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ATIVIDADE SOBRE O TEXTO RELACIONADO À

LITERATURA INFORMATIVA:
CARTA DE MESTRE JOÃO FARAS (1500)
1 LEVANTAMENTO BIOGRÁFICO SOBRE O AUTOR E SUA COLABORAÇÃO PARA
A HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO NO BRASIL

No artigo entitulado O descobrimento do Brasil através dos textos: edições críticas e


comentadas, de 1969, p. 179 e 181, o historiador português Joaquim Barradas de Carvalho
revela que, embora seja célebre a carta de Mestre João a D. Manuel, escrita de Vera Cruz no
dia 1 de maio de 1500, quase nada se sabe sobre o seu autor e que diversos estudiosos
especularam a possibilidade do Mestre João, da carta, ser o Mestre João Faras que traduziu
para um castelhano aportuguesado a obra De Situ Orbis, de Pompônio Mela, já que a carta de
Mestre João é também em espanhol aportuguesado, e João Faras era igualmente, como Mestre
João, bacharel em artes e medicina, físico e cirurgião de D. Manuel e ainda por ser pouco
provável a coexistência, no mesmo reinado, de dois bacharéis em artes e medicina, físicos e
cirurgiões do soberano, com o mesmo nome próprio, ambos astrólogos e escrevendo em
espanhol, semelhanças que levam a crer que se tratam da mesma personagem (CARVALHO,
1969, p. 179 e 181).
O jornalista brasileiro Eduardo Bueno na reportagem O cientista que descobriu o
Brasil, de 2016, afirma que João Faras era natural da Galícia, Espanha, e que provavelmente
se mudou para Lisboa em 1485, sendo que em Portugal traduziu um clássico da cosmografia
antiga, o livro De Situ Orbis (Uma Descrição do Mundo), do geógrafo romano nascido na
Península Ibérica Pompônio Mela, escrito no século primeiro, em latim clássico. Bueno
confirma, nesta reportagem, que foi graças a essa tradução que foi possível relacionar Mestre
João, da carta enviada a D. Manuel, a João Faras, já que em ambas ele se apresenta como
bacharel em artes e medicina, físico (o equivalente hoje a fisiologista) e cirurgião do rei D.
Manuel (BUENO, 2016).
No artigo Mestre João de Paz e Maestre Juan Faraz: um reflexo de dois espelhos com
a mesma face, de 2009, p. 184 e 208, o historiador português Carlos Manuel Valentim
informa que a carta que mestre João Faras enviou para D. Manuel I, quando se encontrava a
bordo de um dos navios da armada comandada por Pedro Álvares Cabral, é um testemunho
bastante esclarecedor dos problemas e das expectativas técnicas e mentais com que o meio
náutico português se debatia na virada do século XV para o XVI, e há que se tomar na devida
conta os dados astronômicos, náuticos, geográficos e técnicos de alto valor presentes na carta:
as informações que mestre João dá sobre novos instrumentos de navegação – na viagem
testavam-se as “Távoas da Índia” (Kamal) –, o grau de latitude da “terra” austral (com um
erro mínimo no seu valor), as estrelas do cruzeiro do sul, a forma como se observava o Sol, o
valor do astrolábio e do quadrante, informações importantes e consideradas estratégicas por
representarem vantagem tecnológica decisiva para se alcançar com segurança os portos,
estabelecendo comunicação com os locais de comércio mais apetecidos, numa época em que
saber navegar longe das costas através dos regimentos de navegação, utilizando os astros de
forma conveniente e explorando o uso dos instrumentos náuticos de observação era tudo
quanto se pedia (VALENTIM, 2009, p. 184 e 208).
No artigo A carta do astrônomo espanhol, Mestre João, ao rei de Portugal
oficializando a Constelação do Cruz como marco do céu no Hemisfério Sul, de 2020, p. 78 e
79, Maria Carolina Stelzer Campos explica que, no hemisfério norte, a principal forma de
localização astronômica era feita pela estrela Polar, que fica bem próxima do Polo Celeste,
porém no hemisfério sul era necessário encontrar um outro referencial para se achar o Polo
Celeste, que é um ponto de extrema importância para a navegação, e quem encontrou esse
referencial foi Mestre João, que relatou pela primeira vez a constelação do Cruzeiro do Sul e
estabeleceu que essa constelação cria um rascunho do que seria o Polo Celeste, fazendo uma
comparação com a estrela do Norte, tendo sido, portanto, a carta de Mestre João altamente
importante para o desenvolvimento náutico português (CAMPOS, 2020, p. 78 e 79).
No mesmo artigo de 2020, citado no parágrafo anterior, p. 77 e 80, Maria Carolina
Stelzer Campos argumenta que A carta de Mestre João (1500) é considerada o documento que
marca o início dos estudos das estrelas do hemisfério sul e da classificação desse conjunto
como verdadeiramente uma constelação, já que seu autor foi o primeiro a separar estas
estrelas em uma nova constelação, a constelação do Cruzeiro do Sul, iniciando os estudos
astronômicos sobre o Brasil, e esta carta tornou possível que as viagens para o hemisfério sul
se tornassem mais seguras e precisas, já que o conhecimento das estrelas era um ponto crucial
para a navegação e foi a partir desta carta que se iniciaram estudos mais consistentes no
continente europeu sobre o céu do hemisfério sul, o que representou um avanço para as
próximas viagens que ocorreram (CAMPOS, 2020, p. 77 e 80).
Na reportagem O cientista que descobriu o Brasil, de 2016, Eduardo Bueno revela que
Mestre João entrou para a História naquela segunda-feira, 27 de abril de 1500, quando se
tornou o primeiro cientista a estudar o Brasil e aquele que, por meio de instrumentos,
localizou o Brasil com exatidão pela primeira vez: com seu grande astrolábio de madeira, ele
mediu a altura do sol e calculou a latitude em que se localizava a nova terra,
aproximadamente 17 graus, que se mostrou bem precisa, visto que a Baía de Cabrália fica a
exatos 16º, 21’ 22” e, graças aos cálculos realizados, concluiu que o velho e bom astrolábio,
aparelho que os lusos haviam aperfeiçoado desde o início do ciclo das grandes navegações,
quase um século antes, era superior às chamadas tábuas da Índia, instrumento de orientação
de origem árabe, mais primitivo – uma de suas missões na viagem era comparar as duas
tecnologias (BUENO, 2016).
Ainda no artigo Mestre João de Paz e Maestre Juan Faraz: um reflexo de dois
espelhos com a mesma face, de 2009, p. 206, 207 e 209, Carlos Manuel Valentim informa que
os únicos documentos que se conhecem enviados da nova terra são a carta de Pero Vaz de
Caminha e a carta de Mestre João, ambas escritas a D. Manuel, os únicos testemunhos
expedidos do Atlântico Sul que sobreviveram à corrosão do tempo, sendo que a carta de
Mestre João se destaca por informar ao rei sobre assuntos cosmográficos, num tempo em que
astrólogos como ele eram quem estavam melhor preparados para fazer observações
astronômicas, úteis à produção de novos documentos náuticos (VALETIM, 2009, p. 206, 207
e 209).

2 CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR/EMISSOR DO TEXTO

O narrador/emissor da Carta de Mestre João pode ser classificado como pessoal, pelo
uso da primeira pessoa do singular, conforme pode ser visto nos seguintes trechos: “(...)
escreverei sobre dois pontos.”; “(...) eu e o piloto do capitão-mor (...)”; “(...) eu tenho
trabalhado o que tenho podido (...)”. O narrador participa das ações narradas, podendo por
isso ser considerado um narrador personagem e o foco narrativo ser considerado de primeira
pessoa.
O emissor da carta apresenta uma importante posição sócio-político-econômico-
cultural, já que se dirige ao rei e informa ser bacharel, físico e cirurgião do monarca. Pelo
conteúdo da carta, depreende-se que possui avançados conhecimentos astronômicos e sobre o
uso de diversos instrumentos náuticos, como o astrolábio, o quadrante e as tábuas da Índia.
Assim, apresenta-se na posição de um informante do rei, a respeito de detalhes
técnicos da viagem, como a definição da localização (latitude) da nova terra: “(...) segundo as
regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17° (...)”, a descrição das
estrelas do hemisfério sul: “Somente mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do
(sul) (...) e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a
estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a da Norte e muito clara, e a estrela que está
em cima de toda a Cruz é muito pequena” e também sua avaliação de qual o melhor
instrumento náutico a ser utilizado: “Para o mar, melhor é (...) com astrolábio, que não com
quadrante nem com outro nenhum instrumento”.
A carta foi produzida no litoral brasileiro “Feita em Vera Cruz (...)”, em 01 de maio de
1500, na ocasião da chegada da frota de Cabral, em 22 de abril de 1500.

3 CARACTERIZAÇÃO DO CONTEXTO DE PRODUÇÃO DO TEXTO (TRAÇOS DA


ÉPOCA DE ELABORAÇÃO DO TEXTO, DO AUTOR)

A carta de Mestre João Faras (1500) se situa no contexto das Grandes Navegações, ou
seja, no período de Expansão Europeia dos séculos XV e XVI, com a busca de novos
mercados, procura de produtos orientais e estabelecimento de colônias, obedecendo à política
mercantilista, cabendo a Portugal a vanguarda desse processo (MONTEIRO, 2001, p. 194 e
195).
Esta carta faz parte da chamada literatura de informação, que buscava realizar a
descrição das terras encontradas além-mar com a intenção de informar os europeus a respeito
das características dessas terras, das ações realizadas nelas e, assim, orientar o processo de
exploração/colonização.
Sendo o autor da carta estudada, carta de Mestre João Faras, versado em Ciências, o
assunto que domina a missiva é o resultado das análises científicas realizadas por ele: em
primeiro lugar, a localização da nova terra; em segundo lugar, as observações astronômicas
feitas; e em terceiro lugar, a apreciação dos instrumentos náuticos utilizados.

4 CARACTERIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO/ESTRUTURAÇÃO/FORMATAÇÃO DO
TEXTO E DO SEU TIPO DE DISCURSO/GÊNERO

O gênero textual do documento analisado é carta. Esse gênero textual se


caracteriza normalmente pela escrita em primeira pessoa, que visa a um interlocutor
específico, a linguagem usada acompanhará o grau de intimidade entre o remetente e o
destinatário e apresenta os elementos característicos da estrutura da carta: local e data,
vocativo, despedida e assinatura.

O texto está estruturado em: identificação do remetente e do destinatário/vocativo logo


no início: “Senhor: O bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas
reais mãos”; com a cumprimentação adequada à solenidade de estar se dirigindo a um
monarca “beijo vossas reais mãos” e o pronome de tratamento “Vossa Alteza” para se dirigir
a ele; a repetição do vocativo “Senhor” ao longo do texto, deixando clara a sua condição de
súdito e o seu respeito ao monarca; por se tratar de um relato de viagem, apresenta datas e a
descrição das ações realizadas: “(...) ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos
em terra (...)”, bem como o relato das condições de viagem: “por causa de este navio ser
muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma” e o relato dos
possíveis problemas e dificuldades defrontados na viagem: “uma perna que tenho muito mal,
que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão”, “(...) antes me parece
ser impossível, no mar, tomar-se altura de nenhuma estrela, porque eu trabalhei muito nisso e,
por pouco que o navio balance, se erram quatro ou cinco graus, de modo que se não pode
fazer, senão em terra. E quase outro tanto digo das tábuas da Índia, que se não podem tomar
com elas senão com muitíssimo trabalho (...)”; as conclusões das experiências/investigações
realizadas: “e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro”,
“Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do sol, que não por nenhuma estrela; e melhor
com astrolábio, que não com quadrante nem com outro nenhum instrumento”; a finalização da
missiva: “Não quero alargar mais, para não importunar a Vossa Alteza (...)”; os votos ao
interlocutor: “(...) fico rogando a Nosso Senhor Jesus Cristo que a vida e estado de Vossa
Alteza acrescente como Vossa Alteza deseja”, deixando explícito o compromisso com a Igreja
Católica (é necessário lembrar, primeiro, que a carta foi redigida no contexto do período
medieval e, segundo, que João Faras era judeu convertido, daí a “dupla” importância dessa
menção à fé católica realizada); a data de redação da carta: “Feita em Vera Cruz no primeiro
de maio de 1500”; a despedida: “Do criado de Vossa Alteza e vosso leal servidor” e a
assinatura: “Johannes, artium et medicine bachalarius”.

5 COMENTÁRIO ACERCA DO SENTIDO E IMPORTÂNCIA DO TEXTO, AS RAZÕES


E FINALIDADE DA SUA PRODUÇÃO. AVALIAÇÃO DE COMO A PRODUÇÃO
DESTA OBRA (PERTENCENTE À LITERATURA INFORMATIVA) FOI OU PÔDE SER
APROVEITADA NA ELABORAÇÃO DAS NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS QUE
FAZEM UMA REVISÃO DESTE CAPÍTULO DE NOSSA HISTÓRIA, MAIS
ESPECIFICAMENTE DO PERÍODO INICIAL DA COLONIZAÇÃO.

A carta de Mestre João Faras (1500) apresenta enorme importância, por descrever
como os portugueses detinham o que de mais avançado se sabia no tempo a respeito da
ciência náutica, bem como retratar o uso que faziam dos diversos instrumentos astronômicos
da arte de navegar (PEREIRA, 1999).

Foi redigida com a finalidade de informar ao rei Dom Manuel I as descobertas


realizadas por Mestre João, como o cálculo da localização da nova terra realizado com o uso
do astrolábio, a descrição da constelação da Cruz (Cruzeiro do Sul) e a constatação da
primazia do uso do astrolábio em relação às tábuas da Índia e ao quadrante. A carta atesta a
ligação entre o Renascimento e as Grandes Navegações, na medida em que o
desenvolvimento da ciência moderna levou ao aprimoramento da observação astronômica e
ao consequente domínio das técnicas de navegação em alto mar.
A produção desta carta, pertencente à literatura informativa, certamente contribuiu na
elaboração das narrativas contemporâneas que fazem uma revisão deste capítulo de nossa
história, mais especificamente do período inicial da colonização, graças à possibilidade de
contestação e problematização desses relatos dos colonizadores, os quais foram questionados
quanto a serem a verdade histórica absoluta, na medida em que refletem a mentalidade e o
ponto de vista oficial dos conquistadores, mas não retratam o ponto de vista daqueles que
foram o objeto da colonização, os povos originários, bem como de outros envolvidos na
colonização, mas que não puderam ser ouvidos.
Desse modo, embora consistam em documentos históricos com enorme importância,
os textos da literatura informativa, e neles incluída a carta de Mestre João Faras, não abarcam
a complexidade da experiência coletiva da época, por retratarem a mentalidade dos
navegadores a serviço da Coroa, nessa movimentação em busca de novos territórios a serem
explorados. E as narrativas contemporâneas buscaram vislumbrar outros pontos de vista,
como o das mulheres, o dos/das indígenas, de degredados, entre outros ausentes dos relatos
históricos oficiais, realizando, portanto, um reexame e uma reinterpretação desse período
inicial da colonização do Brasil.
REFERÊNCIAS

BUENO, Eduardo. O cientista que descobriu o Brasil. Superinteressante. 31 out 2016.


Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/o-cientista-que-descobriu-o-brasil/. Acesso
em: 19/08/2021, às 22:00 h.

CAMPOS, Maria Carolina Stelzer. A carta do astrônomo espanhol, Mestre João, ao rei de
Portugal oficializando a Constelação do Cruz como marco do céu no Hemisfério Sul.
Diálogos sobre a Modernidade, Vitória, n. 3, p. 74-82, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/modernidade/article/view/29042. Acesso em: 20/08/2021, às 07:00
h.

CARVALHO, Joaquim Barradas de. O descobrimento do Brasil através dos textos: edições
críticas e comentadas. Revista de História, São Paulo, v. 38, n. 78, p. 179-186, 1969.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/128488/125333. Acesso
em: 19/08/2021, às 21:00 h.

MONTEIRO, Ney Marino. As grandes navegações e o descobrimento do Brasil. Escola


Superior de Guerra, Rio de Janeiro, n. 40, p. 194 e 195, 2001. Disponível em:
https://revista.esg.br/index.php/revistadaesg/article/view/530/479. Acesso em: 20/08/2021, às
08:00 h.

PEREIRA, Paulo Roberto. Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. 2ª ed.


Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1999. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000010.pdf. Acesso em: 20/08/2021, às
09:00 h.

VALENTIM, Carlos Manuel. Mestre João de Paz e Maestre Juan Faraz: um reflexo de dois
espelhos com a mesma face. Cadernos de Estudos Sefarditas, Lisboa, n. 9, p. 181-222,
2009. Disponível em: http://www.catedra-alberto-
benveniste.org/_fich/15/Carlos_Manuel_Valentim.pdf. Acesso em: 19/08/2021, às 23:00 h.

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