latentes e proteção extra
em sua função. Chamar Osun para defender de uma guerra pode ser eficaz para seu clã, mas
certamente vão também pedir a proteção de Ògún. Nesta medida, orixás e comunidades in-
teragem mutuamente fornecendo uns para outros um lugar pacífico e próspero para habitar.

Ressalto ainda que muitas orixás possuem, de fato, objetos de enfrentamento e de combate
como espadas e outros apetrechos. Muitas vezes, seus clãs afirmam que já foram utiliza-
dos em alguns momentos para defender a comunidade. No vilarejo de família da orixá Oba,
me apresentaram um facão com uma lâmina na ponta e, na outra, um sino, que diziam ser
antigo e já havia sido literalmente usado para a proteção.

A mitologia e a realidade são fundidas em metáforas, hipérboles e magia. A fé e a esperança


são a força motora da vida iorubá. São acontecimentos com orixá mais palpáveis que pa-
recem e que nos fazem sentir ainda mais perto deles, pois sempre temos a certeza que eles
conhecem a realidade humana.

O texto é baseado na prática de Orixá


seguindo a tradição Yoruba - Esin Orisa Ibile
(Òyó, Nigéria), e pensamentos e análises pessoais
da autora. Renata Barcelos, Yemojagbemi Otan-
monle Arike, foi iniciada em Yemoja em Òyó e está
há mais de 30 anos no culto de orixá no Brasil. É
criadora do canal Orisa Brasil (@yemoja_arike),
que fala sobre a tradição Yoruba.
Metais e espada, de bronze e latão, do Ferramenta/espada da
templo de Osun do complexo do palácio orixá Oba, no estado de
do rei de Osogbo, no estado de Osun, Òyó, na Nigéria.
na Nigéria. (Foto: Yemojagbemi Arike) (Foto: Yemojagbemi Arike)
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PENSAMENTOS
DE ABIAN
Tatiane Falheiro
por:

UMBANDA É AMOR
FOTO DO BOX DE FEVEREIRO COM TEMA IEMANJÁ Na minha caminhada e evolução espiritual dentro da A Umbanda aceitou o amor entre duas mulheres sem
FOTO DO BOX DE FEVEREIRO COM TEMA IEMANJÁ
Umbanda, aprendi que o respeito é essencial e o amor julgar e modificar. E foi além: sem distinção quanto à
fundamental. A lição que tiro sempre é que somos orientação sexual mostra que o sentimento verdadeiro é
acolhidos, temos carinho e fraternidade — e foi assim o caminho para entender nossa missão nessa terra fria.
comigo também. Viver uma relação homossexual ainda Sou grata à Umbanda todos os dias por ensinar que o é
é difícil, porém minha família carnal, de santo e meus respeito ao próximo e ao que cultuamos: o amor!
guias me abraçaram e, junto com minha namorada,
caminhamos há três anos entendendo que o amor e Que pai Oxalá, com sua bandeira, leve e espalhe mais

O B O X Q U E T OO
D OB O
MXA C
QUUM
E BTEOI D O G
MOA SCTUAM B E I R O G O S T A a proteção do Sagrado são partes fundamentais para sentimentos bons. Que o respeito às questões de gênero
RO estarmos de pé e vivendo a felicidade. cresça todos os dias e que possamos ser livres para
amar! Respeitar a diversidade além de obrigação é nossa

Já pensou um kit por Já pensou um kit por Você


mês nunca
trazendo Você nunca
uma quis tanto receber uma
função enquanto povo de axé.
mês trazendo quis tanto receber
macumba
agora na
né?sua casa como agora né?
sempre uma mironga,sempre uma mironga,macumba
um mimo, um mimo, na sua casa como
um banho,
um banho, uma defumação uma defumação e muito
e muito Tatiane é estudante de jornalismo e abian
Então aproveite que nossa plataforma
axé sem
axé sem ter que sair de casa? ter que sair de casa?
Então aproveite que nossa plataforma em uma casa de Omolokô em Niterói, na
para assinantes acabou de sair e venha
para assinantes acabou de sair e venha Região Metropolitana do Rio. Abian é o co-
fazer parte da familia Macumboxers.meço: essa é a pessoa que se interessou
O Macumbox é um clubeOde assinaturaé um clubefazer
Macumbox parte da familia Macumboxers.
de assinatura pelo culto de matriz africana e faz parte
que visa facilitar
que visa facilitar a vida de um bom e velho a vida de um bom e velho de uma comunidade de terreiro, mas
macumbeiro sem fazer "
vocêO Macumbox
esquecer de me " O Macumbox
proporcionou ficar me proporcionou ficar
ainda não passou pelos rituais
macumbeiro sem fazer você esquecer de em contado com minha espiritualidade
em contado com minha espiritualidade de iniciação.
suas obrigações e ainda suas obrigações
trazendo muitos e ainda trazendo muitos durante esse período de pandemia, e
durante esse período de pandemia, e
ensinamentos para vocêensinamentos
praticar. para você praticar.
ele é feito com extremoele é feito ecom extremo capricho e
capricho
carinho,
carinho, algo que não se encontra algo que não se encontra
E o um
melhor facilmente por ai"
E o melhor é que todo mês tem éum que todo mês um tem um facilmente por ai"
temaumdiferente, - Guto Felipe
tema diferente, isso mesmo! tema deisso mesmo! um tema de - Guto Felipe
Assinante Macumbox
acordo com o calendárioacordo com o e
da umbanda calendário da umbanda e Assinante Macumbox
suas festividades. suas festividades.

WWW.MACUMBOX.COM.BR
WWW.MACUMBOX.COM.BR
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@MACUMBOX_ @MACUMBOX_
FOTOS: DAVI NUNES

POMBAGIRA E AS
Talvez você, que agora lê esses escritos, não atravessadas pelo racismo, estão mulheres trans,
saiba que Maria Padilha das Almas foi a mulher mulheres lésbicas oprimidas pelos preconceitos
que salvou a minha vida. Assim como tantas e discriminações em razão da identidade de

ESTRATÉGIAS DE
mulheres brasileiras, também senti a dor e o medo gênero e tantas outras mulheres invisibilizadas
da morte quando terminei um relacionamento. dentro da nossa estrutura social.

Confesso que eu não precisei ser vítima de Viver a comunidade de terreiro é exercitar

SOBREVIVÊNCIA
um relacionamento violento para perceber a a escuta ativa, é ouvir a realidade de outras
diferença de direitos que existe entre homens mulheres, que ocupam lugares sociais diferentes
e mulheres, bastou observar a vida das minhas e que me fizeram perceber que não estamos no

Renata Pallottini
ancestrais; incontáveis exemplos de submissão, mesmo balaio e é preciso olhar para o grupo
dependência financeira, exaustão, solidão, fruto feminino e entender as suas especificidades; só
Artigo escrito por: da naturalização desse lugar de “bela, recatada e dessa maneira, quando todas as mulheres forem
do lar” que nos é reservado. contempladas por seus direitos, conquistaremos
o empoderamento tão desejado.
É, gostaríamos que a realidade fosse diferente,
porém o Brasil é o quinto país no ranking mundial Então, nos terreiros-escola é onde Pombagira
de feminicídio. Com o advento da pandemia, em dá aula de sobrevivência. “Cuidado, amigo: ela é
Padê arriado no chão da encruza.
que mulheres passam a maior parte do tempo bonita, ela é mulher”, essa é a melhor definição
com seus agressores e a dificuldade de pedir de Pombagira. Ela é mulher! E ser mulher, nessa
Abre caminho, Orixá Exu; abre caminho para as mulheres.
ajuda é muito maior, somada a facilitação de sociedade, é sinônimo de luta. E não confunda
posse de arma de fogo, o país caminha para o briga com luta, como diria Sergio Vaz; briga tem
Peço licença a todas Pombagiras, a todas mulheres que
topo desse ranking. É imprescindível, inclusive, hora para acabar, a luta é para uma vida inteira.
vieram antes de mim, a todas mulheres que morreram por
que se diga, que mulheres negras são as
ser mulher, a todas mulheres marginalizadas, violentadas,
principais vítimas.
objetificadas, silenciadas.
Corpos
É inaceitável que terminar um relacionamento
Peço coragem a todas as Marias para colocar no papel a
pode nos levar a morte, não é, cara leitora? Não Padilha, Mulambo, Navalha são corpos do giro
dor da realidade. Escrever é também sangrar.
é, caro leitor? da saia, da gargalhada, da bebida, do cigarro,
da postura altiva pra dizer que “aqui não, meu
Pode ser, igualmente, que você se pergunte: o camarada! Aqui você não rela a mão em mim”.
que essa realidade desumana contra mulheres
tem a ver com Pombagira? A altivez das donas das encruzas é exemplo
do corpo-livre que resiste em não ocupar o
Antes de explicar a perfeita simbiose entre a lugar de objeto sexual, que não aceita o lugar
luta pelo direito das mulheres e Pombagira, é único do cuidado, da maternidade, das tarefas
fundamental esclarecer o quanto os nossos domésticas; é o corpo não domesticável.
terreiros são espaços educacionais.
Pombagiras são mulheres da desobediência, é a
Foi através da macumba, na vivência de terreiro, força do feminino na contramão da superioridade
que aprendi que nós mulheres não somos uma masculina, é a negação da submissão, é o direito
categoria universal, somos diversas e sofremos ao prazer, é a emancipação, é estratégia poderosa
opressões diferentes; na encruzilhada das de vida no país que mais mata mulheres da
opressões estão mulheres negras e indígenas América Latina.

12 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE ARTIGO FOI ESCRITO POR UMA AUTORA CONVIDADA PELA REVISTA KOBÁ MARÇO/ABRIL 2021 13
FOTOS: DAVI NUNES

Pombagira é o símbolo da luta por igualdade de gênero, violência que as mulheres sofrem, de tal maneira que a
portanto a representação dos feminismos dentro dos sociedade e seus valores são contestados. Seria mais
terreiros. fácil, então, fingir que esses problemas não existem,
assim os problemas continuariam sem solução.
Calma! Eu já sei! Há quem diga que mulher feminista
é contra o homem, que mulher feminista se acha Marcia Tiburi em seu livro Feminismo em comum afirma
superior ao homem; há aqueles que aviltam mulheres que ser feminista não nos torna, necessariamente, mais
feministas com ofensas do tipo “é feia, é mal amada, é felizes. O feminismo ajuda a tomar consciência sobre
masculinizada, é agressiva, é briguenta”, mas eu posso como o machismo atinge nosso dia a dia: da roupa
garantir, todas essas rotulações ao movimento feminista que usamos para não sofrer com assédio no ônibus ao
muito se deve a falta de informação. Eu arriscaria dizer contracheque com um salário menor do que o do colega
que você é feminista e não sabe! Quer ver? homem. Feminismo tem a ver com libertação que nem
sempre é fácil.
Você acha certo o homem ganhar mais que a mulher?
Você acha certo uma mulher cuidar sozinha de uma Percebe, agora, a razão de Pombagira ser tão
criança? Você acha certo homens proibirem mulheres incompreendida e sua imagem ser tão deturpada?
de trabalhar ou estudar? Você acha certo mulheres Pombagira é o espírito-mulher da denúncia. São as
serem assediadas? rainhas das encruzilhadas que reforçam que é preciso
discutir, dentro e fora dos nossos terreiros, sobre
Tenho certeza absoluta que todas as suas respostas gênero, classe, raça e sexualidade, para que possamos
foram “não” e é importante dizer que todas essas lutas viver em espaços mais justos e igualitários. Só assim
foram travadas por mulheres feministas que vieram conseguiremos traçar os rumos da nossa própria
antes de nós, portanto já carregamos o ideal feminista. história, só assim nos permitiremos voltar a sonhar.
Ser feminista é lutar por igualdade entre homens
e mulheres e dessa maneira viver a liberdade da “A gente combinamos de não morrer”, já ensinou dona
humanidade. É como ensina Marie Shear: “feminismo é Conceição Evaristo. No giro da saia, enganemos a
a ideia radical de que mulheres são gente”. morte. Que Pombagira nos ajude a viver.

Portanto, ser feminista é estar o tempo todo na posição Axé.


de incomodo já que o discurso e a prática denunciam a

Renata Nogueira Pallottini, advogada


graduada pela Universidade Presbite-
riana Mackenzie, pós-graduada em Di-
reito e Processo Penal, feminista, atuante
na defesa de mulheres sobreviventes das
violências de gênero. Filha das cachoeiras
que faz do espelho arma, para não esquecer, nem
por um instante, de quem veio antes. Filha
de Maria Padilha das Almas, potência
feminina que a salvou do
feminicídio.

14 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE ARTIGO FOI ESCRITO POR UMA AUTORA CONVIDADA PELA REVISTA KOBÁ MARÇO/ABRIL 2021 15
PONTOS
ILUSTRADOS
por:
Bruno Brunelli

Nana Buruku, esposa de Obatalá, estava em desgraça nos pân-


tanos podres dos mangues, que era seu domínio por castigo ao

METÁ-METÁS
tentar tomar o trono de seu marido com o poder de seu primeiro
filho. Porém, ao nascer Obaluayê, cheio de pústulas, ela o renegou
jogando ao mar — que felizmente foi adotado por Yemanjá.

E O EQUILÍBRIO Pedindo auxílio a Ifá, descobre que está grávida de seu segundo

DA VIDA
filho, Oxumarê, que seria ao mesmo tempo arco-íris, em seu as-
pecto masculino, e uma cobra, em seu aspecto feminino — e só
nessa forma que Oxumarê poderia ser dela. Nanã sentia grande
tristeza ao ver o arco-íris e não poder tocá-lo e que sempre que
se aproximava dele, ele desaparecia e restava somente a cobra.

Desde que o mundo é mundo, a necessidade que temos de entender como as coisas
funcionam é inerente à nossa natureza, e é a curiosidade que nos empurra para frente
e nos faz buscar respostas para inúmeras perguntas. Porém, esse mundo é muito di- Meditando em sua dor, percebe que é em seus domínios que tudo
fícil de se entender completamente e por isso temos a tendência de colocar as coisas renasce e se regenera, pois quando bate o sol no mangue formam-
em caixinhas, em conceitos, em lendas. -se arco-íris pequenos: a expressão de seu filho mais belo e pro-
movia a regeneração da vida que ali se produzia. Dessa forma, com
E isso não é ruim, sabe? Entender o que é aquele brilho no céu durante uma chuva ou o porquê aquela bola brilhante que fica no céu vontade de reparar seus erros, pediu perdão ao seu primeiro filho.
à noite muda de forma, entender que esse bicho tem perna e aquele não, ou até que você tem pinto e ela tem vagina. E com o tempo
fomos descobrindo as respostas dessa forma...

A questão é entender que, assim como tudo muda, as respostas também mudam, e as perguntas também. Manter um conceito fecha-
do e imutável vai contra a natureza, gerando desde debates infundados até violência física. Nada é cravado em pedra, nada é preto no
branco, mas sim um graaaaande arco-íris! E como já deve ter percebido pelo tema desta edição, gênero e sexualidade são um desses Com ajuda de Oxumarê, Nanã restaurou a saúde
conceitos tabus. de Obaluaye, fazendo com que todo seu poder
viesse assim à tona. Perdoando sua mãe, os dois
Os iorubás e fons, porém, tinham uma ideia bem lúcida de como funcionava assumiram o reino dos mortos, onde tudo se
essa questão. Entendiam que gênero e sexualidade não precisavam “se con- regenera por meio de seus poderes, juntamente
versar”, e que apesar da questão fisiológica reprodutiva, nós somos feitos por com Oxumarê, que também a perdoou e assim
meio de potencialidades. Existem os arobós (masculinos), as iabás (femininas), também se tornou a ponte entre os dois
e os metá-métas (híbridos). Mais que sexualidade, os metá-metás (ou “dans” mundos, a força regeneradora e o
para os fons) unificam duas ou mais potencialidades, que pode ser desde o gê- equilíbrio primordial entre Temos os pontos cantados, pontos
nero em si até unindo os reinos animal-mineral-vegetal, fazendo com que eles os polos. riscados e agora temos Pontos Ilustrados!
sejam “a cola” que unifica os diversos planos, a veia da vida que movimenta, o Criado pelo designer, ilustrador e umbandista Bruno
equilíbrio primordial. Brunelli, a ideia do projeto é interpretar os pontos
cantados, rezas e lendas em forma de quadrinhos,
Os mais conhecidos dessa “caixinha” são Ossain, Logun-Edé e Oxumarê, sendo ajudando assim a expandir cada vez mais as
esse último o mais conhecido por outras sociedades subsaarianas por ser a palavras dos orixás e seus guias. Veja
cobra arco-íris fundamental da criação, a ligação entre o Orum e o Ayê. Muitas mais em @pontosilustrados.
lendas contam essa história, e vamos ilustrar a mais famosa aqui para vocês.
BABA
RESPONDE
Babalawô Ivanir dos Santos
por:

CAMINHOS
ABERTOS
O professor doutor Babalawô Ivanir dos Santos é coordenador de área de pesquisa no Laboratório de História
das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ), membro da Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e conselheiro de estratégia do Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas (CEAP). Em 2019, recebeu um prêmio do Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos
pela sua atuação na luta contra a intolerância às religiões de matrizes africanas no Brasil. Em toda edição, o
professor elucida dúvidas sobre Candomblé e religiosidade de matriz africana.

KOBÁ | Qual é a relação de Ogum com Oxóssi e Exu? KOBÁ | O que o senhor poderia falar sobre o culto a Ogum em terras
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Bom, a relação entre Ogum e Oxóssi é iorubás?
porque ambos estão ligados à caça. No Brasil, popularmente Oxossi é BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | O culto a Ogum é muito popular em toda
mais ligado à caça, mas acontece que quem faz os instrumentos para a iorubalândia! Tanto que na Nigéria tem o estado de Ogum, mas o culto
a caça é Ogum. E por isso que na Nigéria ele é cultuado também pelos a esse orixá não é restrito apenas ao estado que leva o seu nome. Ogbo-
caçadores. E como Ogum também abre caminho, ele tem proximidade mosho é uma cidade nigeriana onde o culto a Ogum é muito forte, assim
com Exu. E é por isso que os três são considerados irmãos e, se tem uma como é muito comum se ter um assentamento para o orixá nas casas e
oferenda, ela é dada aos três juntos. templos, porque é a cidade onde Ogum renasceu.

KOBÁ | Por que Ogum é associado às guerras? KOBÁ | Qual é a relação entre Ogum e a devoção católica por São Jorge?
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Ele é associado à guerra porque é BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Bom, primeiro precisamos lembrar que
ele quem faz os instrumentos e as ferramentas de guerra e para o culto a Ogum é muito mais antigo do que o culto a São Jorge! Mas
a guerra. Ele é ferreiro! Ele é considerado o orixá ligado à tec- devido ao sincretismo e às perseguições aos cultos dos orixás, principal-
nologia, pois não tem nada que se faça nessa área sem a mente na Bahia e Rio de Janeiro, era muito comum ter manifestações em
utilização do ferro ou com a extração do ferro. que se dizia que estavam comemorando o dia santo católico, mas na ver-
dade era uma reverência a Ogum. E no Brasil, a devoção e essa relação
entre Ogum e São Jorge vem das construções religiosas umbandistas.

18 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER MARÇO/ABRIL 2021 19
NA VERDADE, A FEIJOADA NÃO É UMA
COMIDA ESPECÍFICA PARA OGUM. MAS O
FEIJÃO É! NA NIGÉRIA, POR EXEMPLO, SE
FAZ OFERENDA COM FEIJÃO FRADINHO
PARA OGUM, SE DÁ INHAME PARA OGUM.
- Babalawô Ivanir dos Santos

KOBÁ | E a tradicional feijoada? Por que ficou tão atrelada cria são instrumentos para o trabalho. Seja na agricultura,
a Ogum? seja na tecnologia. E também as demandas de guerra pois
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Na verdade, a feijoada não Ogum está ligado às questões vitais de todos os seres hu-
é uma comida específica para Ogum. Mas o feijão é! Na manos.
Nigéria, por exemplo, se faz oferenda com feijão fradinho
para Ogum, se dá inhame para Ogum. Aqui no Brasil se po- KOBÁ | De que forma a energia de Ogum contribui na luta
pularizou a feijoada por conta das transformações sociais contra as demandas que se apresentam no nosso dia a dia?
dos processos da escravidão, mas o alimento mais ligado BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Ele é quem abre os ca-
a Ogum é o inhame. minhos! Ele que está conosco diante das nossas batalhas
cotidianas.
KOBÁ | Um dos pontos de força relacionados a Ogum é a
estrada. Por isso, ele acaba dividindo o domínio das ruas KOBÁ |Qual é a influência deste orixá na vida daqueles que
com Exu? são regidos por ele?
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Na verdade, toda estrada BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Acredito que na vida de
pode ter um ponto de encontro que é a encruzilhada. A es- todas as pessoas, independentemente de serem ou não re-
trada é de Ogum e a encruzilhada é de Exu. E toda estrada gidas por ele. Infelizmente, as pessoas têm o costume de
vai ter uma encruzilhada, seja ela de três ou de quatro. E é associar muito o arquétipo do orixá ao ser humano. Mas na
por isso que estão sempre caminhando juntos. E aí você cultura ioruba Ogum é Ogum, uma energia muito forte, e o
tem o caminho e o destino. ser humano é o ser humano. Claro que quando regido por
essa energia a pessoa pode ter momentos mais aguerridos
KOBÁ | Por que ou como o culto de Ogum se popularizou na vida, mas como a vida é equilíbrio entre a água, o fogo,
tanto no Brasil? a terra e o ar, Ogum também é assim. Ogum é Ogum e o ser
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Se popularizou no Brasil humano é o ser humano.
porque está ligado ao trabalho, as ferramentas que Ogum

O tema da nossa próxima edição será SINCRETISMOS.


Envie sua pergunta para koba.babaresponde@gmail.com e participe!

20 MARÇO/ABRIL 2021
Para esta edição, a equipe KOBÁ viajou até São Paulo para conversar com a
artista MC Tha e entender melhor sua ligação com a Umbanda. Esse encontro
permitiu que a cantora apresentasse a sua espiritualidade de uma forma intensa
e admirável — o que foi registrado pelas lentes de Marco Alcântara, fotógrafo da
revista, que produziu e dirigiu o ensaio presente nas próximas páginas. A sessão
de fotos teve como principal objetivo ressaltar o empoderamento feminino que
MC Tha representa para as mulheres de terreiro e, principalmente, a força que
essa filha de Iansã deposita em suas atitudes.

Fotos por:
Marco Alcântara

Esta galeria de fotos é oferecida pelo

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MARCO | Foi um prazer muito grande produzir esse
ensaio, porque é muito bacana ter essa visibilidade
para a religião sendo dada por artistas que alcançam
públicos mais jovens, diferentes daqueles que
estamos acostumados a alcançar apenas com coisas
feitas exclusivamente para o povo de terreiro. Tem
uma questão de representatividade e empoderamento
muito bacana envolvida por ela ser uma mulher forte,
expressiva e artisticamente muito talentosa. Foi um
privilégio produzir essas fotos!

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MARCO | A primeira coisa que eu sempre faço é estudar algumas características de
quem será fotografado. Eu sabia que ela é uma mulher com um olhar expressivo, então
imaginei fazer algo com certa ousadia, com uma característica que exaltasse aquilo que
era mais expressivo nela. Conseguimos fazer esse link da espiritualidade com a forma
que ela se expressa musicalmente. De tudo, o que mais importa é a interação daquele
momento, é reconhecer o que melhor vai representar as características daquela pessoa.

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MARCO | Precisamos justamente disso:
pessoas negras ocupando espaços que,
no geral, nos são negados. A MC Tha
consegue alcançar milhares de outras
pessoas, mesmo que não sejam de
terreiro e que não estejam envolvidos
com essa cultura. Ela alcança com uma
mensagem que é totalmente diferente
daquela que, geralmente, falam por
nós. É uma mulher negra falando da
religiosidade, da arte, das dores e alegrias,
dos amores e desejos, e isso tudo envolve
a questão religiosa do terreiro. E é muito
bacana pela estética do trabalho que ela
faz. Não existe demonização do corpo.
É uma artista que tem uma estética
completamente livre de tabus.

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GUERREIRA QUE — Quando eu era só do funk, me sentia sem espaço. Eu gostava de curtir

CANTA, ENCANTA E
funk, de ouvir funk, de andar com as pessoas de funk, mas eu não me sentia
confortável e sempre caía numa caixa das pessoas me rotulando. ‘Ah, a
sua voz não funciona, é muito suave. Você precisa ser assim, você precisa
aprender a dançar.’ Eu me sentia muito desconfortável — conta a artista.

VENCE A GUERRA
Contudo, o momento de autoconhecimento e as composições inspiradas
no crescimento pessoal tornaram o disco um divisor de águas na vida
musical e particular da cantora. Após uma breve pausa na carreira musical

Naíse Domingues
para se dedicar ao trabalho e aos estudos, uma Thaís mais madura e segura
por: de si encontrou espaço para se espalhar pelas letras e melodias do “Rito de
Passá”.

— A gente trabalhou nele justamente para contar essa história de começar


numa Thaís ainda um pouco inocente, tropeçando em relações amorosas
MC Tha conta como a Umbanda ajudou que desaguavam muito na minha aparência, de me culpar, enfim, coisas

a construir dois pilares da sua vida: o


que esbarravam muito na minha autoestima. Aí chega a hora de ‘Oceano’
no álbum, que eu acho que é o divisor de águas para essa fase da Thaís

feminismo e a carreira que, no fundo desse poço, conseguiu se levantar, se empoderar, se tornar
uma pessoa mais forte, mais blindada — conta a cantora, que retornava
para a música após o período de afastamento: — Tudo isso foi muito
natural. Realmente foi um grande esforço, muita coisa vivida, muita lágrima
À primeira vista, a mistura pode causar certo estranhamento: alguém que se autodenomina chorada para eu ter essas músicas aqui, para eu chegar e ter esse álbum. Eu
MC e canta sobre espiritualidade. Um segundo olhar, com o ouvido mais atento, já deixa acreditava que ele seria uma grande passagem na minha vida. E realmente
explícito o porquê, no fim das contas, esta mistura é tão natural. Pelo menos, foi assim que foi.
aconteceu para Thaís da Silva, ou apenas MC Tha, enquanto buscava se encontrar
na carreira artística. A funkeira do bairro Cidade Tiradentes, em São Paulo, ainda Por vezes, a mulher imponente que não tem medo de expor suas
tentava se encaixar nos moldes da indústria do estilo musical quando entrou fragilidades na música se distancia da menina tímida, que se via como
para a Umbanda. E foi desse reencontro que nasceu o seu primeiro álbum uma “criança estranha”, e ainda não consegue se aceitar plenamente como
de estúdio, ‘Rito de Passá’, lançado em 2019. cantora e compositora. O processo de traçar a existência da MC Tha foi
profundamente ligado ao momento em que Thaís deu início ao contato
Lançamento este, inclusive, que vai de encontro aos moldes geralmente com a própria espiritualidade. A segurança para cantar a própria história
seguidos por cantores de funk, que costumam lançar singles e — preocupação de alguém que nunca quis “cantar por cantar” — veio do
EPs no lugar de álbuns completos. Porém, a carreira da MC contato com o terreiro, e, consequentemente, com a ancestralidade.
Tha nunca seguiu padrões: em um momento, sensual de
menos para ser funkeira, em outro, funkeira demais para — Frequentar o terreiro me deu muito mais confiança para falar sobre mim,
ser MPB. sobre os meus sentimentos, sobre as coisas que eu vivo. Eu acho que
me deu esse pé no chão para eu conseguir me conhecer e, através desse
autoconhecimento, botar pra fora e ajudar outras pessoas.

Thaís sempre soube que o dia de cuidar da espiritualidade chegaria. Na


verdade, desde criança percebeu a conexão com o mundo espiritual e,
apesar de não saber exatamente do que se tratava, entendia que precisaria
afinar sua relação com a religiosidade. Criada em família evangélica, nos
primeiros anos exercia sua fé dentro da igreja antes de decidir buscar
outras respostas.

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— Energeticamente, eu sempre me senti muito vulnerável de chegar num lugar
e pegar energia de tudo que estava acontecendo ali. Às vezes não estar muito
bem, alguém falar alguma coisa e eu me envolver demais, e depois perceber
os sinais no meu corpo. Quando essa abertura com a mediunidade voltou, eu
já comecei a sonhar com coisas que hoje eu entendo que são guias de terreiro
— lembra.

Neste mesmo período, um amigo sugeriu a ela conhecer várias religiões


para decidir em qual lugar se sentiria em casa. Quando chegou o momento
de conhecer a Umbanda, o trajeto foi longo: lembrou da ex-namorada de um
amigo que frequentava um centro. Tentou ir três vezes, mas só deu certo na
quarta.

Após seis meses frequentando a assistência, ao mesmo tempo em que se


perguntava ‘por que ninguém me chama?’, ainda tinha dúvidas se conseguiria
conciliar a agenda com o compromisso de estar ali todo o sábado. Até que
foi convidada por uma entidade para cantar durante a gira de cangaceiros.
Decorou as letras, estudou as músicas, e a partir daquele agosto, há cinco
anos, entrou para a corrente do Terreiro de Umbanda Caboclo das 7 Pedreiras.

Foi Maria pra depois bonita


Quando se tornou oficialmente filha do terreiro de Umbanda, a MC já fazia
show e levantava algumas multidões pelos bailes da cidade. E apesar de
ter feito questão de conversar sobre a possibilidade de conciliar a carreira
e a rotina de trabalho espiritual com seus pai e mãe de santo, sempre teve a
preocupação de se “manter discreta para não cair nesta vaidade”.

— No meu terreiro, eu sou muito quieta, porque lá tem muita gente e tem
essa coisa de eu ser conhecida, de fazer shows. Eu tenho medo das pessoas
acharem que eu estou usando a religião para a música, para ganhar dinheiro
com música. Então, dentro do terreiro eu sou muito rígida comigo mesma.
Tanto que o povo vive pedindo o endereço do terreiro e eu nunca dou, eu falo
pro meu pai de santo: ‘Pai, se eu passar o endereço, isso aqui vai virar sobre
a MC Tha, não será sobre alguém que vem aqui e precisa de cura, de algum
auxílio’ — ponderou.

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Quando escolheu mostrar a beleza da Umbanda, — Este mesmo espaço que remete ao lugar de humildade, Apesar de entender a importância que a persona da MC O trabalho de cura, muito praticado por seus guias,
registrada durante um ritual realizado nas matas para o trouxe o acolhimento e a força necessária para que Tha dos palcos tem para os momentos de performance, a também veio para curar uma uma questão que perdurava
clipe da música ‘Rito de Passá’ — MC Tha correu um risco Thaís conseguisse se tornar a MC Tha dos palcos: que separação entre a artista e a filha de santo é praticamente durante toda sua trajetória. A vivência espiritual aconteceu
duplo: desagradar tanto praticantes da religiosidade, dança, canta e tem na música um instrumento de cura inexistente para a artista. Ao mesmo tempo que existe a — e não foi coincidentemente — com o período em que
quanto o público geral, inserido dentro de uma sociedade para quem a acompanha. Cantar e estar no palco, mesmo preocupação de manter os pés da Thaís no chão, a MC Thaís estava entendendo a questão racial em sua vida.
que ainda anda alinhada com o racismo religioso. Quando quando isso significa se ausentar da corrente espiritual, é Tha é a “força quando está faltando cinco minutos para Foi no contato com o terreiro que ela se aproximou deste
foi pedir autorização do terreiro para a filmagem, a única uma forma de exercer sua mediunidade. entrar no palco”. lado e, finalmente, começou a entender que isso sempre
condição imposta foi a autorização dos médiuns da casa
que participariam. — Eu me sinto mais como um cavalo, tanto do mundo
espiritual quanto da MC Tha. Eu entendo a MC Tha como
Para Pai Flávio de Xango e Mãe Renata de Ogum, a força que permite que a Thaís fale as coisas que ela
dirigentes do terreiro, as imagens não foram prejudiciais sente, converse com as pessoas, que tenha autoestima.
para os trabalhos espirituais ou para a religião. Na Então, ela é como se fosse um ancestral do futuro pra
verdade, eles acreditam que a aproximação de um público mim, que traz autoestima pra mim, pra minha família, pra
mais jovem, como os fãs que acompanham a MC Tha, minha irmã — explica.
traz mais benefícios do que pontos negativos.

— Quem não conhece a Umbanda, não tem


visão positiva da nossa religião nunca.
Para nós, é um orgulho enorme. Tem
bastante crítica, como tem bastante
elogio, mas isso não vem ao caso
né, filha? — reafirma Pai Flávio, com
quem Thaís criou uma relação que
vai além do terreiro.

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atravessou sua vivência e deu mais um passo na cura de lutava com sua aparência para se encaixar no mundo
sua autoestima. do funk. Mas o processo de entender seu lugar político
na sociedade e a consequente mudança de postura,
— Eu nunca me vi como uma pessoa branca, mas também permitiu que seu trabalho traçasse este caminho sem,
nunca me entendi como próxima de uma pessoa negra, necessariamente, a obrigação de reafirmar suas posições
sabe? Ficava naquele limbo do pardo, de você ter a a todo momento.
‘passabilidade’ e está tudo bem de não ser cutucado. Eu
estava num momento que estava sendo muito cutucada — Eu não preciso chegar na menina da periferia que
de entender os lados, de estar num grupo que eu sou frequenta meu terreiro e ficar explicando teoria feminista.
diferente de uma pessoa branca, em que eu não tenho os Esse amadurecimento de conhecer o feminismo, de
mesmos privilégios e que também não tenho os mesmos conhecer outras coisas, outros tipos de música, de me
sofrimentos de uma pessoa negra retinta. Enfim, estava religar com a ancestralidade, entender a música de terreiro
entendendo tudo isso, ao mesmo tempo essa questão da como uma música que faz parte e que é também o funk,
aparência. E aí eu conheci o terreiro, e tinha essa minha está tudo ali — analisa ela, que agora, não se sente mais
versão que me ensinou tudo isso com muita generosidade. pressionada a seguir nenhum tipo de padrão musical ou
Foi muito especial, como é até hoje. estético para se sentir realizada com a música que faz: —
Eu falei para mim: ‘Nossa, tá tudo bem. Eu não preciso cair
num padrão de fazer só funk. Posso fazer o funk, a música
da MC Tha, e ser quem eu quero ser.’. Me ajudou muito a
Tem que ser valente, Thaís criar um espaço para mim, onde eu pudesse transitar e me
sentir confortável.
Quem a acompanha e tem a sorte de vê-la tão dona de
si e certa sobre sua posição política no mundo também Apesar de nunca ter ouvido nada diretamente, o racismo
enxerga outro ponto que a vivência da Umbanda trouxe religioso atravessa diretamente esta vivência, seja na
para a vida da MC: o feminismo. No ensaio de fotos que hora de ser escolhida para uma publicidade ou o receio de
gerou as capas do álbum e singles do ‘Rito de Passá’, contratantes associarem a imagem a este tipo de artista.
é possível identificar a figura de empoderamento, mas Na missão de tentar mostrar a semelhança entre o funk
também os elementos de entidades e orixás femininos e a Umbanda, da sua cor e da ligação entre estes três
que inspiraram Thaís a se reconhecer como feminista. pilares, existe a pessoa que mantém seu próprio congá
Este reconhecimento, segundo ela, veio da observação na sala de casa e sonha em morar no meio do mato
das figuras femininas representadas dentro da Umbanda. para fazer seus atendimentos espirituais. Mesmo sem a
certeza de que seu futuro está, de alguma forma, ligado ao
— A maioria dos terreiros são mulheres que coordenam, sacerdócio, a mesma mulher que se agiganta em cima do
geralmente é passada de avó para filha, e vai indo. E palco é a que entende que sua missão no auxílio da cura
também pela representação das pombagiras, das ciganas, das outras pessoas está acima de qualquer sucesso. Para
das boiadeiras, das orixás. Não é um monte de macho em Thaís, ser médium de consulta é ter a responsabilidade de
cima e depois vem a mulher, já vem a igualdade desde o sempre pensar no próximo, caso contrário, é melhor ficar
topo da nossa adoração. Ao mesmo tempo que a gente na assistência.
ama Ogum, a gente ama Iansã porque está no mesmo
pólo, trabalha junto, praticamente na mesma frequência. Ser mulher de terreiro e cantora é lindo, porém, não é um
Eu acho que vem disso, essa igualdade e esse espaço, que mar de rosas. Ao mesmo tempo em que tenta não cair em
a gente também pode preencher. armadilhas de estereotipação, se posicionar abertamente
como uma mulher de axé, que fala sobre fé, amor,
Ser exemplo para outras meninas negras de periferias sexualidade e autoestima resgata algo muito
foi um processo natural. Talvez isso não passasse profundo.
pela cabeça da Thaís que no fim da adolescência ainda

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— É dar continuidade a uma função que já existia na minha E a partir disso, fazer com que as pessoas da minha comunidade também se
família há muito tempo, mas que ninguém nunca quis pegar encontrem. Acho que ser mulher de terreiro é passagem, é acolhimento, é paciência
para si. Então eu me sinto uma mulher muito conectada também. É luta, você segurar uma bandeira que ninguém quer segurar. Todo
com as questões da minha família e encabida de tentar mundo quer ir frequentar, acha bonito, mas ninguém quer segurar de verdade. É
resolver, de fazer essa religação delas com a religião, com a lidar com o racismo religioso velado também, ainda mais no meio da música que
espiritualidade, de fazê-las se encontrarem no mundo. eu estou inserida — conclui MC Tha, Thais Dayane da Silva e Thais de Iansã.

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Pai Flávio de Xangô, Thaís Dayane
da Silva e Mãe Renata de Ogum,
membros do Templo de Umbanda
Caboclo das Sete Pedreiras

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SAGRADO
Ser iniciado no Candomblé é renascer para a vida religiosa, Assim, em uma sociedade estruturada pela força
é a reconexão com a ancestralidade e a conexão com o masculina, onde cabe a eles o papel de detenção do
orixá. Esse é um dos motivos para a constituição dos poder político, econômico, social e familiar, ter instituições
terreiros matrilineares, porque é a mulher que possui as religiosas comandadas por ialorixás, sobretudo no período
características geradoras e do cuidado na reconstrução da colonial, fizeram dos terreiros um dos primeiros locais

FEMININO
Terra-Mãe, que é o Candomblé. A Mãe Aninha do Ilê Axé de resistência feminina no nosso país, protagonizado
Opô Afonjá, por exemplo, organizou o corpo dos doze obás pelas mulheres negras, descendentes africanas, rainhas
de Xangô, responsáveis pela condução civil do terreiro, marginalizadas na nossa sociedade. Sendo assim,
mas instituiu que a chefia do terreiro deveria passar espaços de ressignificação social, onde se combate o
sempre pela linha feminina. poder falocêntrico e as práticas opressoras.

DOMayara
AXÉ Gomes
Artigo escrito por:

Mayara Gomes, dofona de


Xangô, com ialofun Sônia
de Oxalá e iá Sandra.
(Foto: Acervo pessoal)
Salve Mãe Aninha, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Stella secretas, as tarefas eram divididas de tal forma que as
de Oxóssi, Mãe Olga de Alaketú, Mãe Tatá Oxum, Mãe mulheres ficavam responsáveis pelo culto das máscaras
Gilda e minha mãe Sônia de Oxalá. Nossas mais velhas, Gueledés e os homens pelo culto dos Eguns.
mulheres de axé que abriram caminho para a nossa religião,
preservando o sagrado e os fundamentos ancestrais. Gẹ̀lẹ̀dẹ́ é a máscara que dá nome ao culto de tradição
iorubá que exalta o poder feminino sobre a fertilidade e a
São Mães e, nós, seus filhos e filhas de Santo. O Candomblé procriação de vida na terra. O poder das Gẹ̀lẹ̀dẹ́ vem das
é uma religião com uma estrutura familiar, onde o terreiro é Ìyámi Òsòròngà, que pela tradição do culto, são espíritos
uma comunidade orquestrada pela força dos orixás e seu divinizados de mulheres.
funcionamento é dividido em hierarquias, dos mais velhos
aos mais novos, de acordo com o tempo de feitura, gênero As mulheres são as geradoras da vida, detentoras do
e orixá de cada um — o que funciona de forma harmônica, sagrado feminino, da origem e das feitiçarias:
onde todas as tarefas são essenciais para o funcionamento
da comunidade religiosa. Ẹ kúnlẹ̀ o, ẹ kúnlẹ̀ f’ obìnrin o
Mayara Gomes é dofona
Ẹ obìnrin l’ó bí wa, k’awa tó d’enia de Xangô iniciada há 2 anos no Ilê
Certa vez minha mãe me disse: “Filha, no Candomblé, Ọgbọ́n àiyé t’obìnrin ni, ẹ kúnlẹ̀ f’ obìnrin Axé Omí Ewá das Águas do Gantois, em
Ilhéus, na Bahia. Milita contra o racismo
cada um tem sua função e todas são importantes para Ẹ obìnrin l’ó bí wa, k’awa tó d’enia
religioso e atualmente trabalha como
nosso axé. São as mulheres, as zeladoras dos orixás, e os empreendedora da marca Axédendê.
homens, nossos ogãs”. Ajoelhem-se para as mulheres Além disso, possui um projeto social de
boxe voltado para as crianças e mulheres
A mulher nos colocou no mundo, nós somos seres da comunidade do Cavalão, em Niterói, no
Afinal, nas sociedades iorubás, o poder masculino humanos estado do Rio, e é escritora nas horas vagas.
e feminino é resultante da interpretação dos fatores A mulher é a inteligência da Terra Para ler outros textos da autora, acesse os
livros Relatos da Quarentena ou Jovens
biológicos, compreendidos entre opostos binários e que A mulher nos colocou no mundo, nós somos seres Pesquisadoras: Sexualidades
são complementares. Antigamente, nas sociedades humanos Dissidentes.

48 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE ARTIGO FOI ESCRITO POR UMA AUTORA CONVIDADA PELA REVISTA KOBÁ
NOVA COLEÇÃO NO
Variedade
Óleos, manteigas hidratantes, banhos de ervas e amuletos priedades de uso dos sabonetes, com embasamentos em

EMPREENDEDORISMO
são alguns dos diversos produtos que estão disponíveis na conhecimentos transmitidos por guias espirituais, médiuns
loja. Segundo Flávio, houve uma potencialização de técni- e muito estudo. Carolina reitera:
cas ancestrais, baseadas em propriedades da natureza e
nas forças da Bahia, resgatando conhecimentos científicos, — Se nós sentimos a necessidade de nos conectarmos

DE TERREIRO
ancestrais, regionais e espirituais. Fórmulas são desenvol- mais frequentemente com nossos guias espirituais e ori-
vidas combinando óleos e manteigas vegetais que cuidam xás, imaginamos que outras pessoas também sentem. E se
da pele. As ervas utilizadas transmitem propriedades tera- obstáculos são criados no cotidiano impedindo esse pro-

Eduardo Bartkevihi
pêuticas à pele e, alguns sabonetes, carregam elementos cesso de conexão, nós criamos esse instrumento de cone-
por: naturais – água de cachoeira e água do mar – e pigmentos xão espiritual que fortalece ainda mais nossa fé.
naturais – guaraná, açaí e açafrão – responsáveis por in- Além de características como cores e elementos, as ervas
tensificar a vibração e por colorir os produtos, respectiva- são importantes para associar e relacionar os sabonetes
mente. aos orixás. Flávio conta que os estudos das ervas foram
fundamentais para a produção dos produtos e, baseado
Lançada no dia de Oxóssi, a inspiração ocorreu através de O lançamento dos sabonetes dos orixás, por sua vez, nas obras doutrinárias de Rubens Saraceni e Adriano Ca-
intuições, estudos e com o auxílio de amigos religiosos surgiu acompanhado de uma perspectiva interes- margo, obtiveram as informações necessárias para tal. Um
sante em relação aos seus tipos de uso: normal exemplo é o sabonete artesanal Odoyá Iemanjá, composto
e espiritual. No site da ÓiaFia!, além da por pigmentos azuis, água do mar e extratos de alfazema.
venda, o casal ensina práti-
cas de consagração e A loja ÓiaFia! acredita no enorme poder da influência na so-
O uso mínimo de recursos naturais para formular os seus produtos é um ponto mais do que dife- ativação das pro- ciedade. Logo, há uma preocupação tanto em se posicionar
rencial da loja ÓiaFia!. A intenção é demonstrar a possibilidade de criar produtos em paralelo ao em relação aos padrões estabelecidos quanto em propor-
consumo consciente da natureza, transmitindo energias positivas, alegria e cuidado com o cliente. cionar ótimas sensações aos seus clientes.
Feitos a partir de óleos vegetais, os sabonetes são ricos em glicerina e contém diversas proprieda-
des que mantém a oleosidade natural, limpam e hidratam a pele. — É começar por dentro da gente, tendo tempo para nos
conhecermos, nos amarmos e, ao longo da jornada, irmos
Umbandistas, Carolina Ramos e Flávio Augusto nasceram em São Paulo e trilharam cami- ampliando o alcance dessa reflexão para os outros e para a
nhos distintos na vida. Ela é professora de Educação Física e mestre em Educação. Ele sociedade. Porque o posicionamento que temos e defende-
é químico, biólogo e doutor em Biotecnologia. Apesar das coincidências – amigos mos é para modificar o mundo — reitera Carolina, concluin-
em comum e formações acadêmicas na mesma universidade –, se conheceram do: — Essas práticas contribuem para que uma rede seja
apenas no ano de 2017, em Salvador. A idealização da marca surgiu a partir estabelecida e que mais pessoas se sintam transbordadas
de uma problemática bastante presente nos dias atuais: o desemprego. de amor, felicidade e carinho.

— Depois de diversas tentativas de trabalhar em nossas áreas de for-


mação, nos jogamos em áreas próximas às de nossos antigos hob-
bies para poder ter uma fonte de renda”, explica Carolina, sócia-pro-
prietária da ÓiaFia!.

Em 2019, a produção de dois produtos – amuletos em mini


garrafinhas com sal grosso e carteiras feitas a partir de ma- LOJA ÓIA FIA
teriais recicláveis – deu início ao projeto do casal. Após uma
@oia.fia
intervenção na feira Rua Livre, no bairro de Santo Antônio
www.oiafia.com.br
Além do Carmo, em Salvador, eles notaram que o autocuidado
influenciado pela espiritualidade era um ponto interessante (071) 99203-3259
para ser desenvolvido.
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TERREIRO E e educação demonstram o como as expectativas de sucesso escolar estão

SOCIEDADE
majoritariamente reservadas aos meninos brancos e, aos negros, cabe a
realização da “profecia autorealizável” do fracasso.

por:
Obalera O orixá Ogum é cultuado como o responsável por inventar a forja dos
metais, desenvolver a metalurgia - ciência que estuda e gerencia os metais.
Portanto, é aquele que criou as técnicas de extração, fabricação, fundição,
enfim, aquele que tem o controle sobre o ferro. Mais ainda, Ogum é um orixá
conhecido como grande agricultor, grande caçador e o grande guerreiro, pois
foi o responsável em criar e ensinar os usos das ferramentas que permitiram
a humanidade a desenvolver a agricultura, a caça e a própria capacidade para
guerrear. Não é por acaso que, contemporaneamente, Ogum é considerado

MENINOS NEGROS
o patrono do avanço tecnológico. Lembro aqui, do itan em que Ogum cria
ferramentas para que o inhame fosse plantado em maior escala nas terras
de Oxoguiã, acabando assim com a fome que abatia Ejigbô.

E A POTÊNCIA Ogum é aquele que vai na frente (asiwaju), e ele o faz também a partir da
sua capacidade de pensar, criar, pesquisar, estudar, isto é, sua capacidade

REVOLUCIONÁRIA
de fazer ciência. O próprio fato dele ser temido por seus inimigos estaria
relacionado ao controle sobre como manusear o ferro. Sim, Ogum é o
guerreiro que nos impulsiona a lutar, a enfrentar nossas batalhas, mas Ogum

DE OGUM
também é um grande intelectual que assume a responsabilidade dada por
Olodumare e abre os caminhos com sua inteligência e capacidade de criar
ferramentas capazes de melhorar a vida de sua comunidade.

Se por um lado o sistema educacional ignora a capacidade intelectual de


homens negros, negligencia o lugar de sujeito que produz conhecimento, por
outro lado, Ogum em sua grandiosidade questiona e refuta essas máximas
Há um provérbio africano que diz: “Até que os leões contem suas
racistas e realoca a centralidade dos homens negros enquanto sujeitos que
histórias, os contos de caça sempre glorificarão o caçador”. Não tenho
pensam, constroem, inventam. Ogum é cada criança, adolescente e homem
dúvidas que nossos terreiros são espaços que respiram, vivenciam e
negro. Ogum é o ferro que forja e dá vida a nossos corpos e mentes. E, se
transmitem histórias contadas pelos leões e leoas. E com essa certeza,
assim é, cada menino negro é a potência da tecnologia! É o sujeito capaz de
me pego questionando em como nossas histórias, os itans dos orixás,
produzir as condições para o crescimento de seu povo.
e nossa concepção de mundo podem inspirar a (re)pensar nossas
relações raciais, sociais, políticas, educacionais e culturais.
Onde tem criança preta, ali está Ogum. Tem potência! Tem sucesso! Ogum
Vive! Eu vivo! Ogunhê!
Como o tema dessa edição é gênero e também homenageia Ogum,
fiquei me perguntando qual caminho iria seguir. E aí, entre os muitos
caminhos possíveis, senti-me instigado a explorar a ideia de Ogum com
o conhecimento relacionado à experiência de meninos negros na escola.
Homem negro de Candomblé, Obalera é cientista
Em uma sociedade racializada como a brasileira, homens negros são, social e mestrando de Filosofia na UFRRJ. Pesquisador-
na maioria das vezes, esteriopados como “burros”, desprovidos de ativista na área de relações raciais. Como escritor e poeta,
sua capacidade intelectual, reduzidos à suposta capacidade física desenvolve trabalhos autorais sobre racismo religioso e
e sexual. Animalizados, não suficientemente humanos para pensar também que buscam afirmar e difundir os valores e a beleza
das religiões de matriz africana. Em 2019, publicou o ebook
e refletir criticamente sobre o mundo. Segundo Bell Hooks - mulher
“Por uma perspectiva afrorreligiosa: estratégias de
negra, estudiosa do tema -, os homens negros no ambiente escolar “são enfrentamento ao racismo religioso”, publicado pela
classificados de modo esteriotipado como aqueles que não conseguem Fundação Heinrich Böll. Atua também como
aprender”. Os estudos que articulam racismo, masculinidades negras educador popular e brincante na
Companhia de Aruanda.

52 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER MARÇO/ABRIL 2021 53
O TERREIRO
Riara Nogueira, juremeira e filha
de Oxum (Foto: André Valença)

ÉGabriel
DELXS
por:
Sorrentino

Hoje, a população LGBT+ busca nos terreiros


um espaço de acolhimento e diálogo

Aos 14 anos, auge da adolescência, eu já me conhecia. Entretanto, reconhecendo o espaço afrorreligioso como
Internamente, mas conhecia. Eu sabia que era um ho- um local de acolhimento para a população LGBT+, Mika
mem gay — mas ninguém mais poderia saber. Era do- Oliveira, dirigente da Tenda de Umbanda Netos da Jure-
loroso guardar isso. Parecia que a qualquer momento ma, na Zona Leste de São Paulo, e integrante do Coletivo
minha garganta poderia soltar o que eu verdadeiramente Navalha, afirma que já passou por situações ruins por
sentia. pertencer à comunidade e estar inserida na rotina de de
terreiro.
Contudo, foi em uma gira de Exu, no terreiro de Omolokô
onde fui criado, em Itaboraí, na Região Metropolitana do — Embora encontremos mais diálogos para falar aberta-
Rio, onde pela primeira vez me senti aceito sendo quem mente sobre LGBTs, ainda tem lugares onde não há esse
realmente sou. Até então eu estava triste, mas só por espaço. É aquele ditado de Exu: ‘Aquilo que te acolhe, às
dentro. Por fora, ainda era o mesmo filho de Oxóssi feliz. vezes, pode ser o que te afasta’. Ele te acolhe em dado
Mas ela me conhecia como ninguém. momento como um corpo transitório dentro daquele ter-
reiro, mas ele te anula do que o seu corpo pode ser, do
Dona Maria Mulambo da Estrada, pombogira de uma que a sua potência pode ser — argumenta a umbandista,
irmã de santo filha de Xangô, foi a primeira pessoa — mo- que acrescenta: — Em algumas situações, o local acaba
radora Orum ou do Aiê — que olhou para mim e me fez anulando o indivíduo como pessoa pertencente à comu-
confrontar em palavras o que eu realmente sentia. Não nidade LGBT.
de uma forma invasiva — mas, sim, profunda e direta.
De acordo com Mika, em determinados momentos, você
— Você é homem, ama outro homem e isso não te faz pode estar no terreiro, mas não pode expressar o que de
menos homem. Isso te faz humano. Amar é o que im- fato você é. Portanto, com essa dualidade, ela afirma: o
porta — ela disse, sabendo de todo o sofrimento que eu centro religioso deve ser um espaço de acolhimento mas,
estava guardando. Ali, entendi também o que o terreiro em muitas vezes, acaba não sendo.
realmente significa para mim: acolhimento.

54 MARÇO/ABRIL 2021 MARÇO/ABRIL 2021 55


(Foto: André Valença)

— Em outros terreiros, quando me deparo com en- A modelo e maquiadora Riara Nogueira também acredita
tidades falando com as pessoas, o médium está do que o centro afrorreligioso seja um local de acolhimen-
outro lado do salão e ela grita: “Ou, desinvertido. Ou to para a comunidade LGBT+. Para ela, o pensamento
invertida”, eu nunca na minha vida vi uma entidade sobre a transgeneridade, principalmente em terreiros de
se referir a uma pessoa hétero assim, nesse tom. Candomblé, está começando a se desconstruir, mas re-
Isso é um caso de homofobia. A gente não pode ro- vela que algumas conhecidas já passaram por situações
mantizar, mesmo que venha da entidade — denun- constrangedoras dentro de barracões.
cia Mika, afirmando que é preciso que haja espaço
de diálogo para que seja dito, de fato, que se trata de — Querendo ou não, isso afasta a gente do nosso lugar,
um caso de homofobia. onde a gente vive o nosso sagrado. Às vezes até por não
nos sentirmos à vontade. Apesar disso, vejo que isso vem
Hoje, usar saia não é mais uma questão para a di- se desconstruindo. O terreiro que frequento e a minha
rigente paulista. Contudo, já foi. De acordo com ela, mãe, por exemplo, são bem tranquilos, até porque eu ia
impor que alguém use determinada vestimenta afe- para lá antes da minha transição e, agora, ela tem todo
ta alguns pontos os quais as pessoas não fazem o cuidado em relação a tudo, aos pronomes — conta a Preto Teo, produ-
ideia. E Mika afirma que isso é uma violência. juremeira de João Pessoa, na Paraíba. tor cultural, poeta,
barbeiro e umbandista
(Foto: Acervo pessoal)
— Inclusive, esse tipo de violência eu já sofri. Eu O umbandista Preto Teo acredita que, inclusive, o terreiro
sempre gostei muito de tocar atabaque. Além de também pode ser um local de resistência da população
dirigir o terreiro, eu gosto de tocar atabaque. E aí, LGBT, principalmente a partir de estudos dos panteões
as pessoas já começam a falar: “Nossa, você quer dos orixás.
ocupar um cargo que é para homens”. Eu não quero
ocupar cargo de nada. Eu quero tocar e eu vou to- — Alguns itans falam sobre o relacionamento de Iansã — Mas é possível e isso é muito louco. Como você de-
car. E ponto. Eu não estou pedindo permissão para com Oxum, de Oxum com Obá. Na Umbanda e no Can- fende uma ideologia que é liberal, digamos assim, que
nada. A gente encontra sempre esses lugares de domblé, por exemplo, é possível fazer casamentos LGBTs, fomenta e nutre o poder estrutural da branquitude? Como
embate, mas tem que confrontar, porque com pas- apadrinhar as pessoas. E a gente quer isso — diz. você dialoga nas duas coisas ao mesmo tempo? — in-
sividade já vi que não caminha — afirma. daga, acrescentando: — Em São Paulo, há um terreiro de
Além de ser um território de resistência, Mika Oliveira en- Candomblé dirigido por uma bicha preta que deu essa le-
Para o produtor cultural, poeta e barbeiro paulis- cara os templos de Umbanda, Candomblé e outras religi- tra: o terreiro é um ponto de encontro de resistência con-
ta Preto Teo, o terreiro é um dos locais com maior ões de matrizes africanas como um lugares de existência tra opressão. E para ele continuar sendo esse ambiente
potencial de receptividade e é por isso que a maior da população. De acordo com ela, se ocupamos esse es- de resistência, precisa ter diálogo, as coisas precisam
parte das pessoas LGBTs que frequentam alguma paço, estamos existindo. estar alinhadas.
religião são de fés de matrizes africanas. Contudo,
para ele, há sempre uma questão acerca da com- — No mesmo confronto em que a gente resiste para es-
preensão da zeladoria do terreiro em respeito des- tar ali, para se fazer valer as nossas vontades e nossas
ses corpos. falas, a gente está existindo também para ocupar aquele Transgeneridade e terreiro
espaço. Então, acredito que sim, por mais que alguns lu-
— Tem muitos casos de: “Ah, tudo bem. Você vai fi- gares não queiram as nossas presenças, esse é o resistir. Ainda hoje, a transgeneridade enfrenta uma gama de ta-
car aqui, mas da porta do terreiro para dentro, você A gente vai estar lá, querendo ou não querendo — afirma bus, preconceitos e violências nas sociedades ocidentais,
usa vestimenta masculina. Da porta do terreiro para a umbandista. que determinaram não apenas um papel, mas um corpo
fora, você pode ser travesti”. Isso não é acolhimento. específico para pertencer aos gêneros masculino e femi-
Portanto, tem essa questão de a gente ser acolhido De acordo com Preto Teo, um dos motivos pelos quais se nino. Situações onde recusam e afastam pessoas trans
com todas essas complexidades. Sim, é um ambien- afastou do primeiro terreiro onde trabalhou foram os ideais são dirigidas por uma cisnormatividade, isto é, uma lógi-
te acolhedor, mas isso não significa que esse aco- políticos de quem estava à frente da casa. Segundo suas ca social que naturaliza e reforça a experiência cis como
lhimento não precisa ser refletido, compreendido — palavras, “era muito louco o fato daquilo ser possível”. a única correta.
argumenta.

56 MARÇO/ABRIL 2021 MARÇO/ABRIL 2021 57


(Foto: André Valença)

— O Sagrado é algo que habita dentro da gente. E a gen-


Portanto, a presença de pessoas transgêneras nas religio-
sidades de matrizes africanas não é novidade. O que pa-
te poder chegar ali, sentir o nosso Sagrado se manifestar,
sentir o apoio dos nossos irmãos, mesmo que não sejam
É UM AMBIENTE ACOLHEDOR,
rece novo, na verdade, são diálogos entre a relação destes irmãos de sangue, mas irmãos espiritualmente falando.
MAS ISSO NÃO SIGNIFICA
QUE ESSE ACOLHIMENTO NÃO
corpos com os barracões de Umbanda e Candomblé. Para Irmãos que estão juntos com a gente na vivência que a
Wanderson Flor do Nascimento, colíder do Grupo de Estu- gente tem naquele espaço. Descobrir essa potência femi-

PRECISA SER REFLETIDO


dos e Pesquisas em Educação, Raça, Gênero e Sexualida- nina que habita em mim, dar espaço a ela, deixar ela vir, é
des Audre Lorde (UFRPE), membro do Núcleo de Estudos algo muito lindo — compartilha a juremeira, acrescentan-
Afro-Brasileiros (UnB) e do Núcleo de Estudos de Filosofia do que, ao mesmo tempo, não é fácil estar nesse mergu-
Africana Exu do Absurdo (UnB), esses debates estão orga- lho dentro de si sempre — Todos os dias eu costumo dizer
- Preto Teo
nizado em torno de quatro principais dimensões: que eu estou aprendendo. Na verdade, eu estou aprenden-
do todos os dias, me descobrindo.

— O lugar do corpo no terreiro e em suas dinâmicas ritu- Aos 14 anos de idade, Preto Teo já havia entendido que era
ais; o “direito” à modificação corporal e seus impactos na LGBT+. Por conta do cristianismo, onde cresceu por influ-
rotina da pessoa que fez esta modificação, durante sua ência da mãe, o artista sentia culpa por ser quem é e aca-
presença no terreiro; a questão das vestimentas no coti- bou levando isso para dentro do terreiro quando começou
diano do terreiro; e, por fim, quem pode ocupar determina- a frequentar. Segundo ele, tinha medo de ser descoberto
dos cargos ou funções dentro do barracão — lista o pro- mas, mesmo assim, se abriu para a vivência umbandista.
fessor, explicando que essas dimensões estão vinculadas
a pressuposições, nem sempre são debatidas o suficiente, — Um dia, decidi ir a uma festa de erê. Era um domingo
sobre os modos como as tradições africanas presentes e eu estava começando a viver minha “vida de rolê”. Fui
no terreiro pensam os fenômenos relativos a cada dessas à Parada LGBT+ de Osasco, que era cedo, já que a festa
esferas. de erê era mais tarde. A caminho da festa, comecei a ficar
com muito arrependimento de ter ido à Parada. Arrepen-
Riara Nogueira, portanto, afirma: dimento de ser eu mesmo. Fiquei com o coração muito
pesado. A cada passo que eu dava para o terreiro, mais
nervoso eu ficava e pensava: “Ai, meu Deus. Eles sabem
o que eu estou fazendo. O que eu passei o dia fazendo.
Quando eu chegar lá, eu vou tomar um esporro — con-
ta Teo, acrescentando que, ao pisar no terreiro, já sentiu
uma forte vontade de chorar — Bati o olho em um erê que
estava incorporado e, enquanto eu caminhava na direção
dele, comecei a chorar muito. Ele me pediu benção e eu
não conseguia responder. Ele segurou minha mão, olhou
dentro do meu olho e falou: “Está tudo bem, aqui a gente
vibra amor. E está tudo bem ser quem você é. Não tem
problema nenhum. Você não tem motivo para chorar”, e
eu não tinha aberto a boca, eu só tinha chorado. Ele sabia
exatamente o que era — conclui.

Mika Oliveira, diri-


gente da Tenda de
Umbanda Netos
da Jurema, e Aline,
58 MARÇO/ABRIL 2021 Essa matéria contou com a colaboração do repórter Eduardo Bartkevihi MARÇO/ABRIL 2021 60
sua esposa (Foto:
Acervo pessoal)
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER

FÉ DE Logo para nós, umbandistas, candomblecistas e espiritualistas, acostumados a lidar

ARUANDA
com sentimentos e energias, como não compreenderíamos o que toca no outro? O que
o outro deseja ser?

Letícia Freddi e Bruna Lima


por:
Quero levar o aprendizado da Espiritualidade para o lado de fora: se a entidade escolhe
um corpo para trabalhar e atua da mesma forma, protege da mesma forma, como
eu haveria de fazer diferença? Os espíritos em sua totalidade nos fazem entender as
questões sociais de forma branda e, diante do nosso axé, cabe absorver, observar e
entender. Terreiro é solo sagrado, mas também é solo social. É palco para questões de
gênero e raça. Ilê é resistência.

BARREIRAS DA
As religiões de matriz africana são (ou devem ser) aquelas que acolhem principalmente
os menos favorecidos. Os rejeitados. Os não vistos. Dentro da Casa de Axé, homossexual
não é aberração: é humano. Mulher trans não é “coisa de outro mundo”: é humana. É
digno de trazer à terra a força do orixá, de uma família fazer parte e por amor ao seu

SOCIEDADE:
terreiro trabalhar.

É para isso que a religião existe: para amar, acolher e cuidar. Onde quer e quem quer que
seja. O descalço dos pés e o branco da roupa nos trazem a igualdade e a sensação de

O GÊNERO NA
unanimidade. Somos uma banda. (Um)banda. Uma única banda.

Que prevaleça acima de tudo, o amor, o respeito e a fé. A fé que nos guia!

UMBANDA Na página 60, confira algumas interações


com o portal Fé de Aruanda no Instagram

Quando inserimos o tema “gênero” dentro da Umbanda e do


Candomblé, tudo parece tão distante, não é? Como se a questão
não penetrasse dentro das paredes das casas de axé.

Pura ilusão. O gênero começa a partir do momento em que uma


O portal Fé de Aruanda foi criado
mulher incorpora uma entidade dita como masculina, ou um
em maio de 2017 por Letícia Freddi e
homem incorpora uma iabá. Nesse momento, tampouco importa Bruna Lima com o simples intuito de levar ao
o corpo físico do médium: o que importa é a sua energia, a sua mundo toda palavra de amor e fé em homenagem
entrega àquela força da Espiritualidade. à Umbanda. De conteúdo totalmente autoral,
além de textos poéticos e reflexivos, traz também
E por que não seria assim além das paredes do terreiro? Seja a aprendizados adquiridos dentro do solo sagrado:
orientação sexual ou o gênero, nada diz respeito ao próximo. O ensinamentos, rezas, todas as experiências que
que se diz respeito a nós como irmãos é apenas o fato de acolher um médium em desenvolvimento atravessa a partir
o outro da forma que ele é. do momento em que inicia a sua jornada espiritual.
Inspiradas pela intuição e guiadas pela
fé: a fé que me guia.
Se podemos compreender um homem incorporado de pombagira
e acreditar fielmente que ela está ali presente, por que não
acreditamos que naquele corpo habita uma mulher de alguma
forma? Será que as questões físicas são mais importantes do
que o sentir?

60 MARÇO/ABRIL 2021 MARÇO/ABRIL 2021 61


Homens podem incorporar entidades femininas?
Por que (ainda) existe esse preconceito dentro da Umbanda?

@camigoal90 @julijualmeida @janeladoluis

Sim, a sociedade é machista. Polêmico, mas vamos lá. Acredito que Isso realmente é triste!
Infelizmente, essa situação a incorporação de qualquer espírito Misturar o interesse pessoal
existe até mesmo dentro das não tenha que ser atrelada à orientação com a espiritualidade. Somos
religiões. Estamos em 2021, sexual. O espírito é luz, por que vai fazer livres para fazermos nossas
mas, ainda assim, carregamos o distinção de gênero? Por que precisa escolhas. O espírito nos
peso do que foi pregado durante existir uma diferença para quem é escolhe pelo nosso caráter
muitos anos. trans? Sendo assim, mulheres trans e coração. Não precisamos
deveriam incorporar muito mais espíritos provar nada a ninguém! A
masculinos? Perante a espiritualidade, “marmotagem” nada mais é do
somos todos iguais, algo que precisamos que a vaidade em ação.
aprender a praticar até mesmo quando
estamos tentando fugir do preconceito. “O lar e o lugar de cada um, o

@celiamello26 @felipe.x.fernandes @sou_do_laroye


ambiente onde e importante
olhar para cada canto e
lembrar das historias, dos
valores e das crencas.”
No nosso ponto de vista, nenhum. Há Sensacional! O grau de Verdade! Precisamos lembrar
quem diga que a mulher pode incorporar evolução deles é muito que todos temos o lado
entidades de ambos os sexos, por ser a maior! Muita sabedoria feminino e masculino. Não é
geradora da vida. Particularmente, acredito para nos ensinar. diferente com a espiritualidade.
ser uma justificativa para o preconceito.

@catarinazanata @cihmantovani

Exatamente! Esse preconceito vem


sendo desconstruído, acredito que
tudo tende a melhorar. Vamos conti-
nuar pregando a caridade e o amor.
Esse tipo de mensagem enche o nosso
coração de amor! Grata por saber que
nossos seguidores compartilham da mesma
opinião. E tudo bem pensar diferente, todos
estamos em constante aprendizado.
Pontinho de Macumba
Bordados com axe
62 MARÇO/ABRIL 2021 Clique e conheça!
A ATUAÇÃO DOS
Segundo o presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Ne-
gro (CEDINE) Luiz Eduardo Oliveira, apelidado como Negrogun,
filho do Hunkpamey Ayôno Huntólogi, terreiro situado em Ca-

ARQUÉTIPOS NAS
choeira, no Recôncavo Baiano, as divindades influenciam direta-
mente na vida dos adeptos. Ele acredita que há uma determinada
ligação com a ancestralidade:

COMUNIDADES
— Nós não somos escolhidos aleatoriamente, somos descen-
dentes diretos do orixá, vodun ou inquice que representamos na

DE TERREIRO
nossa passagem aqui na terra.

No entanto, a falta de conhecimento e a influência de uma

Eduardo Bartkevihi
cultura ocidental são alguns dos responsáveis pelas atitudes
por: dos religiosos de se utilizarem dessas características para jus-
tificarem os seus atos considerados negativos. Associações
como filhos de Ogum serem briguentos e filhos de Oxóssi serem
conquistadores são exemplos de transferência daquilo que é do
indivíduo para o astral, demonstrando uma certa superficialidade
Características reforçadas têm o poder dos religiosos em relação às trocas estabelecidas.

de ecoar negativamente em relações — Temos a energia do orixá que nos rege, mas temos outras

interpessoais, contribuindo em energias que nos acompanham, que nos complementam e nos
equilibram. Temos o orí. Não podemos cair nessa de reduzir os
problemáticas existentes na sociedade orixás aos arquétipos, porque se forma imagem estereotipada de
cada um deles. Devemos aprender com a experiência de nossos
orixás e procurar controlar algumas características de nossa
personalidade. Você não deve ser como o arquétipo, mas deve
As influências das divindades – denominadas orixás, inquices e vo- aprender a lidar consigo mesmo, estar atento — explica Edwyn
duns – são muito presentes na vida dos adeptos das religiões de Gomes, candomblecista de Nação Jêje-Nagô, iaô do vodun Agué,
matrizes africanas. A partir da regência e dos seus respectivos ar- professor de História e artista.
quétipos, são estabelecidos conceitos que se associam aos indiví-
duos. Entretanto, ao mesmo tempo que essa prática contribui posi- Pai David ressalta que a atitude de enxergar os conhecimentos
tivamente na relação com o sagrado, ela tem o poder de colaborar ancestrais pela ótica da católico, sob um viés ocidental, pode ser
com o desenvolvimento de aspectos negativos, como a limitação aos considerada um desvio identitário:
estereótipos.
— Quando falamos de religiões afro-brasileiras, estamos falando
Pai David Dias, sacerdote e pai de santo do Templo Pai João de Ango- de um tipo de aprendizado que, na maioria das vezes, é transmi-
la, explicita que os orixás são aptos e portadores de uma habilidade: tido em um formato circular, pela oralidade. Quando falamos de
conceder uma nova identidade ao ser. Para ele, os religiosos desen- oralidade, esbarramos num valor que não é tão presente nas co-
volvem diferentes identificações ao estabelecerem contato a partir munidades urbanizadas da metrópole. Logo, isso contribui para
de um processo de relacionamento particular e próximo, como uma o conhecimento das divindades de um modo superficial — conta
iniciação ou uma conversão religiosa. o umbandista, citando também a concepção de projeção, teoria
estudada por Anna Freud. Segundo a psicanalista, quando você
— Então, antes eu era o David, agora eu me torno o próprio Ogum. tem um distúrbio ético ou patológico, existe a possibilidade de
Porque eu observo qual é a perspectiva daquele que me observa e me projeção e atribuição desse transtorno ao próximo. Nesse caso,
endossa como filho a todo momento — explica o umbandista. às divindades.

64 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO MARÇO/ABRIL 2021 65
Edwyn Gomes, candom-
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO
blecista de um terreiro
de Nação Jêje-Nagô.
(Foto: Acervo pessoal)

Construções e desconstruções
Uma pessoa, ao associar algumas características de Ogum – estra-
tegista, forte e corajoso – às suas atitudes agressivas com o pró-
ximo, utiliza determinada característica do ser para justificar seu
comportamento particular. Essa prática pode contribuir para refor-
çar questões negativas como a masculinidade reforçada, por exem-
plo. Pode-se compreender, inclusive, essas atitudes como um pro-
blema existente na sociedade que é incorporado dentro da religião.

— O nosso conceito filosófico religioso no brasil é patriarcal. Em al-


guns momentos, fases e falas, ele reafirma a questão do machismo em
seus conceitos. Isso, ao juntar-se com uma educação não muito saudá-
vel e amplificada, e com pessoas que não têm interesse na visão coletiva
e igualitária, resulta negativamente — afirma Negrogun.

Para Pai David, ainda hoje existe um discurso que é retroalimentado por uma
opressão entre os homens. Essa visão deturpada evidencia um distúrbio comporta-
mental de homens dentro e fora dos terreiros, demonstrando que os homens não estão Pai David Dias, sacerdote do
dispostos a olharem entre si e perceberem as suas dores, dialogarem sobre os seus medos: Templo Pai João de Angola.
(Foto: Davi Nunes/Aruanda
— Mesmo que os itans contem, o homem nunca vai dizer que Ogum se arrependeu. E Ogum se Studios | @davinunes_)
A obtenção de conhecimento por parte das
arrependeu, morreu de remorso. Oxóssi pediu ajuda para sua própria mãe. Os homens não têm
comunidades de terreiros é extremamente
coragem de pedir ajuda para a própria mãe, não têm coragem de pedir ajuda nem para os outros
necessária nessa circunstância. Além de
homens — argumenta o sacerdote.
compreender os significados dessas for-
ças, descobrir de que forma elas atuam é
O ato de desvincular determinadas atitudes da influência das divindades é um processo importante no reconheci-
um processo importante na trajetória den-
mento do indivíduo como pessoa adepta de religiões afro-brasileiras. É necessário também reafirmar uma ideologia
tro das religiões de matrizes africanas. Por
igualitária, menos exclusiva e preconceituosa tanto em um âmbito geral, como sociedade, quanto em um âmbito
exemplo, a partir do estudo de orikis, itans
particular, dentro dos terreiros.
e poemas, encontra-se aprendizados refe-
Para isso, a instrução e o diálogo por parte dos líderes religiosos também são fundamentais nesses casos, uma vez
rentes às ancestralidades africanas.
que quando repetem discursos levianos, acabam por contribuir para uma visão deturpada dos ensinamentos religio-
sos. Para Pai David, além da importância de romper com os valores cristãos que conduzem a imaginar que o orixá foi
santo, é necessário promover uma reflexão:

— A gente deve olhar para essa nossa sociedade e entender que, talvez, os líderes religiosos das comunidades
de matrizes africanas sejam os maiores responsáveis por como estamos sendo aviltados, tanto os homens
quanto as mulheres.

A quebra de paradigmas ligados à cultura machista patriarcal resulta na oportunidade tanto de mulheres
quanto da comunidade LGBTQI+ de se estabelecerem nos locais que têm por direito, além de contribuir
para que os homens discutam sobre si de uma forma mais aberta e respeitosa.

— É preciso estar atento aos ensinamentos dos orixás, mas seja você, prezando pelo seu equilíbrio,
o equilíbrio do próximo e do seu ambiente — completa o professor de história Edywn, reforçando
a necessidade de compreender que determinados padrões comportamentais são dos indiví-
duos, e não das divindades.

Negrogun, filho do
Hunkpamey Ayôno
66 MARÇO/ABRIL 2021 Huntólogi, em Cachoeira, MARÇO/ABRIL 2021 67
no Recôncavo Baiano.
(Foto: Acervo pessoal)
PAPO NA ENCRUZA:
Atualmente, Douglas Rainho e Luiz Guenca são O processo de profissionalização das entrevistas e
os apresentadores responsáveis pelo conteúdo do posicionamento de forma crítica sobre os temas

UM DOS PIONEIROS NA
produzido. De um lado, dirigente da Tenda Espírita de ocorreu ao longo das transmissões. Para Douglas,
Umbanda Chão de Jorge, vivendo a Umbanda no seu as mudanças tiveram foco na postura em fazer um
dia a dia e apaixonado por magia popular, Douglas programa cada vez melhor e ligado com a demanda
procura estudar tanto a religião quanto questões do público:

PRODUÇÃO DE PODCASTS
paralelas como antropologia, sociologia e história.
Luiz, não identificado com nenhuma religião, é — Inicialmente, o tempo de duração era de uma hora,
considerado um agnóstico aberto a novas informações em média. Mas percebemos que isso não era o ideal

SOBRE MACUMBARIA
e conhecimento. e que nosso público queria mais. Já chegamos a três
horas e meia de programa, em alguns episódios. O
— A Umbanda é uma religião que vem contrapor um formato é idêntico, mas nos aprofundamos mais nos

por:
Eduardo Bartkevihi sistema vigente autoritário, eurocentrista e muito
preconceituoso que vivíamos, mesmo nos campos da
espiritualidade. Desta forma, além da valorização da
temas.

A popularização do formato de podcasts tem crescido


cultura africana, há a valorização da cultura nativa- tanto que a produção só aumenta com o passar dos
brasileira e dos povos indígenas — afirma Douglas anos. Sendo assim, o termo ‘ano dos podcasts’ ganhou
sobre o costume de abordar questões sociais nos uma atualização de 2019 para 2020, ano atípico que

Chegando ao centésimo programas apresentados. Segundo ele, a religião


não pode estar desassociada de agendas sociais
favoreceu o serviço de streaming de áudio. Segundo
a pesquisa Kantar Ibope, 24% dos consumidores de
episódio, apresentadores e a necessidade de se colocar contra preconceitos áudio ouviram podcasts durante a fase aguda de

apostam na informação
existentes é de suma importância. isolamento social.

como essência do projeto No fim de 2020, surgiu a ideia de apresentar uma


nova dinâmica aos quadros, trazendo pessoas com
— Queremos atingir outros níveis e trazer, cada
vez mais, informação a todos que querem saber
experiência para participar dos assuntos abordados. sobre Umbanda, espiritualidade e magia — explica
O engajamento e a proximidade com os ouvintes o apresentador em relação ao futuro do Papo na
são pontos importantes para a escolha dos temas Encruza.
Em uma época onde não existiam tantos podcasts debatidos e dos participantes convidados para o
voltados às religiões de matrizes africanas, a escolha programa. A participação e o reconhecimento atingiu
por esse formato se deu por conta da seletividade um nível que, atualmente, eles adotaram o formato
do público e pela qualidade de divulgação. ‘videocast’ — a pedido dos ouvintes. Os vídeos,
Assim, em 2017, o Papo na Encruza começou a que antes eram transmitidos pelo Youtube
apresentar temas relacionados à Umbanda, magia apenas contendo o áudio, agora também são
e macumbaria em geral. apresentados em um formato audiovisual.

A iniciativa surgiu entre amigos que decidiram


desenvolver um material mais técnico sobre esses
assuntos, aproveitando a ótima relação interna
PAPO NA ENCRUZA
para dar uma maior dinâmica ao programa. No ar www.perdido.co
há quase quatro anos, o foco em elucidar, debater @paponaencruza
e promover conhecimento continuam sendo os
principais objetivos do projeto. ACESSE O SITE

68 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE É UM CONTEÚDO PUBLICITÁRIO PRODUZIDO ESPECIALMENTE PARA O CLIENTE MARÇO/ABRIL 2021 69
ARREDA, HIBISCO
HOMEM,
GÊNERO
Clara Nery
por:

QUE AÍ VEM
MULHER E TERREIRO
por:
Eduardo Bartkevihi
Desde pequenino nos diziam o que ser. Concedei-me a mais pura forma de falar,
No ar desde outubro do ano passado, o ‘Mulheres de — Refletir sobre o papel da mulher é importante em todas
Sempre tinha uma Damares. Que o livro a ser lido nunca vai ser entendido.
Terreiro’ teve como principal objetivo refletir o papel das as esferas da sociedade. Mas eu sempre entendi que a
Conceitos são só conceitos. Muitos tentam interpretar mas nunca chegam a lugar.
mulheres dentro das religiões de matrizes africanas. moral religiosa que predomina na sociedade é usada
Gênero, sexualidade e diversidade.
A primeira temporada do circuito de lives foi oferecida como uma forma de nos oprimir ainda mais. Discutir o
Concedei-me a mais linda poesia, que deu frutos
pela marca Curimbeiros, com apoio das lojas Eufloria que é ser mulher de terreiro é entender nosso lugar na
Cada um tem sua mágica. versos tão simples mas de uma força inexplicável.
Artesanal e Pedrinha d’Aruanda. sociedade como pessoas que não vivem sob um olhar
Agora eu faço a minha.
moralista, mas daquelas que são geradoras e têm o poder
Concedei-me o dicionário mais literal,
Dividido em quatro episódios, o programa contou com a pelos seus corpos e decisões — afirma a apresentadora
Seja gente urgente: Que daria mil e uma descrições. Mas nenhuma
presença das convidadas Mãe Taiane Macedo, dirigente Naíse Domingues.
chegaria aos seus pés.
do Centro de Umbanda Mística Oxum Apará, Renata
Pallottini, advogada e filha de Maria Padilha das Almas, A produção de cultura afrorreligiosa também foi uma
Concedei-me a mais dura bibliografia,
Ana Paula Lisboa, escritora produtora cultural, e Mãe temática trabalhada no circuito. Atualmente, mulheres
Que contaria todas as suas batalhas mas não
Flávia Pinto, Baba de Umbanda da Casa do Perdão. Os artistas atuam em diferentes áreas de cultura, como
passaria metade da sua emoção.
episódios debateram os respectivos temas: ‘Mulheres à escritoras, cantoras, desenhistas, entre outras.
frente do terreiro’, ‘Feminismos em religiões de matrizes Entrevistada no terceiro episódio da série, a escritora Ana
Concedei-me a mais pura imagem,
africanas’, ‘Afrorreligiosidade e produção de cultura’ e Paula Lisboa explica em uma de suas falas:
A mais sincera e singela homenagem
‘Matriarcado’.
Concedei-me quem eu quiser ou só um pouco
— Acho que é a forma como eu consigo viver, fazer e,
mais de nós mesmos.
de alguma forma, contribuir. Tentar chegar a esse lugar
bonito e pleno de ser uma mulher negra no mundo.

Cada vez mais, as redes sociais têm permitido que as


produções de conteúdo sejam consumidas por um
número maior de pessoas. Para Naíse, esse espaço
precisa ser usado como uma vitrine para o universo
que as religiões de matrizes africanas, suas histórias, Clara Nery é jornalista, atriz, poetisa,
filosofias e propósitos apresentam. Além disso, também repórter da Band TV e fundadora do
Hibisco Poesias. A página foi criada em
é uma oportunidade de documentação de uma tradição
2014 como um espaço para divulgar
religiosa que tem a base na oralidade. poemas, textos e citações autorais por
meio do Facebook, Twitter, Instagram
(@hibiscopoesia) e blog.
No episódio em que participou, no penúltimo, Renata
Palottinni transmitiu um importante recado às mulheres:

— Façam dessas palavras, o conteúdo dessas mensagens,


uma grande semente que você vai plantar no seu orí e
despertar ela através da sua consciência para que você
se reconecte com a sua linhagem matriarcal ancestral.

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ELAS NO COMANDO
Para além da dirigência dos terreiros, as mulheres também também pode ser considerada um ato de resistência. Em
se relacionam no que diz respeito às práticas musicais diversas práticas religiosas exercidas ao longo da história,

Eduardo Bartkevihi
dentro da Umbanda, seja tocando instrumentos como as mulheres foram proibidas de assumirem determinados
atabaques e agogô, ou utilizando a própria voz para entoar postos. Há quem afirme que os fundamentos precisam
por: os cânticos religiosos. ser respeitados e repassados, porém, em contrapartida,
a permissão para que elas estejam nesses lugares vem
Assumindo importantes cargos para a ritualística, elas são sendo conquistada a cada dia. De acordo com Marcelli, é
responsáveis por ditar o ritmo dos trabalhos mediúnicos, o muito importante que as mulheres assumam esse espaço,

Conquistando espaço, o número de que explica a curimbeira Rafaella de Xangô: a fim de tocar instrumentos sagrados:

mulheres que estão à frente das — As pessoas ficam vidradas na fantasia de incorporar, — A mulher é sagrada, então por que não pode tocar um
mas não pensam que, para acontecer tudo isso, precisam instrumento sagrado? — indaga.
curimbas tem crescido bastante da curimba da casa. O atabaque, quem canta, quem toca,
isso é o coração do terreiro. Sem aquilo, a gira não anda, Rafaella, inclusive, reforça o seu pensamento sobre a
caboclo não dança, baiano não dança. Poucos vêm em força das mulheres e a sua perspectiva sobre a presença
busca de trabalhar na curimba. feminina na religião:

A ligação dessas mulheres com a musicalidade fora — Eu creio que nós, mulheres, somos bem fortes para
dos terreiros desperta o interesse e a vontade de, ao aguentar toda essa responsabilidade. Se dividem com a
adentrarem nas comunidades de religiões afro-brasileiras, gente é porque nós temos capacidade, e eu acho muito
se aproximarem da dinâmica estabelecida com a música. lindo. Eu espero que mais e mais mulheres adentrem à
É o caso de Marcelli, filha de santo da Casa do Perdão, Umbanda, adentrem à curimba. Eu creio que o dom que o
terreiro em Campo Grande, no Rio de Janeiro, e participante Pai Oxalá deu pra gente é especial, nossa intuição, nosso
das aulas de atabaques realizadas no local. sexto sentido — intensifica a médium.

— Eu sempre gostei de música e de percussão. Eu tenho Para levar a religião para mais pessoas, Rafaella criou um
uma bateria, já toquei, já tive bandas. Na Umbanda, o canal na internet onde publica vídeos cantando diferentes
atabaque me chamou muita atenção. É simplesmente pontos. Ela comenta que, além de oferecer conhecimento,
paixão, eu gosto mesmo — explica a umbandista. é uma forma de combater a discriminação bastante
presente na nossa sociedade. Atualmente, o canal ‘Estrela
Ser da curimba é, também, uma forma de trabalhar com Dourada’ tem mais de 300 inscritos:
a mediunidade e contribuir positivamente à religiosidade.
Para Rafaella, os pontos são considerados preces. A partir — Eu acho legal isso de colocar na internet, eu nunca tive
deles, você compreende melhor as divindades que se vergonha. Eu gosto de mostrar que dá para ter acesso, não
apresentam nas religiões de matrizes africanas. é aquilo que as pessoas julgam e discriminam. Eu abri o
canal justamente para isso, para as pessoas enxergarem a
— Os seus estão ali. Você está se dedicando ao máximo curimba importante como estar incorporado trabalhando.
à sua fé, mostrando sua vontade de estar ali, você está
chamando as entidades de outras pessoas. Eu creio O fato é que as mulheres têm conquistado seus espaços
que isso auxilia no desenvolvimento prático e teórico — também dentro das religiões de matrizes africanas,
completa a filha de santo do Templo de Umbanda Caboclo buscando estabelecer igualdade e exercer as suas
Sete Pedreiras, na Zona Leste de São Paulo. vontades como adeptas e praticantes que são. Esse
posicionamento, entre diversos significados particulares,
A presença das mulheres em determinados cargos demonstra um ideal comum: o amor pela religião.

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