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UM POUCO DE AÇÚCAR,
DENDÊ E PIMENTA
O encontro entre MC
Tha, Thais Dayane da
Silva e Thais de Oyá
EXPEDIENTE
LAROYÊ… 04 UMBANDA
EU CURTO 50 EMPREENDEDORISMO
DE TERREIRO
POMBOGIRA!
GABRIEL SORRENTINO
52
Diretor-geral
06
TERREIRO E
NAÍSE DOMINGUES YORUBÁ SOCIEDADE
Diretora de conteúdo Arreda, homem, aí vem mulher. E diálogo sobre pessoas LGBTQs na
vivência afrorreligiosa também. Sem falar, claro, na relação entre
pombagira e feminismos. Por fim, vários são os temas que você lerá nas
11 54
EDUARDO BARTKEVIHI
próximas páginas, nesta edição cujo debate principal é a relação entre
PENSAMENTOS O TERREIRO
Repórter
gênero e terreiro.
FABIO MATEUS
DE ABIAN É DELXS
Acredite: há muito o que falar. Aqui, apenas demos pinceladas, afinal,
Diretor de arte esse debate é infindável. Ainda mais em pleno século XXI, onde vemos
12 60
uma primavera de discussões importantes. Sejam elas sobre gênero,
VANESSA ALVES como fizemos aqui, sobre raça ou sobre classe. POMBAGIRA E AS FÉ DE
Designer sênior ESTRATÉGIAS DE ARUANDA
SOBREVIVÊNCIA
Com muito prazer, convido você a ler uma matéria que escrevi ao
entrevistar MC Tha. Ou Thais de Oyá. Ou Thais Dayane da Silva. Na
BRENO LOESER verdade, entrevistei o encontro dessas três. Independentemente, te
16 64
A ATUAÇÃO DOS
Ilustrador convido a ler uma reportagem sobre empoderamento feminino, sobre
funk, sobre Umbanda. Sobre ser mulher, sobre ser macumbeira, sobre PONTOS ARQUÉTIPOS
MARCO ALCÂNTARA ser filha de Iansã. Com fotos magníficas do Bendito, fotógrafo da
revista KOBÁ, se encante com as palavras desta artista que é uma
ILUSTRADOS NOS TERREIROS
Fotógrafo
representatividade para qualquer mulher de terreiro.
18 68
TATIANE FALHEIRO
Além disso, nesta edição, tivemos a honra de compartilhar com você dois
Diretora de negócios e relacionamento artigos de duas mulheres incríveis e de quem sou fã: Renata Pallottini, BABA PAPO NA
advogada e filha de Maria Padilha das Almas, e Mayara Gomes, dofona RESPONDE ENCRUZA
Acompanhe: de Xangô que está à frente de um projeto social de boxe voltado para as
crianças e mulheres da comunidade do Cavalão, em Niterói, no estado
@kobaexu
70
do Rio. Mulheres fortes, com falas fortes. Necessárias!
22 71
e gratuita, venda totalmente proibida. sociedade. Por isso, nos debruçamos sobre este assunto.
GÊNERO E
HIBISCO
TERREIRO
Maria Mulambo, Maria Navalha, Oyá, Nanã, Rosa Baiana, Jussara — com
Envie sua pauta:
as bênçãos do meu Sagrado Feminino, te apresento a quinta edição da
koba.pauta@gmail.com
revista KOBÁ. Boa leitura!
48 SAGRADO FEMININO
72 ELAS NO
Anuncie na revista:
NO AXÉ COMANDO
Naíse Domingues
koba.comercial@gmail.com
Diretora de conteúdo
02 MARÇO/ABRIL 2021 MARÇO/ABRIL 2021 03
UMBANDA Voltemos então ao sincretismo apenas pinçar algumas características do
EU CURTO
santo católico que realmente se aproximam das qualidades do nosso Orixá
em questão. Jorge, nascido na Capadócia, na Turquia, no século III d.C.,
Alexandre Negrini
tornou-se capitão romano com apenas 23 anos graças à sua firmeza de
por:
caráter e honestidade com seus pares.
HONRA, CARÁTER
precisam tomar decisões difíceis, que envolvem disputas e embates.
Já Ogum é considerado o porto seguro, o senhor da Lei e vencedor das
demandas. Atua na ordenação divina e é clamado por direção e caminho. É
E HONESTIDADE:
o protetor dos que lidam com a agricultura e trabalhos manuais, com o ferro,
o fogo, a metalurgia, amparando-nos diante das batalhas contra o opressor.
PRECISAMOS DE
São Jorge e Ogum estão fazendo falta. As sociedades modernas em que
vivemos fecham os olhos para injustiças e desmandos. Desrespeitam a
hierarquia e a relação com o próximo. Palavras são proferidas ao vento,
MAIS OGUM EM
fazendo da honestidade um horizonte distante. Até as leis, bases fundadoras
do atual Estado Moderno de Direito, se mostram maleáveis aos ricos e
influentes enquanto são duras e implacáveis com os mais pobres.
Que o exemplo de Jorge, personagem histórico, e de Ogum, orixá da Lei e da
NOSSAS VIDAS?
Ordem na Umbanda, desperte em nós a necessidade de sermos humanos
melhores. E que, cada vez mais, integridade, respeito, honra e caráter não
sejam diferenciais e sim qualidades corriqueiras de todos nós. Sejamos
todos, desde já, guerreiros.
Sincretismo não é algo ruim por si só. Serve, num primeiro momento, para
inserir uma divindade desconhecida em determinada cultura, sobretudo em
Alexandre Negrini Turina
casos como o brasileiro onde os povos negros eram escravizados e impedidos é jornalista e cientista social
de se manifestarem em quase tudo, incluso suas crenças religiosas, embora formado pela Universidade de São
Paulo (USP). É cofundador do Umbanda Eu
fossem maioria.
Curto, maior portal agregador de conteúdo
umbandista na internet. Criado em 2011 como
Com o tempo, não apenas a abolição da escravatura como também a lenta uma fanpage, hoje está presente nas principais
inserção das religiões de matriz afro-brasileiras em nossa sociedade, foram redes sociais (@umbandaeucurto) e conta com o apoio de
colaboradores como Alexandre Cumino, Adriano Camargo, Engels
gerando discussões teológicas e comportamentais, levando ao descolamento de Xangô, David Dias, David Veronezi, Rodrigo Queiroz, Taiane
natural de São Jorge e Ogum em muitas tradições e templos de Umbanda. OK, Macedo e Rubens Saraceni (in memorian).
mas por que isso é importante?
04 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER MARÇO/ABRIL 2021 05
Sacerdotisa de Oya com as
espadas do clã de Oya desta
YORUBÁ
família, no estado de Òyó, na
Nigéria. (Foto: Baba
Flavio Monteiro)
por:
Renata Barcelos
AS ORIXÁS FEMININAS
DO PANTEÃO E SUA
FORÇA
Yemoja, Osun, Oya, Oba, Yewa, Olokun (orixá feminina na maior “Òşun, aquela que está cheia de conhecimento
parte do território Yorùbá) Aje Salunga, Nana, Otin, Orosun e A mulher que bloqueia a estrada que os homens estavam fugindo”
outras tantas orixás femininas fazem parte do panteão da Áfri-
ca Yorùbá. “Aquela que embosca a fim de afligir os inimigos”
Elas são em si toda a força da mulher, há quem possa se enga- “E ela sabe o que eles estão fazendo no culto secreto”
nar dizendo que suas habilidades estão apenas para a fertili-
dade, casamentos, amores, equilíbrio, ou até que suas funções “Ela ouve o impulso de pensamento dos malfeitores”
estão vinculadas apenas ao domínio de alguns espaços natu-
rais como rios, mar, ventos e tempestades. As orixás femininas “Òşun é aquela que destrói a casa dos conspiradores mentirosos”
do panteão possuem suas próprias narrativas e se mostram
muito combativas. “Pássaro vai arrancar os olhos dos inimigos em casa”
Vamos ver alguns trechos retirados de oriki (invocação), orin “ Vamos nos ajoelhar para cumprimentar as mulheres”
(canções) e ese (versos) de Osun em área Yorùbá. Escolhi
Osun para mostrar porque muitos apenas a vêem como aque- “Fomos todos nascidos por mulheres antes de sermos conheci-
la que provém um bom amor, é vaidosa e meiga. Vejamos: dos como humanos”
06 MARÇO/ABRIL 2021
Podemos ver nesses trechos uma Osun combativa, que é capaz de defender sua comunida-
de de devotos dos inimigos e ainda exalta a importância das mulheres para a humanidade.
Assim se repete com cada uma das orixás do panteão. Suas narrativas exalam todo seu
valor e não raro é vê-las protegendo os ofícios da comunidade como o mercado.
As mulheres possuem papel central dentro de muitos mercados iorubás, sendo elas a maio-
ria das vendedoras destes espaços e possuem liderança feminina — as Iyaloja.
O acaso é que, neste espaço do mercado, as comunidades de muitos orixás também se en-
contram: de orixás femininos, masculinos e de outras sociedades. Cada qual com sua mer-
cadoria e, às vezes, as mesmas. Neste contexto, não é raro que o orixá que aquela família
possui passe também a proteger o ofício. Alguns itan de alguns clãs de Oya dizem que ela
era vendedora de obi e até que encontrou Sango no mercado. Algumas famílias de Yemoja
afirmam que Yemoja fabricava e tingia tecidos — interessante essa perspectiva de que o
ofício das famílias também é protegido pelas orixás.
Muitas estruturas de famílias em área Yorùbá tem um orixá central, e é evidente que famílias
são compostas por homens e mulheres. Nesta formação, os homens que também fazem
parte dos clãs cujo orixá central é feminino são também os protetores destas habilidades.
É explícita a necessidade de que orixás, sejam eles femininos ou masculinos, tenham a ca-
pacidade de defender os integrantes e devotos de praticamente todo tipo de mal que pos-
sam sofrer — das doenças, da morte, das invasões. Ainda é importante notar que alguns ori-
xás, juntamente com seus clãs, desenvolveram habilidades mais latentes e proteção extra
em sua função. Chamar Osun para defender de uma guerra pode ser eficaz para seu clã, mas
certamente vão também pedir a proteção de Ògún. Nesta medida, orixás e comunidades in-
teragem mutuamente fornecendo uns para outros um lugar pacífico e próspero para habitar.
Ressalto ainda que muitas orixás possuem, de fato, objetos de enfrentamento e de combate
como espadas e outros apetrechos. Muitas vezes, seus clãs afirmam que já foram utiliza-
dos em alguns momentos para defender a comunidade. No vilarejo de família da orixá Oba,
me apresentaram um facão com uma lâmina na ponta e, na outra, um sino, que diziam ser
antigo e já havia sido literalmente usado para a proteção.
PENSAMENTOS
DE ABIAN
Tatiane Falheiro
por:
UMBANDA É AMOR
FOTO DO BOX DE FEVEREIRO COM TEMA IEMANJÁ Na minha caminhada e evolução espiritual dentro da A Umbanda aceitou o amor entre duas mulheres sem
FOTO DO BOX DE FEVEREIRO COM TEMA IEMANJÁ
Umbanda, aprendi que o respeito é essencial e o amor julgar e modificar. E foi além: sem distinção quanto à
fundamental. A lição que tiro sempre é que somos orientação sexual mostra que o sentimento verdadeiro é
acolhidos, temos carinho e fraternidade — e foi assim o caminho para entender nossa missão nessa terra fria.
comigo também. Viver uma relação homossexual ainda Sou grata à Umbanda todos os dias por ensinar que o é
é difícil, porém minha família carnal, de santo e meus respeito ao próximo e ao que cultuamos: o amor!
guias me abraçaram e, junto com minha namorada,
caminhamos há três anos entendendo que o amor e Que pai Oxalá, com sua bandeira, leve e espalhe mais
O B O X Q U E T OO
D OB O
MXA C
QUUM
E BTEOI D O G
MOA SCTUAM B E I R O G O S T A a proteção do Sagrado são partes fundamentais para sentimentos bons. Que o respeito às questões de gênero
RO estarmos de pé e vivendo a felicidade. cresça todos os dias e que possamos ser livres para
amar! Respeitar a diversidade além de obrigação é nossa
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FOTOS: DAVI NUNES
POMBAGIRA E AS
Talvez você, que agora lê esses escritos, não atravessadas pelo racismo, estão mulheres trans,
saiba que Maria Padilha das Almas foi a mulher mulheres lésbicas oprimidas pelos preconceitos
que salvou a minha vida. Assim como tantas e discriminações em razão da identidade de
ESTRATÉGIAS DE
mulheres brasileiras, também senti a dor e o medo gênero e tantas outras mulheres invisibilizadas
da morte quando terminei um relacionamento. dentro da nossa estrutura social.
Confesso que eu não precisei ser vítima de Viver a comunidade de terreiro é exercitar
SOBREVIVÊNCIA
um relacionamento violento para perceber a a escuta ativa, é ouvir a realidade de outras
diferença de direitos que existe entre homens mulheres, que ocupam lugares sociais diferentes
e mulheres, bastou observar a vida das minhas e que me fizeram perceber que não estamos no
Renata Pallottini
ancestrais; incontáveis exemplos de submissão, mesmo balaio e é preciso olhar para o grupo
dependência financeira, exaustão, solidão, fruto feminino e entender as suas especificidades; só
Artigo escrito por: da naturalização desse lugar de “bela, recatada e dessa maneira, quando todas as mulheres forem
do lar” que nos é reservado. contempladas por seus direitos, conquistaremos
o empoderamento tão desejado.
É, gostaríamos que a realidade fosse diferente,
porém o Brasil é o quinto país no ranking mundial Então, nos terreiros-escola é onde Pombagira
de feminicídio. Com o advento da pandemia, em dá aula de sobrevivência. “Cuidado, amigo: ela é
Padê arriado no chão da encruza.
que mulheres passam a maior parte do tempo bonita, ela é mulher”, essa é a melhor definição
com seus agressores e a dificuldade de pedir de Pombagira. Ela é mulher! E ser mulher, nessa
Abre caminho, Orixá Exu; abre caminho para as mulheres.
ajuda é muito maior, somada a facilitação de sociedade, é sinônimo de luta. E não confunda
posse de arma de fogo, o país caminha para o briga com luta, como diria Sergio Vaz; briga tem
Peço licença a todas Pombagiras, a todas mulheres que
topo desse ranking. É imprescindível, inclusive, hora para acabar, a luta é para uma vida inteira.
vieram antes de mim, a todas mulheres que morreram por
que se diga, que mulheres negras são as
ser mulher, a todas mulheres marginalizadas, violentadas,
principais vítimas.
objetificadas, silenciadas.
Corpos
É inaceitável que terminar um relacionamento
Peço coragem a todas as Marias para colocar no papel a
pode nos levar a morte, não é, cara leitora? Não Padilha, Mulambo, Navalha são corpos do giro
dor da realidade. Escrever é também sangrar.
é, caro leitor? da saia, da gargalhada, da bebida, do cigarro,
da postura altiva pra dizer que “aqui não, meu
Pode ser, igualmente, que você se pergunte: o camarada! Aqui você não rela a mão em mim”.
que essa realidade desumana contra mulheres
tem a ver com Pombagira? A altivez das donas das encruzas é exemplo
do corpo-livre que resiste em não ocupar o
Antes de explicar a perfeita simbiose entre a lugar de objeto sexual, que não aceita o lugar
luta pelo direito das mulheres e Pombagira, é único do cuidado, da maternidade, das tarefas
fundamental esclarecer o quanto os nossos domésticas; é o corpo não domesticável.
terreiros são espaços educacionais.
Pombagiras são mulheres da desobediência, é a
Foi através da macumba, na vivência de terreiro, força do feminino na contramão da superioridade
que aprendi que nós mulheres não somos uma masculina, é a negação da submissão, é o direito
categoria universal, somos diversas e sofremos ao prazer, é a emancipação, é estratégia poderosa
opressões diferentes; na encruzilhada das de vida no país que mais mata mulheres da
opressões estão mulheres negras e indígenas América Latina.
12 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE ARTIGO FOI ESCRITO POR UMA AUTORA CONVIDADA PELA REVISTA KOBÁ MARÇO/ABRIL 2021 13
FOTOS: DAVI NUNES
Pombagira é o símbolo da luta por igualdade de gênero, violência que as mulheres sofrem, de tal maneira que a
portanto a representação dos feminismos dentro dos sociedade e seus valores são contestados. Seria mais
terreiros. fácil, então, fingir que esses problemas não existem,
assim os problemas continuariam sem solução.
Calma! Eu já sei! Há quem diga que mulher feminista
é contra o homem, que mulher feminista se acha Marcia Tiburi em seu livro Feminismo em comum afirma
superior ao homem; há aqueles que aviltam mulheres que ser feminista não nos torna, necessariamente, mais
feministas com ofensas do tipo “é feia, é mal amada, é felizes. O feminismo ajuda a tomar consciência sobre
masculinizada, é agressiva, é briguenta”, mas eu posso como o machismo atinge nosso dia a dia: da roupa
garantir, todas essas rotulações ao movimento feminista que usamos para não sofrer com assédio no ônibus ao
muito se deve a falta de informação. Eu arriscaria dizer contracheque com um salário menor do que o do colega
que você é feminista e não sabe! Quer ver? homem. Feminismo tem a ver com libertação que nem
sempre é fácil.
Você acha certo o homem ganhar mais que a mulher?
Você acha certo uma mulher cuidar sozinha de uma Percebe, agora, a razão de Pombagira ser tão
criança? Você acha certo homens proibirem mulheres incompreendida e sua imagem ser tão deturpada?
de trabalhar ou estudar? Você acha certo mulheres Pombagira é o espírito-mulher da denúncia. São as
serem assediadas? rainhas das encruzilhadas que reforçam que é preciso
discutir, dentro e fora dos nossos terreiros, sobre
Tenho certeza absoluta que todas as suas respostas gênero, classe, raça e sexualidade, para que possamos
foram “não” e é importante dizer que todas essas lutas viver em espaços mais justos e igualitários. Só assim
foram travadas por mulheres feministas que vieram conseguiremos traçar os rumos da nossa própria
antes de nós, portanto já carregamos o ideal feminista. história, só assim nos permitiremos voltar a sonhar.
Ser feminista é lutar por igualdade entre homens
e mulheres e dessa maneira viver a liberdade da “A gente combinamos de não morrer”, já ensinou dona
humanidade. É como ensina Marie Shear: “feminismo é Conceição Evaristo. No giro da saia, enganemos a
a ideia radical de que mulheres são gente”. morte. Que Pombagira nos ajude a viver.
14 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE ARTIGO FOI ESCRITO POR UMA AUTORA CONVIDADA PELA REVISTA KOBÁ MARÇO/ABRIL 2021 15
PONTOS
ILUSTRADOS
por:
Bruno Brunelli
METÁ-METÁS
tentar tomar o trono de seu marido com o poder de seu primeiro
filho. Porém, ao nascer Obaluayê, cheio de pústulas, ela o renegou
jogando ao mar — que felizmente foi adotado por Yemanjá.
E O EQUILÍBRIO Pedindo auxílio a Ifá, descobre que está grávida de seu segundo
DA VIDA
filho, Oxumarê, que seria ao mesmo tempo arco-íris, em seu as-
pecto masculino, e uma cobra, em seu aspecto feminino — e só
nessa forma que Oxumarê poderia ser dela. Nanã sentia grande
tristeza ao ver o arco-íris e não poder tocá-lo e que sempre que
se aproximava dele, ele desaparecia e restava somente a cobra.
Desde que o mundo é mundo, a necessidade que temos de entender como as coisas
funcionam é inerente à nossa natureza, e é a curiosidade que nos empurra para frente
e nos faz buscar respostas para inúmeras perguntas. Porém, esse mundo é muito di- Meditando em sua dor, percebe que é em seus domínios que tudo
fícil de se entender completamente e por isso temos a tendência de colocar as coisas renasce e se regenera, pois quando bate o sol no mangue formam-
em caixinhas, em conceitos, em lendas. -se arco-íris pequenos: a expressão de seu filho mais belo e pro-
movia a regeneração da vida que ali se produzia. Dessa forma, com
E isso não é ruim, sabe? Entender o que é aquele brilho no céu durante uma chuva ou o porquê aquela bola brilhante que fica no céu vontade de reparar seus erros, pediu perdão ao seu primeiro filho.
à noite muda de forma, entender que esse bicho tem perna e aquele não, ou até que você tem pinto e ela tem vagina. E com o tempo
fomos descobrindo as respostas dessa forma...
A questão é entender que, assim como tudo muda, as respostas também mudam, e as perguntas também. Manter um conceito fecha-
do e imutável vai contra a natureza, gerando desde debates infundados até violência física. Nada é cravado em pedra, nada é preto no
branco, mas sim um graaaaande arco-íris! E como já deve ter percebido pelo tema desta edição, gênero e sexualidade são um desses Com ajuda de Oxumarê, Nanã restaurou a saúde
conceitos tabus. de Obaluaye, fazendo com que todo seu poder
viesse assim à tona. Perdoando sua mãe, os dois
Os iorubás e fons, porém, tinham uma ideia bem lúcida de como funcionava assumiram o reino dos mortos, onde tudo se
essa questão. Entendiam que gênero e sexualidade não precisavam “se con- regenera por meio de seus poderes, juntamente
versar”, e que apesar da questão fisiológica reprodutiva, nós somos feitos por com Oxumarê, que também a perdoou e assim
meio de potencialidades. Existem os arobós (masculinos), as iabás (femininas), também se tornou a ponte entre os dois
e os metá-métas (híbridos). Mais que sexualidade, os metá-metás (ou “dans” mundos, a força regeneradora e o
para os fons) unificam duas ou mais potencialidades, que pode ser desde o gê- equilíbrio primordial entre Temos os pontos cantados, pontos
nero em si até unindo os reinos animal-mineral-vegetal, fazendo com que eles os polos. riscados e agora temos Pontos Ilustrados!
sejam “a cola” que unifica os diversos planos, a veia da vida que movimenta, o Criado pelo designer, ilustrador e umbandista Bruno
equilíbrio primordial. Brunelli, a ideia do projeto é interpretar os pontos
cantados, rezas e lendas em forma de quadrinhos,
Os mais conhecidos dessa “caixinha” são Ossain, Logun-Edé e Oxumarê, sendo ajudando assim a expandir cada vez mais as
esse último o mais conhecido por outras sociedades subsaarianas por ser a palavras dos orixás e seus guias. Veja
cobra arco-íris fundamental da criação, a ligação entre o Orum e o Ayê. Muitas mais em @pontosilustrados.
lendas contam essa história, e vamos ilustrar a mais famosa aqui para vocês.
BABA
RESPONDE
Babalawô Ivanir dos Santos
por:
CAMINHOS
ABERTOS
O professor doutor Babalawô Ivanir dos Santos é coordenador de área de pesquisa no Laboratório de História
das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ), membro da Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e conselheiro de estratégia do Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas (CEAP). Em 2019, recebeu um prêmio do Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos
pela sua atuação na luta contra a intolerância às religiões de matrizes africanas no Brasil. Em toda edição, o
professor elucida dúvidas sobre Candomblé e religiosidade de matriz africana.
KOBÁ | Qual é a relação de Ogum com Oxóssi e Exu? KOBÁ | O que o senhor poderia falar sobre o culto a Ogum em terras
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Bom, a relação entre Ogum e Oxóssi é iorubás?
porque ambos estão ligados à caça. No Brasil, popularmente Oxossi é BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | O culto a Ogum é muito popular em toda
mais ligado à caça, mas acontece que quem faz os instrumentos para a iorubalândia! Tanto que na Nigéria tem o estado de Ogum, mas o culto
a caça é Ogum. E por isso que na Nigéria ele é cultuado também pelos a esse orixá não é restrito apenas ao estado que leva o seu nome. Ogbo-
caçadores. E como Ogum também abre caminho, ele tem proximidade mosho é uma cidade nigeriana onde o culto a Ogum é muito forte, assim
com Exu. E é por isso que os três são considerados irmãos e, se tem uma como é muito comum se ter um assentamento para o orixá nas casas e
oferenda, ela é dada aos três juntos. templos, porque é a cidade onde Ogum renasceu.
KOBÁ | Por que Ogum é associado às guerras? KOBÁ | Qual é a relação entre Ogum e a devoção católica por São Jorge?
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Ele é associado à guerra porque é BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Bom, primeiro precisamos lembrar que
ele quem faz os instrumentos e as ferramentas de guerra e para o culto a Ogum é muito mais antigo do que o culto a São Jorge! Mas
a guerra. Ele é ferreiro! Ele é considerado o orixá ligado à tec- devido ao sincretismo e às perseguições aos cultos dos orixás, principal-
nologia, pois não tem nada que se faça nessa área sem a mente na Bahia e Rio de Janeiro, era muito comum ter manifestações em
utilização do ferro ou com a extração do ferro. que se dizia que estavam comemorando o dia santo católico, mas na ver-
dade era uma reverência a Ogum. E no Brasil, a devoção e essa relação
entre Ogum e São Jorge vem das construções religiosas umbandistas.
18 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER MARÇO/ABRIL 2021 19
NA VERDADE, A FEIJOADA NÃO É UMA
COMIDA ESPECÍFICA PARA OGUM. MAS O
FEIJÃO É! NA NIGÉRIA, POR EXEMPLO, SE
FAZ OFERENDA COM FEIJÃO FRADINHO
PARA OGUM, SE DÁ INHAME PARA OGUM.
- Babalawô Ivanir dos Santos
KOBÁ | E a tradicional feijoada? Por que ficou tão atrelada cria são instrumentos para o trabalho. Seja na agricultura,
a Ogum? seja na tecnologia. E também as demandas de guerra pois
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Na verdade, a feijoada não Ogum está ligado às questões vitais de todos os seres hu-
é uma comida específica para Ogum. Mas o feijão é! Na manos.
Nigéria, por exemplo, se faz oferenda com feijão fradinho
para Ogum, se dá inhame para Ogum. Aqui no Brasil se po- KOBÁ | De que forma a energia de Ogum contribui na luta
pularizou a feijoada por conta das transformações sociais contra as demandas que se apresentam no nosso dia a dia?
dos processos da escravidão, mas o alimento mais ligado BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Ele é quem abre os ca-
a Ogum é o inhame. minhos! Ele que está conosco diante das nossas batalhas
cotidianas.
KOBÁ | Um dos pontos de força relacionados a Ogum é a
estrada. Por isso, ele acaba dividindo o domínio das ruas KOBÁ |Qual é a influência deste orixá na vida daqueles que
com Exu? são regidos por ele?
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Na verdade, toda estrada BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Acredito que na vida de
pode ter um ponto de encontro que é a encruzilhada. A es- todas as pessoas, independentemente de serem ou não re-
trada é de Ogum e a encruzilhada é de Exu. E toda estrada gidas por ele. Infelizmente, as pessoas têm o costume de
vai ter uma encruzilhada, seja ela de três ou de quatro. E é associar muito o arquétipo do orixá ao ser humano. Mas na
por isso que estão sempre caminhando juntos. E aí você cultura ioruba Ogum é Ogum, uma energia muito forte, e o
tem o caminho e o destino. ser humano é o ser humano. Claro que quando regido por
essa energia a pessoa pode ter momentos mais aguerridos
KOBÁ | Por que ou como o culto de Ogum se popularizou na vida, mas como a vida é equilíbrio entre a água, o fogo,
tanto no Brasil? a terra e o ar, Ogum também é assim. Ogum é Ogum e o ser
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Se popularizou no Brasil humano é o ser humano.
porque está ligado ao trabalho, as ferramentas que Ogum
20 MARÇO/ABRIL 2021
Para esta edição, a equipe KOBÁ viajou até São Paulo para conversar com a
artista MC Tha e entender melhor sua ligação com a Umbanda. Esse encontro
permitiu que a cantora apresentasse a sua espiritualidade de uma forma intensa
e admirável — o que foi registrado pelas lentes de Marco Alcântara, fotógrafo da
revista, que produziu e dirigiu o ensaio presente nas próximas páginas. A sessão
de fotos teve como principal objetivo ressaltar o empoderamento feminino que
MC Tha representa para as mulheres de terreiro e, principalmente, a força que
essa filha de Iansã deposita em suas atitudes.
Fotos por:
Marco Alcântara
CANTA, ENCANTA E
funk, de ouvir funk, de andar com as pessoas de funk, mas eu não me sentia
confortável e sempre caía numa caixa das pessoas me rotulando. ‘Ah, a
sua voz não funciona, é muito suave. Você precisa ser assim, você precisa
aprender a dançar.’ Eu me sentia muito desconfortável — conta a artista.
VENCE A GUERRA
Contudo, o momento de autoconhecimento e as composições inspiradas
no crescimento pessoal tornaram o disco um divisor de águas na vida
musical e particular da cantora. Após uma breve pausa na carreira musical
Naíse Domingues
para se dedicar ao trabalho e aos estudos, uma Thaís mais madura e segura
por: de si encontrou espaço para se espalhar pelas letras e melodias do “Rito de
Passá”.
feminismo e a carreira que, no fundo desse poço, conseguiu se levantar, se empoderar, se tornar
uma pessoa mais forte, mais blindada — conta a cantora, que retornava
para a música após o período de afastamento: — Tudo isso foi muito
natural. Realmente foi um grande esforço, muita coisa vivida, muita lágrima
À primeira vista, a mistura pode causar certo estranhamento: alguém que se autodenomina chorada para eu ter essas músicas aqui, para eu chegar e ter esse álbum. Eu
MC e canta sobre espiritualidade. Um segundo olhar, com o ouvido mais atento, já deixa acreditava que ele seria uma grande passagem na minha vida. E realmente
explícito o porquê, no fim das contas, esta mistura é tão natural. Pelo menos, foi assim que foi.
aconteceu para Thaís da Silva, ou apenas MC Tha, enquanto buscava se encontrar
na carreira artística. A funkeira do bairro Cidade Tiradentes, em São Paulo, ainda Por vezes, a mulher imponente que não tem medo de expor suas
tentava se encaixar nos moldes da indústria do estilo musical quando entrou fragilidades na música se distancia da menina tímida, que se via como
para a Umbanda. E foi desse reencontro que nasceu o seu primeiro álbum uma “criança estranha”, e ainda não consegue se aceitar plenamente como
de estúdio, ‘Rito de Passá’, lançado em 2019. cantora e compositora. O processo de traçar a existência da MC Tha foi
profundamente ligado ao momento em que Thaís deu início ao contato
Lançamento este, inclusive, que vai de encontro aos moldes geralmente com a própria espiritualidade. A segurança para cantar a própria história
seguidos por cantores de funk, que costumam lançar singles e — preocupação de alguém que nunca quis “cantar por cantar” — veio do
EPs no lugar de álbuns completos. Porém, a carreira da MC contato com o terreiro, e, consequentemente, com a ancestralidade.
Tha nunca seguiu padrões: em um momento, sensual de
menos para ser funkeira, em outro, funkeira demais para — Frequentar o terreiro me deu muito mais confiança para falar sobre mim,
ser MPB. sobre os meus sentimentos, sobre as coisas que eu vivo. Eu acho que
me deu esse pé no chão para eu conseguir me conhecer e, através desse
autoconhecimento, botar pra fora e ajudar outras pessoas.
— No meu terreiro, eu sou muito quieta, porque lá tem muita gente e tem
essa coisa de eu ser conhecida, de fazer shows. Eu tenho medo das pessoas
acharem que eu estou usando a religião para a música, para ganhar dinheiro
com música. Então, dentro do terreiro eu sou muito rígida comigo mesma.
Tanto que o povo vive pedindo o endereço do terreiro e eu nunca dou, eu falo
pro meu pai de santo: ‘Pai, se eu passar o endereço, isso aqui vai virar sobre
a MC Tha, não será sobre alguém que vem aqui e precisa de cura, de algum
auxílio’ — ponderou.
FEMININO
Terra-Mãe, que é o Candomblé. A Mãe Aninha do Ilê Axé de resistência feminina no nosso país, protagonizado
Opô Afonjá, por exemplo, organizou o corpo dos doze obás pelas mulheres negras, descendentes africanas, rainhas
de Xangô, responsáveis pela condução civil do terreiro, marginalizadas na nossa sociedade. Sendo assim,
mas instituiu que a chefia do terreiro deveria passar espaços de ressignificação social, onde se combate o
sempre pela linha feminina. poder falocêntrico e as práticas opressoras.
DOMayara
AXÉ Gomes
Artigo escrito por:
48 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE ARTIGO FOI ESCRITO POR UMA AUTORA CONVIDADA PELA REVISTA KOBÁ
NOVA COLEÇÃO NO
Variedade
Óleos, manteigas hidratantes, banhos de ervas e amuletos priedades de uso dos sabonetes, com embasamentos em
EMPREENDEDORISMO
são alguns dos diversos produtos que estão disponíveis na conhecimentos transmitidos por guias espirituais, médiuns
loja. Segundo Flávio, houve uma potencialização de técni- e muito estudo. Carolina reitera:
cas ancestrais, baseadas em propriedades da natureza e
nas forças da Bahia, resgatando conhecimentos científicos, — Se nós sentimos a necessidade de nos conectarmos
DE TERREIRO
ancestrais, regionais e espirituais. Fórmulas são desenvol- mais frequentemente com nossos guias espirituais e ori-
vidas combinando óleos e manteigas vegetais que cuidam xás, imaginamos que outras pessoas também sentem. E se
da pele. As ervas utilizadas transmitem propriedades tera- obstáculos são criados no cotidiano impedindo esse pro-
Eduardo Bartkevihi
pêuticas à pele e, alguns sabonetes, carregam elementos cesso de conexão, nós criamos esse instrumento de cone-
por: naturais – água de cachoeira e água do mar – e pigmentos xão espiritual que fortalece ainda mais nossa fé.
naturais – guaraná, açaí e açafrão – responsáveis por in- Além de características como cores e elementos, as ervas
tensificar a vibração e por colorir os produtos, respectiva- são importantes para associar e relacionar os sabonetes
mente. aos orixás. Flávio conta que os estudos das ervas foram
fundamentais para a produção dos produtos e, baseado
Lançada no dia de Oxóssi, a inspiração ocorreu através de O lançamento dos sabonetes dos orixás, por sua vez, nas obras doutrinárias de Rubens Saraceni e Adriano Ca-
intuições, estudos e com o auxílio de amigos religiosos surgiu acompanhado de uma perspectiva interes- margo, obtiveram as informações necessárias para tal. Um
sante em relação aos seus tipos de uso: normal exemplo é o sabonete artesanal Odoyá Iemanjá, composto
e espiritual. No site da ÓiaFia!, além da por pigmentos azuis, água do mar e extratos de alfazema.
venda, o casal ensina práti-
cas de consagração e A loja ÓiaFia! acredita no enorme poder da influência na so-
O uso mínimo de recursos naturais para formular os seus produtos é um ponto mais do que dife- ativação das pro- ciedade. Logo, há uma preocupação tanto em se posicionar
rencial da loja ÓiaFia!. A intenção é demonstrar a possibilidade de criar produtos em paralelo ao em relação aos padrões estabelecidos quanto em propor-
consumo consciente da natureza, transmitindo energias positivas, alegria e cuidado com o cliente. cionar ótimas sensações aos seus clientes.
Feitos a partir de óleos vegetais, os sabonetes são ricos em glicerina e contém diversas proprieda-
des que mantém a oleosidade natural, limpam e hidratam a pele. — É começar por dentro da gente, tendo tempo para nos
conhecermos, nos amarmos e, ao longo da jornada, irmos
Umbandistas, Carolina Ramos e Flávio Augusto nasceram em São Paulo e trilharam cami- ampliando o alcance dessa reflexão para os outros e para a
nhos distintos na vida. Ela é professora de Educação Física e mestre em Educação. Ele sociedade. Porque o posicionamento que temos e defende-
é químico, biólogo e doutor em Biotecnologia. Apesar das coincidências – amigos mos é para modificar o mundo — reitera Carolina, concluin-
em comum e formações acadêmicas na mesma universidade –, se conheceram do: — Essas práticas contribuem para que uma rede seja
apenas no ano de 2017, em Salvador. A idealização da marca surgiu a partir estabelecida e que mais pessoas se sintam transbordadas
de uma problemática bastante presente nos dias atuais: o desemprego. de amor, felicidade e carinho.
SOCIEDADE
majoritariamente reservadas aos meninos brancos e, aos negros, cabe a
realização da “profecia autorealizável” do fracasso.
por:
Obalera O orixá Ogum é cultuado como o responsável por inventar a forja dos
metais, desenvolver a metalurgia - ciência que estuda e gerencia os metais.
Portanto, é aquele que criou as técnicas de extração, fabricação, fundição,
enfim, aquele que tem o controle sobre o ferro. Mais ainda, Ogum é um orixá
conhecido como grande agricultor, grande caçador e o grande guerreiro, pois
foi o responsável em criar e ensinar os usos das ferramentas que permitiram
a humanidade a desenvolver a agricultura, a caça e a própria capacidade para
guerrear. Não é por acaso que, contemporaneamente, Ogum é considerado
MENINOS NEGROS
o patrono do avanço tecnológico. Lembro aqui, do itan em que Ogum cria
ferramentas para que o inhame fosse plantado em maior escala nas terras
de Oxoguiã, acabando assim com a fome que abatia Ejigbô.
E A POTÊNCIA Ogum é aquele que vai na frente (asiwaju), e ele o faz também a partir da
sua capacidade de pensar, criar, pesquisar, estudar, isto é, sua capacidade
REVOLUCIONÁRIA
de fazer ciência. O próprio fato dele ser temido por seus inimigos estaria
relacionado ao controle sobre como manusear o ferro. Sim, Ogum é o
guerreiro que nos impulsiona a lutar, a enfrentar nossas batalhas, mas Ogum
DE OGUM
também é um grande intelectual que assume a responsabilidade dada por
Olodumare e abre os caminhos com sua inteligência e capacidade de criar
ferramentas capazes de melhorar a vida de sua comunidade.
52 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER MARÇO/ABRIL 2021 53
O TERREIRO
Riara Nogueira, juremeira e filha
de Oxum (Foto: André Valença)
ÉGabriel
DELXS
por:
Sorrentino
Aos 14 anos, auge da adolescência, eu já me conhecia. Entretanto, reconhecendo o espaço afrorreligioso como
Internamente, mas conhecia. Eu sabia que era um ho- um local de acolhimento para a população LGBT+, Mika
mem gay — mas ninguém mais poderia saber. Era do- Oliveira, dirigente da Tenda de Umbanda Netos da Jure-
loroso guardar isso. Parecia que a qualquer momento ma, na Zona Leste de São Paulo, e integrante do Coletivo
minha garganta poderia soltar o que eu verdadeiramente Navalha, afirma que já passou por situações ruins por
sentia. pertencer à comunidade e estar inserida na rotina de de
terreiro.
Contudo, foi em uma gira de Exu, no terreiro de Omolokô
onde fui criado, em Itaboraí, na Região Metropolitana do — Embora encontremos mais diálogos para falar aberta-
Rio, onde pela primeira vez me senti aceito sendo quem mente sobre LGBTs, ainda tem lugares onde não há esse
realmente sou. Até então eu estava triste, mas só por espaço. É aquele ditado de Exu: ‘Aquilo que te acolhe, às
dentro. Por fora, ainda era o mesmo filho de Oxóssi feliz. vezes, pode ser o que te afasta’. Ele te acolhe em dado
Mas ela me conhecia como ninguém. momento como um corpo transitório dentro daquele ter-
reiro, mas ele te anula do que o seu corpo pode ser, do
Dona Maria Mulambo da Estrada, pombogira de uma que a sua potência pode ser — argumenta a umbandista,
irmã de santo filha de Xangô, foi a primeira pessoa — mo- que acrescenta: — Em algumas situações, o local acaba
radora Orum ou do Aiê — que olhou para mim e me fez anulando o indivíduo como pessoa pertencente à comu-
confrontar em palavras o que eu realmente sentia. Não nidade LGBT.
de uma forma invasiva — mas, sim, profunda e direta.
De acordo com Mika, em determinados momentos, você
— Você é homem, ama outro homem e isso não te faz pode estar no terreiro, mas não pode expressar o que de
menos homem. Isso te faz humano. Amar é o que im- fato você é. Portanto, com essa dualidade, ela afirma: o
porta — ela disse, sabendo de todo o sofrimento que eu centro religioso deve ser um espaço de acolhimento mas,
estava guardando. Ali, entendi também o que o terreiro em muitas vezes, acaba não sendo.
realmente significa para mim: acolhimento.
— Em outros terreiros, quando me deparo com en- A modelo e maquiadora Riara Nogueira também acredita
tidades falando com as pessoas, o médium está do que o centro afrorreligioso seja um local de acolhimen-
outro lado do salão e ela grita: “Ou, desinvertido. Ou to para a comunidade LGBT+. Para ela, o pensamento
invertida”, eu nunca na minha vida vi uma entidade sobre a transgeneridade, principalmente em terreiros de
se referir a uma pessoa hétero assim, nesse tom. Candomblé, está começando a se desconstruir, mas re-
Isso é um caso de homofobia. A gente não pode ro- vela que algumas conhecidas já passaram por situações
mantizar, mesmo que venha da entidade — denun- constrangedoras dentro de barracões.
cia Mika, afirmando que é preciso que haja espaço
de diálogo para que seja dito, de fato, que se trata de — Querendo ou não, isso afasta a gente do nosso lugar,
um caso de homofobia. onde a gente vive o nosso sagrado. Às vezes até por não
nos sentirmos à vontade. Apesar disso, vejo que isso vem
Hoje, usar saia não é mais uma questão para a di- se desconstruindo. O terreiro que frequento e a minha
rigente paulista. Contudo, já foi. De acordo com ela, mãe, por exemplo, são bem tranquilos, até porque eu ia
impor que alguém use determinada vestimenta afe- para lá antes da minha transição e, agora, ela tem todo
ta alguns pontos os quais as pessoas não fazem o cuidado em relação a tudo, aos pronomes — conta a Preto Teo, produ-
ideia. E Mika afirma que isso é uma violência. juremeira de João Pessoa, na Paraíba. tor cultural, poeta,
barbeiro e umbandista
(Foto: Acervo pessoal)
— Inclusive, esse tipo de violência eu já sofri. Eu O umbandista Preto Teo acredita que, inclusive, o terreiro
sempre gostei muito de tocar atabaque. Além de também pode ser um local de resistência da população
dirigir o terreiro, eu gosto de tocar atabaque. E aí, LGBT, principalmente a partir de estudos dos panteões
as pessoas já começam a falar: “Nossa, você quer dos orixás.
ocupar um cargo que é para homens”. Eu não quero
ocupar cargo de nada. Eu quero tocar e eu vou to- — Alguns itans falam sobre o relacionamento de Iansã — Mas é possível e isso é muito louco. Como você de-
car. E ponto. Eu não estou pedindo permissão para com Oxum, de Oxum com Obá. Na Umbanda e no Can- fende uma ideologia que é liberal, digamos assim, que
nada. A gente encontra sempre esses lugares de domblé, por exemplo, é possível fazer casamentos LGBTs, fomenta e nutre o poder estrutural da branquitude? Como
embate, mas tem que confrontar, porque com pas- apadrinhar as pessoas. E a gente quer isso — diz. você dialoga nas duas coisas ao mesmo tempo? — in-
sividade já vi que não caminha — afirma. daga, acrescentando: — Em São Paulo, há um terreiro de
Além de ser um território de resistência, Mika Oliveira en- Candomblé dirigido por uma bicha preta que deu essa le-
Para o produtor cultural, poeta e barbeiro paulis- cara os templos de Umbanda, Candomblé e outras religi- tra: o terreiro é um ponto de encontro de resistência con-
ta Preto Teo, o terreiro é um dos locais com maior ões de matrizes africanas como um lugares de existência tra opressão. E para ele continuar sendo esse ambiente
potencial de receptividade e é por isso que a maior da população. De acordo com ela, se ocupamos esse es- de resistência, precisa ter diálogo, as coisas precisam
parte das pessoas LGBTs que frequentam alguma paço, estamos existindo. estar alinhadas.
religião são de fés de matrizes africanas. Contudo,
para ele, há sempre uma questão acerca da com- — No mesmo confronto em que a gente resiste para es-
preensão da zeladoria do terreiro em respeito des- tar ali, para se fazer valer as nossas vontades e nossas
ses corpos. falas, a gente está existindo também para ocupar aquele Transgeneridade e terreiro
espaço. Então, acredito que sim, por mais que alguns lu-
— Tem muitos casos de: “Ah, tudo bem. Você vai fi- gares não queiram as nossas presenças, esse é o resistir. Ainda hoje, a transgeneridade enfrenta uma gama de ta-
car aqui, mas da porta do terreiro para dentro, você A gente vai estar lá, querendo ou não querendo — afirma bus, preconceitos e violências nas sociedades ocidentais,
usa vestimenta masculina. Da porta do terreiro para a umbandista. que determinaram não apenas um papel, mas um corpo
fora, você pode ser travesti”. Isso não é acolhimento. específico para pertencer aos gêneros masculino e femi-
Portanto, tem essa questão de a gente ser acolhido De acordo com Preto Teo, um dos motivos pelos quais se nino. Situações onde recusam e afastam pessoas trans
com todas essas complexidades. Sim, é um ambien- afastou do primeiro terreiro onde trabalhou foram os ideais são dirigidas por uma cisnormatividade, isto é, uma lógi-
te acolhedor, mas isso não significa que esse aco- políticos de quem estava à frente da casa. Segundo suas ca social que naturaliza e reforça a experiência cis como
lhimento não precisa ser refletido, compreendido — palavras, “era muito louco o fato daquilo ser possível”. a única correta.
argumenta.
— O lugar do corpo no terreiro e em suas dinâmicas ritu- Aos 14 anos de idade, Preto Teo já havia entendido que era
ais; o “direito” à modificação corporal e seus impactos na LGBT+. Por conta do cristianismo, onde cresceu por influ-
rotina da pessoa que fez esta modificação, durante sua ência da mãe, o artista sentia culpa por ser quem é e aca-
presença no terreiro; a questão das vestimentas no coti- bou levando isso para dentro do terreiro quando começou
diano do terreiro; e, por fim, quem pode ocupar determina- a frequentar. Segundo ele, tinha medo de ser descoberto
dos cargos ou funções dentro do barracão — lista o pro- mas, mesmo assim, se abriu para a vivência umbandista.
fessor, explicando que essas dimensões estão vinculadas
a pressuposições, nem sempre são debatidas o suficiente, — Um dia, decidi ir a uma festa de erê. Era um domingo
sobre os modos como as tradições africanas presentes e eu estava começando a viver minha “vida de rolê”. Fui
no terreiro pensam os fenômenos relativos a cada dessas à Parada LGBT+ de Osasco, que era cedo, já que a festa
esferas. de erê era mais tarde. A caminho da festa, comecei a ficar
com muito arrependimento de ter ido à Parada. Arrepen-
Riara Nogueira, portanto, afirma: dimento de ser eu mesmo. Fiquei com o coração muito
pesado. A cada passo que eu dava para o terreiro, mais
nervoso eu ficava e pensava: “Ai, meu Deus. Eles sabem
o que eu estou fazendo. O que eu passei o dia fazendo.
Quando eu chegar lá, eu vou tomar um esporro — con-
ta Teo, acrescentando que, ao pisar no terreiro, já sentiu
uma forte vontade de chorar — Bati o olho em um erê que
estava incorporado e, enquanto eu caminhava na direção
dele, comecei a chorar muito. Ele me pediu benção e eu
não conseguia responder. Ele segurou minha mão, olhou
dentro do meu olho e falou: “Está tudo bem, aqui a gente
vibra amor. E está tudo bem ser quem você é. Não tem
problema nenhum. Você não tem motivo para chorar”, e
eu não tinha aberto a boca, eu só tinha chorado. Ele sabia
exatamente o que era — conclui.
ARUANDA
com sentimentos e energias, como não compreenderíamos o que toca no outro? O que
o outro deseja ser?
BARREIRAS DA
As religiões de matriz africana são (ou devem ser) aquelas que acolhem principalmente
os menos favorecidos. Os rejeitados. Os não vistos. Dentro da Casa de Axé, homossexual
não é aberração: é humano. Mulher trans não é “coisa de outro mundo”: é humana. É
digno de trazer à terra a força do orixá, de uma família fazer parte e por amor ao seu
SOCIEDADE:
terreiro trabalhar.
É para isso que a religião existe: para amar, acolher e cuidar. Onde quer e quem quer que
seja. O descalço dos pés e o branco da roupa nos trazem a igualdade e a sensação de
O GÊNERO NA
unanimidade. Somos uma banda. (Um)banda. Uma única banda.
Que prevaleça acima de tudo, o amor, o respeito e a fé. A fé que nos guia!
Sim, a sociedade é machista. Polêmico, mas vamos lá. Acredito que Isso realmente é triste!
Infelizmente, essa situação a incorporação de qualquer espírito Misturar o interesse pessoal
existe até mesmo dentro das não tenha que ser atrelada à orientação com a espiritualidade. Somos
religiões. Estamos em 2021, sexual. O espírito é luz, por que vai fazer livres para fazermos nossas
mas, ainda assim, carregamos o distinção de gênero? Por que precisa escolhas. O espírito nos
peso do que foi pregado durante existir uma diferença para quem é escolhe pelo nosso caráter
muitos anos. trans? Sendo assim, mulheres trans e coração. Não precisamos
deveriam incorporar muito mais espíritos provar nada a ninguém! A
masculinos? Perante a espiritualidade, “marmotagem” nada mais é do
somos todos iguais, algo que precisamos que a vaidade em ação.
aprender a praticar até mesmo quando
estamos tentando fugir do preconceito. “O lar e o lugar de cada um, o
@catarinazanata @cihmantovani
ARQUÉTIPOS NAS
choeira, no Recôncavo Baiano, as divindades influenciam direta-
mente na vida dos adeptos. Ele acredita que há uma determinada
ligação com a ancestralidade:
COMUNIDADES
— Nós não somos escolhidos aleatoriamente, somos descen-
dentes diretos do orixá, vodun ou inquice que representamos na
DE TERREIRO
nossa passagem aqui na terra.
Eduardo Bartkevihi
cultura ocidental são alguns dos responsáveis pelas atitudes
por: dos religiosos de se utilizarem dessas características para jus-
tificarem os seus atos considerados negativos. Associações
como filhos de Ogum serem briguentos e filhos de Oxóssi serem
conquistadores são exemplos de transferência daquilo que é do
indivíduo para o astral, demonstrando uma certa superficialidade
Características reforçadas têm o poder dos religiosos em relação às trocas estabelecidas.
de ecoar negativamente em relações — Temos a energia do orixá que nos rege, mas temos outras
interpessoais, contribuindo em energias que nos acompanham, que nos complementam e nos
equilibram. Temos o orí. Não podemos cair nessa de reduzir os
problemáticas existentes na sociedade orixás aos arquétipos, porque se forma imagem estereotipada de
cada um deles. Devemos aprender com a experiência de nossos
orixás e procurar controlar algumas características de nossa
personalidade. Você não deve ser como o arquétipo, mas deve
As influências das divindades – denominadas orixás, inquices e vo- aprender a lidar consigo mesmo, estar atento — explica Edwyn
duns – são muito presentes na vida dos adeptos das religiões de Gomes, candomblecista de Nação Jêje-Nagô, iaô do vodun Agué,
matrizes africanas. A partir da regência e dos seus respectivos ar- professor de História e artista.
quétipos, são estabelecidos conceitos que se associam aos indiví-
duos. Entretanto, ao mesmo tempo que essa prática contribui posi- Pai David ressalta que a atitude de enxergar os conhecimentos
tivamente na relação com o sagrado, ela tem o poder de colaborar ancestrais pela ótica da católico, sob um viés ocidental, pode ser
com o desenvolvimento de aspectos negativos, como a limitação aos considerada um desvio identitário:
estereótipos.
— Quando falamos de religiões afro-brasileiras, estamos falando
Pai David Dias, sacerdote e pai de santo do Templo Pai João de Ango- de um tipo de aprendizado que, na maioria das vezes, é transmi-
la, explicita que os orixás são aptos e portadores de uma habilidade: tido em um formato circular, pela oralidade. Quando falamos de
conceder uma nova identidade ao ser. Para ele, os religiosos desen- oralidade, esbarramos num valor que não é tão presente nas co-
volvem diferentes identificações ao estabelecerem contato a partir munidades urbanizadas da metrópole. Logo, isso contribui para
de um processo de relacionamento particular e próximo, como uma o conhecimento das divindades de um modo superficial — conta
iniciação ou uma conversão religiosa. o umbandista, citando também a concepção de projeção, teoria
estudada por Anna Freud. Segundo a psicanalista, quando você
— Então, antes eu era o David, agora eu me torno o próprio Ogum. tem um distúrbio ético ou patológico, existe a possibilidade de
Porque eu observo qual é a perspectiva daquele que me observa e me projeção e atribuição desse transtorno ao próximo. Nesse caso,
endossa como filho a todo momento — explica o umbandista. às divindades.
64 MARÇO/ABRIL 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO MARÇO/ABRIL 2021 65
Edwyn Gomes, candom-
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO
blecista de um terreiro
de Nação Jêje-Nagô.
(Foto: Acervo pessoal)
Construções e desconstruções
Uma pessoa, ao associar algumas características de Ogum – estra-
tegista, forte e corajoso – às suas atitudes agressivas com o pró-
ximo, utiliza determinada característica do ser para justificar seu
comportamento particular. Essa prática pode contribuir para refor-
çar questões negativas como a masculinidade reforçada, por exem-
plo. Pode-se compreender, inclusive, essas atitudes como um pro-
blema existente na sociedade que é incorporado dentro da religião.
Para Pai David, ainda hoje existe um discurso que é retroalimentado por uma
opressão entre os homens. Essa visão deturpada evidencia um distúrbio comporta-
mental de homens dentro e fora dos terreiros, demonstrando que os homens não estão Pai David Dias, sacerdote do
dispostos a olharem entre si e perceberem as suas dores, dialogarem sobre os seus medos: Templo Pai João de Angola.
(Foto: Davi Nunes/Aruanda
— Mesmo que os itans contem, o homem nunca vai dizer que Ogum se arrependeu. E Ogum se Studios | @davinunes_)
A obtenção de conhecimento por parte das
arrependeu, morreu de remorso. Oxóssi pediu ajuda para sua própria mãe. Os homens não têm
comunidades de terreiros é extremamente
coragem de pedir ajuda para a própria mãe, não têm coragem de pedir ajuda nem para os outros
necessária nessa circunstância. Além de
homens — argumenta o sacerdote.
compreender os significados dessas for-
ças, descobrir de que forma elas atuam é
O ato de desvincular determinadas atitudes da influência das divindades é um processo importante no reconheci-
um processo importante na trajetória den-
mento do indivíduo como pessoa adepta de religiões afro-brasileiras. É necessário também reafirmar uma ideologia
tro das religiões de matrizes africanas. Por
igualitária, menos exclusiva e preconceituosa tanto em um âmbito geral, como sociedade, quanto em um âmbito
exemplo, a partir do estudo de orikis, itans
particular, dentro dos terreiros.
e poemas, encontra-se aprendizados refe-
Para isso, a instrução e o diálogo por parte dos líderes religiosos também são fundamentais nesses casos, uma vez
rentes às ancestralidades africanas.
que quando repetem discursos levianos, acabam por contribuir para uma visão deturpada dos ensinamentos religio-
sos. Para Pai David, além da importância de romper com os valores cristãos que conduzem a imaginar que o orixá foi
santo, é necessário promover uma reflexão:
— A gente deve olhar para essa nossa sociedade e entender que, talvez, os líderes religiosos das comunidades
de matrizes africanas sejam os maiores responsáveis por como estamos sendo aviltados, tanto os homens
quanto as mulheres.
A quebra de paradigmas ligados à cultura machista patriarcal resulta na oportunidade tanto de mulheres
quanto da comunidade LGBTQI+ de se estabelecerem nos locais que têm por direito, além de contribuir
para que os homens discutam sobre si de uma forma mais aberta e respeitosa.
— É preciso estar atento aos ensinamentos dos orixás, mas seja você, prezando pelo seu equilíbrio,
o equilíbrio do próximo e do seu ambiente — completa o professor de história Edywn, reforçando
a necessidade de compreender que determinados padrões comportamentais são dos indiví-
duos, e não das divindades.
Negrogun, filho do
Hunkpamey Ayôno
66 MARÇO/ABRIL 2021 Huntólogi, em Cachoeira, MARÇO/ABRIL 2021 67
no Recôncavo Baiano.
(Foto: Acervo pessoal)
PAPO NA ENCRUZA:
Atualmente, Douglas Rainho e Luiz Guenca são O processo de profissionalização das entrevistas e
os apresentadores responsáveis pelo conteúdo do posicionamento de forma crítica sobre os temas
UM DOS PIONEIROS NA
produzido. De um lado, dirigente da Tenda Espírita de ocorreu ao longo das transmissões. Para Douglas,
Umbanda Chão de Jorge, vivendo a Umbanda no seu as mudanças tiveram foco na postura em fazer um
dia a dia e apaixonado por magia popular, Douglas programa cada vez melhor e ligado com a demanda
procura estudar tanto a religião quanto questões do público:
PRODUÇÃO DE PODCASTS
paralelas como antropologia, sociologia e história.
Luiz, não identificado com nenhuma religião, é — Inicialmente, o tempo de duração era de uma hora,
considerado um agnóstico aberto a novas informações em média. Mas percebemos que isso não era o ideal
SOBRE MACUMBARIA
e conhecimento. e que nosso público queria mais. Já chegamos a três
horas e meia de programa, em alguns episódios. O
— A Umbanda é uma religião que vem contrapor um formato é idêntico, mas nos aprofundamos mais nos
por:
Eduardo Bartkevihi sistema vigente autoritário, eurocentrista e muito
preconceituoso que vivíamos, mesmo nos campos da
espiritualidade. Desta forma, além da valorização da
temas.
apostam na informação
existentes é de suma importância. isolamento social.
68 MARÇO/ABRIL 2021 ESTE É UM CONTEÚDO PUBLICITÁRIO PRODUZIDO ESPECIALMENTE PARA O CLIENTE MARÇO/ABRIL 2021 69
ARREDA, HIBISCO
HOMEM,
GÊNERO
Clara Nery
por:
QUE AÍ VEM
MULHER E TERREIRO
por:
Eduardo Bartkevihi
Desde pequenino nos diziam o que ser. Concedei-me a mais pura forma de falar,
No ar desde outubro do ano passado, o ‘Mulheres de — Refletir sobre o papel da mulher é importante em todas
Sempre tinha uma Damares. Que o livro a ser lido nunca vai ser entendido.
Terreiro’ teve como principal objetivo refletir o papel das as esferas da sociedade. Mas eu sempre entendi que a
Conceitos são só conceitos. Muitos tentam interpretar mas nunca chegam a lugar.
mulheres dentro das religiões de matrizes africanas. moral religiosa que predomina na sociedade é usada
Gênero, sexualidade e diversidade.
A primeira temporada do circuito de lives foi oferecida como uma forma de nos oprimir ainda mais. Discutir o
Concedei-me a mais linda poesia, que deu frutos
pela marca Curimbeiros, com apoio das lojas Eufloria que é ser mulher de terreiro é entender nosso lugar na
Cada um tem sua mágica. versos tão simples mas de uma força inexplicável.
Artesanal e Pedrinha d’Aruanda. sociedade como pessoas que não vivem sob um olhar
Agora eu faço a minha.
moralista, mas daquelas que são geradoras e têm o poder
Concedei-me o dicionário mais literal,
Dividido em quatro episódios, o programa contou com a pelos seus corpos e decisões — afirma a apresentadora
Seja gente urgente: Que daria mil e uma descrições. Mas nenhuma
presença das convidadas Mãe Taiane Macedo, dirigente Naíse Domingues.
chegaria aos seus pés.
do Centro de Umbanda Mística Oxum Apará, Renata
Pallottini, advogada e filha de Maria Padilha das Almas, A produção de cultura afrorreligiosa também foi uma
Concedei-me a mais dura bibliografia,
Ana Paula Lisboa, escritora produtora cultural, e Mãe temática trabalhada no circuito. Atualmente, mulheres
Que contaria todas as suas batalhas mas não
Flávia Pinto, Baba de Umbanda da Casa do Perdão. Os artistas atuam em diferentes áreas de cultura, como
passaria metade da sua emoção.
episódios debateram os respectivos temas: ‘Mulheres à escritoras, cantoras, desenhistas, entre outras.
frente do terreiro’, ‘Feminismos em religiões de matrizes Entrevistada no terceiro episódio da série, a escritora Ana
Concedei-me a mais pura imagem,
africanas’, ‘Afrorreligiosidade e produção de cultura’ e Paula Lisboa explica em uma de suas falas:
A mais sincera e singela homenagem
‘Matriarcado’.
Concedei-me quem eu quiser ou só um pouco
— Acho que é a forma como eu consigo viver, fazer e,
mais de nós mesmos.
de alguma forma, contribuir. Tentar chegar a esse lugar
bonito e pleno de ser uma mulher negra no mundo.
Eduardo Bartkevihi
dentro da Umbanda, seja tocando instrumentos como as mulheres foram proibidas de assumirem determinados
atabaques e agogô, ou utilizando a própria voz para entoar postos. Há quem afirme que os fundamentos precisam
por: os cânticos religiosos. ser respeitados e repassados, porém, em contrapartida,
a permissão para que elas estejam nesses lugares vem
Assumindo importantes cargos para a ritualística, elas são sendo conquistada a cada dia. De acordo com Marcelli, é
responsáveis por ditar o ritmo dos trabalhos mediúnicos, o muito importante que as mulheres assumam esse espaço,
Conquistando espaço, o número de que explica a curimbeira Rafaella de Xangô: a fim de tocar instrumentos sagrados:
mulheres que estão à frente das — As pessoas ficam vidradas na fantasia de incorporar, — A mulher é sagrada, então por que não pode tocar um
mas não pensam que, para acontecer tudo isso, precisam instrumento sagrado? — indaga.
curimbas tem crescido bastante da curimba da casa. O atabaque, quem canta, quem toca,
isso é o coração do terreiro. Sem aquilo, a gira não anda, Rafaella, inclusive, reforça o seu pensamento sobre a
caboclo não dança, baiano não dança. Poucos vêm em força das mulheres e a sua perspectiva sobre a presença
busca de trabalhar na curimba. feminina na religião:
A ligação dessas mulheres com a musicalidade fora — Eu creio que nós, mulheres, somos bem fortes para
dos terreiros desperta o interesse e a vontade de, ao aguentar toda essa responsabilidade. Se dividem com a
adentrarem nas comunidades de religiões afro-brasileiras, gente é porque nós temos capacidade, e eu acho muito
se aproximarem da dinâmica estabelecida com a música. lindo. Eu espero que mais e mais mulheres adentrem à
É o caso de Marcelli, filha de santo da Casa do Perdão, Umbanda, adentrem à curimba. Eu creio que o dom que o
terreiro em Campo Grande, no Rio de Janeiro, e participante Pai Oxalá deu pra gente é especial, nossa intuição, nosso
das aulas de atabaques realizadas no local. sexto sentido — intensifica a médium.
— Eu sempre gostei de música e de percussão. Eu tenho Para levar a religião para mais pessoas, Rafaella criou um
uma bateria, já toquei, já tive bandas. Na Umbanda, o canal na internet onde publica vídeos cantando diferentes
atabaque me chamou muita atenção. É simplesmente pontos. Ela comenta que, além de oferecer conhecimento,
paixão, eu gosto mesmo — explica a umbandista. é uma forma de combater a discriminação bastante
presente na nossa sociedade. Atualmente, o canal ‘Estrela
Ser da curimba é, também, uma forma de trabalhar com Dourada’ tem mais de 300 inscritos:
a mediunidade e contribuir positivamente à religiosidade.
Para Rafaella, os pontos são considerados preces. A partir — Eu acho legal isso de colocar na internet, eu nunca tive
deles, você compreende melhor as divindades que se vergonha. Eu gosto de mostrar que dá para ter acesso, não
apresentam nas religiões de matrizes africanas. é aquilo que as pessoas julgam e discriminam. Eu abri o
canal justamente para isso, para as pessoas enxergarem a
— Os seus estão ali. Você está se dedicando ao máximo curimba importante como estar incorporado trabalhando.
à sua fé, mostrando sua vontade de estar ali, você está
chamando as entidades de outras pessoas. Eu creio O fato é que as mulheres têm conquistado seus espaços
que isso auxilia no desenvolvimento prático e teórico — também dentro das religiões de matrizes africanas,
completa a filha de santo do Templo de Umbanda Caboclo buscando estabelecer igualdade e exercer as suas
Sete Pedreiras, na Zona Leste de São Paulo. vontades como adeptas e praticantes que são. Esse
posicionamento, entre diversos significados particulares,
A presença das mulheres em determinados cargos demonstra um ideal comum: o amor pela religião.