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Por questões de tempo, tentarei ser direto, localizando algumas questões para
reflexão para, em seguida, apontar outra agenda de investigação para o Império, inspirada
em outra matriz de pensamento. Nela, defenderei um entendimento rizomático da política
imperial e da constituição do Estado naquele contexto.
Para Mattos o tempo saquarema
se apresenta como um produto daqueles processos, isto é, como
resultado e condição da ação saquarema, porque a direção que eles
procuravam exercer, e efetivamente exerceram, impunha que os
saquaremas se constituíssem também em “produtores” ou
“controladores” do tempo.
Em lugar deste tempo único, linear e teleológico, proponho que pensemos na possibilidade
da existência de ritmos temporais distintos, simultâneos, que expressavam a coexistência de
sentidos e de temporalidades diversos, díspares e até mesmo em disputa, afinal em um
território continental, durante o século 19, é bem possível que os estímulos ou ações
emanadas a partir do Rio de Janeiro produzissem ou não efeitos diversos no Império.
Ademais, se, por exemplo, para alguns daqueles indivíduos as transformações jurídicas
desenhadas em 1850 eram vistas como novidade ou progresso para outros poderiam ser
sentidas como mais do mesmo ou, até atraso. Essas disputas quanto ao significado das
transformações e do tempo vivido se manifestam nos textos e nos discursos de então.
Assim, fica difícil defender um amplo tempo saquarema entre 1837 e 1860, por diferentes
razões, muito embora Mattos não esteja fazendo uma análise cronológica, das quais destaco
algumas: a) a presença liberal no Golpe da Marioridade, b) a existência dos liberais no
poder entre 1844 e 1848, bem como de 1853 até 1860, c) a existência de expressivas
lideranças liberais no Senado e no Conselho de Estado decidindo sobre inúmeras matérias.
Tenho a impressão que, além de transformar o tempo em espaço, Ilmar Mattos o
tome como uma ideologia. Como um ideário que expressava a hegemonia alcançada pelo
grupo saquarema a partir de 1848. A rigor, dificilmente o tempo saquarema foi de 1837 a
1860. Acredito que ele deva ser mais precisamente recortado de seus 23 anos para, no
máximo 13 anos efetivamente. Eu advogaria ademais, que em lugar de um tempo
saquarema, que se pensasse numa longa duração de hegemonias palacianas que vão de 1822
a 1848 e talvez além (quiçá a 1889), pois muitas das decisões políticas mais importantes
foram tomadas em São Cristóvão, ou seja, no interior da corte. Destaco ainda o peso da
mão de D. Pedro II, bastante sentido nas decisões de governo desde o inicial “Quero já”.
Assim, eu diria que o aulicismo venceu, pois, tanto o primeiro quanto o segundo imperador
sempre tiveram seus prediletos alternando-se nos mais altos postos e chegando até o
Senado e ou ao Conselho de Estado. Mas isso se apenas considerarmos os discursos como
produtores da realidade, o que não é o caso. As realidades vão além do discurso,
exatamente porque são também materialidade e presença.
Mattos apresenta os saquaremas – um grupo da classe senhorial composto por
plantadores fluminenses – como responsáveis pela condução do processo de construção do
Estado imperial e pela difusão da civilização, mantendo a ordem por meio da centralização
da autoridade ao reprimir “os levantes da malta urbana, por fim às lutas pela posse da terra,
combater as insurreições dos escravos (...) além de procurar conhecer a população do
Império, sua distribuição e ocupação, vigiando aqueles que eram vadios e desordeiros”
(p.267). Em suma, atribui aos liberais o monopólio exclusivo da rebeldia – assumindo o
discurso dos próprios conservadores. Mas, teria sido o processo de construção do Estado
conduzido apenas por um grupo? Não teria sido antes um trabalho gradual de construção e
reconstrução permanente, integrado por indivíduos e grupos de diferentes matizes
políticas? Acaso as grandes realizações e marcos jurídicos implementados pelos saquaremas
não haviam sido, ironicamente, propostas dos chamados liberais? Código Criminal de 1831,
criação e reforma da Guarda Nacional, Ato Adicional de 1834, Código Comercial, Lei de
Terras, Lei Eusébio de Queiroz, Reforma da Guarda Nacional? Nas fileiras do Partido
Liberal não existiram iguais defensores da ordem e da civilização? Não teriam agido em
diferentes províncias, lideranças liberais para igualmente coibir excessos?
Tais indagações nos levam a outras, que só estudos monográficos regionais podem
responder. Todos os liberais gaúchos foram farroupilhas? Todos os liberais
pernambucanos apoiaram os praieiros? Todas as lideranças liberais paulistas e mineiras
participaram das jornadas de 1842? Ou ainda, teriam todos os liberais “resistido” ao
“princípio da Ordem e à Monarquia” (p.134)? Parece-me que não.
Outro argumento importante do Tempo saquarema diz respeito ao entendimento que
seu autor dá à vida política imperial. Nas palavras dele
ao enfatizar o rodízio dos gabinetes e assim sustentar a participação dos
Liberais, aquelas obras [da historiografia] produzem uma ocultação,
camuflando não a derrota dos Liberais nos movimentos de 1842 e 1848,
e sim o fracasso de um projeto de direção, não obstante o provérbio
imperial (...) – ironicamente revele [nada mais semelhante a um
conservador que um liberal no poder].
Mas a própria presença dos saquaremas analisada por Ilmar Mattos é feita em função dos
Gabinetes em que eles estiveram e não exatamente a políticas mais amplas e duradouras,
como na questão da lei de terras ou da extinção do tráfico, por exemplo, que começaram
formalmente a serem discutidas desde 1831 como projeto, e informalmente desde a
Independência em alguns textos e jornais. Não é porque a lei ou a reforma é feita em 1850
que ela seja, automaticamente, convertida em realização dos conservadores, muito pelo
contrário. Pensar que as decisões políticas eram tomadas nos ministérios e não no
Parlamento, no Senado ou no Conselho de Estado é um problema já sinalizado em
trabalhos mais recentes. Bem como a paternidade sobre os projetos implementados pelo
Estado.
Ao analisar os três mundos, percebem-se algumas exagerações que estudos mais
pontuais tem imposto revisão. Como a mudança, do período colonial para o Império, no
reconhecimento dos escravos não mais como as “mãos e pés do senhor”, mas como
verdadeiros inimigos (p.112). Esse tipo de sentimento não é geral. Mas, Ilmar Mattos diz
que os ecravos dificultavam o governo da Casa, do mesmo modo que os indivíduos que
viviam como agregados, indolentes, vadios ou pobres, vistos como um mundo à parte e
tratados como ameaças pelos “setores dominantes”. “Ralé de todas as cores”, “malta que
ocupa as ruas” (p.115). Que se vinculavam ao mundo da Rua, que se associava aos excessos
e exagerações da Liberdade dificultando o mundo do Governo. Assim, os conservadores
deveriam ser vistos como responsáveis e defensores privilegiados da dimensão pública
(p.141). E também por terem hierarquizado a importância daqueles três mundos colocando
o mundo do governo à frente do governo da casa. Uma olhada nos orçamentos do
Império, apenas a título de curiosidade, demonstrará que os Gabinetes liberais foram muito
mais parcimoniosos nos gastos e também que foram os poucos onde houve superávit.
Outra presença marcante na obra é o modelo centro e periferia, defendendo no plano
do governo a corte no Rio de Janeiro como seu espaço privilegiado, como um “poder mais
alto e mais longe” (p.193). Como se as decisões e a direção emanassem dali e não
existissem discussões, negociações ou decisões tramadas ou tomadas em outros espaços ou
centros. Como se outros grupos, ou lideranças políticas não tivessem igualmente se
revestido dessa atribuição no processo de construção do Estado e na administração. De
qualquer modo Mattos fala em
o primeiro dos círculos “mais alto e mais longe” era formado pelas
freguesias urbanas da Corte, e dentre elas particularmente “as do centro”
– Sacramento, Candelária, São José e Santa Rita –, que continham as
instituições e instalações que tornavam possível a reprodução de
interesses dominantes (...). Mais do que em qualquer outro, por ele
circulava o “carro social” descrito por Nabuco, cujas rodas eram a
política e o dinheiro” (p.194). (...) No mais distante dos círculos,
preenchido pelas “freguesias do Sertão”, o máximo de força era
representado pelo governo da Casa, que parecia tudo poder sobre os
homens e as coisas, e por isso mesmo era visto confundindo-se com a
desordem, a barbárie e a anarquia.
Tal compreensão, daquele momento, ensejava a centralização. A construção de uma
rede administrativa e de um corpo de leis e agentes capazes de vigiar e dirigir as áreas mais
distantes e isoladas. Ilmar Mattos reconhece que o tamanho do Império e o caráter
disperso de sua população eram entraves que dificultavam a ação saquarema,
impossibilitando uma centralização absoluta. Os agentes nas localidades e vilas na maior
parte das vezes governavam para o lugar e não exclusivamente para o Império. Em que
pese implementarem diretrizes que viam da corte, realizar mapas, plantas, inventários,
promover a justiça, instituir escolas, construir pontes e estradas, dentre outros; acabavam
por beneficiar as elites locais, evidenciando as turbulências e a artificialidade nas fronteiras
do público e do privado, tanto quanto do interesse particular para o interesse do Estado.
Isso, a despeito da separação entre empregos públicos gerais, dos provinciais e locais. De
qualquer modo, Mattos aponta dois aspectos importantes do papel exercido pelos
saquaremas. Em primeiro lugar advoga para os saquaremas o “monopólio da
responsabilidade” (p.5), como se outras lideranças não fossem igualmente ciosas do erário
ou da administração a fim de preservar o Estado. Em segundo lugar, ao dizer que os
“saquaremas erigiram a Coroa em Partido” (p.5), o que não corresponde à verdade. Tanto
na Maioridade quanto depois, não foram poucos os liberais que fizeram igual defesa da
coroa e da Monarquia, salvo raríssimas exceções.
Um ponto aqui merece destaque. Aqueles que controlam o Estado, durante o
Oitocentos no Brasil, controlam efetivamente tudo? Para muitos leitores de Mattos, os
liberais haviam sido derrotados e teria vencido a centralização. Tal afirmativa baseia-se na
fala e nos testemunhos que ele, meticulosamente, recorta de algumas fontes. Mas como
fonte implica em eleição e em construção, habilmente não estão ali falas que reproduzam
fissuras ao modelo. Tampouco eventos que poderiam evidenciar limites na análise. Mattos
nos diz, por exemplo, que os liberais foram derrotados em 1842, inclusive a alcunha
pejorativa que receberam de luzias, marcava essa derrota, simbólica e concretamente. No
entanto, ele não revela que todos os liberais – revoltosos – foram absolvidos. E o foram,
por juízes conservadores. Aliás, Firmino Rodrigues Silva, quando absolveu os saquaremas
de Minas Gerais, passou a sofrer enormes represálias no interior de seu partido, que até
prejudicaram sua trajetória política. Processo idêntico ocorreu em São Paulo e, parece-me,
também na Praieira em 1848. Então eu me pergunto: onde estava nesses episódios a direção
saquarema para punir aquela “rebelião aberta e devastadora” (p.100)? Mais adiante, Mattos
reproduz o discurso de Paula Souza de 1848 quando afirma no Senado sentir-se
impossibilitado de remar contra a correnteza e quebrar seus remos. Não estaria o ilustre
senador liberal aludindo à Câmara majoritariamente conservadora formada naquele ano que
tinha apenas um deputado liberal do Pará em suas fileiras? Acompanhando O tempo
saquarema temos a impressão de que a tradição liberal se esvaiu com as mortes de Feijó,
Vergueiro e Paula Sousa (p.153).
Em relação aos projetos políticos para o Estado, segundo Mattos
Efetivando muitas das proposições “regressistas” de Vasconcelos, tendo
a seu lado a figura ímpar de Honório Hermeto Carneiro Leão, e
contando com o apoio de José da Costa Carvalho na província paulista, a
“trindade saquarema” constituiria o núcleo do grupo que deu forma e
expressão à força que, entre os últimos anos do Período Regencial e o
renascer liberal dos anos sessenta, não só alterou os rumos da “Ação”,
mas, sobretudo, imprimiu o tom e definiu o conteúdo do Estado
Imperial.
Ao invés de acompanhar o falso debate de que tal obra é projeto dos liberais e aquela dos
conservadores, tendo a reconhecer um caráter mais heterogêneo e plural das medidas
adotadas, muitas delas com décadas de tramitação no Parlamento e no Senado,
atravessando maiorias diversas e incorporando em seu bojo ajustes, supressões e
acréscimos que desfiguram o texto inicial. Igualmente vejo dificuldades em pensar os
saquaremas como os intelectuais orgânicos par excellence do Oitocentos brasileiro. Difusão
das luzes e da civilização, promoção do espírito de associação, dentre outros, já eram
princípios adotados por outras forças políticas que não a saquarema; como a facção áulica
de Aureliano Coutinho por exemplo. Todas elas, falavam uma língua mais ou menos
comum nessas matérias, em uma concordância mais ampla, tal como a da defesa da
escravidão. Assim, os saquaremas não impuseram um projeto moral ou de defesa das luzes,
pois este lhes preexistia. Dizer que o implementaram in totum também não é verdade. Em
sua defesa, Mattos afirma que
sem a pressão das forças sociais as ideias teriam morrido em seu próprio
nascedouro; significa também considerar que essas mesmas forças se não
revestidas de ideias permaneceriam destituídas de orientação, não
tomariam consciência de seus conflitos, não se constituiriam em sujeito
de sua ação (p.149-150).
Uma questão de fundo que não poderia deixar de tratar, diz respeito à associação
que a obra evidencia, entre os saquaremas e o processo de centralização. Penso que tanto o
governo quanto a administração conviveram com fortes gradientes de descentralização,
alguns deles já expostos por outros autores, como Miriam Dolhnikoff, José Murilo de
Carvalho ou Cecília Salles de Oliveira. E, o que é mais importante, que a centralização do
poder transpareceu em diversas oportunidades antes de 1848. Em outras palavras, é
possível encontrar gradientes de centralização em 1822 ou 1831, por exemplo. Se
pensarmos na emissão de selos ou moeda ou na organização cartorial, por exemplo, haviam
diretrizes centralizadoras desde a Colônia.
Passo agora a propor outro modelo de investigação para as relações de poder no
Brasil Império: um modelo rizomático. Que não toma as relações de poder como um
esquema vetorial simplificado e de mão única. Que não as entenda como exclusivamente
verticalizadas ou horizontalizadas, ou partindo de um centro nervoso em direção à periferia
– após 1848 –, ou destas em direção ao centro – como nas Regências. Um modelo que
permita formular uma ordem mais complexa, reconhecendo movimentos e dinâmicas nas
trajetórias políticas e em sua ação, que as considere em suas desigualdades de condições e
formas e que as reconheça como operativas e atuantes estando ou não no centro. Um modelo
multinuclear e rizomático que vislumbre a articulação de vários centros para compreender a
política em sentido amplo. Essa ordem complexa é anterior e prossegue após a presença da
trindade saquarema no poder. Ela se constitui, a meu ver, numa chave de compreensão da
organização política brasileira, que preserva elementos patrimoniais ao lado dos
burocráticos ao longo de todo século 19 e cujas ligações rizomáticas entre as elites regionais
aos projetos de poder iam sendo tecidas, como um processo em curso, concomitante ao
processo de construção do Estado. A relação entre o governo imperial e as autoridades
provinciais e locais, nas mais diferentes esferas da vida pública, era rizomática, pois sua
arquitetura deve reconhecer tanto a afirmação da autoridade do Estado em determinadas
matérias quanto, em sentido inverso, a existência do mandonismo local. Acredito que a
coexistência dessas relações de poder, virtude de um modelo rizomático o qual supera um
tipo de análise binária que predomina na historiografia brasileira que não tem permitido
compreender a plasticidade das relações políticas ou administrativas em curso. Assim,
curiosamente, a historiografia paulista parecia defender a descentralização e os gradientes
de autonomia das províncias, ao passo que a carioca insistia na centralização e na
preeminência do governo imperial.
Ao tratar da centralização, Mattos informa que os saquaremas se incomodavam
com um poder fraco (p.184). Assumindo o discurso do Visconde do Uruguai diz “a
centralização é a unidade da Nação e a unidade do poder. É ela que leva às extremidades do
corpo social aquela ação que, partindo do seu coração e voltando a ele, dá vida ao mesmo
corpo” (Apud: p.184). Talvez fosse o caso de nos perguntarmos sobre os significados que
o conceito de centralização tinha em meados de 1850, para evitarmos possíveis
anacronismos. Mas Mattos nos demonstra a diferença, a la Tocqueville, de centralização
política de centralização administrativa. Eu me pergunto, contudo, se haveria a
possibilidade de uma centralização absoluta, seja política, seja administrativa. Penso que os
saquaremas não impuseram um projeto específico de Governo, que pudesse singularizá-lo,
mas, ao contrário, assumiram o desejo cotidiano, que representava os interesses da Casa e
exatamente por conta disso, pode ser tão longevo. A Casa queria autoridade, subordinação
social de escravos e demais subalternos, a manutenção da propriedade, o controle das
decisões políticas, dentre outros. Apesar de algumas contrariedades – como o pagamento
de tributos, as substituições dos integrantes da máquina administrativa ou recrutamento
para citar alguns – a Casa deu-se por satisfeita com a direção tomada pelo governo imperial
de modo não ter havido uma mudança radical no status quo. A metáfora de Mattos é
sugestiva, porque confere uma fisionomia particular à sua análise, mas é apenas uma
metáfora ao lado de outras metáforas possíveis para aquele tempo e para aquela sociedade.
Com efeito, o tempo saquarema (bom ou ruim dependendo da ótica do analista atual ou
intérprete daquele momento) foi apenas um tempo fugaz no interior de um espaço
infinitamente maior e liberal, que o informa e o dissipa. Tempo que em nada alterou as
práticas ou as características existentes, que se mantiveram por muito mais tempo. As
rusgas, visíveis nas tribunas e nos discursos se contrapõem a uma aparência de absoluta
monotonia e tranquilidade, termos inclusive muito utilizados nos relatórios de presidentes
de província, caso queiramos ficar no nível dos discursos e das aparências. O progresso era,
aliás, a conservação. Não a que promovia os saquaremas, mas a que já havia desde os pactos
de 1822, construídos e reconstruídos desde então.
Na Figura 3 ilustro os tipos predominantes de rede: centralizada (à esquerda),
descentralizada (ao centro) e rizomática (direita). A meu ver, o desafio enfrentado pelo
governo imperial brasileiro foi, ao longo do tempo e, sobretudo a partir de 1831, o de
integrar nucleamentos rizomáticos de poder existentes no território brasileiro.
1 A longa tradição do centro decisório distante, em Lisboa, constituiu práticas e costumes arraigados de
autonomia local no Brasil. Entre outros, ver SCHWARZ, S. Burocracia no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva,
1984 e BOXER, Charles S. O império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1986.
2 Com isso se evitam esquemas interpretativos sobre a constituição do Estado imperial brasileiro, visto que o
mesmo era ocupado por indivíduos que eram, muitas vezes, representantes de uma elite burocrática, mas
também expressões da sociedade escravista, integrados a redes de compromisso e solidariedade oriundos do
Rio ou de alguma outra província. Evitando ainda a dicotomia corte versus províncias e vice-versa. Ou seja,
um perfil multifacetado e híbrido seria mais preferível a insistir em modelos puros.
da recorrência a determinados nomes de sua predileção para ocupar postos importantes em
momentos decisivos. Neste aspecto, ao contrário de seus predecessores na corte carioca, o
grande feito de D. Pedro II, sobretudo após 1848, foi tê-la reduzido a si mesmo.
Uma linha de fuga, como o próprio nome diz, é aquela que se afasta de um ponto
central. Traçar uma linha, torta, sinuosa, perpendicular, paralela ou transversal é um recurso
poderoso para se construir uma cartografia, localizando atores e ações. A política imperial
possuía linhas de fuga porque não se fazia somente com partidos, mas também com
facções, grupos e mesmo indivíduos antes e depois do reconhecimento prático ou formal
dos partidos Liberal e Conservador. Muitos indivíduos atuam fora das organizações
partidárias regulares, vide o caso de Aureliano Coutinho, José Bonifácio ou José Clemente
Pereira, dentre outros), e das interpretações mais amplas cristalizadas pela historiografia a
este respeito3. É preciso reconhecer ainda a força de uma política palaciana ao lado e no
bojo da política partidária, vinda dos bastidores. E também a existência de indivíduos e
grupos que não mantiveram uma posição fixa ao longo do tempo. Basta contemplar algumas
trajetórias políticas para se patentear isso, como a de Francisco de Sales Torres Homem
que de médico-cirurgião da corte, um crítico do Imperador, que transitou pela oposição,
pelos liberais, depois aproximou-se dos conservadores, tornando-se visconde de Inhomirim
e também senador vitalício do Império. Ou a do português José Clemente Pereira.
O Império era formado por complexa rede de relações, solidariedades,
compromissos e pertenças cujas conexões seguiam nas mais diversas direções, nas quais os
elos ultrapassam os limites das paróquias, alcançando vilas e províncias muitas vezes
distantes4. Do mesmo modo, ao pensarmos a governabilidade, por exemplo, embora o
Ministério da Fazenda estivesse no Rio, o aparato administrativo das finanças não se
reduzia ao município da corte. Relações de força, portanto, poderiam se estabelecer tanto
partindo do centro decisório no Rio em direção às províncias, como destas entre si e para a
Corte. Afinal, o Império, o Estado e o governo não eram o Rio de Janeiro ou a corte. Mas
esta era das mais importantes linhas de fuga da política imperial que não se projeta para
fora, mas para dentro. Como uma interiorização das forças e interesses provinciais e locais.
Mas também como uma afirmação de grupos localizados no Rio de Janeiro.
3 É impossível não recordar a imagem feita por João Francisco Lisboa no Jornal de Timon nos anos 1840 de
que “nesta heróica província, a contar da época em que nela se inaugurou o sistema constitucional, os
partidos já não tem conta (...) as aves do céu, os peixes do mar, os bichos do mato (...) já não podem dar
nomes que bastem a designá-los, a eles e aos seus periódicos, o Cangambás, Jaburus, Bacuraus, Morossocas,
Papistas, Sururus, Guaribas e Catingueiros. Assim, os partidos os vão buscar nas suas pretendidas tendências
e princípios, nos ciúmes de localidades, nas disposições antimetropolitanas, na influência deste ou daquele
chefe, desta ou daquela família, e eis aí a rebentar de cada clube ou coluna de jornal, como do cérebro de
Júpiter, armados de ponto em branco, o partido liberal, o conservador, o centralizador, o nortista, o sulista, o
provincialista, o federalista, o nacional, o antilusitano, o antibaiano, o republicano, o democrático, o
monarquista, o constitucional, o ordeio, o desorganizador, o anarquista.”. Apud: FAORO, Raymundo. Os
donos do poder. São Paulo: Publifolha, 1990, v.1, p.417.
4 Maria Fernanda Martins afirma que “falar em clientelismo é adotar um conceito inapropriado, é preciso
partir das práticas políticas para formular ou permitir que um conceito específico possa emergir daquela
realidade, havia uma rede de solidariedades e compromissos não exatamente de clientela, mas entre iguais que
podiam ter status ou ocupar postos diversos. Mas entendidos como pares, não exatamente como
hierarquizados, mas como partícipes de uma mesma sociedade que, nos arranjos locais, provinciais e imperiais
acabava por igualar a todos. O peso da autoridade da corte, não correspondia, necessariamente, ao exercício
da força e da autoridade na cidade, vila, freguesia ou sertão. Pedir favor, aderir a determinado indivíduo ou
grupo não significa, automaticamente, subserviência política ou adesão”. MARTINS, Maria Fernanda Vieira.
Das racionalidades da História: o Império do Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n.04, p.53-61, 2º
semestre de 2012.
Enquanto a historiografia concede grande importância para a formação e a atuação
dos partidos políticos no Império, penso que enquanto estas agremiações partidárias se
construíam, que um dos espaços decisórios mais importantes era a corte e continuou sendo
a corte mesmo depois dos partidos. E dentro dela, existiram muitas facções, a Andradina
que esteve ao lado de D. Pedro I nas jornadas de 1820, a Holandesa que apoiou a regência
malograda da princesa Januária em 1832, ou a Áulica de Aureliano Coutinho a partir de
1834, para citar algumas5. Provavelmente a trindade saquarema (Eusébio, Paraná e Uruguai)
também seja, a seu modo, uma nova força política também palaciana, que desponta a partir
de 1848. A corte e a política palaciana foram sempre um espaço político expressivo. De seu
prestígio em 1808, com a vinda da família real, passando pelo reinado de D. Pedro I entre
1822 e 1831, atravessando o conturbado período Regencial no qual viveu um suposto
momento de retração para, novamente, entre 1840 e 1848, no reinado de D. Pedro II. Tão
importante que, mesmo com o surgimento e o fortalecimento dos partidos políticos –
vetores também fundamentais para a compreensão da política imperial – preservou sua
importância, que seria reduzida somente depois de 1870, com a crise da monarquia e do
Império, quando os partidos pareceram assumir, de fato, algum protagonismo nas práticas
e na vida políticas, conforme ilustra a atuação do Partido Republicano.
Nossa hipótese é a de que a monarquia se apresentava como uma dobra,6 como uma
chave fundamental de interpretação para se pensar a política imperial. A dobra é que faz
dobrar, um espaço que junta duas partes. Do ponto de vista político e pragmático a
monarquia se impôs como um princípio estruturador, a articular a arquitetura
administrativa e política do Estado imperial. Na transição do Estado de perfil do antigo
regime para o Estado imperial brasileiro há uma força política e uma estrutura que se
mantém: a corte e a monarquia. Por isso ela é uma verdadeira dobra que integra Estado e
sociedade. Ela é uma opção e um consenso que foram construídos através das práticas
políticas vivenciadas desde a colônia, que derrotaram o republicanismo. Há uma presença
constante da monarquia, da corte e da influência palaciana, que persiste mesmo após o
fortalecimento da política partidária. Ao lado da formação comum e dos rituais de inserção
no clube da elite imperial, a nobilitação durante o século XIX também deveria ser
considerada como um momento importante de muitas trajetórias políticas destacadas e
como instrumento efetivo de adestramento da elite ao lado dos estudos acadêmicos e da
construção de uma comunidade imaginada, cujas simbologias tem sido largamente
desprezadas pela historiografia.
No interior da elite política imperial, a despeito da formação e dos estudos que
moldavam o pensamento dos indivíduos ou da suposta atuação em partidos, o espaço da
corte exercia forte atração e simbolismo e, nas fissuras existentes (de ordem regional,
profissional, política, etc), promovia pontos de contato, de socialização e de integração
explícitas – conferindo status político, cultural e social. Se os homens do governo ou aqueles
que disputavam espaços na burocracia imperial eram sensíveis à pressão da imprensa,
também o eram em se tratando do reconhecimento pela nobreza. A continuidade das
rotinas palacianas, do Primeiro ao Segundo Reinado é indício seguro de que a corte
5 Sobre Aureliano ver, sobretudo GUIMARÃES, Lúcia M. P. Aureliano Coutinho. In: VAINFAS, Ronaldo
(org). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
6 Em outras palavras, “o modo singular pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de
relação de forças. Cada formação histórica irá ‘dobrar’ diferentemente a composição de forças que a atravessa
dando-lhe um sentido particular”. SILVA, Rosane Neves da. A dobra deleuziana: políticas de subjetivação.
Disponível em: <http://www.uff.br/ichf/publicacoes/revista-psi-artigos/2004-1-Cap4.pdf>. Acesso em 13
out. 2012.
constituía um palco político na vida política brasileira oitocentista, desmistificando a ideia
de que fosse postiça ou figurativa. Chegar ao Rio de Janeiro era uma ambição de todo
aspirante a ascender na vida política oitocentista brasileira. Pouco espaço foi dedicado ao
estudo do valimento e à importância da corte pela historiografia brasileira7. Mas esta já é
outra história.
7 SILVA, Maria B. Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005, p.267.